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Breve comentário sobre a ADI n.


6.146
André Batista Neves

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A regulação do espaço urbano no Brasil cont emporâneo


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Alan José de Oliveira Teixeira
Organizador
Fábio Periandro de Almeida Hirsch

GIGANTE DO DIREITO
Homenagem do IDCB a
Saul Quadros Filho

Editora Direito Levado a Sério


Salvador, 2021
EDITORA DIREITO LEVADO A SÉRIO
Salvador, Bahia
direitolevadoaserio@gmail.com
Capa
Carla Conchita Pacheco Bouças Hirsch

Editoração
Rodrigo Andrade

Conselho Editorial
Prof. Anderson Pereira
Prof. Dr. Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo
Prof. Dr. Daniel da Fonseca Lins Junior
Prof. Dr. Fábio Periandro de A. Hirsch
Profa. Dra. Flora Augusta Varela Aranha
Prof. Dr. Jaime Barreiros Neto
Prof. Me. José Marcello Monteiro Gurgel
Prof. Dr. José Rômulo Magalhães
Prof. Dr. Julio Cesar de Sá da Rocha
Prof. Me. Rodrigo Andrade de Almeida
ISBN 978-65-87020-23-5 
Dados Internacionais de Catalogação na Câmara Brasileira do Livro

Gigante do direito [livro eletrônico] : homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho /


organizador Fábio Periandro de Almeida Hirsch. -- Salvador, BA : Direito Levado a
Sério, 2021.
PDF

1. Advogados - Brasil - História 2. Direito - Brasil - História 3. Instituto de Direito


Comparado e Internacional de Brasília (IDCB) 4. Quadros Filho, Saul Venâncio de, 1942-
2021 I. Hirsch, Fábio Periandro de Almeida.

21-69800 CDU-34(81)(091)
Data do fechamento desta edição: 25/06/2021
Esta publicação poderá ser reproduzida e distribuída livremente, desde que em sua integralidade
e de maneira gratuita, sendo vedada qualquer forma de comercialização, bem como modificação,
edição, redução ou fragmentação, sem a prévia e expressa autorização da Editora Direito Levado
a Sério.
A violação dos direitos autorais é crime, tipificado na Lei nº 9.610/1998 e punido na forma do art.
184 do Código Penal Brasileiro.
APRESENTAÇÃO

Em tempos de vida real e vida virtual, uma notícia corre rápido e,


quando dolorosa, machuca muito e imediatamente.
Às 01:24 do dia 02 de junho de 2021 partiu para um outro plano o professor,
advogado, ex presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seção Bahia e
Conselheiro Federal da OAB Brasil Saul Quadros Filho.
Partiu, como sempre, após muita luta por sua vida. Nunca nada lhe veio facilmente
e com o que era mais caro a ele (sua existência) não seria diferente.
Partiu deixando muita saudade nos seus filhos, netos, nora e genros, bem como na
sua esposa Ismênia Quadros, companheira de décadas.
Deixou, ainda, órfãos tanto ex alunos (numerosos) quanto colegas da advocacia
que foram alçados à condição de membros da OAB quando das suas gestões ou que se
aproximaram das questões da Ordem por conta de suas campanhas políticas.
Saul Venâncio de Quadros Filho formou-se bacharel em Direito pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA), em 1966, onde foi líder estudantil e presidente do Diretório
Central dos Estudantes (DCE). Foi procurador geral do Município do Salvador e era
advogado militante nas áreas de direito público, cível, empresarial e trabalhista.
Presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção da Bahia (OAB-BA), entre
2007 e 2012.
Foi também presidente da Caixa de Assistência dos Advogados da Bahia (CAAB),
conselheiro federal da OAB e vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados
Trabalhistas (ABRAT).
O debate constante, a inquietude manifesta, a vontade de criar algo novo, o
destemor face a qualquer tema ou questão que inibisse a liberdade. São estes os legados
que todos os que partilharam da inteligência e da verve de Saul usufruíram.
Foi uma honra elevada ter o professor Saul Quadros Filho no rol de integrantes do
Instituto de Direito Constitucional da Bahia (IDCB). Aprendemos, divergimos,
conversamos, mas sempre com respeito, ainda que sem consenso.
O presente livro é um singela homenagem de parcela dos integrantes do IDCB
que, certamente falando em nome da coletividade de membros, respeitavam e admiravam
Saul. Por isso discussões jurídicas em forma de artigos nos parecem honrar a sua faceta
de professor severo, criterioso e empolgado. Eis nossa ode!
Às novas gerações de alunos e advogados, diremos todos nós: conhecemos um
pequeno grande jurista.
Axé, Saul: obrigado por tudo!

Salvador, 15 de junho de 2021.

FÁBIO PERIANDRO DE ALMEIDA HIRSCH


Doutor e Mestre em Direito Público. Professor de Direito Constitucional. Ex
Conselheiro Estadual da OAB/BA sob a presidência de Saul Quadros Filho.
SUMÁRIO DA OBRA

UM GIGANTE DO DIREITO
Homenagem do IDCB a Saul Quadro Filho
2021

BREVE COMENTÁRIO SOBRE A ADI N. 6.146 06


André Luiz Batista Neves

O NEPOTISMO NOS CARGOS DE MINISTROS DE ESTADO E DE


SECRETÁRIOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS: UMA ANÁLISE 19
CRÍTICA DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO N° 579.951-4 DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Clóvis Reimão

O CONTEÚDO JURÍDICO DA LIBERDADE DE PROFISSÃO 35


Dirley da Cunha Júnior

QUANDO A VIDA IMITA A ARTE: CONCRETIZAÇÃO


CONSTITUCIONAL EM TRIBUTO AO LEGADO DO MINISTRO 49
CELSO DE MELLO E UMA HOMENAGEM A SAUL QUADROS
FILHO
Fábio Periandro de Almeida Hirsch

GLOBALIZAÇÃO, SOBERANIA E PÓS-MODERNIDADE: NOTAS 63


SISTEMÁTICAS
Mateus Barbosa Gomes Abreu

A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 88


1988
Ricardo Maurício Freire Soares
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

BREVE COMENTÁRIO SOBRE A ADI N. 6.146

ANDRÉ LUIZ BATISTA NEVES


Professor de Ciência Política, Teoria da Constituição e Direito
Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Especialista em Direito Sanitário (Universidade de
Brasília – UnB). Mestre e Doutorando em Direito (UFBA). Procurador 6
da República.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 O CPC OS ARTIGOS 20 A 23 DA LINDB; 3 A ADI 6.146; 4


CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

Tive a honra de ser aluno de Saul Quadros na minha graduação em Direito, cursada
na Universidade Católica do Salvador (UCSal). Dedicado, estudioso e didático como poucos, Saul
Quadros foi um Professor de Direito do Trabalho cujas influências podem ser mensuradas até mesmo
naqueles que não escolheram esse ramo do Direito como o seu. Esse texto pretende ser uma
homenagem muito simples, mas sincera, à sua memória. Ele examina alguns dos argumentos
ventilados na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.146, ajuizada pela Associação Nacional dos
Magistrados do Trabalho (ANAMATRA) com o pedido de atribuição de interpretação conforme a
Constituição aos arts. 20 a 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB),
incluídos pela Lei n. 13.655/2018.

2 O CPC E OS ARTIGOS 20 A 23 DA LINDB

Um dos mais persistentes mitos que desde o início da modernidade acompanham o


Direito é o de seu caráter uno. Suas profundas raízes – comumente atribuídas ao positivismo
kelseniano, mas, em verdade, muito mais profundas1 – continuam a alimentar a velha metáfora de um

1 É possível que elas repousem no “método demonstrativo” de Christian Wolff (WIEACKER, Franz. História do
Direito privado moderno. 5ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2015, p. 377). Partindo de Espinosa (WIEACKER, Franz.
História do Direito privado moderno. 5ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2015, p. 362) ou de Leibniz (VILLEY,
Michel. Filosofia do Direito: definições e fins do Direito: os meios do Direito. 3 a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019,
p. 149), Wolff concebeu o Direito como um more geométrico, modelado à semelhança da geometria – ele ensinara
matemática, filosofia e teologia em Halle –, em que as decisões jurídicas são deduzidas logicamente de conceitos gerais
e princípios superiores.
Isso não exclui a possibilidade, aventada por Carl Schmitt, de que isso derive de um conceito teológico secularizado.
Afinal, para ele “todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados. Não
somente de acordo com seu desenvolvimento histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

único corpus, em que todas as alterações setoriais repercutiriam automática e inexoravelmente no


restante.
Na realidade, esse tipo articulação ocorre entre subsistemas, que, por injunções
próprias da contemporaneidade, têm cada vez mais se fragmentado. A seleção e a determinação das
modalidades e das extensões da incorporação das informações trazidas pelos inputs – e,
7
consequentemente, os outputs gerados – são determinados por lógicas internas, inerentes a esses
subsistemas, que podem ser mais ou menos refratários à incorporação das “novidades” advindas dos
outros campos do saber jurídico.
O subsistema processual civil, que já era especialmente aberto ao diálogo com o
que lhe é exterior, inclusive por motivos históricos2, renovou sua disposição de ter um kernel3 aberto
com os ares trazidos pelo Código de Processo Civil (CPC) de 2015. Sua tessitura normativa se costura
com diversos outros subsistemas, a começar pelo estruturado com a LINDB.
Esta última nada mais é que o Decreto-lei n. 4.657/1942, anteriormente denominado
de “Lei de Introdução ao Código Civil Brasil e rebatizado pela Lei n. 12.576/2010. A medida foi
aclamada pela doutrina4, porque, como explica Maria Helena Diniz,

medida que o Deus onipotente tornou-se um legislador onipotente, mas, também, na estrutura sistemática, cujo
conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos” (SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 35).
2
Ao tratar da complexidade normativa de Portugal, Menezes Cordeiro fala de algo que também se manifesta no Direito
do Brasil, não por acaso uma ex-colônia portuguesa: “A complexidade normativa portuguesa é imbatível. (...) A
explicação é histórica: desde a Lei da Boa Razão (18-ago.-1769), do Marquês de Pombal, passaram a valer, nos nossos
tribunais, as leis das ‘nações civilizadas e polidas da Europa’. A partir daí, o Direito nacional foi sempre exemplarmente
aberto ao exterior, acolhendo, no seu seio e através de permanentes reformas legislativas, todas as novidades que vinha
do estrangeiro> O alto nível doutrinário alcançado, desde o início do século XX, nas nossas Faculdades de Direito,
repercutiu-se, naturalmente, na feitura das leis. Cabe-nos um Ordenamento complexo e diferenciado: à partida, seria uma
vantagem. Mas a prática postergou-a” (CORDEIRO, António Menezes. Litigância de má-fé, abuso do direito de ação
e culpa in eligendo. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2013. Ebook).
3
Essa expressão teve seu uso consagrado na informática. A enciclopédia eletrônica Wikipedia o define como “(...) o
núcleo ou kernel é o componente central do sistema operativo da maioria dos computadores; ele serve de ponte entre
aplicativos e o processamento real de dados feito a nível de hardware. As responsabilidades do núcleo incluem gerenciar
os recursos do sistema (a comunicação entre componentes de hardware e software). Geralmente como um componente
básico do sistema operativo, um núcleo pode oferecer a camada de abstração de nível mais baixo para os recursos
(especialmente processadores e dispositivos de entrada/saída) que softwares aplicativos devem controlar para realizar sua
função. Ele tipicamente torna estas facilidades disponíveis para os processos de aplicativos através de mecanismos de
comunicação entre processos e chamadas de sistema” (NÚCLEO (SISTEMA OPERACIONAL). In: WIKIPÉDIA, a
enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=N%C3%BAcleo_(sistema_operacional)&oldid=59276453>. Acesso em: 6
set. 2020). O sítio eletrônico Tec Mundo é mais didático: “Um PC divide-se, basicamente, em duas camadas: hardware e
software. Até aí, nenhuma novidade. Onde entra o Kernel na história, então? Pois bem: ele é o grande responsável por
fazer a interação entre essas camadas. Em outras palavras, é o Kernel que gerencia os recursos do sistema e permite que
os programas façam uso deles” (O QUE É KERNEL? Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/macos/1636-o-que-
e-kernel-.htm. Acesso em: 2 mai. 2020). Mutatis mutandis, não é exatamente esta a função que a disciplina processual
desempenha no seu subsistema jurídico?
4
“Como em alguns ordenamentos jurídicos encontravam-se, no corpo do Código Civil de 1916, normas atinentes à
revogação das leis, a sua aplicação e a ao direito internacional privado, fez bem o legislador brasileiro em colocar tais
disposições fora do corpo de nosso Código, precedendo-o, por se tratar de normas sobre a aplicabilidade das leis em geral,
dando-lhes uma autonomia em lei destacada. A técnica legislativa brasileira inspirou-se no modelo alemão, conservando
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

