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LEITURAS ETNOGRÁFICAS

UNIDADE CURRICULAR OBRIGATÓRIA

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LICENCIATURA DE ANTROPOLOGIA
2020/2021
2º ano, 1º semestre

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Catarina Lemos
Carolina Lopes
Livaldo Dalva
Victor Barreiras

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Turma: LAB1
Docente: Francisco Vaz da Silva
Data: 17 Novembro 2020

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ATELIER 6

Etnografia
e ficção
LEITURAS ETNOGRÁFICAS | A6: ETNOGRAFIA E FICÇÃO

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INTRODUÇÃO

O tema do nosso trabalho é Etnografia e ficção.

No seguimento dos trabalhos apresentados anteriormente, recordemos os crité-


rios essenciais para a produção de monografias etnográficas. Como sabemos, o et-
nógrafo é simultaneamente cronista e historiador do sujeito de trabalho: é teste-
munha por inteiro de circunstâncias e eventos; regista com métodos precisos dados
e factos; interpreta-os em função do senso-comum ou paradigma teórico a que per-
tence; produz um documento final, obra de ciência social. Uma monografia é este
objecto físico e intelectual, literário sempre, com maior ou menor fluidez dos ar-
gumentos, mais ou menos estético em função do talento do cronista. Em resumo, o
que se pretende é que seja um trabalho o mais correcto possível, autêntico e válido.
Mas, o que acontece se os dados se revelam contraditórios? Se estas colidem com
as ideias do etnógrafo? Se a narrativa põe em causa a autenticidade dos factos? Se a
monografia não for cientificamente válida? Se, afinal, tudo for uma fraude?

"Castaneda's Journey", de 1976 e, “The Don Juan Papers: Further Castane-


da Controversies”, de 1980, são dois livros que o americano Richard de Mille,
formado em psicologia, jornalista de investigação e escritor, dedicou à obra do an-
tropólogo Carlos Castaneda.

A nossa apresentação parte das análises do capítulo 3 "Facto ou Ficção", do pri-


meiro livro, e os capítulos 2, 3 e 6, do segundo, que expõe essencialmente pontos
de vista opostos que trouxeram outra luz sobre a veracidade cientifica do trabalho
etnográfico, e necessidade desta ser fruto de transparência e alvo de um escrutínio
mais apurado.
Porquê? Porque Carlos Castaneda, passou de antropólogo superstar a autor (ale-
gadamente) fraudulento. Dizemos alegadamente porque é por aqui que se desen-
volvem as controvérsias, com duas argumentações antagónicas — dentro e fora da
Antropologia — sobre a veracidade das suas obras. No fundo, como distinguir duas
componentes da verdade, a autenticidade e a validade?

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CARLOS CASTANEDA

Na aula de ontem, já ficámos a conhecer bastante sobre Carlos Castaneda e a sua


obra literária. Que se dizia nascido no Brasil, mas afinal era peruano. Que nasceu
em 1925 e não 1935. E outros deliberados enganos sobre a sua vida pessoal que con-
tinuaram até a sua morte em 1988. Que se inscreveu para doutoramento em Antro-
pologia, na UCLA, Los Angeles, em 1960.
O seu tema de estudo é pertinente — o uso de plantas medicinais pelos índios
que habitavam o sudoeste dos EUA, nomeadamente no sul da Califórnia e Arizona,
até o deserto de Sonora, no México. O objectivo de Castaneda era encontrar-se com
um grupo social nativo, uma prática tradicional ancestral e a abordagem à etnobo-
tânica.
Em 1961 Carlos Castaneda conhece um índio da tribo Yaqui, chamado Don Juan
Matus, e logo se fascinou pela figura deste auto-intitulado feiticeiro, que aceitou o
estudante de antropologia para que conhecesse o uso de peyote, um pequeno cac-
to sem espinhos com alcaloides psicoactivos, muito usado em rituais e tratamentos
medicinais entre várias comunidades índias desta vasta zona.
Contudo, Castaneda foi mais longe nesta viagem, tornou-se aprendiz deste sha-
man. Percorreu o deserto com don Juan, numa viagem intensa de diálogos e
aprendizagens filosóficas, os efeitos psicotrópicos do peyote que permitiam alcan-
çar outra realidade de entendimento, acedendo ao conhecimento espiritual outro-
ra apenas acessível a estes velhos místicos. Castaneda experiencia percepções ex-
tra-sensoriais que proporcionam a capacidade de ver a essência de tudo.
Tudo isto foi transcrito em dois livros. O primeiro foi um best seller imediato, pu-
blicado em 1968, "The Teachings of Don Juan: a Yaqui Way of Knowledge" (um
livro adjectivado pelo antropólogo Walter Goldschmidt como simultaneamente et-
nografia e alegoria). E continua em 1971 com "A Separate Reality".

