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Capitulo 3
COMO E POR QUE TEORIZAR
O PORTUGUES: RECURSO
COMUNICATIVO EM SOCIEDADES
POROSAS E EM TEMPOS HIBRIDOS
DE GLOBALIZAÇAO CULTURAL'
Luiz Roulo da Moita Lopes

A celebração do bilinguajar? ou do plurilinguajar é precisamente a celebração da fenda no processo


global entre histórias locais e desígnios giobais, entre 'mundializacão" e globalização, das linguas
para movimentos sociais, e uma crítica das ideias de que a civilização está relacionada * pureza"
do colonial e do monolinguajar nacional (Mignolo, 2000:250).
A noção do local se tornou um foco cada vez mais significativo nas ciências sociais, de certa forma,

como uma reação ao que tem sido teorização ampla e não situada, na maior parte do século
uma

estrutura linguística, o foco mudou


XX. Em vez de falar de natureza humana, cognição universal, ou
para o local, o situado, o pariicular (Pennycook, 2010:1).
Pode-se argumentar que, sob a globalização, as linguas esto se desenvolvendo e se espalhando

cada vez menos como sistemas linguísticos uniformes coerentes (Coupland,2010:11).

1. Introdução
noticiário
Pouco antes de começar a escrever este capitulo, ouvi no

de vistos de trabalho para europeus


da manh que o número de pedidos
e estadunidenses no
Bra-
portugueses, franceses, gregos, espanhóis etc.)
-26/11
bolsa de produtividade em pesquisa (302201/2009-0) e à FAPERJ (E
1.Sou grato ao CNPg pela a realizaçåo do trabalho aqut
0.Ob5/2012) e uma série de auxilios a pesquisa que possibilitaram
por
relatado. talar
e
reierir av coneeito de escrever

Linguajar é um termo que Mignolo (2000: 226) usa para se umiato jcons
conceilo yuer desconstruir a ndeia
de que a lingua é
atavessando linguas diferentes. O é um modo de
que 1aliar e
escrever
enfatizar dea noção
utuido por regras sintáticas, fonéticas etc.) e

Usar estratégias para ag1r na vida so lal


.

LUIZ PAULO DA MOITA LOPES


102
.

sil está aumentando vertiginosamente. Claro, deve-se incluir também


a quantidade cada vez maior de imigrantes do continente africano, do
Haiti, da América do Sul e da Ásia que continua chegando ao Brasil,
igualmente à procura de uma vida melhor. Da mesma forma, os jornais
têm noticiado que a diáspora brasileira está retornando ao lar. Segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), conso-
lidados com base no Censo de 2010, houve um aumento de 86,7% de
"imigrantes internacionais" (brasileiros e estrangeiros) para o Brasil em
relação aos mesmos dados de 2000, o que é explicado pelo desempenho
da economia brasileira e pela crise econômica na Europa e nos Estados
Tal mobilidade de pessoas significa linguajar (o de
Unidos. que o uso

linguas diferentes na fala e na escrita, misturando línguas para agir no


mundo social - cf. nota 1) por entre as fronteiras tende, portanto, a au-
mentar no Brasil.
Por outro lado, na internet e nas Tvs a cabo (ou nas lan houses na peri-
feria brasileira), as pessoas cada vez mais têm acesso a repertórios de dis-
cursos e artefatos culturais construídos em outras
línguas que nos che
gam de várias partes do mundo, e até mesmo do próprio Brasil. Quando
fazia sua etnografia em uma lan house na periferia do Rio de Janeiro re-
centemente, uma orientanda minha conheceu um adolescente que usava
alguma variedade de "portinglês" para se comunicar com estrangeiros no
MSN, sendo que ele tinha um conhecimento minimo de inglês, apren-
dido em uma escola pública brasileira. Provavelmente, usava também o
recurso de tradução disponibilizado no Google. Outro relato é o de um
amigo português, professor de engenharia da Universidade de Lisboa,
que se preparou para fazer uma palestra em inglês no Peru recentemente
e, a pedido da plateia, acabou falando em um mistura do que se entende
por português, inglês e espanhol ('esportinglês").
Uso dados anedóticos da vida social
esses
contemporânea para situar
a questão
que desejo discutir: como explicar e teorizar o que entende
mos por
português diante desse cenário linguístico-discursivo comple
xo, que também é verdadeiro em outras
partes do mundo, onde o que
chamamos de português é usado, por razões
como resultado dos
sociolinguisticas diversas,
processos de superdiversidade' (Vertovec,
2007) em

3.Super diversidade é um construto cunhado por Vertovec (2007) para dar conta da exploso n nu
mero de
migraçóes en relaçao u nacionalidades, linguas, etnias e
Telativas à força de trabalho, religiao, aletando politicas soCiais
bem os IInigrantes fver tmbém
moradia, educaçüo ete. como eleito da global1zaça em paises que tece
Blommacrl e Rampton, 2011
COMO E POR QUE TEORIZAD O
PORTH UES 10

relação a línguas, nacionalidades, etnias e religiões? lal superdivo..


também pelos avançÇos rede
rsidad
causada tanto pelas migrações como
édas tecnologias digitais, o que tende a scr ampliado, ecentes
em consequen
das relações globais e locais. Na esteira da globalização, esses process
ència
ssos
têm efeitos linguístico-discursivos locais em nossas vidas sociais, que