A Lei de Introdução é uma lex legum, ou seja, um conjunto de normas sobre normas,
constituindo um direito sobre direito (“ein Recht der Rechtsordenung”, “Recht ueber Recht”,
Uberrrecht, “surdroit”, “jus supra jura”), um superdireitio, um direito coordenador de
direito. Não rege as relações de vida, mas sim as normas, uma vez que indica como interpretá-
las ou aplicá-las, determinando-lhes a vigência e a eficácia, suas dimensões
espaciotemporais, assinalando suas projeções nas situações conflitivas de ordenamentos
jurídicos nacionais e alienígenas, evidenciando os respectivos elementos de conexão. Como
8
se vê, engloba não só o direito civil, mas também os diversos ramos do direito privado e
público, notadamente a seara do direito internacional privado, por isso exata é a denominação
que lhe foi dada pela Lei n. 12.376. A Lei de Introdução é o Estatuto de Direito Internacional
Privado; é uma norma cogente brasileira, por determinação legislativa da soberania nacional,
aplicável a todas as leis5.

Em 2018, a LINDB sofreu acréscimos determinados pela Lei n. 13.665,


posteriormente regulamentada mediante o Decreto n. 9.830/2019, que, malgrado se destine a orientar
a aplicação no âmbito do Poder Executivo Federal, pode ser levado em consideração no Processo
Civil a título de soft law6.
Os novos artigos incorporados à LINDB se integram às exigências que já haviam
sido previstas no art. 489, § 1º, CPC/2015. De todos eles, o de maior importância é art. 207, cujo
“enunciado normativo [é] inédito e de difícil compreensão”, como apontaram Fredie Didier Jr., Paula
Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira8. Para os referidos autores, ele estrutura “duas normas:

a matéria numa lei introdutória. Assim denominou Lei de Introdução ao Código Civil o complexo de disposições
preliminares que antecedem ao Código Civil e que hoje, acertadamente, pela Lei n. 12.376/2010, passou a ter a
denominação de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” (DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro Interpretada: de acordo com a Lei n. 12.576, de 30 de dezembro de 2010. 17ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 21).
5
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretada: de acordo com a Lei n.
12.576, de 30 de dezembro de 2010. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 21. A grafia é a do original consultado.
6
Carlos Frederico Bastos Pereira posicionou-se contrariamente a qualquer possibilidade de emprego das disposições
do decreto (“Cabe registrar que, em 2019, foi editado o Decreto 9.830, que regulamenta, dentre outros dispositivos da
LINDB, também o art. 20. Como previsto no art. 84, IV e VI, “a”, da CF/1988, a edição de decretos é extensão do poder
regulamentar do Chefe do Poder Executivo e o seu objetivo é dispor sobre a fiel execução das leis e permitir a sua efetiva
aplicação. Não podem os decretos, pois, alterar ou inovar a legislação posta. Sempre que for pertinente, o presente trabalho
fará as devidas referências aos dispositivos do mencionado decreto, com base nessa premissa” - PEREIRA, Carlos
Frederico Bastos. Fundamentação das decisões judiciais, consequências práticas e o art. 20 da LINDB. Revista dos
Tribunais, vol. 1009, p. 99-120, nov. 2019. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-
label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021). Deve-se discordar, ao menos em parte, dessa opinião. Naquilo que não conflita
com o produto da atividade normativa primária do Estado (Constituição e leis), não há obstáculo à invocação dessas
normas secundárias, desde que não como determinação, mas sim orientação.
7
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos
sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
8
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.
Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021, p. 419.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

um postulado hermenêutico e uma regra de densificação do dever de motivar as decisões”9. Na


prática, o art. 20 da LINDB opera

como mais um parágrafo do art. 489 do CPC, seja porque estabelece mais um postulado
normativo (tal como os §§ 2º e 3º do art. 489), seja porque estabelece mais uma situação em
que a fundamentação pode ser considerada deficiente (tal como o § 1º do art. 489) – nesse
sentido, inclusive, o desatendimento do disposto no parágrafo único do art. 20 da LINDB é 9
omissão apta a ensejar a oposição de embargos de declaração, nos termos do art. 1.022, II,
pár. ún., II, do CPC10.

Esse ponto é muito interessante. Ao analisar o art. 21 da LINDB, Ednaldo Silva


Ferreira Júnior assinalou que jurisprudência atual dos tribunais brasileiros defende não ser obrigatório
o enfrentamento de todas as teses ventiladas pelas partes, bastando o exame daquelas essenciais à
tomada da decisão. Tal entendimento poderia obstar o provimento de embargos declaratórios opostos
contra os atos que, tanto nas hipóteses do art. 21 quanto nas do art. da LINDB, deixassem de indicar
as consequências11, o que de fato é muito provável, conhecendo-se a força inercial detida pela
jurisprudência majoritária.

9
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.
Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021, p. 419. Carlos Frederico Bastos Pereira sustenta que são três: “No caput do
art. 20 da LINDB são veiculadas duas normas jurídicas distintas: uma regra proibindo que a decisão judicial seja fundada
em valores jurídicos abstratos; e um postulado que obriga a decisão judicial a considerar as suas consequências práticas.
Há, ainda, uma terceira norma veiculada pelo parágrafo único do dispositivo, diretamente ligada à segunda norma,
consistente em outra regra que obriga o órgão julgador a demonstrar a necessidade e a adequação da solução jurídica
eleita em virtude das consequências práticas identificadas” (PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Fundamentação das
decisões judiciais, consequências práticas e o art. 20 da LINDB. Revista dos Tribunais, vol. 1009, p. 99-120, nov. 2019.
Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-interest=wlbrHome&stnew=true&default-
home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021).
10
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.
Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021, p. 425.
11
Ednaldo Ferreira Júnior refuta, todavia, essa ideia: “As decisões que enunciam a tese jurisprudencial ora em questão
declaram expressamente tratar da interpretação do art. 489, § 1º, do CPC, o qual versa sobre a fundamentação da decisão
judicial. Como se sabe, os fundamentos são o momento da decisão em que o magistrado apresenta uma espécie de síntese
do raciocínio que promoveu para dirimir a lide, contextualizando a incidência das normas jurídicas que julgou pertinentes
sobre os fatos que, a seu ver, restaram comprovados. Ora, é evidente que o citado art. 21 não se refere a este momento da
decisão. O dispositivo da LINDB tem como objeto o momento da sentença – ou acórdão – em que resta informado às
partes qual a extensão da prestação jurisdicional que acabou de ser conferida: os deveres que dela se extrai, como e em
quanto tempo eles deverão ser cumpridos, bem como os seus destinatários. Não à toa, o texto legal exige a indicação não
apenas das consequências jurídicas, mas também das consequências administrativas: a sua preocupação é essencialmente
pragmática, conhecer os efeitos “reais” da decisão de invalidação, ou seja, o art. 21 da LINDB versa sobre o dispositivo
da decisão, o justo momento em que tais aspectos mais pragmáticos são conhecidos pelas partes, melhor dizendo, o art. 21
da LINDB não compõe a ratio decidendi da jurisprudência que privilegia a suficiência em detrimento da totalidade, pelo
que não caberá utilizar o entendimento jurisprudencial enunciado para argumentar um dever de indicar apenas as
consequências suficientes para a boa aplicação da decisão. Em verdade, a tese jurisprudencial analisada não possui
qualquer relação com as questões tratadas pelo novo art. 21 da LINDB” (FERREIRA JÚNIOR, Ednaldo Silva. A Lei
13.655/2018 e a Fazenda Pública em Juízo: Relações entre as normas processuais e as novas disposições da LINDB.
Revista de Processo, São Paulo, vol. 314, p. 71-85, abr. 2021. Disponível em:
https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-
label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021).
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Volvendo ao caput do art. 20, note-se que ele veda a tomada de decisões, inclusive
na esfera judicial, “com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as
consequências práticas da decisão”.
A história da alteração legislativa foi contada por Carlos Ari Sundfeld, em artigo
publicado originalmente no sítio eletrônico Jota12. Gestada inicialmente no âmbito acadêmico13, ele
10
teve o nítido propósito de promover “a melhoria do ambiente de negócios no Brasil”, com a promoção
da “segurança jurídica e [d]a eficiência”, reduzindo “os espaços de contestação das decisões públicas
sem atentar a sério para os riscos de instabilidade do sistema”14.

