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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

TEOLOGIA
REBECCA DOMINGUES, 41826711

RESENHA: DOGMATISMO E TOLERÂNCIA, RUBEM ALVES.

SÃO PAULO
2021
A obra "Dogmatismo e Tolerância", de Rubem Alves, é uma obra que contém dez
capítulos. No prefácio, Alves começa contando sobre uma estória que narrou para sua filha
em um momento de viagem, no qual a garotinha havia se entristecido pela ida do pai; era a
estória de um pássaro e de uma garota que se amavam, mas o amor do pássaro estava
justamente na saudade de poder voar para longe e logo voltar cheio de novidades. A garota
não lidava bem com isso, e por esse motivo engaiolou o pequeno pássaro, que assim que
acordou, exclamou: "Menina, vou perder meu encanto. Vamos perder o amor!”. Ele explica
que ao publicar esse conto muitos o usaram para fins diversos, e houve quem o relacionou
com a ideia de Deus e religião; ideia que Rubem Alves acaba por abraçar e é tema da obra
em questão.
De maneira geral, o autor alega que muitos aprisionam Deus em uma gaiola que
pode ser entendida como os dogmas, e nesse aprisionamento do divino temos nosso
pensamento livre sabotado, mas o fato é que tudo que sabote nosso pensamento livre não
faz parte de nosso destino e nada faz além de nos engaiolar. Para ele, a questão não é
pensar certo ou errado, afinal, quem sabe o que é certo e errado? Mas, sim, simplesmente
pensar.
Logo em seguida o autor nos conta uma espécie de parábola acerca de pássaros e
urubus. Em suma, Deus, em toda sua criatividade e em seu espírito de criança brincalhona
cansou-se de um mundo monótono, e trouxe à existência variedade tamanha, o que teria
atingido estes animais de canto tão belo. Muitas eram suas cores e diversos os tons dos
cantos; todos cantavam e embelezavam a natureza divina para a glória de Deus. No
entanto, em determinado dia, uma cobra bajulou o urubu, que ensoberbeceu-se sobre todos
os demais pássaros; creu que fora de seu próprio canto não haveria salvação e que sua
espécie era superior às demais; as perseguiu, até que elas fugissem, fossem para outra
floresta e não mais se submetem-se a tamanha tirania. Alves diz que é certo qual seria a
floresta receptora da presença divina, e por meio dessa parábola faz o que parece ser uma
crítica não somente ao catolicismo da idade média, como a todo tipo de fundamentalismo
cristão que limita a fé a certos dogmas e doutrinas que, por vezes, são mais tradições
humanas (e malignas) que cristãs.
Finalmente dá-se início ao primeiro capítulo da obra; nele, um desabafo do autor,
que se reconhece como um protestante que não pode largar essa identidade, mas que é tão
rejeitado que chega a questionar-se acerca da possibilidade da própria apostasia.
Entretanto, é o abraço de muitos outros cristãos a suas falas que o faz sentir-se parte desse
Corpo novamente. O que pode-se afirmar é que existem muitas formas de se conceber
teologia, e é justamente isso que Alves alegará. De modo geral, seu ponto está no fato de
que cada pessoa faz teologia de acordo com aquilo que é, da mesma maneira que cada
dieta supre a necessidade de cada corpo diferentemente. Utilizando o exemplo que o
mesmo oferece: o fogo é o mesmo, mas uns o colocarão nos olhos de Deus e outros nas
lanternas e fogões.
Neste ponto a Igreja Católica volta a produzir ecos no texto, já que o espírito do
protestantismo é um foco importante para o autor. Ele o considera um espírito cantarolante
e que foi objeto da liberdade divina, que a nenhuma concepção humana limitada se prende.