precisamos avaliar.
Para abordar a questão, inicio discutindo o significado de teorias
argumentando na direção de uma teorização de língua como rizoma para
dar conta de um mundo de fluxos, diferentemente de teorizações da
estrutura interior de uma língua como um sistema autônomo, nas quais
as pessoas e suas vidas sociais são apagadas. Tais teorizações não tazem
sentido quando as pessoas passam a ser entendidas como vivendo em
"zonas de contato" ou "de fronteira". A seguir, discuto como essa visão
de lingua está associada a uma linguistica modernistae seu ideal de uma
lingua pura, colaborando na construção de um estado-nação. Esse sen-
tido de pureza linguística foi e é usado para sedimentar desigualdades
sociais de classe social, gênero, raciais etc.
A seguir, discuto como e por que uma série de construtos teórico
linguísticos tradicionais vem sendo reconfigurada com base em uma crí
tica a essa linguistica modernista, levando em consideração as mutaçõesS
comunicativas que presenciamos em um mundo desterritorializado. Tal
mundo faz surgir usos transidiomáticos do português em meio a frontei-
ras físicase cibernéticas, nas quais linguas, textos e pessoas estão em mo
vimento. Para finalizar, defendo a necessidade da construção de peque-
nas teorizações situadas do português e da relevância de compreender as
ideologias linguísticas dos falantes, escritores etc., indo ao encontro de
abordagens epistemológicas pós-estruturalistas, pós-modernistas e inter
pretativistas. Empreendo, assim, um esforço para compreender
que as o

novas gerações de falantes, escritores etc. estão fazendo com essa língua
ao usá-la transidiomaticamente nas práticas linguísticas como um recur-
So comunicativo. Ao concluir, ilustro meu argumento com usos transidio-
máticos do português no mundo da comunicação digital, na construção

de artefatos culturais como o propaganda na periferia brasileira e


rap e a
sub-
discuto, brevemente, possíveis ideologias linguísticas que parecem
performances identitárias mobilizadas.
jazer a tais usos, assim como as
reflexividade
Esses usos são indicadores. do que tem sido chamado de
ganhos epistêmicos, políticos
e
metapragmática. Finalizo, avaliando os

éticos de tal posicionamento.


*
*****.
DA MOITA LOPES
104 LUIZ PAULO

rizoma: teorização como invenção


2.Uma visão de língua como
Deleuze e Guattari (1987: 8), usa a

Keating (2009), se apoiando em

se referir ao que é
uma lingua:
metáfora do rizoma para
de por meio de raízes
cebola. Desenvolve-se
Uma língua tem a forma uma
trilhos de trem; espalha-se
vales c o m rios ou
subterrâneas e fluxos, entre termos de seus
desmontar uma língua em
c o m o óleo. E sempre possível
não é diferente de
um empreendimento que
elementos estruturais internos,
sob uma árvore. Isso
u m a procura por
raízes. Há sempre algo genealógico
método do tipo do rizoma,
conta de pessoas. Um
não é um método para dar descentrá-la em outras
ao contrário, pode analisar língua, somente ao
uma
está fechada sobre si pró-
dimensões e outros registros. Uma língua nunca
1987: 8).
exceto de uma forma impotente (Deleuze e Guattari,
pria,
mais adequada para pensar as
A metáfora do rizoma parece ser muito
fechados que apagam as pessoas
linguas, não como sistemas autônomos
mas como trama
instável de fluxos
e os usos que elas fazem das línguas,
e histórias
e suas subjetividades
que só ganha vida quando as pessoas
situadas de construção
são consideradas nas práticas sociais múltiplas e
de significado em que atuam.
Essa visão é especialmente iluminadora em tempos de globalizaçãoo
cultural, caracterizados por sociedades porosas e em permanente pro-
como os
cesso de vir a ser (Appadurai, 2001) em que tanto as linguas
textos e as pessoas est o em movimento, muitas vezes sem que saiam
de casa, nas redes sociais digitais. Vou teorizar o que chamamos de por-

tuguês dessa forma, de modo a contemplar as novas gerações de falan-


tes, escritores etc. dessa língua no mundo, que operam, cada vez mais,
nas práticas linguísticas nas "zonas de contato" (Pratt, 1992/1999) ou nas
"fronteiras" (Mignolo, 2000) em que estão localizados.
As teorizações linguísticas são, claro, invenções ou construções so
ciais derivadas de ideologias particulares, como outros discursos quais-
quer, com os quais agimos no mundo social (|Moita Lopes, 2012). Isso é
interessante principalmente se considerarmos a famosa frase de Foucault
(1979: 12): "As verdades |teóricas, no caso em tela] são deste mundo". Isso
quer dizer que tais teorias não iconicizam manifestações linguísticas que
existam naturalmente no mundo. As línguas são invenções disciplinares
e politicas- perspectiva teórica orientadora que aqui implemento em
relação ao português, com base em meus interesses politicos e epistê
micos particulares. Mas o
que me parece relevante é avaliar os ganhos
politicos, epistémicos e éticos de tais teorizações para as pragmaticas de
COMO E POR QUE TEORIZAR O PORTUGUÊS
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nossas vidas, já que como Boaventura Santos (2001: 9) aponta: "Uma


transformação profunda nos modos de conhecer deveria estar relacio-
nada, de uma maneira ou doutra, com uma transformação igualmente
profunda nos modos de organizar [ou pensar] a sociedade".
Especificamente em relação à teorização linguística, éé crucial discu-
tir se vamos continuar encarando as linguas como sistemas autônomos,
apagando o sujeito social, sócio-históricas e ideológicas em
suas marcas

seu corp0- e os sofrimentos ou vantagens que acarretam. Seguiremos


preterindo as ideologias linguísticas dos falantes, escritores etc., ou seja,
"as crenças, ou sentimentos, sobre línguas do modo como são usadas
as

em seus mundos sociais" (Kroskrity, 2004: 498)? Manteremos a ideia de


lingua corresponde a um estado-nação?" A resposta positiva
a
uma
que
convencionalmente chama-
essas perguntas faz parte de uma tradição
sustentador é fabricar
da de estudos linguísticos modernistas, cujo ideal
bem
lingua pura, que poderia se tornar a lingua de estado-nação,
tal
uma
escritores etc. e de suas ideolo-
distante da sócio-história de seus falantes,
locais.
gias linguísticas ou de como
as línguas são entendidas nas práticas