12
Há cópia no sítio eletrônico academia.edu: SUNDFELD, Carlos Ari. Uma lei geral inovadora para o Direito
Público: Entra na reta final o projeto para modernizar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível
em: https://www.academia.edu/49043080/Uma_lei_geral_inovadora_para_o_Direito_P%C3%BAblico. Acesso em: 03
jun. 2021.
13
“A proposta teve origem em pesquisa acadêmica da Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp e do Grupo Público
da FGV Direito SP. Seu objeto de análise eram as concepções legislativas fundamentais adotadas no Brasil nos últimos
80 anos a respeito de três problemas básicos: a construção do interesse público, o tratamento da autoridade pública e os
papéis dos Poderes do estado e dos órgãos constitucionais autônomos (ver Carlos Ari Sundfeld, Direito Administrativo
para Céticos, 2ª. ed., em especial caps. 9, 11 e 12, ed. Malheiros-sbdp, 2014).
A pesquisa identificou uma crise, causada por opções legislativas conscientes, das ideias históricas sobre a divisão de
tarefas dentro do estado na construção do interesse público. A conclusão foi que, para superar a crise, seria preciso aceitar
duas tendências. Por um lado, a de juízes e controladores compartilharem em alguma medida com a administração pública
a construção em concreto do interesse público. Por outro, a de a administração compartilhar uma parte da produção
normativa com os legisladores. Mas o problema, apontou a pesquisa, é que as leis sobre a atuação dos diversos órgãos,
muito pontuais e fragmentadas, não foram capazes de inventar o “direito mais que administrativo” (capaz de lidar com a
construção do interesse público para além do âmbito da administração), necessário para evitar a ineficiência e o arbítrio
no exercício dessas competências compartilhadas. Além disso, a gestão pública no Brasil ficara fragilizada e até acuada,
muitas vezes por conta de avaliações apressadas e superficiais. Daí a constatação de que só uma solução legislativa
articulada poderá abrir caminho para o equilíbrio no compartilhamento de funções jurídicas criadoras pelos vários Poderes
e órgãos constitucionais autônomos.
Essa solução tem alguma identidade com o propósito das leis processuais civil, penal e administrativa. Mas ela precisa
ter incidência maior. Suas normas têm de ser pensadas para o conjunto de Poderes e órgãos constitucionais autônomos, à
diferença dos Códigos de Processo, que disciplinam a atuação só da Justiça. A nova legislação também tem de valer para
todos os entes da Federação, nisso se distinguindo das leis de processo administrativo federal, estaduais e municipais
surgidas no Brasil a partir da lei paulista nº 10.177, de 1998. Portanto, a solução é uma lei nacional e geral de direito
público, focada em segurança jurídica e eficiência da ação estatal como um todo” (SUNDFELD, Carlos Ari. Uma lei
geral inovadora para o Direito Público: Entra na reta final o projeto para modernizar a Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro. Disponível em:
https://www.academia.edu/49043080/Uma_lei_geral_inovadora_para_o_Direito_P%C3%BAblico. Acesso em: 03 jun.
2021).
14
SUNDFELD, Carlos Ari. Uma lei geral inovadora para o Direito Público: Entra na reta final o projeto para
modernizar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em:
https://www.academia.edu/49043080/Uma_lei_geral_inovadora_para_o_Direito_P%C3%BAblico. Acesso em: 03 jun.
2021.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6.146, de que se falará mais adiante, as informações prestadas pela
Advocacia-Geral da União (AGU) e o pedido de habilitação como amicus curiae Laboratório de Regulação Econômica
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) sustentaram que a inovação legislativa objetiva evitar o “apagão
decisório” ou “apagão das canetas”, expressão usada pelo Ministro Luís Roberto Barroso “no voto proferido na medida
liminar das ADIs 6421 et al., em que se analisava a constitucionalidade da Medida Provisória nº 966/2020, que trata das
hipóteses de responsabilização de gestores públicos por atos relacionados à pandemia de COVID-19”.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Essa foi mais uma etapa de um progressivo aumento de exigência carga de


justificação15 exigida de quem decide em qualquer esfera pública acerca de direitos fundamentais, em
um movimento esposado por muitos diplomas normativos recentes16.
Normalmente pensada como uma reação à expansão do espaço de decisão que foi
legitimada pelo acolhimento, em maior ou menor grau, das várias correntes reunidas sob o rótulo de
11
neoconstitucionalismo, no Brasil ela tem raízes muito anteriores, como testemunha a inclusão do art.
93, IX, no texto da Constituição da República.
A grande questão, no entanto, não se está no que se exigiu – mais justificação –, e
sim no que o teor dessa fundamentação deve conter.
Ao proibir a menção a “valores jurídicos abstratos”, o texto normativo incorreu em
uma clara impropriedade. Isso é muito bem lembrado por Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e
Rafael Alexandria de Oliveira, pois “no sistema brasileiro, o juiz não decide com base em valores,
mas com base em normas. A referência a ‘valores’ é dogmaticamente sem sentido”17.
Por isso, a expressão “valores jurídicos abstratos” somente tem algum sentido se
for compreendida como equivalente a “conceitos genéricos não ligados ao caso concreto, que
poderiam justificar tudo a qualquer tempo, sem relação com a realidade fática” 18 ou a “princípios

15
Nesse sentido, DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima, MOREIRA, Egon Bockmann. O Supremo Tribunal Federal,
a LINDB e as regras de experiência técnica: considerações sobre as prognoses judiciais no âmbito regulatório. Revista
de Processo, São Paulo, vol. 310, p. 333-346, dez. 2020. Disponível em:
https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-
label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021.
16
Cf., p. ex., exemplo o art. 2º, VI e o art. 50 da Lei n. 9.784/1999 e o art. 79 da Lei n. 12.529/2011, que estrutura o
Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
17
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.
Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021, p. 420.
18
FREITAS, Vladimir Passos de. Inclusão de dez artigos na Lindb traz importante inovação ao Direito brasileiro.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-11/governo-publica-decreto-regulamenta-artigo-20-lindb. Acesso
em: 03 jun. 2021.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

normativos menos densificados (...) enunciados em termos amplos, sem um sentido unívoco”19.
Portanto, no âmbito processual, trata-se de mero reforço ao art. 489, § 1º, II, do CPC20.
De longe, o núcleo mais problemático do caput do art. 20 da LINDB está na
proibição de ato decisório sem levar em conta suas consequências práticas. Ele se conjuga com as
necessidades de “indicar as consequências jurídicas e administrativas” da “invalidação de ato,
12
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas
consequências jurídicas e administrativas” (art. 21, LINDB)21 e de considerar, frente a normas que
versam a respeito da “gestão pública, (...) os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as
exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” (art. 22,
LINDB). Foi estipulado um “dever específico de motivação”22, que simultaneamente conduz a dois
dos mais árduos temas do Direito contemporâneo: a) os debates acerca do pragmatismo 23 e do
consequencialismo; b) as prognoses judiciais.
Embora o consequencialismo seja severamente combatido por setores do
pensamento acadêmico24, há muito se refuta a desconexão entre Direito e realidade, que era

19
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.
Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021, p. 420. Para Gustavo Vettorato, “A questão não está em utilizar valores
abstratos, mas como utilizá-los. A resposta à questão não perpassa propriamente pela ponderação de possível conflito de
princípios ou valores (exaustivamente trabalhado por parte da doutrina). O que se propõe é o como devem ser utilizados
os valores abstratos na base de qualquer decisão pública. Ou seja, quais são os requisitos de validade de uma decisão que
os utiliza como fundamento?
A autoridade julgadora, ao tomar uma decisão aplicando (ou criando) o direito a um caso concreto, com base em
valores abstratos, não deveria simplesmente nominá-los, mas densificá-los15. Isso, inclusive, como forma de demonstrar
que o seu conteúdo e sentido adotados são coincidentes com a própria decisão e seus efeitos. Tal necessidade seria própria
do sentido de independência e imparcialidade do julgador adotado pela atual concepção de direito, as quais são requisitos
de sua validade. Em que se deve observar que as normas concretizadas provindas do julgador, mesmo oriunda de
princípios, não seriam mera manifestação de vontade da autoridade, mas fruto de adequação de princípios jurídicos ao
qual a autoridade estaria atrelada. O que forçaria o julgado a fazer coincidir os motivos e a motivação da decisão¸
mantendo a imparcialidade e independência, expressando-a também para fins de controle de sua corretude”
(VETTORATO, Gustavo. A aplicação de valores abstratos como base de decisões das autoridades julgadoras sob a ótica
do art. 20 da LINDB e § 1º do art. 489 do CPC/2015 em face da resistência do CARF. Revista de Direito Tributário
Contemporâneo, vol. 29, p. 15-34, abr.-jun. 2021).
20
Art. 489. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão,
que: (...) II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso.
21
Ao ver de Ednaldo Silva Ferreira Júnior, esse dispositivo criou uma nova espécie de pedido implícito (FERREIRA
JÚNIOR, Ednaldo Silva. A Lei 13.655/2018 e a Fazenda Pública em Juízo: Relações entre as normas processuais e as
novas disposições da LINDB. Revista de Processo, São Paulo, vol. 314, p. 71-85, abr. 2021. Disponível em:
https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-
label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021).
22
DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.
Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021, p. 423.
23
“O caput do art. 20 inaugura, em termos dogmáticos, o postulado hermenêutico do pragmatismo, segundo o qual as
consequências práticas devem ser consideradas no momento da valoração e da escolha de um dos sentidos possíveis do
texto normativo de conteúdo semântico aberto” (DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael
Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021, p. 422).
24
Vide, p. ex., SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e
Malandragem. Revista De Direito Administrativo, n. 248, p. 130-158, mai. 2008. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/41531. Acesso em: 03 jun. 2021.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

sintetizada na velha máxima fiat justitia, pereat mundo25. As consequências intrajurídicas, definidas
como aquelas “cujos argumentos são reconduzidos ao próprio ordenamento jurídico, isto é, quando o
discurso trata dos efeitos da decisão no contexto do próprio sistema jurídico”, são ordinária e
pacificamente sopesadas, como rememora Carlos Frederico Bastos Pereira26. A questão é que o art.
20 da LINDB parece incorporar as consequências extrajurídicas27, o que, no limite, enseja uma
13