De meados de 1960s até o início da década seguinte, os EUA são palco de uma
das maiores transformações sociais do século XX. A luta pelos direitos cívicos, os
assassinatos de Martin Luther King e Malcom X. A crescente oposição e manifesta-
ções contra a guerra do Vietname. A revolta da juventude contra a sociedade con-
servadora americana. A emergência do movimento hippie e o flower power. A "des-
coberta" das filosofias orientais, a adesão ao misticismo, a procura da essência da
verdade e da existência. A espiritualidade do New Age. Sex, drugs & Rock n'Roll.

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Os ensinamentos de Don Juan parecem ser a resposta espiritual que muitos pro-
curavam. Os livros respondem sobre a capacidade de alcançar outra realidade de
conhecimento. O sucesso dos livros, o interesse etnográfico do shamanismo e a
crença no esotérico e no misticismo fez muita gente procurar Don Juan. Alguns an-
tropólogos intensificaram os seus estudos do shamanismo. Vários seguidores do
misticismo ou meros hippies foram à procura da droga perfeita.
A dissertação que lhe concedeu o doutoramento em Antropologia pela UCLA,
em 1973, é fruto desse longo trabalho de quase uma década, cujo apuramento aca-
démico e antropológico surge num terceiro livro. “Journey to Ixtlan” reúne tudo
de novo, mas Castaneda rescreve a história à luz de uma nova interpretação que faz
da sua experiência. Apesar de algumas dúvidas levantadas e manobras evasivas de
Castaneda, passa a ser material científico reconhecido.

As temáticas da percepção sensorial e ligação íntima espiritual com a natureza,


demostrada nos ritos ameríndios, nunca deixaram de ser alvo de estudo nos EUA.
Em 1972, a professora universitária de filosofia, a nativo-americana Katherine
Siva Saubel, publica com o antropólogo Lowell John Bean "Temalpakh (From the
Earth): Cahuilla Indian Knowledge and Usage of Plants".
Em 1974, a antropóloga Barbara Myerhoff publicaria o igualmente aplaudido
“Peyote Hunt: The Sacred Journey of the Huichol Indians” — o mesmo cacto
alucinogénico de Don Juan e Castaneda, mas noutra sociedade índia.
Victor Turner, autoridade antropológica americana, escreve no prefácio:
“não há como negar a curiosidade renovada sobre a natureza
das conexões entre culturas, a cognição e a percepção (...). Muitos
livros foram publicados recentemente sobre os efeitos dos agentes
alucinogénicos na personalidade e na cultura. O livro de Myerhoff
difere significativamente da maioria” (p.8-9).

Com o sucesso da trilogia inicial e agora "senhor-doutor", Carlos Castaneda tem a


possibilidade e a autoridade para continuar a escrever sobre o assunto, que lhe é
muito caro sem dúvida. Uma sucessão de livros sobre o velho mestre Yaqui e a via-
gem espiritual de Castaneda tornaram-se uma saga volumosa (12 livros), criando
uma veneração mundial e um culto personalizado de estrelato new age.
Acontece que houve quem tenha desconfiado, lido e identificado falhas, erros,
inconsistências, e plágios diversos. Conclusão grave: uma fraude etnográfica ca-
rimbada pelas instituições antropológicas.