3. Modernidade e o ideal de língua pura


e Charles Briggs, no
livro Voices of
Osantropólogos Richard Bauman
suas leituras de 300 anos
de 2003, sustentam, com base em
Modernity,
história etc., que a teorização
de filosofia, teoria política, antropologia,
a "concepções sobre socie-
modernista historicamente subjaz
linguística as quais funcionaram e
natureza e ciência" (2003: xiii),
dade, política,
manter as desigualdades
de classe social, de raça, de
funcionam para
ideal da língua pura,
etc. em seus devidoslugares por meio do
gênero Ou, c o m o indicam
neutra, autônoma, transparente e representacional.
"Modos de falar e escrever fazem com que
Bauman e Briggs (2003: 17): reais e os tor
as nações pareçam
as classes sociais, o gênero, as raças e os su-
possibilitando que
capazes de... justificar relações de poder,
nem
subordinação deles
falar de modos que
clamem pela
balternos pareçam ou sua
da língua
permitiu a "purificação"
próprios". Essa é a lógica que sociais. Não é surpreendente
sociais e das práticas
separação de questões de protessores
ainda impere na formação
gue e s s a ótica da língua pura

realizado
deveriamos ignorar
todo o trabalho
dizer
4, Seguindo Pennycook (2010:
6), isso
quernao que
nmus que
muito de tal
tra
XX sob a égide do estruturalismo, e talaclo,
do século de lalar do que
na naior parle "o ato
por linguistas já que nao parece
s e r possivel separar
e Dalio fem apagudo as pessoas,
***..
LUIZ PAUL0 DA MOITA LOPES
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na área de Letras no Brasil, inclusive nas grandes metrópoles, com enfo-

que estrutura interna da língua, apagando ou ignorando os


primordial na
modos como as pessoas vivem/constroem suas vidas sociais por meio da

linguagem nas práticas linguísticas em que estão situadass.


E essa crítica à modernidade que tem propiciado uma reconsideração
do que chamamos de língua, sociedade, comunidade linguística, tem-
no
po, espaço etc., demandando novas reconfigurações para operarmos
campo da linguagem nos tempos em que vivemos, superando teorizações
modernistas, estruturalistas e positivistas.

4. Reconfiguração de construtos teóricos centrais


É assim que vários pesquisadores têm redescrito vários construtos
teóricos. Makoni e Pennycook (2007), por exemplo, falam da necessidade
imperiosa de desinventar o conceito de lingua e reconstituí-lo em outros
termos. Defendem que precisamos pensar as línguas com base na comu-
nicação que ocorre entre as pessoas, enraizada nas práticas, e não como
"uma coisa que tem uma vida própria fora e acima dos seres humanos
(Yngve, 1996: 28), como Makoni e Pennycook (2007: xi) citam. Ou, como
Pennycook (2010: 1) esclarece: "A ideia de que as linguas são sistemas de
comunicação usados pelas pessoas em contextos diferentes é desafiada
em favor de uma visão de linguagem como prática local por meio da qual
as linguas são um produto de atividades profundamente sociais e cultu-
rais nas quais as pessoas se engajam", o que leva à necessidade de teorizá-
las diferentemente. Isso quer dizer que se referir a práticas linguísticas
requer a compreensão de uma lingua como um fazer "regulado tanto por
contextos sociais como por sistemas subjacentes" (Pennycook, 2010: 9), o
que leva a compreender 'a estrutura linguística como derivada da ativi-
dade repetida" (2010: 9), a qual envolve tanto repetição como mudança.
Ea pratica que faz a língua existir assim como o falante e o escritor, já
que a linguagem, ou seu usuário intencional, não preexistem ao fazer,
como é normalmente assumido pelos estudos linguísticos" (2010: 13).
O sociólogo Zygmunt Bauman (1992), por sua vez, aponta que as so-
ciedades são cada vez mais fluidas e contingentes. Para ele, nossas
no mundo social tém um papel preponderante no entendimento de como

.Da mesrna forma, nao deve nos surpreende a quantidade de "purificalores da lngua", por assin
z e , yue aluam enu tcolunas jornalisticus, cuja lunçao primorlial é dar conselhos subre como talar
e escever
COMO E POR QUE TEORIZAR O PORTUGUES
107
.

moldamos nossas vidas sociais em vez de entendermos a sociedade de


modo unificado, padronizado e homogêneo, na qual éramos socializados.
Essa era uma visão tradicional que provavelmente resultou do conceito
de estado-nação como comunidade inmaginada (Anderson, 1983), na qual
uma lingua unificada deveria imperar para consolidá-lo. Já em relação às
noções de tempo e espaço, Castells (1999), entre outros, se refere à rapi-
dez do tempo e à compressão do espaço. Os dois são vividos de formas
muito diferenciadas hoje devido ao modo como passamos a experimentá-
-los nas redes sociais digitais de comunicação e nos meios ultrarrápidos
de transporte de massa, ampliando a mobilidade de linguas, textos, fa
lantes, escritores etc. de modo nunca antes experimentado com efeitos
consequentes em nosso linguajar. E o conceito de comunidade linguísti-
ca tem sido 1gualmente repensado: um construto que desejo discutir um

pouco mais, devido a sua centralidade em meu argumento.


Em um artigo de 1987, intitulado "Linguistic Utopias", amplamente
citado na sociolinguistica contemporânea de base etnográfica (por exem-
plo, Blommaert, 2010; Rampton, 2006), Pratt argumenta que as teorias
linguísticas modernistas são de fato utópicas:
Muitos críticos têm apontado como nossa linguística modernista da lingua
da competência defendem mundo social unificado e
gem, do
um
código e

homogêneo no qual a língua existe como um patrimônio compartilhado


como um artificio, precisamente, para imaginar comunidades (p. 50).

E interessante observar que a noção cultural de uma lingua é recente

coincide com a construção do estado-naço europeu e do Iluminismo


e
'a ideia
(Mühlhäusler, 2000: 358). Mignolo (2000: 254) pergunta
se como

de uma lingua, um território teve tanto sucesso que deslocou a diver-


plurilinguajar (ou em um nível mais perceptível, do
sidade natural do
letramentos
uma operação levada a efeito pelos
e
plurilinguismo]" -

fluir ou tentaram controlar o fluir do


pelas gramáticas que controlaram o
linguajar (cf. nota 1 acima) (Mignolo, 2000).
referir-se ao estado-nação como comunidade ima-
Daí ser possível
subcomunidades que
ginada, como diz Anderson (1983), assim como a

mulheres, os ho-
levam a padronizações e a essencializações do tipo: as

mens, os homossexuais
etc. falam de determinada forma generalizável.
Tais posicionamentos dindamuitos campos dos estudos
prevalecem em

linguisticos. Além de operar com a utopia de umna comunidade linguis

tica, tal visäo parte de umna teorização inadequada (ou, de tato, nenhu-
de s e n s o comum) para dar conta do genero
e
ma teoIzação, mas visoes
. ***.