25
Carlos Maximiliano já advertia: “O Direito suscita de modo indireto e diretamente ampara a atividade produtiva, tutela
a vida, facilita e assegura o progresso; não embaraça o esforço honesto, o labor benéfico, a evolução geral. Nasce da
sociedade e para a sociedade; não pode deixar de ser um fator do desenvolvimento da mesma. Para ele não é indiferente
a ruína ou a prosperidade, a saúde ou a moléstia, o bem-estar ou a desgraça. Para isso, até mesmo no campo do Direito
Privado, encontra hoje difícil acolhida, tolerada apenas no campo restrito, nos casos excepcionais das disposições
claríssimas, a antiga parêmia, varrida há muito do Direito Público e filha primogênita da exegese tradicional, rígida,
geométrica, silogística – Fiat justitia, pereat mundus: ‘Faça-se justiça, ainda que o mundo pereça’.
A interpretação sociológica atende cada vez mais às consequências prováveis de um modo de entender e aplicar
determinado texto; quanto possível busca uma conclusão benéfica e compatível com o bem geral e as ideias modernas de
proteção aos fracos, de solidariedade humana. Faça-se justiça, porém de tal sorte que o mundo prossiga a rumo dos seus
altos destinos” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991,
p. 168).
26
“Pode-se dizer, com certo consenso, que o argumento consequencialista é aquele que “leva em conta as consequências
positivas ou negativas que uma determinada decisão judicial poderia gerar como razão para apoiar ou rejeitar tal decisão”.
A sua utilização, na maioria das vezes, surge nos chamados casos difíceis (hard cases), isto é, quando insuficiente o
emprego da argumentação meramente lógico-dedutiva para resolução do caso concreto. Assim, junto com outras espécies
de argumentos, realiza-se um juízo prospectivo acerca das possíveis consequências da decisão como forma de justificar
que a solução adotada é mais adequada à resolução do caso.
Uma das questões mais relevantes na utilização do argumento consequencialista é a identificação de consequências
intrajurídicas e extrajurídicas7.
De um lado, serão intrajurídicas as consequências cujos argumentos são reconduzidos ao próprio ordenamento
jurídico, isto é, quando o discurso trata dos efeitos da decisão no contexto do próprio sistema jurídico.
Quando se aplica um precedente judicial vinculante para evitar a insegurança jurídica e a desigualdade entre os
jurisdicionados, quando uma decisão é tomada para evitar lesão a terceiros de boa-fé ou quando uma decisão tem a
possibilidade de acarretar dificuldades ao acesso à justiça, as consequências estão delimitadas pelo contexto normativo,
pois a preocupação central é a repercussão que a decisão terá dentro do próprio sistema.
De outro lado, as consequências extrajurídicas são aquelas cujos argumentos dizem respeito a elementos alheios ao
direito, como questões de natureza econômica, social, política e moral. Embora o consequencialismo seja muitas vezes
associado à Análise Econômica do Direito (Law and Economics), não necessariamente as consequências práticas da
decisão terão cunho exclusivamente econômico.
Assim, haverá consequencialismo extrajurídico, por exemplo, quando uma causa tributária for julgada improcedente
para não lesar os cofres públicos ou quando a prisão cautelar de um parlamentar não for decretada para não gerar
instabilidade política. Essas questões, como se vê, não geram nenhuma repercussão dentro do sistema jurídico, mas fora
dele, essencialmente.
Esclarecida essa subdivisão, são duas as premissas comuns sobre a validade da argumentação consequencialista: (i) a
uma, que os argumentos fundados em consequências intrajurídicas, porque de natureza institucional, são válidos na
argumentação jurídica, apesar de possuir papel subsidiário em relação a outros tipos de argumentos; (ii) a duas, que os
argumento fundados em consequências extrajurídicas, porque de natureza não institucional, não são válidos na
argumentação jurídica (o que, vale frisar, não equivale a dizer que eles não poderão ser invocados)” (PEREIRA, Carlos
Frederico Bastos. Fundamentação das decisões judiciais, consequências práticas e o art. 20 da LINDB. Revista dos
Tribunais, vol. 1009, p. 99-120, nov. 2019. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-
label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021).
27
“Pode-se dizer, com certo consenso, que o argumento consequencialista é aquele que “leva em conta as consequências
positivas ou negativas que uma determinada decisão judicial poderia gerar como razão para apoiar ou rejeitar tal decisão”.
A sua utilização, na maioria das vezes, surge nos chamados casos difíceis (hard cases), isto é, quando insuficiente o
emprego da argumentação meramente lógico-dedutiva para resolução do caso concreto. Assim, junto com outras espécies
de argumentos, realiza-se um juízo prospectivo acerca das possíveis consequências da decisão como forma de justificar
que a solução adotada é mais adequada à resolução do caso.
Uma das questões mais relevantes na utilização do argumento consequencialista é a identificação de consequências
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

discussão não apenas sobre os limites do dever-poder de decidir, mas até mesmo acerca da autonomia
do Direito.
Por sua vez, o tema das prognoses judiciais parece querer uma antevisão do futuro,
mas, na realidade, conecta-se com o das regras de experiência técnica (art. 375, CPC28),
principalmente quando os atos decisórios têm por objeto o campo regulatório. Isso foi bem percebido
14
por Rodrigo Fernandes Lima Dalledone e Egon Bockmann Moreira:

(...) o legislador atribuiu ao Poder Judiciário a incumbência de apresentar prognósticos sobre


os efeitos dos atos de controle das escolhas regulatórias, tanto no plano empírico (LINDB,
art. 20) quanto das múltiplas relações jurídicas que possam ser de algum modo afetadas
(LINDB, art. 21), servindo o postulado da proporcionalidade como critério de definição das
medidas a serem adotadas.
Esses dispositivos legais procuram minorar as dificuldades apontadas por Taruffo sobre as
previsões legislativas que impõem a realização de prognósticos judiciais: a identificação dos
eventos relevantes a serem previstos; a valoração dos fundamentos utilizados para decisão29.

Isso faz todo o sentido. Como explica Murilo Avelino, “a aplicação do método
científico exige técnica como modo racional de ordenar o procedimento a um fim específico”30. As

intrajurídicas e extrajurídicas7.
De um lado, serão intrajurídicas as consequências cujos argumentos são reconduzidos ao próprio ordenamento
jurídico, isto é, quando o discurso trata dos efeitos da decisão no contexto do próprio sistema jurídico.
Quando se aplica um precedente judicial vinculante para evitar a insegurança jurídica e a desigualdade entre os
jurisdicionados, quando uma decisão é tomada para evitar lesão a terceiros de boa-fé ou quando uma decisão tem a
possibilidade de acarretar dificuldades ao acesso à justiça, as consequências estão delimitadas pelo contexto normativo,
pois a preocupação central é a repercussão que a decisão terá dentro do próprio sistema.
De outro lado, as consequências extrajurídicas são aquelas cujos argumentos dizem respeito a elementos alheios ao
direito, como questões de natureza econômica, social, política e moral. Embora o consequencialismo seja muitas vezes
associado à Análise Econômica do Direito (Law and Economics), não necessariamente as consequências práticas da
decisão terão cunho exclusivamente econômico.
Assim, haverá consequencialismo extrajurídico, por exemplo, quando uma causa tributária for julgada improcedente
para não lesar os cofres públicos ou quando a prisão cautelar de um parlamentar não for decretada para não gerar
instabilidade política. Essas questões, como se vê, não geram nenhuma repercussão dentro do sistema jurídico, mas fora
dele, essencialmente.
Esclarecida essa subdivisão, são duas as premissas comuns sobre a validade da argumentação consequencialista: (i) a
uma, que os argumentos fundados em consequências intrajurídicas, porque de natureza institucional, são válidos na
argumentação jurídica, apesar de possuir papel subsidiário em relação a outros tipos de argumentos; (ii) a duas, que os
argumento fundados em consequências extrajurídicas, porque de natureza não institucional, não são válidos na
argumentação jurídica (o que, vale frisar, não equivale a dizer que eles não poderão ser invocados)” (PEREIRA, Carlos
Frederico Bastos. Fundamentação das decisões judiciais, consequências práticas e o art. 20 da LINDB. Revista dos
Tribunais, vol. 1009, p. 99-120, nov. 2019. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-
label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021).
28
Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente
acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.
29
DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima, MOREIRA, Egon Bockmann. O Supremo Tribunal Federal, a LINDB e as
regras de experiência técnica: considerações sobre as prognoses judiciais no âmbito regulatório. Revista de Processo,
São Paulo, vol. 310, p. 333-346, dez. 2020. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-
label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021.
30
AVELINO, Murilo Teixeira. O controle judicial da prova técnica e científica. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 127.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

prognoses, aqui, devem ser técnica e racionalmente fundamentadas, de modo a que suas conclusões
sejam aferíveis pela comunidade científica.

3 A ADI 6.146

15
A ANAMATRA pediu a interpretação conforme a Constituição dos arts. 20 a 23 da
Lei n. 13.655/2018, na Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 6.146, a fim de que sejam
consideradas pelo órgão decisor tão-somente as consequências aventadas pelas partes. Com isso,
seriam evitados “juízos de futurologia”, capazes de “dizer de consequências da decisão e alternativas
não adotada, (...) [o que transformaria] o juiz em um consultor ou parecerista, deixando de lado sua
função única de julgador”, em afronta ao princípio da separação dos poderes e à garantia do
contraditório (arts. 2º e 5º, LV, da Constituição da República).
A objeção é relevante. Por um lado, há que se evitar que a fundamentação do ato
decisório surpreenda as partes, em uma “decisão-surpresa”31, que ofenderia a um só tempo do
mencionado art. 5º, LV, da Constituição e o art. 10 do CPC32. Por outro, é uma impossibilidade fática
exigir que o Magistrado ou o Tribunal antevejam todas as consequências concretamente possíveis33.
Todavia, quando os processos dizem respeito a questões regulatórias, a edição dos
atos questionados normalmente é antecedida de estudos, levantamentos e consultas públicas, “com a
viabilidade de um grau de participação pública superior àquela viabilizada pelo processo judicial”,
nos termos dos arts. 4º, 6º e 9º da Lei n. 13.848/201934. Isso que permite a consolidação do
“conhecimento aplicável a determinados aspectos do setor regulado, com o necessário atributo de

31
Cf., p. ex., MEDEIROS NETO, Elias Marques de, SOUZA, André Pagani de, CASTRO, Daniel Penteado de,
MOLLICA, Rogerio. “Decisão-surpresa” e a sua vedação no Processo Civil brasileiro. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-na-pratica/257894/decisao-surpresa--e-a-sua-vedacao-no-processo-civil-
brasileiro. Acesso em: 03 jun. 2021.
32
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se
tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
33
Ednaldo Silva Ferreira Júnior, malgrado sustente ser ex officio o dever de apontar as consequências, admite que ele
“deve ser interpretado com razoabilidade. Não é humanamente conjecturável que o magistrado preveja todas as
consequências possíveis, pelo que não pode isto ser dele cobrado” (FERREIRA JÚNIOR, Ednaldo Silva. A Lei
13.655/2018 e a Fazenda Pública em Juízo: Relações entre as normas processuais e as novas disposições da LINDB.
Revista de Processo, São Paulo, vol. 314, p. 71-85, abr. 2021. Disponível em:
https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-
label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021).
34
DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima, MOREIRA, Egon Bockmann. O Supremo Tribunal Federal, a LINDB e as
regras de experiência técnica: considerações sobre as prognoses judiciais no âmbito regulatório. Revista de Processo,
São Paulo, vol. 310, p. 333-346, dez. 2020. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-
label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

generalidade”, como apontam Rodrigo Fernandes Lima Dalledone e Egon Bockmann Moreira35.
Dessa forma, nos autos desses litígios devem estar presentes regras consolidadas de experiência
técnica, que, em razão do art. 375 do CPC, não podem ser desconsideradas. Os citados autores
sustentam que esse posicionamento foi corroborado com a compreensão adotada pelo Supremo
Tribunal Federal, nos recentes julgamentos das ADIs n. 6.421, 6.422, 6.424, 6.425, 6.427, 6.428 e
16
6.431/DF 36.
Ao menos nessas situações, não se poderia falar em “decisão-surpresa”. Mas é
realmente disso que os três artigos da LINDB impugnados cuidam? Para responder, é importante
lembrar de lição de Fredie Didier Jr. e Rafael Alexandria de Oliveira:

A relevância do art. 20 da LINDB está não apenas na parte em que ele exige que as
consequências sejam consideradas como também na parte em que ele exige que o julgador
explicite, na fundamentação, o caminho que seu raciocínio trilhou para chegar até elas.
É preciso, então, que o julgador esclareça quais sentidos podem ser extraídos do texto
normativo e quais são as consequências práticas a que cada um desses sentidos pode levar; é
preciso também que o julgador justifique a solução dada à luz da proporcionalidade
(necessidade e adequação) e das possíveis alternativas decisórias.

Na realidade, os arts. 20 a 23 da LINDB não demandam uma bola de cristal, com a


qual se veria o futuro, como pretende a petição inicial da ADI n. 6.146. Eles apenas reforçam ordem
emanada diretamente da Constituição (art. 93, IX) de fundamentação concreta dos atos decisórios,
ordenando que sejam examinadas as possíveis consequências já apontadas pelas partes, acessíveis à
experiência técnica ou de qualquer outro modo disponíveis nos autos37. Essa é a interpretação
constitucionalmente mais adequada dos dispositivos.

