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Agora que o ano se encontra já no seu anoitecer, podemos começar a olhar para

trás e ver o que é que, na floresta quase impenetrável de livros editados, tomou a
dianteiro. Todos os Poemas, de Friedrich Hölderlin, que reúne pela primeira vez em
língua portuguesa toda a produção poética de Hölderlin (vem acompanhada, também,
por uma pequena amostra dos textos poetológicos), dificilmente escaparia, fosse que
ano fosse, a tornar-se um dos acontecimentos editoriais mais importantes. Se não
estivesse tudo demasiado atomizado, que é sempre índice de um meio sem fulgor, a
tradução poderia transformar-se num desígnio nacional e o país uma espécie de
território retirado de um conto de Borges, com uma profusão imensa e incalculável de
tradutores de todas as línguas, apostados em salvar todas as grandes obras,
enriquecendo, desta forma, a língua portuguesa. Seria uma tarefa messiânica (“um fraco
poder messiânico”, como diria Walter Benjamin), como messiânica é a figura do
tradutor, produziria uma riqueza infinita tanto em termos de publicações como na
própria inventividade da língua e, por fim, essa legião imensa de tradutores, a trabalhar
dia e noite, salvaria, cada um, o seu pequeno pedaço de uma tradição cada vez mais em
perigo.
Já tínhamos, de Hölderlin, as traduções de Paulo Quintela e de Maria Teresa Dias
Furtado, já tínhamos A Morte de Empédocles, Híperion, os Fragmentos de Píndaro,
com tradução de Bruno C. Duarte, que também nos deu um conjunto de ensaios de
diversos especialistas reunidos em Lógica Poética – mostrando, tudo isto, que o fulgor
de Hölderlin é especialmente bem acolhido em Portugal ou que, pelo menos, há como
que uma tradição que transporta o nome do poeta alemão do século XIX (mais ligada à
tradução do que ao ensaio ou mesmo à poesia). Com Todos os Poemas, no entanto,
além de aumentar as soluções de leitura e de interpretação da poesia de Hölderlin,
vemos a oficina poética, os avanços e os recuos, as reformulações sucessivas que foi
fazendo, as mutações que os temas predilectos foram sofrendo.
Um dos perigos que enfrenta quem se tente abeirar deste poeta passa pela
quantidade imensa de leituras de teor filosófico que pesam sobre estas seiscentas
páginas. De Peter Szondi a Walter Benjamin, de Adorno a Heidegger, passando por
Philippe Lacoue-Labarthe ou Paul de Man, a quantidade de leituras e interpretações em
clave filosófica é de tal forma abundante e prestigiada (não se trata, como se vê, de
filósofos menores) que é difícil não sentir a tentação de sobredeterminar e de preencher
qualquer texto com um aparato crítico excessivo. No entanto, mesmo correndo o risco
da ingenuidade ou da inocência (fingida ou não), é preciso por vezes sacudir toda esta
literatura secundária, tentar ignorar, de forma propositada, todos esses grandes nomes
que escreveram sobe Hölderlin – tentar, portanto, um olhar mais inocente, mesmo
sabendo que este é apenas uma ficção ou, no pior dos casos, ignorância. Agir ou fingir
que se age de forma selvagem.
Para isto concorre, sem dúvida, a parcimónia e a moderação que encontramos, em
termos críticos, na edição preparada por João Barrento para a Assírio&Alvim. Seria
demasiado fácil, de facto, preencher esta última de bibliografia, acrescentar, aos
poemas, todas as leituras e interpretações que a história foi depositando. A opção, no
entanto, foi outra, reduzindo ao mínimo o atrito, reduzindo ao essencial as informações,
devolvendo-nos desta forma essa manhã de festa – que talvez se tenha tornado
impossível – em que ritmo e sentido, forma e conteúdo se encontram de tal forma
entrelaçados que, hoje, só podem surgir-nos imbuídas de uma radical estranheza – uma
estranheza que talvez fosse a de Hölderlin face ao seu próprio tempo. Deixa ouvir,
assim, essa língua bárbara que se move de forma vertiginosa nesta poesia, mostrando-a
ao mesmo tempo infinitamente distante de nós, mas conservando, no entanto, todo o
ímpeto que lhe é própria.
Esta radical estranheza, esta língua bárbara que o poema deixa ouvir, é tornada
possível por um facto para o qual João Barrento começa por alertar, a ausência de
qualquer paralelismo, na poesia portuguesa do século XVIII e XIX, para Hölderlin.