LUIZ PAULO DA MOITA LOPES


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da sexualidade, tomados como categorias naturais e essencializadas. Só


assim é possível se referir a uma comunidade linguistica homogênea.
Essa posição só continua existindo no campo de estudos linguísticos pela
dificuldade comum em nossa área de operar indisciplinadamente (Moita
Lopes, 2006/2011), levando a ignorar uma vasta bibliogratia em outras
áreas sobre língua, linguagem, identidade, gênero, sexualidade etc. Mui-
ta teorização e análises que representam ganhos epistêmicos relevantes
sobre linguagem e língua, por exemplo, estão sendo feitos em outros
campos de investigação. Aprendi mais sobre a relação entre línguas/lin-
guagem e globalização, por exemplo, lendo o geógrafo brasileiro Milton
Santos (2000) do que textos do nosso próprio campo.
O que Pratt (1987), de fato, discute e critica é o conceito de linguística
da comunidade, que entende "que todos os participantes estão engajados
no mesmo Jogo e que o jogo é o mesmo para todos os jogadores" (1987:
51) numa grande tentativa de harmonizar e unificar a vida social, mesmo
quando se trata de estudos de variedades linguísticas e seus limites que
separam as comunidades. Em suas palavras, nessa compreensäão tradi-
cional, "a vida social é vista como constituída por distância e separaçãão
em vez de por um contato contínuo e por relações estruturadas em um
lugar social compartilhado" (1987: 56). Rampton (2006: 14) resume bem
o que é uma linguística da comunidade:

Historicamente, a maior parte da linguística do século XX foi dominada pela


visão de que:
a o estudo de uma língua se refere centralmente a questões de regularida-
de na gramática e de coerência no discurso;
(b) essas propriedades derivam do pertencimento a uma comunidade e as
pessoas aprendem a falar gramatical e coerentemente por meio da expe-
riência inicial e extensiva de vida em família e em redes sociais locais
bem estáveis.

Pratt (1987) defende uma


linguística de contato, qual os pesqui
com a
sadores de pidgins estão familiarizados, na
qual imperam apropriações,
heterogeneidades, misturas e hibridizações entre o que chamamos de
linguas na dependência de como as pessoas se envolvem, no processo di
namico de construir
signilicado, no aqui e no
agora, umas com as outras.
Nessa visão, uma
linguistica de comunidade homogênea no tem lugar.
Essas reconfigurações de contatos
nas zonas e de fronteiras dão con-
ta do modo como, cada vez mais, vivemos tanto no atravessamento de
tronteiras "reais" em um mundo intensamente diaspórico assim comno
COMO L POR QUE TEORIZAR O PORTUGUES 109

em fronteiras caracterizadas pelo uso de ferramentas midiáticas digi


tais e cletrônicas de formas multimocdais (Thompson, 1995; Cope e Ka-
lantzis, 2000), que possibilitam a comunicação rápida com outros que
talvez nunca encontramos ou encontraremos. As línguas passam a ser
entendidas como recursos comunicativos multissemióticos, distribuídos

desigualmente na sociedade e que as pessoas vão aprendendo aqui e

necessidades (Blommaert, 2010), inclusive de


ali, dependendo de suas

sobrevivência (veja também Heller, 2010).

5. Mutações comunicativas e desterritorialização


O quadro da comunicação contemporânea é o que Jacquemet (2005)
de "mutações comunicativas", nas quais as pessoas e os textos
qualifica
são móveis em um mundo desterritorializado/globalizado. Contraria-
mente, como afirma Jacquemet (2005: 273), "a maioria dos estudos lin-
influência do mito de Babel:
guísticos contemporâneos estão ainda sob a
do desejo ideológico de manter barreiras linguísticas, alocar as pessoas
em seus territórios respectivos, conectar as línguas com a emergência do
sentido de identidade nacional", na contramão "da necessidade xenoglós-
compartilhar [a vida] e de se comunicar com todos". Esse é
um
sica de
diz em relação aos letramentos
ponto que se alinha ao que Schrage (2001)
näão é "a revolução
digitais: no mundo cibernético, o que presenciamos
o uso de
das informações", mas "a revolução das relações", o que implica
em práticas discursivas
linguas por entre as fronteiras físicas e digitais
objetivo fun-
transidiomáticas, em um mundo desterritorializado, com o

damental de compartilhar conhecimentos, discursos


e a vida.
Tais práticas envolvem identidades em contínua construção, sempre
dizer que nossas identidades
se fazendo e se refazendo, o que não quer
Mas se somos
não pudessem ser entendidas dessa forma no passado.
seres que se constroem no discurso (Moita Lopes, 2002; 2006a) em per-

formances identitárias" construídas aqui e agora (Moita Lopes, 2009), a

ao citar Eco (1995), com base


6. Reporto-me aqui distinção que Jacquemet (2005: 273, nota 12) faz,
à
usar uma ünica
entre glossolalia fa capacidade de
no chamado dom dos apóstolos em Pentecostes,
de usar muitas linguas, ou seja,
ingua que todos pudessem compreender) xenoglossia fa capacidade
e

poliglotismo).
a usa para entender o gènero
ea
7. A noção de performance aqui é emprestada de Butler (1990), que
Sexualidade como performance no sentido de que são construídos no aqui e no agora, não preexistin
um lazer que procduz
certos eleitos
Butler entende que o gënero e a sexualidade são
do ao discurso. do se enuncia que uma
discursivos e que é a repetição de tais performances, a purtir que
momento
Crlança é menino ou menina, que dá sentido de estabilidade e sedimentaçäo parao que e, ia verdade

ficção. Veja também a nota 4 acima.


