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ESTUDOS

II
A Norma Jurídicaz

1. A NORMA AUTORIZANTE
A que espécie determinada de normas pertencem as
normas jurídicas? Na multidão das normas, que traço as
distingue das demais?
Uma qualidade notabilíssima das normas jurídicas as
diferencia das normas não jurídicas. Essa qualidade, que
lhes é própria, e delas exclusiva, é a que designamos pelo
adjetivo autorizante.
A norma jurídica é um IMPERATIVO AUTORIZANTE.
Na definição da norma jurídica, o adjetivo autorizante
possui sentido estrito e peculiar.
A norma jurídica é autorizante porque ela autoriza
quem for lesado por violação dela a empregar, pelos
meios competentes, as sanções da lei, contra o violador
(violador efetivo ou provável), para fazer cessar ou obs-
tar a violação, ou para obter, do violador, reparação pelo
mal que a infringência causou; ou para forçar o violador
a repor as coisas no estado em que estavam antes da vio-
lação; ou, por último, nos casos de crime, para processar

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os acusados da prática de delitos, e quando condenados,


para aplicar-lhes as penas da lei, assim como as medidas
legais de segurança social.
Em suma, a norma jurídica é autorizante porque auto-
riza o emprego dos meios competentes, permitidos pela
lei, para exigir, dos violadores dela (violadores efetivos
ou prováveis), o cumprimento do que ela manda, ou are-
paração do mal causado pela violação.
Nos casos específicos em que a violação é ato designado
como crime, o autorizamento da norma violada se erige
numa imposição, dirigida aos Poderes competentes do
Estado (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário) e
aos demais poderes legitimados - tudo como será expli-
cado no n. 8 deste ESTUDO.

2. A NORMA JURÍDICA: SEMPRE BILATERAL


Todas as normas são imperativas porque, de uma ou
outra maneira, todas as normas são mandamentos. Mas
somente as normas jurídicas são autorizamentos.
Este é o motivo pelo qual se diz que a norma jurídica é
bilateral. De fato, por um lado, ela é um mandamento, im-
posto a determinadas pessoas; e, por outro lado, é um au-
torizamento, instituído em benefício de outras pessoas.
O autorizamento constitutivo da norma jurídica é, pre-
cisamente, o que a distingue das normas não jurídicas.
Se uma norma violada for jurídica - queremos insistir
-, a pessoa lesada pela infringência estará autorizada,
pela própria norma violada, a exigir, pelos meios que a

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lei consagrou, o cumprimento dela, ou a reparação do


mal sofrido, ou a reposição das coisas no estado em que
estavam; ou, nos casos de crime, a cominação da pena
ao delinquente. Se a norma violada não for jurídica, nin-
guém terá essa autorização.
Seja, por exemplo, a seguinte norma: "Praticarás a
caridade". Poderá uma pessoa estar em condições de
cumprir essa norma, mas deliberadamente a viola; não
pratica nenhuma caridade. Prejudicados ficarão, nesta
hipótese, os que a caridade daquela pessoa beneficiaria.
Mas ninguém estará autorizado a exigir o cumprimento
da norma infringida. O mendigo de braço estendido, de
caixinha na mão, não pode exigir a esmola que lhe foi ne-
gada. A norma violada não lhe concede autorização para
exigir o cumprimento daquela norma. Não sendo autori-
zante, tal norma não éjurídica.
Seja, agora, esta outra norma: "Pelo contrato de compra e
venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio
de certa coisa, e o outro contratante a pagar-lhe certo preço
em dinheiro" (Código Civil, art. 481). Se o vendedor não
transferir o referido domínio, ou o comprador não pagar
o referido preço, violada estará a norma citada. Nessa
hipótese, o lesado, que tanto pode ser o vendedor como o
comprador, ficará autorizado a exigir o cumprimento da
norma infringida (a transferência do domínio; o paga-
mento do preço). Logo, a citada norma, diferentemente
da primeira, é autorizante, é um autorizamento, e, por-
tanto, é uma norma jurídica.
Sendo autorizante, tanto são jurídicos os mandamen-
tos de uma lei ou de um código, de uma portaria ou de