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DENÚNCIA

Richard de Mille, leitor curioso como tantos de "Os Ensinamentos de don Juan",
começa a encontrar inconsistências nas narrativas. Entretanto, em 1974, Castaneda
lança um quarto volume da saga de don Juan, "Tales of Power". Perplexo, a sua cu-
riosidade debruça-se sobre erros e plágios que vai sucessivamente identificando, e
denuncia a obra de Castaneda como um logro antropológico. Primeiro com o livro
"Castaneda's Journey: The Power and the Allegory" (1976) e, depois em "The Don
Juan Papers: Further Castaneda Controversies" (1980), acompanhado de forma
muito inteligente por defensores da fraude e apoiantes de Castaneda.
O escrutínio a Castaneda levanta imensas controvérsias entre a comunidade ci-
entífica e leigos apaixonados pela obra. A veracidade dos livros é questionada, põe-
se em causa o método etnográfico de Castaneda. Segundo Richard de Mille, muitos
antropólogos publicamente questionaram ou negaram a factualidade das obras.
Foram comparadas às "Viagens de Gulliver", possuíam "elevada percentagem de
imaginação", duvidou-se da existência de don Juan, considerou-se "mais obra artís-
tica que académica", que a história de Don Juan é uma "pseudo-etnografia". O etno-
botânico Gordon Wasson cheirou-lhe a embuste logo à primeira leitura.

De forma rápida, eis alguns dos erros, inconsistências, logros e plágios:

- alteração de factos e descrições dos mesmos eventos


- alteração das personalidades de don Juan e de Castaneda
- espanhol de Don Juan traduzido para inglês usando expressões tipicamente
americanas (como pode uma fala estrangeira ser transposta como gíria?)
- ausência de nomes indígenas de qualquer fauna, flora e expressões típicas Yaqui
- o deserto é vagamente descrito, e não há relatos de episódios inesperados
face à hostilidade do lugar
- ausência de detalhes convincentes e presença de descrições implausíveis
(uma viagem de carro interrompida por um percurso dois dias a pé entre
as montanhas, para depois num ápice entrarem no mesmo carro)
- Don Juan, auto-intitula-se sorcerer mas nunca o poderia ser, pois os feiticeiros
são temidos ou odiados. Sendo ele membro da tribo Yaqui, dispersa por tantos
territórios depois de dezenas de anos de conflitos armados abertos com
mexicanos e americanos, seria mais um eremita sem pouso certo que
um líder shamanístico local

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- várias palavras e frases, incluíndo os tais ensinamentos de Don Juan,


foram identificadas como plágio, retirados de livros de misticismo
que Castaneda muito possivelmente consultou na biblioteca da universidade
- incompatibilidade lógica, narrativa e temporal entre os dois primeiros livros
e o terceiro quando, supostamente, se trata especificamente do encontro
de Castaneda com don Juan
- ninguém encontrou Don Juan, nem alguém que alguma vez o tivesse
visto ou ouvido falar dele

No prefácio do segundo livro de Richard de Mille, este cita a já referida antropó-


loga Barbara Myerhoff, que se indignou com o que leu em "Tales of Power" e os an-
teriores, e reconheceu elementos por ela relatadas muito provavelmente plagiadas
por Castaneda. Ela diz o seguinte:
"As tradições indígenas merecem respeito e uma preservação precisa,
e esses registos devem ser distinguidos de obras imaginativas"
Prefácio, ii

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AUTENTICIDADE E VALIDADE

Em "The Don Juan Papers: Further Castaneda Controversies" Richard de


Mille edita e é co-autor de vários textos sobre esta polémica etnográfica, que reúne
argumentos de outros defensores da fraude, mas também contra-argumentação de
apoiantes de Castaneda. Este diálogo aberto, coloca-nos perante duas questões
fundamentais: a autenticidade e validade de um trabalho científico.

Carl Rogers, psicólogo, afirma — "os documentos mais vividamente convincen-


tes que li vêm de um homem, Carlos Castaneda”. A revista New Age diz que Cas-
tenada "pode estar a mentir (...) mas o que diz é verdade".
E como ouvimos também na aula de ontem, a respeitada antropóloga Mary Dou-
glas — que trabalhava sobre cultura, simbolismo e religião comparada — tem um
texto que defende a veracidade do relato:
"Em si mesmo, a filosofia do misticismo ascético, tão gradualmente
reunida, é evidência suficiente da verdade da narrativa".
Para ela os elementos que distingam ficção de verdade não são assim tão rele-
vantes, pois toda a experiência que Castaneda escreve prova como a busca do co-
nhecimento pode obrigar a mudar o processo, e interligar antropologia e misticis-
mo com o mesmo esforço com que atravessa literalmente ou metaforicamente dois
mundos da realidade, oferecendo um enorme avanço e contributo para a antropo-
logia.

