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Projeto de pesquisa Segurança Pública e Direito – Reunião do dia 14/09/21

Coordenação: Prof.ª Dra.ª Verena Mendonça.


Discente: Marcellia Sousa Cavalcante.

Resumo do livro:
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma
história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª reimpressão, outubro de 2014.

Com o intuito de compreender as bases do medo na sociedade brasileira, Vera Malaguti


Batista traça uma análise diacrônica acerca dos discursos sobre a ordem e a segurança nos dois
tempos de uma história: o medo na corte imperial e a onda contemporânea de pânico na cidade. A
hipótese central do trabalho é de que a hegemonia conservadora da formação social brasileira
trabalha a difusão do medo como um mecanismo indutor e justificador de ações autoritárias de
controle social, de modo que este pânico induzido transforma-se em clamor pelo punitivismo e
pela violência criminal nas políticas de segurança pública.
Por meio de um estudo histórico apurado, a autora utiliza a Revolta de Malês como
acontecimento de referência, o qual representou um marco imaginário do medo naquela época e
que reverberou nas cidades brasileiras, sendo apurados os reflexos na cidade do Rio de Janeiro.
Apesar de o objetivo ser compreender os pormenores do medo na cidade carioca, a abordagem
retrata a história cultural do pânico induzido e seu consecutivo impacto na vida social e política da
sociedade, contribuindo para dissecar as raízes do medo urbano e revelar os seus mecanismos
reguladores.
A autora destaca que no Brasil a difusão do medo da desordem e do caos tem servido como
artifício de neutralização planejada das massas empobrecidas. Diante disso, a estratégia era
delimitar o inimigo como alguém de fora, como o “outro”, e tratar de estabelecer medidas
duríssimas a serem tomadas na gestão dos indesejáveis1. Fincadas as raízes históricas, a autora
pontua que a evangelização era o suporte superestrutural da conquista, pois foi por meio da
pedagogia do pecado, da morte e da culpabilização nas sociedades rigidamente hierarquizadas que
a ordem foi induzida2.
A hegemonia do imaginário cristão sobre a morte impôs a racionalidade de Estado – sem
ordem, o caos é a morte. Não obstante, a difusão do medo através de gravuras, do teatro religioso
e das pregações nas igrejas constituiu o artifício utilizado para o fomento deste imaginário fiel,
não divergente da dinâmica do dia a dia pós-moderno. O espetáculo do sangue ao vivo e a cores é,
na verdade, um conjunto de alegorias do poder, de imagens de morte e de terror que já vieram com
a bagagem inquisitorial. É, portanto, na cristalização da ideologia do cotidiano que se fundam os
sistemas científicos, morais e religiosos de uma época.

O medo e o método. O pânico no paraíso.


No limiar do século XX e no século XXI, o medo não é apenas uma consequência
deplorável da radicalização da ordem econômica, é um projeto estético. A estetização radical
aparece como instrumento de hegemonia política, reprodutora de uma ordem e de uma hierarquia

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estabelecidas. Bauman afirma que apesar do reinado da liberdade individual, a modernidade não
abandonou seus ideais de beleza, pureza e ordem. Em verdade, é identificada a estrutura de uma
civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da segurança, por isso há um mal-estar, um
estado de excesso de ordem3. Os obstáculos à pureza e à higiene são, portanto, obstáculos à
ordem.
Dessa forma, tudo diz respeito à relação com o outro, e é por isso que a chegada de um
“estranho” estremece a segurança cotidiana4. Nessa dinâmica, a colocação de ordem deveria dar
conta das novas “anormalidades”, tratando de identificar, traçar e criar constantemente fronteiras
para os “novos estranhos”.
O ideal de pureza da pós-modernidade passa pela criminalização de problemas sociais5. As
políticas de segurança "tolerância zero” demonstram a seletividade direcionada aos corpos
indesejáveis, aos que não agradam aos olhos abastados e distantes de quem está na cidade.
Trata-se de uma profunda narrativa redutora dos espaços e das suas gentes.
Nesse sentido, a permanente fabricação de estereótipos de inimigos permite o
entendimento do medo como uma interpretação da realidade. A pobreza tornou-se sem destino,
precisando ser isolada, neutralizada e destituída de poder, uma vez que a combinação da estratégia
de exclusão, criminalização e brutalização direcionada a esses indivíduos impede a condensação
de um sentimento plúrimo de justiça capaz de rebelar-se contra o próprio sistema. À vista disso, na
sociedade do consumo, aqueles que não se comportam conforme um padrão previamente indexado
e não alimentam desejavelmente este sistema seriam os “consumidores falhos”. Os consumidores
falhos são os novos demônios, isolados em guetos criminalizados e clientes potenciais do poder da
“indústria da prisão”6.
Loïc Wacquant, ao analisar a ascensão do estado penal nos Estados Unidos, afirma que,
com o desmantelamento do welfare state, iniciada por Ronald Reagan, começa uma popularização
de medidas policiais e jurídicas que instauram uma "caça aos pobres” e um processo de
penalização da precariedade. Neste mundo onde, por princípio, nenhum emprego é garantido,
onde não existem posições seguras, onde os laços de vizinhança e de família se integram; o medo
corrói a alma e os meios de comunicação passam uma mensagem de maleabilidade e
indeterminação. A concomitância identificada é a hipertrofia crescente do Estado penal nos
últimos 25 anos e a destruição deliberada do Estado social, haja vista serem processos
complementares.
O fim do século XX assiste ao declínio do poder político e a ascensão do poder econômico.
O poder político nacional é reduzido e não dá conta da conflitividade gerada pela exclusão e
desamparo de uma nova ordem econômica a nível mundial. Em uma nova etapa, a globalização, as
condutas tradicionalmente criminalizadas tendem a ser monopolizadas pelo poder econômico e
pelas agências políticas nacionais7. Nesse contexto, o poder político em declínio não precisa de
um discurso criminológico hegemônico. Precisa, na verdade, mais do que um discurso, necessita
de um libreto para o seu espetáculo.

