Diante da exposição de Sócrates a respeito de como se dá o conhecimento – baseado
na analogia Ver/Conhecer – vimos terminar o desvio proposto por Polemarco e Adimanto. Nesse parêntese foi discutida a viabilidade da cidade perfeita, que só pode existir de fato se tiver filósofos por governantes, sua natureza e, seguidamente, a natureza do conhecimento verdadeiro. O exame empreendido nos livros V, VI e VII culmina na exposição da natureza do conhecimento do inteligível presente na Alegoria da Caverna, que descreve a ascensão da alma ao mundo das idéias e, principalmente, à idéia do bem – tida como princípio de perfeição de todas as demais. Uma vez fundamentadas afirmações que até então tinham sido tomadas tal como ditas, o trajeto da discussão pode prosseguir e, para tanto, retomando o exame referente aos tipos de governo encontrados de fato, qual entre eles seria o melhor e mais justo, assim como o teor da constituição interna do homem semelhante a ela. Voltando, então, à discussão acerca da cidade, são avaliados os tipos de governo encontrados nas cidades já existentes, a saber: timarquia, democracia, oligarquia e tirania, sendo que as outras constituições estariam entre as mencionadas. Todas são examinadas quanto à sua presença em nível de publico e individual, ainda na intenção de comparar dentro delas o homem mais justo ao mais injusto, levando ao cabo a pesquisa acerca da natureza e benefício da justiça. Com relação ao homem na democracia, já haviam constatado que ele era bom e justo (544 e). Sócrates propõe que seja examinada em seguida a constituição que privilegia as honras (denominando-a timarquia) e o homem tal como ela, depois a oligarquia e o homem oligárquico, seguindo com a democracia e o democrático e, finalmente, a tirania e seu correspondente no homem (545 e). O exame das constituições segue uma seqüência na qual cada uma tem origem na corrupção da anterior; de maneira análoga se dá o exame da constituição dos homens relativo a cada uma delas. O recurso expositivo usado por Sócrates remete a uma progenitura na qual os filhos seguem uma orientação que os leva a decair quanto às virtudes da constituição de seu pai. Esse movimento, entretanto, não poderá ser reproduzido com a máxima precisão, dado o espaço limitado. Com relação ao homem democrático, como afirmam (544 e), é bom e belo, pois já incorreram nesse exame anteriormente. Em seguida, é examinada a timarquia, e como ela decorre da aristocracia. Podemos notar, aqui, que Sócrates parte, como era de se esperar, da constituição da cidade perfeita que levantou, dando a entender que as outras constituições são inferiores à reinante nela, uma vez que surgem de sua corrupção. Voltando à timarquia, a rebelião dos descontentes, que coloca de lado os melhores no governo e na guerra e projeta homens ávidos por riquezas, opera mudanças na forma de governo. De um lado, os antigos governantes valorizam a virtude e a constituição anterior; de outro, é difícil achar homens zelosos e íntegros para os cargos de governo entre os restantes. Pois eles serão ávidos de riqueza e a valorizarão no particular enquanto a regulam no publico, descuidando, além disso, das Musas e da ginástica. Em síntese, tanto tal governo quanto o homem correspondente a ele são um misto de bem e mal, o que caracteriza essa forma de governo. A oligarquia, por sua vez, é examinada na cidade e no homem que a ela se assemelha. Uma vez sabido que ela é a forma de governo que tem por critério de participação no governo o censo, ou seja, um mecanismo que permite apenas os ricos no governo, ventando aos pobres essa possibilidade, passa-se a examinar o homem oligárquico. Tal homem, perante a busca de riqueza, termina por valorizá-la mais que a virtude, organizando o censo justamente para controlar o governo e continuar em superioridade em relação aos outros. O que acaba sendo desvantajoso, uma vez que os mais ricos nem sempre são os mais qualificados para exercer tais cargos. Isso prejudica a administração