LUIZ PAULO DA MOITA LOPES
110

exacerbação atual da compressão do tempo e do espaço, em usos tran-


sidiomáticos, torna nossas identidades cada vez mais fluidas e continua-
mente mutantes, o que possibilita dizer que vivemos para além da iden-
tidade (Moita Lopes e Bastos, 2010):
Nossa existência hoje está marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevi-
vência, de viver nas fronteiras do "presente", para as quais não parece haver
nenhum nome adequado [...] Encontramo-nos no momento de trânsito em
que o espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferen-
ça e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão
Isso porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção
no "além": um movimento exploratório incessante que o termo francês au-
delà capta tão bem - aqui e lá, de todos os lados, fort/da, para lá e para cá,
para frente e para trás (Bhaba, 1994/1998: 19).

E necessário, portanto, investigar que ideologias linguísticas estão em


operação em práticas discursivas transidiomáticas, nas quais performan-
ces identitárias estão em ação em um mundo constituído por fluxos de
textos, pessoas, línguas e por contingências e ambiguidades. O que en-
tendemos por língua em tal mundo precisa ser revisto ou reteorizado,
assim como o que entendemos por comunidade (Rampton, 2006: 15).
"Em outras palavras, é hora de conceptualizar a linguística do tornar-se
xenoglóssico, da mistura transidiomática, e das recombinações comuni-
cativas" Jacquemet, 2005: 274).
Essa posição pode possibilitar que, ao estudar práticas linguísticas
situadas, seja possível ter outro olhar sobre posições teóricas de impe-
rialismos linguísticos e de antiglobalização ao ver o que, de fato, nas
práticas transidiomáticas as pessoas estão tazendo com suas vidas sociais
em meio aos fluxos linguísticos, para se beneficiarem dos mesmos ema
seus cotidianos, ao se virarem daqui e dali, se tornando outros cultural,
discursiva e linguisticamente, vivendo em culturas híbridas, como diz
Canclini (1997). Assim, mais importante do que a diversidade de línguas
seja a diversidade de significados/discursos que construímos e com os
guais operamos nas práticas: "Precisamos entender a diversidade em
termos de práticas linguísticas em vez de em termos de sistemas linguís-
ticos" (Pennycook, 2010: 15).
Tal ótica permite acesso, como bem lembra Jacquemet (2005: 274),
as misturas, hibridizações, às contestações, a usos linguísticos criativos
em uma globalização dos de baixo e contra-hegemonica, como, de fato,

varios teóricos como o geógrafo brasileiro Milton Santos (2000), o soció-


1ogo portugués Boaventura Santos (2004), o sociólogo japornês Mushakoji
COMO E PORQUETEORIZAR OPORTUGUÉS 11L
**...

(1999), o antropólogo cultural indiano Appadurai (2000) têm defendido


a0 se referirem à necessidade de acesso a novas epistemes: no nosso
caso, as ideologias linguísticas (Kroskrity, 2004) que levam a tais usos
transidiomáticos nas práticas linguísticas nas zonas de contato ou na
fronteira. Uma viso bem distante de um modo de produzir conhecimen-
to ocidentalistamodernista (Venn, 2000), que oblitera a voz de
e
quem
vive as práticas sociais e suas vidas sociais e no qual as teorias estão
separadas das práticas sociais (Moita Lopes, 2006b: 89).

6. Novas gerações de falantes, escritores etc. do portuguës:


pequenas narrativas teóricas situadas
Se o que chamamos de português tem que fazer sentido para as novaas
gerações de falantes, escritores etc. em várias partes do mundo, as recon
figurações teóricas acima elencadas têm que ser consideradas. Além de
operar com um quadro macro-sócio-histórico sinalizado pelos construtos
teóricos acima, é necessário trabalhar também com teorizações infor-
madas por pesquisas etnográficas sobre os usos interacionais situados
da linguagem, que dão conta de como a vida social é levada a efeito nas
práticas locais onde o significado é gerado no aqui e no agora, por meio
de performances identitárias
contingentes e de reflexividade metaprag-
mática sobre práticas de da
as uso linguagem.
O construto teórico denominado reflexividade metapragmática tem
recebido grande atenção na sociolinguística e na
antropologia linguística
atuais. Como dizem Blommaert e Rampton (2011: 10): "Bmbora
seja reco
nhecido que a reflexividade seja atualmente dominante em toda
prática
linguística, essa é uma posiço substancialmente diferente da prioridade
tradicional dos sociolinguistas em relação ao uso tácito e natural da lin-
guagem". A reflexividade linguística tem sido estudada tanto na chamada
cultura das empresas (por exemplo, no treinamento de habilidades
co-
municativas, no trato com os clientes etc.), no planejamento multimodal
de textos web,
na na
propaganda etc., como também no uso da linguagem
por pessoas comuns ao contar estórias que demandam uma intensifica-
ção da consciência da performance como também em histórias
cotidianas
Blommaert e Rampton, 2011: 105. Nas palavras de Pennycook (2010: 1).
"trata-se de uma mudança que se distancia de
grandes abstrações sobre
8. Para uma análise dessa
Abaixo
questão em
portuguës em uma história cotidiana, veja Moita Lopes (2009).
empreendo análises de naturezu
metapragniática em usos transidiomáticos.
****.
***.