3
Op. cit. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
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5
Op. cit. WACQUANT, Loic. A ascensão do Estado Penal dos EUA. In: Discursos sediciosos - crime, direito e
sociedade, ano 7, nª 11. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2002.
6
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., pp. 25-27.
7
pág. 98.
O neoliberalismo fez com que governantes desmantelassem o Estado de bem-estar social
para priorizar a administração penal dos corpos humanos, de modo a produzir a escalada do
Estado policial em todas as suas facetas sombrias: números astronômicos de execuções policiais
disfarçadas de autos de resistência; uso rotineiro da prisão preventiva; aumento das teias de
vigilância e de invasões à privacidade; escárnio das garantias e da defesa legal como se estas
fossem embaraços antiéticos à busca da segurança pública. Trata-se de uma política solicitada.
Concentrar o medo numa parte da população que pode ser nomeada, reconhecida e
localizada é absolutamente estratégico. Parece não haver alternativa na administração do medo8,
tendo em vista que tudo pode ser estigmatizado como crime; há uma tendência a criminalizar a
precariedade, deslocando tudo o que é público para o penal e (re)institucionalizando o direito
penal pós-moderno na estratégica da purificação e do sacrifício.
Interessa compreender a difusão de imagens de terror na produção de políticas violentas de
controle social. A necessidade que o empreendimento neoliberal tem de um poder punitivo
onipresente e capilarizado está presente no controle penal dos contingentes humanos que ele
mesmo marginaliza. Por tal motivo, os discursos que legitimam a crença na pena como rito
sagrado da solução de conflitos são estimulados e incorporados à massa argumentativa dos
editoriais e crônicas de jornais. Esses processos sincrônicos estão todos impregnados na
insegurança globalizada, que se desdobra em medo cotidiano: transformam-se, assim, em
discursos, em teorias criminológicas baseadas no senso comum, mas que revigoram a ode do
extermínio e clamam por políticas criminais de derramamento de sangue.
É na memória do medo, milimetricamente trabalhada, que se constrói uma arquitetura
penal genocida cuja clientela-alvo é metamorfoseada infinitamente entre índios, pretos, pobres e
insurgentes9.

O império do medo.
Compreender o quadro geral dos direitos humanos no Brasil pressupõe entender,
historicamente, a articulação do direito penal público a um direito penal privado. As matrizes de
extermínio fincaram a implantação da ordem burguesa no final do século XIX e na recepção da
doutrina da segurança nacional do século XX, nas políticas urbanas de apartação e nas campanhas
de lei e ordem. Neste quadro, a concepção de “cidadania negativa”, enunciada por Nilo Batista, é
enunciada. A cidadania dos indesejáveis se restringe ao conhecimento e o exercício formal da
própria defesa contra a intervenção coercitiva do Estado10.
O período pós-emancipação do Brasil é marcado por diversas inquietações e por várias
visões hiperbólicas sobre as classes consideradas perigosas11. Em vista disso, as contradições entre
o sistema colonial-mercantilista e o capitalismo industrial na segunda metade do século XVIII são
adentradas. A principal questão a ser administrada, ideológica e politicamente, era a convivência
do liberalismo com o sistema imperial-escravista.
No contexto, o principal problema que se coloca para as elites era como dar continuidade
às relações escravistas com o controle das insurreições – que aspiravam à liberdade, aclamada