Dificulta a tradução, certamente. Mas, por outro lado, é o ar rarefeito, a altura quase
impossível em que o ritmo se move, a frase longa, que assim se torna possível – não se
prendendo a qualquer paralelismo histórico. O furor, a potência de uma poesia que tudo
parece arrastar, desde os abismos mais insondáveis, o desespero mais lancinante – a
solidão, o luto –, aos tons mais apoteóticos, tudo isto se dá a ler, no entanto, a partir de
uma modéstia e de uma sobriedade (“No momento em que perdes a sobriedade, limitas
o teu entusiasmo”, como afirma Hölderlin) que é também aquela de uma tradução que
pretende libertar o poeta alemão de uma certa aura de sacralidade que tem em certos
círculos.
“como quando do órgão magnificamente afinado,
Na sala sagrada,
Jorrando puro, de infindáveis tubos,
Se inicia o prelúdio, o despertar da manhã
E a toda a volta, de sala em sala,
O rio refrescante e melódico começa a correr,
Enchendo de júbilo a casa
Até às mais frias sombras.”
Até as “mais frias sombras” são inundadas por este rio – melódico –, imparável,
que tudo arrasta, cujo fulgor galga qualquer margem.
É, em certa medida, uma poesia que se move nos extremos, constantemente
invocando este “rio” incontível que tudo abarca, tornando presente os deuses, mas,
igualmente, delimitando o lugar de onde se ausentaram, mostrando-os num exílio
perpétuo, numa errância que lança a sua sombra sobre o tempo. É a poesia, digamos
assim, enquanto afirmação incondicional, enquanto torrente que chama a si todos os
momentos e onde tudo comparece, desde a tonalidade mais eloquente ao luto mais
desesperante e sem saída (“Diz-me, onde está Atenas? Talvez afundada em cinzas,
/Sobre as urnas dos mestres, deus enlutado”) – havendo momento reflexivo, “poesia da
poesia” ou “poeta do poeta”, esse é invocado sempre a partir de uma exuberância, como
um excesso de vitalidade que, por um breve momento, pára para olhar o caminho
percorrido.
Talvez seja a partir desta afirmação incondicional da poesia que se pode dizer que
Hölderlin permanece um poeta profundamente intempestivo. Blanchot dizia que há
certos autores que alteram um determinado género “com tanta autoridade e com uma
força tão embaraçosa, por vezes tão embaraçada, que parecia impossível regressar à
forma tradicional, ou ir mais longe no uso da forma aberrante, ou até repeti-la”. Com
isto parece querer sinalizar que a experimentação contida na obra de certos autores
(Blanchot não fala de Hölderlin, mas talvez se possa acrescentá-lo a Woolf, Joyce,
Broch, Musil e Thomas Mann) recusa qualquer forma de descendência, de familiaridade
– como se quisesse permanecer no seu espaço rarefeito. A sua experimentação – e, em
Hölderlin, esta vai ao ponto de criar o próprio passado que pressupõe, esses gregos que
são ao mesmo tempo tão próximos e infinitamente estranhos – é de tal ordem singular,
idiomática, que a chave que abre o campo de interrogação se encontra perdida na
própria obra e só a partir desta pode ser encontrada. Sem filhos, talvez órfã, impossível
de imitar, Hölderlin é um astro solitário, provando que se é possível enlouquecer por
excesso de vida – uma hipótese que talvez nos chegue de Nietzsche –, também se
poderá renunciar, por pura exuberância, a qualquer descendência, lançando os poemas
contra qualquer tempo, incluindo o seu e o nosso.
Talvez resida aqui essa intempestividade que se solta da fúria e do fulgor desta
poesia: ela é lançada contra o seu tempo, que não o compreendeu, da mesma forma que
não compreendeu Espinosa, com quem João Barrento encontra afinidades relativamente
a Hölderlin (tanto num como noutro encontramos uma “imanência falante”, uma
“natureza abandonada pelos deuses, mas ainda capaz de os convocar”); mas faz também
valer os seus direitos contra nós, hoje – e “hoje”, esta pequena palavra, tem uma
importância fundamental num poema em que Paul Celan convoca Hölderlin. Todos os
Poemas mostra Hölderlin em toda a sua impossibilidade, como se estes poemas fossem
para nós, hoje, uma língua incompreensível no seu fulgor – incompreensível e,
consequentemente, tanto mais necessária.

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