LUIZ PAULO DA MOITA LOPES


112
.**

língua, discurso e sociedade na direção de uma visão da atividade local


como parte da vida cotidiana"
Em vez de nos pautar por grandes narrativas teóricas sobre a lingua,
uma episteme típica da modernidade linguística, do estruturalismo e do
positivismo, fazem-se necessárias pequenas narrativas teóricas que dão
conta de práticas discursivas específicas. Tal abordagem vai na direção
de compreensões pós-estruturalistas, pós-modernistas e interpretativis-
tas. Como diz Rampton (2006:15), "essa abordagem sincroniza-se bem
com a incerteza da pós-modernidade sobre grandes totalizações teóricas,
na qual) a totalidade social 'se dissipou em uma série de ilhas de ordem
evanescentes, mutantes, que emergem ao acaso (Bauman, 1992: 189)".
Trata-se de uma episteme da vida local, contaminada pelo global, ou
uma episteme glocalizada (Robertson, 1995). E nesse sentido que Blom-
maert (2010: xii), no livro The Sociolinguistics of Globalization, indica
a necessidade de redefinir nosso campo de trabalho tendo em vista as
mudanças sociais que estamos enfrentando.
Nessa tradição tem havido um grande interesse, especificamente na
sociolinguística e na linguística aplicada (Thornborrow e Coates, 2005;
Coupland, Garret e Williams, 2005; Norrick, 2005; Rampton, 2006; Cou-
pland, 2007; Moita Lopes, 2009), sobre como as pessoas performam a
linguagem por meio de usos
particulares em práticas situadas,
demonstram "uma consciência realçada tanto do ato de
nas quais
expressão como
daqueles envolvidos na
performance [linguistica]" (Bauman, 1986: 3) ou
uma consciência
metapragmática do uso que fazem das línguas.
Tal interesse tem sido em como, ao usarem a
linguagem, as
indexicalizam (indicando pessoas
planejamento e reflexividade), em suas perfor.
mances linguísticas, sua
cas assim como seu
compreenso do que está acontecendo nas práti-
entendimento dos participantes das mesmas
como aponta Bauman já que,
(1986: 3), "a performance... da mesma forma que
toda atividade humana é
situada, sua forma, significado e funções estão
enraizados em cenas e eventos definidos culturalmente" ou, como
indi
cam
Coupland, Garrett
Williams (2005: 69), "as
e
audiéncias e não somente performances so pelas
para as audiências". Que performances
tárias estão sendo
localmente construídas nas identi
de práticas
indexicalizações (por meio de escolhas lexicais, situadas, por meio
cas,
entonacionais, qualidade da voz, alinhamentos,gramaticais, tonológi
Seja, escolhas intertextos etc., ou
linguisticas, paralinguisticas discursivas) que estilizam
e
o
COMO E POR QUE TEORIZAR O PORTUGUS5
113

significado no mundo social com efeitos de sentidos variados? Essa seria


uma pergunta a ser respondida na análise de usos transidiomticos que,
em meio às zonas de contato ou de fronteira, as pessoas fazem, o que
tem sido chamado de mudança de uma linguística do sistema para uma
linguística das práticas (Rampton, 2006: 22.
Em tais usos transidiomáticos, as línguas passam a ser compreendi-
das como recursos comunicativos. Como afirma Blommaert (2010: 173),
recursos comunicativos são "pedaços pequenos e grandes da lingua que
constituem um repertório, e [os] modos verdadeiros de usar tal repert
rio na comunicação'. Esses recursos levam a efeito propósitos especifi-
cos locais situados em um mundo em que a movimentação das pessoas
requer a compreens o da mobilidade de recursos linguísticos e sociolin-
guisticos, a que se tem acesso por meio de vidas diaspóricas, de meios
midiáticos, e de artefatos culturais populares como no caso do hip-hop/
rap (Pennycook, 2007).

7.Usos transidiomáticos: português como recurso comunicativo


Quero ilustrar meu argumento com usos transidiomáticos (Jacquemet,
2005; Makoni e Pennycook, 2007) nos quaiso que chamamos de português
é um dos recursos comunicativos usados por participantes de práticas
discursivas hibridizadas em meio a fronteiras virtuais e "reais", nas quais

"as práticas linguísticas (estão] baseadas em negociação em vez de na fide-


lidade a construtos unitários" (Canagarajah, 2007: 234). A guisa de exem-
plificação, empreendo uma breve análise da possível ideologia linguísti-
transidiomáticos abaixo
os escritores a construírem os usos
ca que levou textos utilizo essas
encontradas nos e
com base nas pistas linguísticas
encenadas.
pistas para chamar a atenção para as performances identitárias
Usos transidiomáticos em meios midiáticos em mensagens eletrôni-

cas entre um espanhol (Pablo) e um brasileiro (João]0:


**** ********************************** *********************************************************************°******'**********************

:******

Original Message---
From: [Pablo)
To: 1João
Sent: Monday, May o8, 2000 10:40 AM

Subject: RE: Datos de vuelo y hotel

cOn os escrilores de tais


9 De lato, outro> por mew de entrevistas introspectivas
modos investigativos
análise uquI leita
extos setiam necessárus paru Conplemenlar a

0.Essa Sequencia e a próxima apareteram em


Moita 1.opes (20O08) c o m outros propositos unaliticos
114 LUIZ PAULO DAMOITA LOPES

Mi queridinho,
That will be wonderful to meet you at the airport, you bighead, and I'll be delighted to
have breakfast with you at the hotel.
Besos y hasta mañana.

[Pablo

-Original Message-
From:loão]
To: [Pablo]
Sent: Saturday, May 20, 2006 5:57 PM
Subject: Re: Enviando email:

Mis queridos [Pablo] y [Carmen],


Gracias por sus palabras cariñosas. Agora posso escrever em português, já q ves, depois de
estarem no Brasil, aprenderam português. Para nós foi também muito bom ter tido vocês aqui.
Maria] says that she has never seen me so happy with guests (visitas). And I didnt notice any
difference. It is probably because you two are special people and also because I feel great near
you. Despite all these years that have gone by, sinto siempre mucho gusto de estar around you.
Foi também maravilhoso rever o Rio pelos olhos de vocês. A frase do poeta Carlos Drummond
de Andrade é: "No mar estva escrita uma cidade".