O título do texto de Mary Douglas é "A autenticidade de Castaneda".


É por aqui que devemos agora centrar a nossa discussão.
A autenticidade e a validade de uma obra etnográfica.

Perguntas
- O que é autêntico e o que é válido? Como distingui-los?
- Uma obra pode ser inautêntica e ser válida?
- Como entender um trabalho autêntico mas inválido?
- Como determinar o valor científico mediante estas duas componentes?
- Afinal, como se faz ciência se factos e fontes não são credíveis?
- Pode a mensagem por si só proporcionar a validade
do que se quer reconhecer?
- Como se escreve uma monografia etnográfica, sem colocar em causa
a sua validade e autenticidade?

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Respostas
Uma obra é válida quando a mensagem é verdadeira.
É válida quando os factos relatados têm lógica narrativa.
Validade só se obtém com observação autêntica e correcta descrição.
Uma etnografia só é considerada autêntica se não possuir contradições,
erros, falsidades.
A autenticidade advém do respeito à proveniência do relatório,
do procedimento, e da correcta descrição dos factos recolhidos.
Não há autenticidade quando o leitor é enganado com os factos expostos.

Nestes parâmetros, para Richard de Mille o trabalho de Castaneda é inautêntico


pela forma como usa mal o método etnográfico, incorrendo em erros, inconsistên-
cias e plágios.
Mas é válida, pois as mensagens, o conhecimento esotérico e filosófico são re-
conhecidas como verdadeiras.

No seu todo a obra de Castaneda é deliberadamente enganadora, um logro an-


tropológico, pois usurpou a credibilidade que lhe foi conferida pela academia para
veicular a sua agenda mística.

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FACTO OU FICÇÃO?

Uma obra etnográfica não pode ser ficção? Se os factos descritos forem correc-
tos, será razão para a assumirmos menos autêntica, ou suficientemente inválida?
Pode dizer-se que todo o facto descrito é uma ficção, se as palavras que lemos
são a interpretação do autor. Mas se aproximarmos todos os livros a uma ficção, os-
tentar o mérito de uma validação científica será abusivo?

Não é o estilo literário de ficção que incomoda Richard de Mille, longe disso. No
seu segundo livro, ele dá exemplos específicos em como narrativas foram anteri-
ormente escritas de forma criativa (leia-se, ficcionada) cujos dados descritos são
etnograficamente correctos. O problema é quando se vende gato por lebre, e alega-
se etnografia quando tudo se revela pura invenção.

Recordamos — o etnógrafo é simultaneamente cronista e historiador. A credibili-


dade e a autoridade enquanto cientista social são medidas no modo como expõe o
conteúdo, se respeitam as fontes, se as interpretações que faz (mesmo dentro do
seu próprio contexto paradigmático) são válidas e comunique de forma honesta,
transparente e verdadeira.
Saber como escrever e respeitar o método são essenciais.
Como vêem, as perguntas sucedem-se.

Para terminar e abrir o debate:

Pode o etnógrafo imaginar uma narrativa


para comunicar etnografia?

Se os factos descritos estiverem correctos,


será razão para a assumirmos menos autêntica,
ou suficientemente inválida?

Ou tem a etnografia de ser sempre e apenas facto?

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BIBLIOGRAFIA

DE MILLE, Richard. The Don Juan Papers: Further Castaneda Controversies


Ross-Erikson, 1980. Reprint, Lincoln, NE: iUniverse, 2000

DE MILLE, Richard. 2000. "Fact or Fiction" In Castaneda’s Journey: The Power


and the Allegory. Lincoln, NE: iUniverse.

MYERHOFF, Barbara. Peyote Hunt: The Sacred Journey of the Huichol


Indians. 1974. New York: Cornell University Press; Cornell Paperbacks, 1976

CASTANEDA, Carlos
A Erva do Diabo, Os Ensinamentos de Don Juan
1968. Rio de Janeiro: Editora Record, 15ª edição, 2000. Edição ePub
The Teachings of Don Juan, a Yaqui Way of Knowledge
1968. Edição ePub *
Journey to Ixtlan, The Lessons of Don Juan
1972. Edição ePub *

[* problema de algumas edições ePub não terem ficha técnica…]

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