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9
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10
BATISTA. Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano
5, n° 20, outubro-dezembro de 1997. São Paulo: IBBCRIM/Revista dos Tribunais, 1997,
11
NEDER, Gizlene. Cidade, identidade e exclusão social. In: Revista Tempo, vol. 2, nª 3. Rio de Janeiro.
pelo próprio liberalismo, mas que nunca poderia ser fornecida ao público solicitante sem
comprometer os interesses elitistas e dominantes à época. Os movimentos libertários
multiplicavam-se, enquanto as tropas corriam em repressão aos Farroupilhas do Sul e explodia a
Revolta dos Malês. As oligarquias temiam principalmente as organizações abolicionistas.
Com a abolição formal do tráfico de escravos em 1831, a contradição jurídica que se
seguiu até a abolição foi de que, a partir disso, a enorme massa de escravos trazida
clandestinamente teria o status de pessoas livres. No entanto, a formação de uma concepção de
cidadania que incluísse os libertos esbarrava na ideia de unidade e indivisibilidade do Império12. É
na defesa dessa indivisibilidade contra as revoltas e insurreições em curso, assim como contra as
expectativas de uma sociedade completa, que a coroa centraliza o papel de gestor de interesses
dominantes à imagem da inviolabilidade da vontade senhorial. Então, o Império contra-ataca
reprimindo e carregando para o futuro as marcas de um sistema penal masclado entre público e
privado, com o poder punitivo incidindo sobre os negros, índios e pobres.
O tráfico de escravos foi abolido legalmente em 1831, mas torelado até 1850, dado que as
práticas de contrabando de escravos eram recorrentes. Diante disso, a autora denuncia a existência
de um "abolicionismo de resultados”, no qual começam a aparecer argumentos antitráfico e
antiescravidão, mas que, na verdade, pugnam por supremacia ética13. O humanismo dos discursos
era apenas elegância retórica, cedendo espaço à biopolítica dos corpos. O escravo continuava
sendo coisa perante a totalidade do ordenamento jurídico14, não poderiam receber os benefícios
legais perto de quem era símbolo de respeitabilidade.
Para Foucault, é na compreensão do excesso do biopoder sobre o direito soberano – nesta
tecnologia que tem como objetivo a vida – que o poder da morte será exercido por meio da noção
de raça e de racismo15. No contínuo devir biológico da espécie humana, distinguir raças,
hierarquizá-las e qualificá-las é um instrumento estratégico de defesa de uns grupos em relação
aos outros, que são atingidos pela ferocidade desta dinâmica. É o racismo que permitirá indicar
quem morre e quem vive.
No período pós-abolição da escravidão no Brasil, o racismo continua clarividente. O
escravo, corporizado e objetificado, transforma-se em obstáculo à higiene e à criação de uma
família brasileira considerada saudável naquela conjuntura. Desse momento em diante será
delineado, cada vez mais, o discurso científico latente que tentará cravar mais internamente a
ideologia senhorial na formação social brasileira.

Discursos que matam: medos impressos.


As agitações do período pós-emancipação anunciavam os diferentes desejos de uma nação
que lutava por hegemonia. Diante disso, circulavam periódicos no Brasil que reproduziram os
embates entre liberais e conservadores na arena política. Não é difícil imaginar que os jornais e
periódicos mais influentes eram aqueles que coadunavam a ideologia hegemônica da sociedade
brasileira.
A emancipação brasileira precisava de discursos biopolíticos para manter a ordem do
império tropical. Diante disso, os discursos impressos da época já gestavam o ovo da serpente que

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irá se transformar em discurso científico no fim do século: o incentivo ao branqueamento da
população brasileira.
O Aurora Fluminense, periódico publicado na cidade do Rio de Janeiro, então capital
imperial do Brasil, no século XIX, assim postulava16:

Se tivessemos seguido a liberal e luminosa política dos E. Unidos


d’America do Norte, teriamos augmentado muito a nossa população
branca, para melhor rebater as violencias dos Africanos… […] Não
previmos o futuro, entregamo-nos no meio dos perigos mais iminentes á
toda seguridade, dormindo socegadamente sobre um solo minado, que
qualquer dia póde rebentar”. (Aurora Fluminense, nª 1016, 16 de fev. de
1835).