Da mesma forma que a liberdade divina proporcionou vida a um vale de ossos secos,
gravidez às estéreis, humilhação aos soberbos e honra aos humilhados, assim ela agiu
também derrubando os blocos de pedra da Igreja Católica, trazendo uma reviravolta. A
reviravolta do espírito da liberdade, que repousou, na concepção do autor, sobre Lutero, o
monge que enfrentou as autoridades - que por vezes pareceram demonstrar-se mais
propensas a idolatria e a crueldade -, e com sua luta instigou o pensamento livre, que deu
espaço à pluralidade e à diferença.
Esse espírito livre nos conduz, hoje, a abraçar essencialmente uma coisa: a
salvação pela graça, que não exclui a ninguém e nem procura pelas vozes das autoridades,
tampouco visa achar os débitos e créditos das pessoas, pois como Alves fala, tudo isto já foi
resolvido por Deus; a nós cabe a preocupação com a preservação da natureza, a arte, a
proteção dos oprimidos, o prazer da liturgia e todas as coisas que assemelham-se a essas.
No capítulo dois, Rubem Alves fala a respeito da "ideologia protestante". Em
primeiro lugar, o mundo humano é construído por meio da linguagem, é através dela que as
cosmovisões e ideologias funcionam. Quando ela é atacada, é como se o próprio corpo o
fosse, de maneira que, por vezes, é o motivo do homem ser intolerante com as diferenças.
É a linguagem religiosa que organiza e dá sentido às coisas, nós somos dela e é ela que
pode tanto nos fazer ver quanto nos fazer cegos. Assim, os protestantes têm seu universo
construído por meio da linguagem; falam de Deus, céu, inferno, salvação, pecado, etc.. E
esse universo é sagrado e precisa ser preservado aos olhos dos seus fiéis. Enquanto essa
linguagem produzir efeito, permanecerá; ela também pode ser ferramenta de poder tirano, e
como já dito, acaba cumprindo um papel antibiótico, que procura destruir tudo que entenda
como invasor. No entanto, Alves pontua que a ortodoxia e toda problemática da salvação
são coisas que pertencem somente a Deus, e esse foi, afinal, o lema da Reforma. Dessa
maneira, o cristão deve ter o direito de pensar livremente, pois a salvação não está na
linguagem ortodoxa, mas na confiança em Deus.
No terceiro capítulo, Alves começa tecendo uma crítica à ortodoxia; para o autor,
definir uma ortodoxia é uma ação oriunda de poder e, na realidade, não pode ser feito por
meio da lógica puramente. Nisso ele introduz uma discussão a respeito da funcionalidade
das Instituições, às quais ele entende que existem para resolver problemas do cotidiano.
Elas carregam tradições de séculos que nós recebemos sem muito questionamento, visto
que uma vez que elas ofereçam resultados em resolver os problemas dificilmente nos
colocamos na posição de questioná-las ou transformá-las. A resposta para mudar essa
eclesiologia seria, para Alves, uma nova realidade social, instaurada por meio do que o
autor chama de comunidade; ou seja, uma realidade social dentro da Instituição que se
encontra no mesmo universo simbólico que esta, permitindo, assim, uma dialética entre
elas. Há, nesse processo dialético, a contestação do monopólio, e são traçados algumas
marcas que seriam necessárias para essa nova eclesiologia: o amor, a liberdade e mesmo
o eucumenismo, em seu sentido mais essencial. Dessa forma, "O ideal de uma
comunidade, assim, não é o produto de uma investigação empírica, mas antes o horizonte
do futuro que imaginamos, a partir dos horizontes do passado que contemplamos" (ALVES,
2004, p. 80).