35
DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima, MOREIRA, Egon Bockmann. O Supremo Tribunal Federal, a LINDB e as
regras de experiência técnica: considerações sobre as prognoses judiciais no âmbito regulatório. Revista de Processo,
São Paulo, vol. 310, p. 333-346, dez. 2020. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-
label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021.
36
Em que foram fixadas as seguintes teses: “1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao
direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas
e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.
2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem
expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por
organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais
da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”
(DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima, MOREIRA, Egon Bockmann. O Supremo Tribunal Federal, a LINDB e as
regras de experiência técnica: considerações sobre as prognoses judiciais no âmbito regulatório. Revista de Processo,
São Paulo, vol. 310, p. 333-346, dez. 2020. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-
label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021).
37
Nesse sentido: “(...) Não se exige que o julgador considere todas as consequências possíveis. Isso seria, aliás, inviável
e inconveniente. As consequências a serem consideradas são aquelas postas no debate judicial, sobre as quais tenha havido
efetivo contraditório (arts. 9º e 10, CPC).
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

4 CONCLUSÃO

Portanto, caso seja conhecida38 a ADI n. 6.146, a melhor solução talvez seja a
atribuição de interpretação conforme a constituição, deixando-se claro que o escopo dos artigos
questionados da LINDB é o de densificar comando já encontrado no art. 93, IX, da Constituição da
17
República, a fim de que os órgãos decisores motivem tecnicamente (= racionalmente) seus atos com
a indicação das consequências levantadas pelas partes, disponíveis nos autos ou acessíveis às regras
de experiência técnica.

REFERÊNCIAS

AVELINO, Murilo Teixeira. O controle judicial da prova técnica e científica. Salvador: JusPodivm, 2018.

CORDEIRO, António Menezes. Litigância de má-fé, abuso do direito de ação e culpa in eligendo. 3ª ed.
Coimbra: Almedina, 2013. Ebook.

DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima, MOREIRA, Egon Bockmann. O Supremo Tribunal Federal, a
LINDB e as regras de experiência técnica: considerações sobre as prognoses judiciais no âmbito regulatório.
Revista de Processo, São Paulo, vol. 310, p. 333-346, dez. 2020. Disponível em:
https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-
label=Home&crumb-action=/api/widgetshomepage&default-label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021.

DIDIER JR., Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual
Civil. Vol. 2. 16ª ed. Salvador, JusPodivm, 2021.

DIDIER JR., Fredie, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Dever judicial de considerar as consequências práticas
da decisão: interpretando o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A & C – Revista de
Direito Administrativo & Constitucional, Curitiba, ano 19, n. 75, p. 143-160, jan.-mar. 2019.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretada: de acordo com a
Lei n. 12.576, de 30 de dezembro de 2010. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

FERREIRA JÚNIOR, Ednaldo Silva. A Lei 13.655/2018 e a Fazenda Pública em Juízo: Relações entre as
normas processuais e as novas disposições da LINDB. Revista de Processo, São Paulo, vol. 314, p. 71-85,
abr. 2021. Disponível em: https://portal.mpf.mp.br/maf/api/widgetshomepage?area-of-
interest=wlbrHome&stnew=true&default-home-label=Home&crumb-
action=/api/widgetshomepage&default-label=Home. Acesso em: 03 jun. 2021.

Portanto, assim como não é dado exigir do julgador um exercício de futurologia, tampouco se pode admitir que as partes
fiquem alheias às consequências consideradas para a determinação de sentido do princípio normativo: tais consequências
devem ser previamente discutidas com as partes.
c) A observância desse dever impõe ao julgador declinar, na fundamentação, a prognose das consequências e o lastro
probatório que as demonstre. Afinal, ‘a viabilidade de argumentos consequencialistas é necessariamente dependente da
confiabilidade das prognoses feitas sobre o que acontecerá com o mundo caso um determinado curso de ação seja
adotado’” (DIDIER JR., Fredie, OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Dever judicial de considerar as consequências práticas
da decisão: interpretando o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A & C – Revista de Direito
Administrativo & Constitucional, Curitiba, ano 19, n. 75, p. 143-160, jan.-mar. 2019)>
38
Dever-se-á discutir antes a legitimidade da ANAMATRA para a propor.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

FREITAS, Vladimir Passos de. Inclusão de dez artigos na Lindb traz importante inovação ao Direito
brasileiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-11/governo-publica-decreto-regulamenta-
artigo-20-lindb. Acesso em: 03 jun. 2021.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

MEDEIROS NETO, Elias Marques de, SOUZA, André Pagani de, CASTRO, Daniel Penteado de, MOLLICA,
Rogerio.. “Decisão-surpresa” e a sua vedação no Processo Civil brasileiro. Disponível em:
18

https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-na-pratica/257894/decisao-surpresa--e-a-sua-vedacao-no-processo-
civil-brasileiro. Acesso em: 03 jun. 2021.

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UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

O NEPOTISMO NOS CARGOS DE MINISTROS DE ESTADO E


DE SECRETÁRIOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS:
uma análise crítica do Recurso Extraordinário n° 579.951-4
do Supremo Tribunal Federal
19
CLÓVIS REIMÃO
Mestrando em Direito Público pela Universidade de Lisboa. Servidor
do Ministério Público do Estado da Bahia. E-mail:
reimao.clovis@gmail.com

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. OS PRIMEIROS PRECEDENTES DO STF SOBRE O


NEPOTISMO; 3. VISÃO GERAL DO RE N° 579.951-4; 4. ANÁLISE CRÍTICA DO RE N°
579.951-4; 4.1. A INTERPRETAÇÃO LITERAL DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO; 4.2. A
CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA DOS MINISTROS DE ESTADO E SECRETÁRIOS ESTADUAIS
E MUNICIPAIS; 4.3. A CONFUSÃO ENTRE DISCRICIONARIEDADE E LIBERDADE
ABSOLUTA; 4.4. A “TRADIÇÃO MUNDIAL” E O NEPOTISMO. 4.5. AS NEFASTAS
CONSEQUÊNCIAS DO RE N° 579.951-4. 5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

1. INTRODUÇÃO

O saudoso mestre e advogado Saul Quadros foi ferrenho defensor da Súmula Vinculante n°
13 no combate ao nepotismo no Brasil. Na função de presidente da OAB-BA, de forma pioneira,
publicou a resolução n° 01/2009 proibindo essa nefasta prática na OAB de nosso Estado.39
Em homenagem ao mestre, nesse artigo continuaremos a luta contra o nepotismo no Brasil. O
nosso foco será o nepotismo nos cargos políticos brasileiros.
A política brasileira é uma “grande família”40. O favorecimento de parentes dos governantes
é uma chaga histórica multisecular. Até hoje, os gestores públicos brasileiros insistem em nomear
seus parentes para cargos políticos, confundindo o interesse público com o privado, se apropriando
do poder e dos cargos públicos.
O nepotismo é uma prática patrimonialista e antirepublicana que ocorre quando um agente
público utiliza o seu poder para nomear, contratar ou favorecer os seus parentes. Nesse contexto, o

39 CONJUR. OAB-BA cria resolução para evitar nepotismo. Seguindo a súmula, 2009. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2009-fev-11/seccional-baiana-oab-cria-resolucao-proibe-nepotismo Acesso em
03/06/2021.
40
Segundo a historiadora Lilia Schwartz, o Brasil é uma “grande família”. O governante é o grande pai, que aplica a lei
para seus inimigos e é bondoso como seus parentes e aliados. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo
brasileiro. São Paulo: Companhia das letras, 1ª edição, 2019, p.87.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

combate ao nepotismo brasileiro é um tema de crucial relevância visando consolidar a ética


democrática e republicana.
Entretanto, não existe no Brasil uma lei nacional que proíba o nepotismo. Esse tema decorre,
essencialmente, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, por vezes, ao invés de combater,
acaba por legitimar a existência do próprio nepotismo.
20
Nesse sentido, o Recurso Extraordinário n° 579.951-4 foi o leading case no qual o STF fixou,
com repercussão geral, a tenebrosa tese de que a vedação do nepotismo não se aplica para os cargos
políticos. Através de uma interpretação literal e ilógica do artigo 37 da Constituição Federal, o
Supremo abriu uma enorme brecha jurídica para o nepotismo no Brasil.
O objetivo geral dessa pesquisa é analisar criticamente esse leading case destacando os
principais os equívocos cometidos pelo Supremo. Isso será feito através do método hermenêutico41
visando uma interpretação teleológica e sistemática da CRFB/88, bem como utilizando a técnica
hipotético-dedutiva de Karl Popper para falsear as induções e deduções do STF.42
O presente trabalho é dividido em cinco capítulos, a saber: introdução, três capítulos de
desenvolvimento e as conclusões. No primeiro capítulo de desenvolvimento, faremos uma breve
análise dos três primeiros precedentes do STF sobre o nepotismo, que deram origem a tese de que o
nepotismo viola diretamente os princípios constitucionais do artigo 37. Posteriormente, faremos a
exposição inicial do nosso objeto de estudo: o RE n° 579.951-4, expondo os principais argumentos
defendidos pelos ministros do STF para o tema. No terceiro capítulo de desenvolvimento, faremos as
principais críticas ao leading case analisado.

Por fim, faremos uma “conclusão-clímax”43 apontando algumas alternativas jurisprudenciais


e legislativas para aperfeiçoamento do combate ao nepotismo nos cargos políticos brasileiros.

2. OS PRIMEIROS PRECEDENTES DO STF SOBRE O NEPOTISMO

Inicialmente, é fundamental uma breve análise dos três primeiros precedentes do STF sobre o
nepotismo.
O primeiro precedente é a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1521-4. Nesse caso, o STF
analisou a Emenda Constitucional n° 12/1995 do Estado do Rio Grande do Sul, que vedava a

41
GUSTIN, Miracy. (Re)pensando a pesquisa jurídica. Del Rey: São Paulo, 4ª edição, 2015, pp.19-30.
42
POPPER, Karl R. Conjectures and Refutation: The Growth of Scientific Knowledge. New York: BASIC BOOKS,
1962, passim. Disponível em: http://www.rosenfels.org/Popper.pdf. Acessado em 10/01/2021
43
Modelo de conclusão sugerida pelo ilustre professor Luís Poças como mais adequada para artigos científicos. POÇAS,
Luís. Manual de investigação em Direito: metodologia da preparação de teses e artigos jurídicos. Lisboa: Editora
Almedina, 3ª reimpressão, 2020, pp.173-174.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

nomeação de cargos em comissão de cônjuge, companheiros e parentes até o segundo grau de certas
autoridades públicas e determinava a exoneração dos atuais cargos em comissão já maculados pelo
nepotismo.44
O Supremo declarou a constitucionalidade dessa vedação ao nepotismo pelas seguintes
razões: a) aplicação dos princípios constitucionais da legalidade, moralidade, impessoalidade,
21
eficiência do art. 37, caput, da CRFB/8845; b) princípio da isonomia impede favoritismos no acesso
aos cargos públicos; c) a extensão do parentesco até o segundo grau atendeu ao princípio da
razoabilidade e d) a exoneração de cargos maculados pelo nepotismo é válida, pois o cargo é de livre
exoneração, não existindo direito adquirido.46
O segundo precedente é o Mandado de Segurança n° 23.780-5. Nessa lide, uma servidora pública
alegou ao STF que tinha direito líquido e certo de permanecer no cargo em comissão no Tribunal
Regional do Trabalho, mesmo sendo a sua irmã a vice-presidente desse Tribunal.47 O STF denegou
o pedido da servidora, pois: a) o nepotismo viola o princípio da moralidade administrativa (artigo 37,
caput, da CRFB/88); b) não existe direito líquido e certo da servidora ao cargo em comissão de livre
exoneração e c) violação do precedente do Tribunal de Contas da União e da proibição expressa da
Lei nº 9.421/1996.48
O último precedente é a Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 12, nele visava-se
declarar a constitucionalidade da resolução nº 07/2005 do Conselho Nacional de Justiça49, que proibiu
o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário de todo o país.50