Abraços e beijos,
João]
*********

*********************************" **************************** -

Que ideologia linguística possibilita que Pablo e João se


comuniquem
transidiomaticamente em meio a uma fronteira virtual? Certamente,
está por trás desse uso transidiomático o fato de
que os dois transitam,
de alguma forma, por aquilo que se convencionou chamar
de três lín-
guas diferentes (português, espanhol e inglês), usando pedaços delas
como acham conveniente na
negociaço dos significados (como recursos
linguísticos), de um modo transnacional, portanto de uma forma bem
distante de compreensões unitárias e
homogêneas das línguas que rela-
cionariam uma língua a um estado-nação. estamos diante Aqui de "espor-
tinglês", provavelmente usado pelos participantes com o objetivo de se
aproximarem como amigos ao, de certa forma, usufruírem ludicamente
dos pedaços das línguas que conhecem. Que índices estilizam as perfor-
mances identitárias de João e Pablo?
O uso do diminutivo
"queridinho" por Pablo no primeiro e-mail já
enuncia performances identitárias de
afeto entre dois homens, o
que se
repete, de fato, na eserita/lala de João
Sas") e em como se
("Gracias por sus cariño- palabras
lexical
despedem (besos, abraços e
beijos). Essa escolha
mobiliza discursos pouco comuns no
universo masculino hete
rossexual
hegemônico, estilizando performances de masculinidades ino-
COMO E POR QUE TEORIZAR O PORTUGUS 115
..

vadoras, principalmente por que os dois homens, como se pode ler nos
textos, se referem a suas mulheres, o que performativamente os constrói
aqui nessa prática social situada como heterossexuais. E notável também
o uso de um inglês de contato ou de fronteira por Pablo (That will be
wonderful..."), o que não corresponde ao chamado inglês padrão. O uso
da estratégia de tradução por João ("guests (visitas|"), também
qualifica
seu linguajar como uma lingua de fronteira.

8. Usos transidiomáticos em artefatos culturais: rap/hip-hop


Viojando na balada

Falo a realidade verdade


Para que no futuro haja necessidade
Pra discutir com precisão de mais assuntos
Há se o caso num vier à tona à tona
UUUU OOOAAAIIOO Silver
Só ld em Hollywood
Onde os cineastas ganham bem e não se iludem

Viajei peia internet


Ponto com ponto br
State United of America
Pentágono, xerife do morro

Que ideologia linguística leva a esse uso transidiomático pelo grupo


brasileiro de rap chamado "Somos nós a Justiça" (http://somos-nós-a-jus-
tiça.letras.terra.com.br/)? Há de se considerar, primeiramente, a influ
ência na cultura global do rap estadunidense, que nasceu em um bairro
nova-iorquino e que se tornou um fenômeno global. Isso pode explicar o
uso transidiomático aqui no que é possível chamar de "portinglês". Esse
é um fenômeno que Pennycook (2007) documentou em várias partes do
mundo: a apropriação do inglës em usos transidiomáticos na expressão
do rap, normalmente para falar sobre as condições de miséria que mui-
tos vivem no mundo. Isso quer dizer que o uso do inglês serve a propó-
sitos locais ou performances locais que estão bem distantes dos chamados
usos imperiais do inglês.
E possível que a ideologia linguística reflita a vontade de replicar per
formances identitárias de outras vozes desempoderadas em outras partes
do mundo em práticas transidiomáticas locais. São notáveis também:
la) uma crítica à indústria da ilusão de Hollywood tecida nos mean
dros da globalizaço, indexicalizada pela referência a como um
LUIZ PAULO DA MOITA LOPES
116

herói de uma série televisiva antiga - O Zorro se referia a seu

cavalo ("UUUU O0OAAAIIOO Silver");


menção universo da internet indexicalizada pelo item lexical
(b a ao

"internet" e por "ponto com ponto br";


c)uma apropriação do inglês que constrói um sintagma nessa língua
baseado na estruturação do sintagma equivalente em portuguës
(State United of America).
O primeiro item se reporta a artefatos culturais que viajam pelo mun-
do desterritorializado; o segundo ao instrumento que permite em grande
parte a sociedade de fluxos; e o terceiro é um exemplo de uma lingua de
fronteira, com efeitos discursivos estéticos.
Mas o que dizer do uso transidiomático em um rap na tríplice fron-
teira Brasil, Paraguai e Argentina do grupo Payé", em que se usa "espor
guarani" (espanhol, português e guarani?

Mbohapy frontera12
Ninja itél3 del mato se vé desde la selva aponderandóme de las rimas llegando hacia la cima na
ninha área minha indentidade brazukureparagua4 minha realidade
peligro paro los yanqui-cueral5 Bin Laden está en la Triple Frontera tirando cañonazos cuidandóse
de Añgls que no nos choreen" todo el agua que hoy acá y es así emergiendo está jipjopi misturado
verdadero yopará
para ofrás como cola de yaguá° como lo perciben tus oídos mis frases no tiernen un idioma definido
no creo en las naciones sólo en las regiones original purahero de Misiones.

Que ideologia linguística permeia esse uso do que chamamos de gua


rani, espanhol e português, em que o inglês típico dos transidiomas mun
diais no rap/hip-hop desaparece? E interessante notar a apropriação do rap

11.Sou grato a Carlos Montiel, um dos participantes do grupo Payé, por ter me disponibilizado acesso
as letras dos raps do grupo.
12. Mbohapy frontera Iguarani): triplice fronteira.
13. Jté lguurani): mesmo, de vercdade.

14. Brazukureparagua: o sujeito da triple fronteira, brusileiro (brazucal, argentino kurepa: pele de
porco) e paraguaio (paragua).
15. Cuera
lguarani): gente, povo.
16. Aná (guarani): divindude quc representa o mal na
mitologi guarani
17. Cihoreen lyuarani): roubem

18. Yopura (guarani) mistura de guarani com


espunhol, usado no
uaraguai
19. Yagua (guarani) cachorro.
20. Purahei (guarunil: cança
COMO E POR QUE TEORIZAR O PORTUGUÊS
117
.
.

na construção de um transidioma do qual o português participa e, espe


cialmente, o uso que é feito dele na performance identitária de um rapper
que indica não possuir nenhum idioma definido, assim como carecer de
qualquer sentido de nação. Nada poderia exemplificar melhor a vida na
zona de contato ou de fronteira fisica. Essa parece ser a ideologia linguís-
tica que subjaz aos usos translinguísticos aqui identificados. A performan-
ce identitária do rapper, portanto, é indexicalizada por uma mistura bem
intricada dos três idiomas que o constrói como um "brazukureparagua".