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uma postura, de um regulamento ou de uma resolução,


como as estipulações de um contrato, de um estatuto,
de um regimento, de um pacto; ou como as disposições
de uma decisão administrativa ou de uma sentença judi-
cial.
São jurídicas as normas escritas ou não escritas, legais
ou costumeiras, contanto que sejam autorizantes, isto é,
que autorizem a pessoa lesada pela violação da norma a
proceder de maneira competente, para completar sua in-
teração com quem a prejudicou.
Jurídicas são as normas que autorizam a reação cor-
respondente à ação violadora da norma. Essa reação é a
que se acha devidamente autorizada por norma jurídica,
e tanto pode ser o ato de "Jazer justiça com as próprias
mãos" (ato este permitido pelo Direito, em casos estritos:
Código Penal, arts. 23 e 24), como pode ser o pedido for-
mal, feito em juízo.
Somente são jurídicas as normas aptas a ser invocadas
como fundamento válido de uma pretensão submetida
ao Poder incumbido de "distribuir justiça" numa socie-
dade. Isto significa que somente são jurídicas as normas
que autorizam alguém a submeter sua pretensão ao refe-
rido Poder.
Note-se que esse Poder tanto pode ser o juiz da Comarca
ou o Tribunal de Justiça dentro de um Estado, como
pode ser o cacique dentro de uma comunidade indígena.
No nível do Estado, com Poder Judiciário organizado,
somente são jurídicas aquelas normas que forem aptas a
servir de fundamento válido para um pedido em juízo. Isto
significa que somente são jurídicas aquelas normas que

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autorizam tal pedido (que autorizam a parte, o autor ou o


réu requerer em juízo).
Veremos no ESTUDO V que a norma verdadeiramente
jurídica, no completo sentido deste termo, há de ser não
apenas autorizante, mas, também, harmonizada com a
ordenação ética vigente. Observe-se, porém, que a norma
harmonizada com a ordenação ética vigente não será ju-
ridica se não for autorizante.

3. AUTORIZAMENTO EAUTORIZACÃO

Na terminologia que aqui está sendo empregada:


a) a palavra autorizamento designa a autorização en-
quanto qualidade da entidade autorizante, isto é, en-
quanto qualidade da norma jurídica;
b) a palavra autorização designa a autorização en-
quanto aptidão da entidade que a recebeu. Designa um di-
reito, um direito especial, chamado Direito Subjetivo, do
qual trataremos no ESTUDO VI.
Em virtude do autorizamento das normas jurídicas, o
lesado pode, com autorização jurídica, completar sua in-
teração com quem o prejudicou. Após a ação violadora
da norma, a própria norma autoriza a reação correspon-
dente.
O autorizamento da norma é causa da autorização de
que o lesado é titular.

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4. UM ESCLARECIMENTO IMPORTANTE
Sobre a qualidade autorizante da norma jurídica, uma
observação importante precisa ser feita.
Em rigor, a sociedade é que é autorizante.
Aqui empregamos o termo sociedade para designar
tanto a coletividade toda como, também, os inúmeros
grupos sociais de que a sociedade global é composta.
É óbvio que a sociedade e os grupos sociais existem
para servir seus integrantes. Os seres humanos vivem
em sociedade e em grupos sociais a fim de atingir seus
objetivos, ou deles se aproximar.
Para poder servir-se da sociedade e dos grupos sociais
a que pertence, cada pessoa está autorizada a exigir do
próximo certas ações e certas abstenções, em seu próprio
benefício. Mas isto importa na obrigação, a que se acha
sujeita cada pessoa, de praticar certas ações e de abster-
se de outras, em benefício de seus semelhantes.
Numa sociedade, certas exigências e certas proibições
serão sempre permitidas. Isto decorre da função instru-
mental das sociedades humanas.
Essas exigências e proibições implicam interações ne-
cessárias ou úteis. Necessárias ou úteis, em verdade, por-
que constituem a condição para que a sociedade seja, efe-
tivamente, uma comunidade e, assim, atinja os fins para
os quais se constituiu.
De fato, a coletividade é que é autorizante, porque ela
é a entidade concessora, a entidade que concede a referida

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autorização. Mas esta autorização não se verifica quando


a norma violada não é jurídica. É uma autorização de tal
maneira associada à norma jurídica, que uma não existe
sem a outra. Precisamente por ser jurídica, a violação
da norma acarreta essa autorização. E essa autorização é
concedida precisamente porque a norma é jurídica.
Se se diz que a norma é autorizante - quando, funda-
mentalmente, a coletividade é que o é-, nada mais se faz
do que simplificar a linguagem.
Em verdade, esta simplificação não falseia coisa ne-
nhuma, porque nada desaconselha que a própria norma
seja considerada autorizante, já que ela exprime (ou deve
exprimir) a vontade da coletividade.
Pelo simples fato de existirem e estarem vigentes,
as normas jurídicas manifestam essa vontade social.
Manifestam, antes de tudo, os mandamentos que, por
elas, se exprimem; e manifestam, também, embora ta-
citamente, a advertência de que, se violadas, os lesados
estarão autorizados, pela coletividade, a exigi.r o seu cum-
primento ou a reparação do mal causado pela violação.
Essa advertência é tácita sim, em cada norma jurídica,
mas está expressa, com todas as letras, na própria Cons-
tituição, em seu capítulo sobre direitos e deveres indivi-
duais e coletivos: "a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 52 , XXXV).

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