da cidade e a divide em duas partes: a rica e a pobre. Outra desvantagem, segundo Sócrates (552 a), é a multiplicidade de funções admitida na constituição. Tem-se na cidade oligárquica governantes ricos, mas cidadãos vivendo na mendicância. O homem examinado a seguir, parcimonioso e trabalhador, abstêm-se do supérfluo, o que se dá também na cidade cujo governo é conforme a ele. No entanto, se essas características estão presentes em tais constituições, não se deve a educação, mas à necessidade – não sendo genuínas. Dessa forma, mesmo comedido na vida prática, havendo oportunidade, esse homem comete ações corruptas, em se tratando de bens alheios. Mesmo tendo postura melhor que os já vistos, a verdadeira virtude da alma ele não possui (554 e). É importante lembramos que a permissividade da oligarquia gera descontentamento em grande parte dos cidadãos. Essas tensões culminam na ruptura dessa constituição. Com efeito, Sócrates diz sobre isso: “passa a existir democracia, creio eu, quando os pobres, vitoriosos, matam uns, expulsam outros, e aos restantes fazem participar do governo e das magistraturas em pé de igualdade e, no mais das vezes, cargos são distribuídos por sorteio” (577a). Eis o homem democrático e sua cidade par. O modo de vida vigente em tal cidade pode parecer belo a princípio, mas o desprezo pela busca da verdadeira bondade, assim como a excessiva indulgência e o descaso para com os estudos fazem dela bem menos livre do que seria de se esperar, na medida em que se torna escravo de sua liberdade. Por fim, é examinado o tipo de governo que Sócrates define como “a mais bela constituição, e o mais belo homem” (562 a): a tirania. Derivada, pos sua vez, da democracia, ela tem por gênese a busca insaciável da liberdade em tal governo, é isso que a leva a transformar-se em tirania. Aos que a levam ao extremo cabe a punição por parte dos outros. Isso faz com que alguns – os que punem – sejam tidos como oligarcas e ímpios, havendo necessidade de proteção para que não caiam em ciladas. Antes de contratar estrangeiros, seria bem mais fácil libertar escravos que já estão na cidade, pois esses serão gratos e o defenderão sempre. Daí nasce a condição de um indivíduo que, uma vez protegido, pune os que vão contra o povo, defendendo-o. Quando, porém, não houver mais malfeitores, ele será obrigado a manter sua posição de forma ostensiva e violenta. Eis o tirano de Sócrates, finalizando a exposição das diferentes formas de governo, que domina o Livro VIII da obra. Pode-se notar o fato de que para Sócrates, os homens, na democracia são livres em excesso, o que prejudica a constituição, na medida em que seus cidadãos, justamente por terem essa liberdade, se revoltam com freqüência. A tirania, ao contrário, não detém para seus cidadãos tal liberdade, mas é elogiada por Sócrates, pois é a forma de governo que mais se aproxima da que reina em sua cidade perfeita. É interessante retomar a observação quanto ao caráter didático da estratégia expositiva de Sócrates, pois ao ir colocando a sucessão de constituições, vai postando lado a lado com elas o homem que a ela se assemelha em constituição interna, assim como vinha fazendo com a pesquisa da justiça e injustiça na cidade. Alias, foi devido a essa estratégia que se deu anteriormente a necessidade da construção de uma cidade perfeita que permitisse empreender justamente essa comparação entre a constituição em nível de cidade e a constituição interna dos homens. O Livro VIII deixa ao seguinte a análise do homem tirano, movimento que certamente constitui para Sócrates o meio de chegar à constituição de sua cidade perfeita e expor como se dá o governo dos reis filósofos.
Bibliografia
Platão, A República; tradução de Ana Lia de Almeida Prado; Martins Fontes, 2006.
Democracia, Direitos Fundamentais, Paradigmas: Justiça, Segurança e Liberdade : Democracia – história do constitucionalismo e formação do Estado – Estado de Direito Democrático – Estado Social – Direitos Fundamentais