9. Uso transidiomático em artefatos culturais: propaganda na


periferia brasileira

MOCO07
FAIVE
ESTAR Be LIN
TODOS FONTE
SMBRDO
Figura 3: Disponível em Google images; acesso em 5 ago.2011

A ideologia linguística nessa propaganda por meio do uso transidio-


mático de portinglês parece contemplar a replicação na periferia da
mesma paisagem linguística (Shohamy, Ben-Rafael e Barki, 2010) que se
encontra nos
espaços de comércio da classe média brasileira, nos quais
o que chamamos de inglês e português se mesclam (os nomes das lojas,
assim como as vitrinas dos shopping-centers brasileiros, contém itens le-
xicais em ingls, por exemplo, sale, off etc.). Atrair clientes e valorizar a
mercadoria envolve a necessidade de usar a chamada língua do comércio
internacional. A apropriação do inglês nessa propaganda é muito criati
va, uma vez
que o autor aportuguesa ortograficamente uma adjetivaçao
.
.

LUIZ PAULO DA MOITA LOPES


118

típica do inglês (por exemplo, a "five star" hotel) com base na estrutura
fonética dessa língua para qualificar um item lexical da cultura
gastro-
nômica popular brasileira ("'mocotó"), valorizando-o como mercadoria.
Trata-se de uma apropriação transidiomática, que é de interesse das prá-
ticas locais na periferia, bem distante, dessa forma, de interesses
impe-
rialistas do inglês.
O gue entendemos por inglês é, por assim dizer, virado de cabeça
para baixo para atender a construções semióticas locais. Tal hibridismo
identifica o desempenho de uma performance identitária de comerciante
contemporâneo que vive em zonas de contato ou de fronteira, o que é
de fato também indexicalizado pelo anúncio de que o bar ou restaurante
oferece serviços de LAN.

10.Palavra final
A teorização sobre os usos transidiomáticos do que chamamos de por-
tugues ao posicioná-lo como uma língua de fronteira/contato é importan-
te se queremos dar conta do que muitos dos novos falantes, escritores
etc. dessa lingua estäão fazendo em tempos de hibridização cultural e em
um mundo desterritorializado que a metáfora do rizoma bem ilustra.
Isso é especialmente relevante se entendermos como uma língua se
es
palha rizomaticamente como uma poça de óleo, nos usos que as pessoas
dão a ela na construção de significados nas práticas linguísticas em que
estão situadas, em vez de apagarmos tais usos como a linguística moder-
nista tem tradicionalmente feito, ao focar somente em.seus elementos
estruturais internos, idealizadose deslocados dos que as pessoas fazem
em suas ações linguísticas.
Os ganhos políticos e éticos dessa visão são evidentes, já que é colo-
cado como foco de estudo o que muitas pessoas estão fazendo com o que
entendemos por lingua portuguesa nas práticas locais nas quais vivem,
sofrem, amam, defendem posições politicas, trabalham, constroem suas
vidas sociais etc. Essa visão é bem diferente da defesa de um ideal de
lingua pura, autônoma, transparente e representacional, separada das
práticas situadas em que as pessoas a usam e, performativamente, cons
troem suas identidades sociais. Além disso, essa perspectiva envolve a
necessidade de estudos das ideologias linguisticas dos falantes, escrito-
res etc. que possibilitam entender as escolhas metapragmáticas (fruto de
Teflexividade linguística) que fazem do que chamamos de lingua portu-
COMO E POR QUE TEORIZAR O PORTUGUÉS 119

guesa (entre outras como um recurso comunicativo, se virando daqui


e dali em práticas comunicativas mutáveis, usando pedaços maiores ou
menores dessa(s) língua(s), de modo a dar conta dos significados que
desejam construir no aqui e agora. Como diz Rampton (2006/2011: 116),
"a reflexividade linguística (ou consciência metapragmática) é cada vez
mais vista como um traço crucial em todo uso da linguagem, e um dos
efeitos disso é tirar o uso da linguagem tácito e não consciente do si
mesmo do trono que tem ocupado na sociolinguística dos últimos trinta
anos". Daí a necessidade de abandonar a "linguística do sistema" e da co-
munidade e focalizar a "linguística do contato" e das práticas (Rampton,
2006/2011; Pratt, 1987).
Ao desafiar o ideal de uma língua pura, focalizando o linguajar, essa
posição teórica colabora para abrir espaço para problematizar as "vozes
dos debaixo", que tradicionalmente foram e são mantidas de forma cris
talizada, por tal ideal, em sua inferioridade (mesmo em uma linguística
das variedades na qual está implícita a norma/o padrão- ou matriz
linguística normalizadora/padronizadora a que estão submetidas todas
as variedades). Tal problematização é possível ao teorizar escritores, fa-
lantes etc. em seus atravessamentos identitários performativos de classe
social, de gênero, raça, sexualidade, nacionalidade etc., os quais por sua
natureza performativa não preexistem às práticas discursivas situadas e,
como tais, não podem ser compreendidos como sedimentados.
Bssa lógica desafiadora opera como uma episteme não ocidentalista
ou pós-colonial (Venn, 2000), que faz a crítica à modernidade linguistica,
entre outras, e seus ideais de grandes generalizações positivistas, essen-
cialistase homogeneizadoras com visões de "variedades linguísticas está-
ticas" e "usadas por pessoas] fixas no tempo e no espaço" (Blommaert,
2010: 1 e 4), e com a perspectiva de construção de outra globalização.
Esse é um ganho crucial de natureza epistêmica, ética e política para
nossos tempos porque enfatiza, por um lado, a heterogeneidade e a mu
tabilidade constantes e contíinuas das vidas sociais e, por outro, o que
as pessoas fazem performativamente conm as "linguas" (recursOs comu-
nicativos) em suas práticas locais com base em seus interesses politicos,
nos entendermos
afetivos, estéticos, comerciais etc., principalmente, se

em meio a fronteiras. Acima de tuudo, essa lógica clama pela necessidiade


fundamental de outras teorizações para o campo de estudos linguisticos
mais alinhadas aos nossos tempos.

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