44
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1521-4. Relator: Min. Marco Aurélio.
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347111. Data de julgamento:
19/03/1997. Acessado em: 10/12/2020.
45
O famoso caput do artigo 37 afirma que a Administração Pública de todos os Poderes deve respeitar os princípios da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da
República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 10/01/2021.
46
A maioria dos ministros seguiu o voto do relator. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n° 1521-4. Relator: Min.
Marco Aurélio, op.cit, pp. 10- 22.
47
O Tribunal de Contas da União (TCU) anulou essa nomeação pela incidência do nepotismo e a servidora impetrou o
mandado de segurança no STF alegando: a) direito líquido e certo de permanecer no cargo em comissão e b) que o TCU
exorbitou sua competência ao anular sua nomeação. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n°
23.780-5. Relator: Min. Joaquim Barbosa. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=86021. Data de julgamento: 28/09/2005.
Acessado em: 12/12/2020.
48
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS n° 23.780-5. Relator: Min. Joaquim Barbosa, op.cit, pp.02-03; 06-08
49
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n° 07/2005. Disponível em:
https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_7_18102005_26032019133553.pdf. Publicado em 18/10/2005. Acessado em:
14/12/2020.
50
A controvérsia principal girava em torno da matéria não estar disciplinada em lei formal (mas em uma resolução) e na
impossibilidade do CNJ exercer a função legislativa. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC n° 12. Relator: Min.
Carlos Britto. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=606840. Data de
julgamento: 20/08/2008. Acessado em: 14/12/2020.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

O julgamento da medida cautelar51 dessa ADC foi considerado “o mais extenso e aprofundado
debate sobre o nepotismo até hoje”52. O Supremo explicitou a direta correlação entre a proibição do
nepotismo e os princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade, igualdade e eficiência. O
julgado demonstrou a necessidade de proibir privilégios pessoais ao gestor público; de moralizar a
Administração Pública brasileira e de recrutar mão-de-obra pública qualificada e baseada no mérito
22
pessoal.53
No mérito, o Supremo declarou a constitucionalidade da resolução pelos seguintes
fundamentos: a) a proibição da prática do nepotismo não necessita de lei formal, decorre diretamente
dos princípios da impessoalidade, eficiência e moralidade do art. 37, caput, da CRFB/88; b) não
ocorreu violação da separação de Poderes, da legalidade e do federalismo, pois o CNJ é órgão do
Poder Judiciário com competência constitucional normativa para fixar essa proibição nacional e c) a
vedação do nepotismo até o terceiro grau de parentesco por afinidade é compatível com a proteção
do interesse público e da impessoalidade administrativa.54
Após a análise desses três importantes precedentes supracitados, percebe-se que o Supremo
defendeu uma tese em comum: o nepotismo viola diretamente os princípios previstos no art. 37,
caput, da CRFB/8855 (impessoalidade, moralidade e eficiência administrativas).
Até esse momento, o Supremo não diferenciava cargos administrativos e políticos, a vedação
do nepotismo valia para ambos. Veremos agora a origem de toda essa tenebrosa diferenciação.

3. VISÃO GERAL DO RE N° 579.951-4

No caso concreto, o irmão de um vereador foi nomeado Secretário Municipal de Saúde e o irmão do
vice-prefeito foi nomeado como motorista. No julgamento, por repercussão geral, o Supremo
declarou a nulidade da nomeação do motorista56. Por outro lado, o STF afirmou a legalidade da

51
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na ADC n° 12. Relator: Min. Carlos Britto. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=372910. Data de julgamento: 16/02/2002.
Acessado em: 14 de dezembro de 2020, pp. 34-37; 86.
52
MODESTO, Paulo. Nepotismo em cargos político-administrativos. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE),
Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n° 32, outubro/novembro/dezembro de 2012, p.29. Disponível em:
http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=632. Acessado em: 21/12/2020.
53
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na ADC n° 12. Op.cit, pp.33-37, 52-54, 59-61, 84; 108-112.
54
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC n° 12. Relator: Min. Carlos Britto, Op.cit, pp.15-16; 19; 24-25, 29-33 e 38-
43.
55
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, op.cit.
56
Os fundamentos foram: a) o cargo deve ser preenchido por meio de concurso público, já que não se trata de um cargo
em comissão (direção, chefia e assessoramento), e sim um cargo técnico; b) a nomeação constituiu a prática do nepotismo.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Relator: ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557587. Data de julgamento: 20/08/2008.
Acessado em: 14/12/2020, pp. 05-22.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

nomeação do irmão do vereador para o cargo político de Secretário de Saúde, pois: a) a vedação do
nepotismo não abarca os cargos políticos e b) não foi comprovada as designações recíprocas no
Executivo e Legislativo para configurar o nepotismo cruzado.57
O voto do ministro Carlos Ayres de Britto trouxe, pela primeira vez, a diferenciação entre
cargos administrativos e políticos para fins de nepotismo. O raciocínio adotado foi o seguinte: a) a
23
proibição do nepotismo decorre diretamente dos princípios constitucionais do art. 37, caput, da
CRFB/88, dispensando lei formal; b) esses princípios estão localizados no capítulo VII da
Constituição (“Da Administração Pública”), logo, para fins do nepotismo, só se aplicam para a
atividade administrativa da Administração Pública; c) os cargos em comissão e funções de confiança
(art. 37, II e V, da CRFB/88) também são singelamente administrativos, não são cargos políticos; d)
assim, a proibição do nepotismo, não se aplica para os cargos políticos; f) Ministros de estado e
secretários de estado e de município são cargos políticos que auxiliam o chefe do Poder Executivo,
suas funções e critérios de escolha possuem fundamento direto na Constituição (artigo 87), logo, para
eles não se aplica a vedação do nepotismo fixada na ADC n° 12 e g) o Chefe de estado é livre para
escolher seus cargos de governo, mas não os quadros administrativos.58
De igual modo, o ministro Gilmar Mendes afirmou que é uma “tradição mundial” a ressalva
do nepotismo com relação às funções eminentemente políticas (caso Jonh Kennedy e seu irmão
Robert Kennedy), já que muitas vezes os irmãos ou parentes fazem carreiras paralelas e estabelecem
um plano de cooperação sem que haja nepotismo.59
Os demais ministros que foram favoráveis à essa diferenciação não trouxeram novos
argumentos, apenas se limitaram a seguir os fundamentos do ministro Carlos de Britto.60 Vale
ressaltar que, o ministro Cezar Peluso manifestou dúvida sobre o tema, mas entendeu pela legalidade
da nomeação pela não comprovação do nepotismo cruzado.61
Por outro lado, foram contrários a essa diferenciação os ministros Ricardo Lewandowski
(relator do processo); Cármen Lúcia e Celso de Mello. O relator afirmou que: a) não cabe a
interpretação literal dos incisos II e V do art.37 para impedir a vedação do nepotismo aos cargos
políticos, pois deve ser feita uma interpretação lógica e teleológica da Constituição; b) a finalidade
constitucional foi impedir a violação ao interesse público e garantir governo republicano e c) a
moralidade é requisito de validade e legitimidade atividade administrativa.

57
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Relator: ministro Ricardo Lewandowski. Op.cit, passim.
58
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto do ministro Carlos de Britto. Op.cit. Pp.37-38.
59
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto do ministro Gilmar Mendes. Op.cit. Pp.64.
60
Vide os votos dos ministros Marco Aurélio (p.33), Menezes Direito (pp.40-41), Eros Grau (p.46) e Cezar Peluso (pp.
52-53). BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Op.cit.
61
O nepotismo cruzado depende da comprovação designações recíprocas entre as autoridades. BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto do ministro Cezar Peluso.Op.cit. Pp.52-53
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Nos debates entre o ministro relator Ricardo Lewandowski e o ministro Carlos de Britto62, um
ponto merece especial atenção. O primeiro questionou se seria lícito permitir que um prefeito pudesse
nomear vários parentes como secretários municipais, como acontece usualmente em vários
municípios brasileiros. A resposta do ministro Carlos de Britto foi que isso “desgraçadamente
acontece”63, mas permaneceu na tese de que o governante era livre para escolher seus cargos políticos,
24
pois não se aplicaria ao caso o artigo 37 da Constituição Federal.
Por sua vez, a ministra Cármen Lúcia destacou que: a) não existe liberdade absoluta em lugar
algum, o governante não pode ser livre para escolher seus familiares para cargos políticos; b)
Ministros e Secretários realmente possuem um regime jurídico diferenciado de um cargo em
comissão, mas usar esse raciocínio para permitir o nepotismo pode gerar uma brecha extremamente
perigosa e c) os princípios constitucionais do artigo 37 são aplicáveis para todos os cargos públicos
(administrativos e políticos).64
Em mesmo sentido, o ministro Celso de Mello asseverou que: a) o nepotismo é a consagração
do patrimonialismo estatal, sendo totalmente incompatível com república democrática; b) o STF não
pode admitir nepotismo para os altos cargos que usam o poder e a força do Estado em benefício
próprio e c) a moralidade é requisito de validade e legitimidade atividade administrativa e o nepotismo
é a antítese da moralidade.65
A despeito da divergência inicial desses ministros, ao final, prevaleceu o voto do ministro
Carlos de Brito, criando a tese de que a vedação do nepotismo não se aplica para os cargos políticos.66
Essa tese será reproduzida, com algumas mitigações, até os dias atuais pelo Supremo, abrindo uma
enorme brecha jurídica para diversos casos de nepotismo no Brasil.

4. ANÁLISE CRÍTICA DO RE N° 579.951-4

Conforme mencionamos, a origem da diferenciação entre cargos políticos e administrativos


decorreu, sobretudo, do voto do ministro Carlos Ayres de Britto e teve um argumento adicional pelo
ministro Gilmar Mendes. Veremos os principais equívocos desses votos.