As faces do protestantismo é o tema que leva a cabo o quarto capítulo. O autor
começa pontuando a múltipla face que o protestantismo carrega desde sua origem com a
Reforma; suas vertentes são inúmeras e suas cisões não param de acontecer; a teologia
varia de denominação para denominação, e mesmo o modus vivendi e as liturgias não são
homogêneas. Isso refletiu nas próprias ações missionárias das Igrejas oriundas da
Reforma, de maneira que levantou-se a questão: como querer que pessoas voltem-se a
Cristo e entendam sobre reconciliação quando enxergam a divisão que existe na própria
Igreja? Outro problema pontuado por Alves é a influência anglo-saxã no cristianismo
brasileiro, ou seja, desconstrói-se toda cultura da nação para que todo seu modo de viver a
fé seja um reflexo dessa cultura em questão. Dentro de todas essas problemáticas e
heterogeneidades o eucumenismo, o fundamentalismo, as tendências proféticas (ora
preocupadas com as pautas sociais, ora lidando negligentemente com elas), o
pentecostalismo e a secularização foram facetas às quais o protestantismo também contou
com, e essa pluralidade protestante segue se expandindo dia após a dia ainda hoje.
O quinto capítulo é chamado "Do lado de trás das máscaras"; nele, Alves busca
cavar a essência da significação protestante, e apresenta algumas linhas de interpretação
acerca disso. A primeira chega a conclusão que o espírito protestante é, basicamente, a
liberdade plena, muito consequencial da compreensão de uma realidade humana distorcida
pelo pecado original. Uma outra afirma que o protestantismo tem em seu espírito a grande
causa da desintegração da civilização ocidental, já que nele findou-se a unidade da
cristandade; citando Troelstch, explica uma terceira linha, que compreende que a vertente
nada mais fez que modificar o catolicismo, mantendo a formulação dos problemas católicos,
mas oferecendo uma resposta diferente. Weber e Tillich influenciam a quarta e última linha
interpretativa, que enxerga no protestantismo um desenvolvimento moderno rente aos
ideais de produção capitalistas, que, inevitavelmente, rompem com a liberdade buscada nas
origens do movimento. Tendo discorrido sobre essas interpretações, o autor compreende
que, de uma forma ou de outra, todas elas possuem verdades aparentemente
contraditórias, mas que, na realidade, podem coexistir congruentemente.
Dentro de todos os caminhos do protestantismo, há encontros e desencontros com o
catolicismo. É sobre essa pauta que o autor discorre no sexto capítulo da obra; inicia-se a
discussão acerca dela comparando o desenvolvimento das vertentes. De maneira bastante
irônica, o catolicismo que esteve sempre vinculado à hierarquias e intolerâncias acabou por
se abrir aos cuidados com os oprimidos e a um diálogo de maior tolerância, enquanto o
protestantismo, um movimento de protesto contra todo autoritarismo, acabou por se fechar
numa ortodoxia conservadora que não demonstra querer dialogar. Alves busca, assim,
compreender que ideologias tornam possível essa mudança, e entende que o catolicismo
apoiou-se na unidade à medida que o protestantismo na verdade.
Tendo isso em mente, ele busca entender o que motivou a inquisição na história
protestante; em discordância com aqueles que afirmam que a vertente cristã operou dessa
maneira por ainda lidarem com um "espírito católico atuante", Alves pontua que foi
justamente o apego à verdade, ou ortodoxia, que possibilitou isso. De modo geral, por
entenderem suas crenças como verdades únicas, o protestantismo acabou por criar defesas
contra tudo que considere romper com as mesmas. No fim, o que isto nos mostra é que a
pretensão da posse da verdade torna impossível a tolerância, e graças a essa pretensão
que os profetas e o próprio Cristo foram perseguidos.
Alves passa, então, a discutir um pouco sobre o protestantismo na América Latina,
suas ideologias e utopias. Assevera que ele nasce como uma contraposição da fé existente
até então, que era proveniente de uma união entre a tradição ibérica e o catolicismo; veio
trazendo grandes pensamentos libertários, o que ocasionou sua perseguição. No entanto,
com relação ao panorama que a América Latina vive atualmente, - isto é, um panorama de
necessidades urgentes por transformações sociais -, o protestantismo tem falhado
severamente, apresentando ideologias bastante individualistas e despreocupadas com a
sociedade num todo; pelo contrário, é bastante dualista e busca apenas afastar-se do
mundo. Hoje, porém, há um terreno fértil em que muitos têm reavaliado seus princípios de
fé, e nasce, assim, uma esperança de transformação não somente na ortopraxia própria do
protestantismo, mas em sua relação com o catolicismo. O ponto está no entendimento de
que Jesus vive naquele que sofre, e uma unidade entre as vertentes será possível à medida
em que ambas pararem de ter seus olhos fixos numa questão doutrinária superficial, e
então, voltarem-se para este no qual Jesus manifesta-se.