Os medos impressos vão se constituindo em discursos que ferem e matam. As repercussões


da Revolta dos Malês na Bahia, inclusive, produziram uma onda de suspeitas que serviu para
concretizar um mutirão feito de açoites e crueldades. O acontecimento em um local repercutiu em
periódicos espalhados por todo o país e que, muitas das vezes, adotavam discursos biopolíticos e
criavam a figura de um inimigo impuro, a ser controlado e domesticado.
Homogeneizar a heterogeneidade é, portanto, o esforço de formação de uma sociabilidade
urbana numa perspectiva de ordem e de civilidade, mas que na verdade traduziriam um projeto de
poder e um estilo de dominação encarregados de estetizar o cotidiano e impor uma ordem
minuciosa que regulasse todas as esferas de existência e forjasse o decoro público17.

A revolta dos Malês. Epílogo.


A Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, foi
o maior levante de escravizados da história do Brasil. Naquela noite, 27ª dia do Ramadã, os imales
tomam as ruas da capital da Bahia. Eles protagonizaram a rebelião, conhecida como dos "malê",
pois este termo designava os negros muçulmanos, que sabiam ler e escrever o árabe. No levante,
conseguiram atacar o quartel que controlava a cidade mas, devido à inferioridade numérica de
indivíduos e de armamentos, acabaram massacrados pelas tropas da Guarda Nacional, pela polícia
e por civis armados que estavam apavorados ante a possibilidade do sucesso da rebelião negra. A
revolta durou menos de vinte e quatro horas, a repressão aos insurgentes foi brutal.
Além das penas de morte, castigos e açoites direcionados aos condenados, nos dias
seguintes ao conflito rumores fizeram com que civis espalhados saíssem atirando a esmo nos
negros18. Não obstante, qualquer objeto religioso determinava suspeição e a consequente prisão.
Os africanos árabes, independente da aproximação com o levante, eram vistos como focos
possíveis de rebelião.
A insurgência foi um marco no imaginário do medo naquela época. Despertou fantasias de
terror, seja pela organização e quantidade de escravos envolvidos, pelo seu caráter militar (dirigido

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a alvos militares e nunca a civis ou à propriedade), seja pela capacidade de leitura e articulação
dos seus protagonistas. Descobrir que os africanos se comunicavam por meio de papéis escritos
surpreendeu os senhores incrédulos da capacidade desses indivíduos.
Na formação do Estado nacional brasileiro, na luta pela hegemonia, os malês e o Islã
representavam a barbárie e a ameaça estética, conduzindo a cruzada nativista cristã brasileira
contra os inimigos estrangeiros, estes eram “o outro”. Delimitar o inimigo como alguém de fora,
mais uma vez, é estratégico. A sociedade imperial nem sequer questionou sobre a instituição da
escravidão, o clamor era direcionado à repressão dos monstros sarracenos.
De um lado, o estímulo ao medo travestido de jornais panfletários, pasquins, continuam a
aparecer. No Rio de Janeiro, a imprensa conservadora, Aurora Fluminense, destaca o
acontecimento na Bahia, felicita a rápida duração do levante e dispara a velha retórica da restrição
de direitos e do clamor pela punição do outro19. De outra parte, o único discurso vivo deste outro é
o livrinho malê, oração muçulmana encontrada no pescoço de um negro morto na revolta de 1835
na Bahia. De acordo com Vera Malaguti Batista, trata-se de um artefato de memória, uma flor
prestes a desabrochar e explodir em algum lugar do futuro20.
Ao final da obra “O medo na cidade do Rio de Janeiro”, a autora disponibiliza a tradução
do livro malê original.
Anexo
Segue registro de ação policial, em 2017, com o intuito de destruir, na região da Luz,
bairro paulista, a zona conhecida como Cracolândia:

Fonte: Jornal Brasil de Fato (reprodução).

Escrita em 2003, a obra de Vera Malaguti versa sobre problemas que vêm se repetindo
incessantemente. Se este era o objetivo, a ação policial truculenta retratada na imagem não
conseguiu, até hoje, eliminar a Cracolândia. Os aspectos da política higienista e autoritária atual
possuem raízes históricas fincadas em uma uma sociedade agrária, patriarcal e escravista de uma
economia depoente e periférica. O medo do outro, que é incentivado todos os dias através de
notícias e filmagens, culmina no clamor pela truculência e pela violência criminal, por meio de
ações e políticas de segurança pública que estão, na verdade, fadadas ao fracasso.

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