62
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Op.cit. Pp. 49
63
Uma resposta extremamente inconsequente, como veremos adiante na análise crítica. BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. RE n° 579.951-4. Op.cit. Pp. 49.
64
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto da ministra Cármen Lúcia. Op.cit. Pp.42-45; 50.
65
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto do ministro Celso de Mello. Op.cit. Pp.55-63.
66
Ao final do julgado, os ministros divergentes acabaram por não anular a nomeação do secretário de saúde. Isso não
ocorreu por eles aceitarem a exceção do cargo político, mas porque não ficou comprovada as designações recíprocas para
configurar o nepotismo cruzado. Por isso, embora o julgado tenha sido “por unanimidade”, a divergência sobre a
diferenciação de cargos administrativos e políticos permaneceu.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

4.1 A INTERPRETAÇÃO LITERAL DO ARTIGO 37 DA CONSTITUIÇÃO

Inicialmente, o ministro Carlos de Britto sustentou que a proibição do nepotismo decorre


diretamente dos princípios constitucionais do art. 37, caput, da CRFB/88, dispensando lei formal.67
Esse entendimento nada tem de inovador, apenas consolidou a tese central dos precedentes do
25
Supremo até então (ADI n° 1521-4, MS n° 23780-5 e ADC n° 12).
Todavia, a partir dessa premissa correta, o ministro tomou conclusões totalmente equivocadas.
Segundo ele, como o artigo 37 está localizado no capítulo VII da Constituição (“Da Administração
Pública”)68, a proibição do nepotismo só se aplica para a atividade e cargos eminentemente
administrativos, não abarcando os cargos políticos. Logo, como os Ministros de Estado e Secretários
são cargos políticos, para eles não existe proibição de nepotismo, o chefe do executivo é livre para
escolhê-los.
A interpretação do ministro é literal e topológica, pois considera apenas a localização de um
artigo constitucional, sem se atentar para as finalidades constitucionais de proteção da ética
republicana e democrática em todos os Poderes. Por outro lado, através de uma interpretação
constitucional sistemática e teleológica fica insustentável pensar que somente os cargos
administrativos de baixo escalão (os “servidores barnabés”69) devam respeitar aos princípios
republicanos da impessoalidade, moralidade e eficiência.
É totalmente ilógico, irrazoável e desproporcional sustentar que o alto escalão do governo
tenha autorização constitucional para ser pessoal, imoral, ineficiente, patrimonialista e
antirrepublicano. Todos os cargos públicos (administrativos ou políticos) devem respeitar os
princípios do artigo 37, caput, da Constituição Federal. Os cargos políticos não podem ser tratados
como uma casta privilegiada ou um clã familiar imune aos ditames constitucionais. Pelo contrário,
“quanto mais alto for o cargo, maior a o dever de obediência incondicional à Constituição e a seus
princípios”.70
A doutrina ilustra essa realidade ilógica através da seguinte situação prática: o Chefe do
Executivo não pode nomear sua esposa para ser diretora administrativa de um hospital público (cargo
administrativo), mas pode nomeá-la para ser Secretária da Saúde (cargo político) e coordenar todas

67
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto do ministro Carlos de Britto, pp.37-38
68
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Op.cit.
69
A expressão é do professor Paulo Modesto. Vide: MODESTO, Paulo. Nepotismo em cargos político-administrativos.
Op.cit, p.05.
70
A frase é do ministro Edson Fachin em recente julgado. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental na
reclamação 26.448. Relator ministro Edson Fachin. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751928908. Data de julgamento: 20/12/2019.
Acessado em 10/01/2020. Pp.02.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

os hospitais da região.71 Ambas as situações, evidentemente, são nepotismo e não podem ser
autorizadas.
Ademais, não se pode limitar a vedação constitucional do nepotismo apenas ao artigo 37.
Ainda que esse artigo não existisse, o artigo 1º (República e Estado Democrático de Direito) e artigo
5º, caput (princípio da igualdade) da Constituição72 já vedariam o nepotismo. Digo mais, até mesmo
26
se a Constituição brasileira não estivesse escrita, bastaria invocar a existência de um governo
Republicano e de um Estado Democrático de Direito para impossibilitar o nepotismo.
Basta perceber que em uma república democrática, o Chefe do Executivo não é o dono do
poder, mas gestor de coisa alheia (res publica), não podendo nomear os cargos públicos (políticos ou
não) de acordo com seus interesses familiares. Ou seja, o governante não pode fazer do Estado a sua
“grande família”73, afinal “a República impõe sacrifícios”74

4.2 A CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA DOS MINISTROS DE ESTADO E SECRETÁRIOS


ESTADUAIS E MUNICIPAIS

O ministro Carlos de Britto também afirmou que os Ministros de Estado e Secretários


Estaduais e Municipais ocupam cargos políticos, pois auxiliam o chefe do Poder Executivo no
governo, tendo suas funções e critérios de escolha fixados diretamente no artigo 87 da Constituição.75
Começamos pelo equívoco histórico dessa afirmação. Essa divisão entre cargos
administrativos e políticos reproduz a antiga e ultrapassada doutrina francesa dos atos políticos. Essa
doutrina, adotada pelo Conselho de Estado Francês no século XIX, separou atos políticos e atos
administrativos (e, consequentemente, o Governo e a Administração) visando proteger/blindar a
atuação de Napoleão.76 Atualmente, prevalece que todos os atos públicos são controláveis, nenhum
ato está excluído da observância das regras e dos princípios constitucionais.77

71
MODESTO, Paulo. Promoção da confiança pública e paralisia decisória durante a pandemia de COVID-19:
encontro marcado com o RE nº 1.133.118 (nepotismo em cargos político-administrativos). Revista brasileira de
Direito. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 18, n. 69, p. 93-102, abr./jun. 2020. Disponível em:
https://dspace.almg.gov.br/bitstream/11037/37923/1/Paulo%20Modesto.pdf. Acessado em 22/12/2020.
72
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de
1988, Op.cit.
73
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1ª edição, São Paulo: Companhia das letras, 2019, p.87.
74
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n° 1521-4, voto do ministro Sepúlveda Pertence, Op.cit, p.48.
75
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto do ministro Carlos de Britto, op.cit. Pp.37-38
76
A separação visava tornar os atos políticos impassíveis de controle pelo Conselho de Estado, que se declarava
incompetente quando avistava um ato político do governo napoleônico. DAVI, Kaline. A dimensão política da
Administração Pública: Neoconstitucionalismo, Democracia e Procedimentalização. Porto Alegre: Ed. Sergio
Antoni Fabriis LT, 2008, pp.87-91.
77
TOURINHO, Rita. O Combate ao Nepotismo e a Súmula Vinculante nº 13: Avanço ou Retrocesso? 2011, p. 09.
Disponível em:
http://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/6/docs/o_combate_ao_nepotismo_e_a_sumula_vinculante_no_13_avanco_ou_re
trocesso.pdf Acessado em 26/12/2020
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Mesmo que aceitemos a divisão doutrinária entre cargo administrativo e político, é evidente
que os ministros e secretários de Estado não podem ser classificados como cargos políticos clássicos
ou representativos (providos através de eleições populares). Eles possuem uma forma de provimento
diferenciada, pois são nomeados diretamente pelo chefe do Executivo, ou seja, não são eleitos pelo
povo. Logo, a sua classificação mais adequada é, segundo o professor Paulo Modesto, de cargo
27
político-administrativo.78
Nessa lógica híbrida (política e administrativa) fica evidente a possibilidade do nepotismo
para esses cargos, pois: a) desempenham a orientação, coordenação e supervisão da Administração
Pública (art.87, I, da CRFB/88) e b) os cargos públicos providos por nomeação estão mais vulneráveis
ao nepotismo, pois sujeitos à discricionariedade da nomeação feita gestor público.
Além disso, até mesmo os cargos políticos clássicos (eleitos pelo povo) e os servidores
públicos efetivos (aprovados por concurso público) estão sujeitos à vedação do nepotismo. Quanto
aos primeiros, o artigo 14, § 7º da Constituição proíbe expressamente a eleição de parentes do Chefe
do Executivo no território que esse exerça sua jurisdição.79 Já nos servidores públicos efetivos,
também haverá nepotismo se eles forem nomeados para cargo em comissão ou função de confiança
diretamente pelo seu parente (autoridade nomeante).80
Isso significa que não tem o menor sentido dizer que os ministros de estado e secretários
estaduais/municipais não se submetam ao nepotismo pois são cargos políticos. O seu superior
imediato (Presidente, Governador ou Prefeito), que é cargo político clássico, é submetido a vedação;
e os seus subordinados (servidores públicos efetivos) também. De fato, eles não podem ser os
“ultraprivilegiados da República”, os únicos que podem ser parentes do gestor sem incidir em
nepotismo.

4.3 A CONFUSÃO ENTRE DISCRICIONARIEDADE E LIBERDADE ABSOLUTA

Por fim, o ministro Carlos de Britto conclui que o chefe do executivo é livre para nomear seus
cargos de governo.81 Nesse ponto, ocorre uma nítida confusão entre discricionariedade e liberdade
absoluta ou arbítrio do gestor público.

78
MODESTO, Paulo. Nepotismo em cargos político-administrativos. Op.cit. Pp.14-15
79
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de
1988. Op.cit.
80
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Reclamação n° 26.448. Relator min. Edson Fachin.
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751928908 Data de julgamento:
20/12/2019.Acessado em 10/01/2021
81
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n° 579.951-4. Voto do ministro Carlos de Britto. Op.cit. Pp.37-38
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Em um Estado de Direito a atuação do gestor público é vinculada, em menor ou maior grau,


à juridicidade administrativa. Até mesmo nos atos discricionários, antes de decidir, o gestor deve
seguir um procedimento administrativo prévio, fundamental para garantir a maior eficiência,
legitimidade e controle da sua decisão.82
Isso significa que o gestor não pode nomear quem ele quiser para um cargo público com base
28
em seus interesses privados. Confundir interesse público com interesse privado é da essência do
patrimonialismo, quando o gestor público se confunde com o próprio Estado, o que remonta a célebre
frase do Rei Luis XIV: “L’État c’est moi”83. Ocorre, contudo, que o gestor público brasileiro “não é
o Rei-Sol, e o Estado democrático de Direito, não é o seu Palácio de Versailles”.84

Nesse sentido, não há liberdade do gestor, mas sim um dever fundamental ético e jurídico de
não nomear seus parentes para cargos públicos. Entendemos que trata-se de um imperativo categórico
kantiano85, ou seja, é “um dever pelo dever, que racionalmente dispensa sanções jurídicas ou prêmios
posteriores”.86
Ademais, mesmo que deva existir uma relação de confiança entre nomeado e nomeante, isso
não significa, confiança subjetiva, isto é, baseada em relações pessoais de vínculos de amizade ou
parentesco. Segundo a professora Rita Tourinho, a Constituição brasileira refere-se à confiança
objetiva, ou seja, decorrente das habilidades/qualificação profissional do nomeado essenciais para o
cargo.87

4.4. A “TRADIÇÃO MUNDIAL” E O NEPOTISMO

Já o voto do ministro Gilmar Mendes afirmou que é uma “tradição mundial” a ressalva do
nepotismo com relação às funções eminentemente políticas e fundamentou citando o caso norte-
americano de John Kennedy e seu irmão Robert Kennedy.