Ele discorre um pouco mais sobre não somente essa esperança, como sobre o
futuro do próprio protestantismo latino americano no penúltimo capítulo; chega à conclusão
de que há duas possibilidades para a vertente: ou vive sob a repressão das estruturas
eclesiásticas dominantes, ou recusa-se a viver assim e lida com a dispersão. Assim,
Ou a encontramos [Igreja] como um remanescente, oprimido, dentro das
estruturas eclesiásticas, confiando ainda nas possibilidades de Reforma, ou
como povo espalhado, ovelhas dispersas, ansiando por novas estruturas
comunitárias que sejam expressões e instrumentos de amor e liberdade
(ALVES, 2004, p. 197)
Finalmente o último capítulo; seu título é "As idéias teológicas e os seus caminhos
pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro". Aqui, o autor conclui sua obra com
uma reflexão bastante pontual: o catolicismo percorreu um caminho que jamais poderíamos
ter imaginado percorrer; se abriu a novos horizontes, recebeu melhor a todos, lutou contra a
própria intolerância. O protestantismo, por sua vez, apesar de carregar em sua essência
uma revolução libertária, acabou escravizado nas amarras do dogmatismo e da hierarquia;
isto o leva a afirmar:
Talvez para se falar do futuro do protestantismo seja necessário se lembrar
do passado do catolicismo. O que nos conduz à visão do vale de ossos
secos, do profeta Ezequiel, que miraculosamente se tornou numa multidão
incontável. Quem diria que a Igreja católica passaria pela metamorfose por
que passou? Ninguém, muito menos os protestantes. Ê possível que, num
futuro talvez não muito distante, o protestantismo se redescubra na sua
própria herança, viva no catolicismo, e que isso conduza ao milagre da cura
da inimizade e se abra para um futuro comum. (ALVES, 2004, pp. 233,234)
Assim encerra-se a obra "Dogmatismo e Tolerância". O livro, de Rubem Alves, traz à
pauta uma discussão muito importante para o momento em que estamos vivendo
atualmente. Discorrendo um pouco sobre a intolerância que acompanha a história do
protestantismo brasileiro, podemos ver que essa marca ainda permanece, fomentada por
inúmeras outras questões da atualidade como a própria política. Isto mostra, uma vez mais,
que a tese de Alves se mostra realista, já que temos uma presença hierárquica e de poder
penetrando o seio protestante hoje e o influenciado em sua conduta. É uma obra rica, que
apesar de trazer muito da opinião do autor, não deixa de revelar dados históricos
interessantes.
Um ponto negativo está na mudança de estilo literário a qual o livro sofre; no
começo temos um Alves mais poético, e suas críticas e discussões parecem tomar um
formato muito intimista e pessoal. Ao longo da obra, no entanto, ela toma uma forma mais
acadêmica e há certa quebra na leitura. Alguns argumentos usados por Alves também
parecem confundir um pouco a mente daqueles que estão lendo; pois, na tentativa de usar
de exemplos diversos, eles se perdem e fica difícil compreender o ponto em questão, o que,
em determinados momentos, pode tornar o livro pouco acessível. No entanto, o conteúdo
segue sendo bastante pertinente à realidade dos protestantes de hoje, mesmo para aqueles
que seguem uma linha teológica pouco mais conservadora. É completamente possível
dialogar mesmo com divergências, e nesse diálogo certamente somos capazes de aprender
muito com Rubem Alves e sua obra "Dogmatismo e Tolerância".
Referência Bibliográfica:
ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. Loyola, 2004. EPUB.

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