82
OTERO, Paulo. Direito do Procedimento Administrativo. Lisboa: Almedina, volume I, 2016, pp.19-48.
83
Célebre frase atribuída ao Rei Luís XIV, o Rei-Sol, que significa “O Estado sou eu” simbolizando todo o poder e
absolutismo do monarca que confundia sua pessoa com o próprio Estado.
84
REIS, Clóvis Mendes Leite Reimão dos. O processo administrativo à luz do Direito Administrativo
Contemporâneo. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45636/o-processo-administrativo-a-luz-do-direito-
administrativo-contemporaneo Acessado em 11/01/2021
85
Sobre o imperativo categórico, vide: KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1ª ed.,
2016, passim.
86
Esse raciocínio sobre imperativo categórico foi retirado de nosso mais recente artigo. REIS, Clóvis Mendes Leite
Reimão dos. Liberdade de Locomoção em Tempos de Coronavírus. Disponível em:
https://www.academia.edu/43913812/LIBERDADE_DE_LOCOMO%C3%87%C3%83O_EM_TEMPOS_DE_C
ORONAV%C3%8DRUS. Acessado em 11/01/2021.
87
TOURINHO, Rita. O Combate ao Nepotismo e a Súmula Vinculante nº 13: Avanço ou Retrocesso? 2011.
Disponível em:
http://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/6/docs/o_combate_ao_nepotismo_e_a_sumula_vinculante_no_13_avanco_ou_re
trocesso.pdf Acessado em 26/12/2020. Pp.02.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

O argumento do ministro também é equivocado, pois: a) o caso Kennedy já foi superado nos
Estados Unidos desde 1967 com a proibição contida na Seção 3110 do Título 5 do United States
Code88; b) na União Europeia o nepotismo é associado ao crime de corrupção baseada na
interpretação doutrinária do art. 7º da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção 89 e c) na
América Latina, diversos países também proíbem o nepotismo de forma ampla.90
29
Ou seja, a tradição mundial parece caminhar no sentido contrário ao defendido pelo ministro.
A fragilidade do seu argumento (citando apenas um caso norte-americano) fez parecer mais a
utilização de uma “filosofia tupiniquim”, a saber, “uma vez bom para os Estados Unidos, é bom
também para o Brasil”.91

4.5. AS NEFASTAS CONSEQUÊNCIAS DO RE N° 579.951-4

O ministro Ricardo Lewandowski tinha razão ao se preocupar com as consequências práticas


de permitir o nepotismo nos cargos políticos. O voto do ministro Carlos de Britto foi manifestamente
inconsequente.
O Recurso Extraordinário n° 579.951-4 abriu uma enorme brecha jurídica para o nepotismo
nos cargos políticos brasileiros. Não se tratou de um julgado isolado, pelo contrário, ele foi o leading
case que influencia até hoje, com certas mitigações, a jurisprudência do STF sobre o tema. Vejamos.
Com base no RE n° 579.951-4, o Supremo fixou na Reclamação n° 665092 a tese de que a
nomeação de parentes para cargos políticos não viola a proibição nacional do nepotismo contida na
famosa súmula vinculante n° 13.93 Com essa tese, o Supremo legitimou, por um bom tempo, o
nepotismo nos cargos políticos brasileiros.

88
ESTADOS UNIDOS. United States Code. Publicado em 16/12/1967. Disponível em:
https://www.govinfo.gov/content/pkg/USCODE-2010-title5/pdf/USCODE-2010-title5.pdf. pp. 195. Acessado em
10/01/2021.
89
CARNEY, Gerard. Conflict of Interest: Legislators, Ministers and Public Officials. Disponível em:
http://www.parliament.am/committee_docs_5/Legcom/Conflict%20of%20Interest_Trans%20Int%20Carney%20(3).pdf
Acessado em 10/01/2021.
90
Citamos por exemplo: Paraguai, Argentina, Perú, Colômbia, Venezuela, Bolívia e Equador.
91
LEAL João José; LEAL, Rodrigo José. Supremo Tribunal Federal e o Nepotismo Top. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/11679/supremo-tribunal-federal-e-o-nepotismo-top. Acessado em 10/01/2021.
92
O fundamento foi que a súmula vinculante faz menção apenas aos cargos em comissão e funções de confiança
administrativos. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n° 6650-9. Relatora min. Ellen Gracie. Disponível
em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=563349 . Data de julgamento: 16/10/2008.
Acessado em 17/12/2020.
93
A súmula vinculante foi um marco no combate ao nepotismo no Brasil. Mas, infelizmente, o STF começou a interpretá-
la de forma a mitigar seu alcance aos cargos políticos. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n° 13.
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1227 . Data de publicação:
29/08/2008. Acessado em 15/12/2020.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

A situação era tão esdrúxula e antirepublicana que, posteriormente, o Supremo teve de mitigar
esse entendimento. A Corte passou a admitir, excepcionalmente94, o nepotismo nos cargos políticos
quando, no caso concreto, a nomeação envolver: a) nepotismo cruzado; b) fraude à lei e c) inequívoca
falta de razoabilidade da indicação, por manifesta ausência de qualificação técnica ou por
inidoneidade moral do nomeado.95 Ou seja, a análise do nepotismo nos cargos políticos começou a
30
ser feita, caso a caso, para evitar abusos nas nomeações.96
Essa lógica casuística, todavia, além de não acabar com a brecha jurídica ao nepotismo, ainda
gerou outros dois problemas principais. Primeiro, tornou a Suprema Corte do país uma espécie de
“varejista da Administração Pública”97, analisando caso a caso as diversas nomeações de Ministros e
Secretários estaduais. Segundo, o casuísmo gerou enorme insegurança jurídica, pois: a) os critérios
adotados não são objetivos98; e b) os ministros do Supremo começaram a adotar posicionamentos
totalmente diferentes para casos concretos semelhantes, violando a coerência, integridade e
uniformidade jurisprudencial.99
A perspectiva jurisprudencial futura do tema ainda é desanimadora. Visando uniformizar o
tema, o STF decidirá com repercussão geral o Recurso Extraordinário n° 1133118100. Até o momento,
só tivemos um parecer do Procurador Geral da República que, repetindo os equívocos do RE n°

94
A regra é continua sendo que, de forma abstrata, não se aplica a proibição do nepotismo (SV n° 13) para os cargos
políticos. Somente como exceção e nos casos concretos é que se analisa o nepotismo nesses cargos.
95
Por todos, citamos o julgado mais recente que consolidou esses critérios. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 1ª
Turma. Reclamação n° 29033, relator Min. Roberto Barroso, Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751915279 Data de julgamento: 17/9/2019.
96
Vale mencionar que esse já era o entendimento do ministro Ricardo Lewandowski desde a reclamação n° 6650. Ele foi
voto vencido, mas, aos poucos, esse entendimento começou a ganhar força no Supremo. BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Reclamação n° 6650-9. Voto do min. Ricardo Lewandowski. p.16
97
A expressão decorre do raciocínio do professor Paulo Modesto ao afirmar que não cabe a Suprema Corte de um país
ocupar-se de “situações de varejo” da Administração. MODESTO, Paulo. Nepotismo em cargos político-
administrativos. Op.cit, p.06.
98
O que configura “fraude à lei”, “nomeação irrazoável”, “ausência de qualificação técnica” e “inidoneidade moral do
nomeado”? Tudo vai depender da análise do caso concreto, logo, esses critérios abrem margem para subjetivismo judicial.
Vide: CANI, Julia Wand-Del-Rey; ESTEVES, Luiz Fernando Gomes. Nepotismo e cargos políticos: a exceção, a
“exceção da exceção” e a indefinição do STF. Disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/nepotismo-e-cargos-
politicos-a-excecao-a-excecao-da-excecao-e-a-indefinicao-do-stf-03032020. Acessado em 24/12/2020.
99
Destacamos aqui os entendimentos dos ministros Marco Aurélio e Edson Fachin que sequer seguem os critérios
supracitados. Eles entendem que o nepotismo viola o princípio republicano e que a proibição da SV n° 13 também abarca,
como regra, os cargos políticos. Vide: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Reclamação n°
26.448. Relator min. Edson Fachin. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751928908 Data de julgamento: 20/12/2019.
Acessado em 10/01/2020; BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Reclamação n° 31.732. Relator ministro Marco Aurélio.
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314362303&ext=.pdf Data de julgamento:
11/05/2018.Acessado em 10/01/2021;
100
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n° 1133118. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=15079316 Data de julgamento: 14/06/2018.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

579.951-4, é favorável à nomeação de parentes para cargos políticos e, para piorar, ainda entende que
sequer cabe ao Judiciário controlar a qualificação técnica do parente nomeado.101
Por fim, a pandemia do Corona vírus (COVID-19) escancarou ainda mais o equívoco do RE
n° 579.951-4. Em diversos Estados e Municípios brasileiros, os secretários de saúde são parentes dos
governadores e prefeitos, e não possuem qualificação técnica e profissional para o cargo. Ou seja,
31
durante uma grave crise sanitária e humanitária, que exige decisões administrativas complexas, os
nossos secretários de saúde nada entendem de medicina ou de questões sanitárias básicas. São líderes
de improviso, sem preparo técnico, nomeados apenas pelo parentesco e que estão coordenando os
hospitais públicos brasileiros.102
Infelizmente, já se somam no Brasil, até o momento, mais de 460 mil mortes por Corona vírus
(COVID-19). É lamentável que o primeiro cargo político com nepotismo autorizado pelo Supremo
tenha sido logo o de um secretário de saúde. Sem dúvida, autorizar o nepotismo nos cargos políticos
brasileiros tem consequências fúnebres.

5. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, concluímos que é totalmente equivocada a permissão do nepotismo nos
cargos políticos de Ministros de Estado e Secretários Estaduais e Municipais, realizada pelo RE n°
579.951-4. Visando corrigir esse terrível equívoco do Supremo, destacamos algumas alternativas.
A alternativa mais rápida é a jurisprudencial. Basta que o STF julgue o RE n° 1133118 103
fixando, com repercussão geral, que a proibição do nepotismo abrange os cargos políticos. É dizer, o
Supremo reduziria o casuísmo (e a consequente insegurança jurídica) e fixaria, de uma vez por todas,
que não é cabível a nomeação de parentes para cargos políticos.
A alternativa um pouco mais demorada, porém com maior legitimidade democrática, é a
legislativa. Mesmo que a proibição do nepotismo decorra diretamente dos princípios constitucionais,
visando evitar as clássicas críticas ao ativismo judicial104, seria possível emendar o texto da

101
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Parecer do PGR no Recurso Extraordinário n° 1133118. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342429452&ext=.pdf Data de publicação: 18/02/2020.
Acessado em 20/12/2020.
102
MODESTO, Paulo. Promoção da confiança pública e paralisia decisória durante a pandemia de COVID-19...
Op.cit. Pp.01-03.
103
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n° 1133118. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=15079316 Data de julgamento: 14/06/2018
104
Segundo Jeremy Waldron, o ativismo judicial: a) é antidemocrático; b) viola separação dos poderes e c) não é tão
eficiente na proteção de direitos fundamentais. Vide: WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial
Review. Yale Law Journal. 2006. Disponível em:
https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=5011&context=ylj Acessado em 11/01/2021.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Constituição para fixar, expressamente, a proibição do nepotismo abrangendo todos os cargos


públicos (políticos e administrativos). Ademais, pode ser feita uma alteração no Código Penal
brasileiro105 para configurar o nepotismo como crime de corrupção visando a maior reprimenda da
prática para o gestor público e o parente nomeado.
Seja adotada uma solução ou outra, o fato é que uma sentença, uma Constituição ou uma lei
32
não possuem o poder mágico de extirpar o nepotismo brasileiro, uma prática patrimonialista de mais
de 500 anos. Todavia, sem nenhuma pretensão ilusória de esgotar o tema, entendemos que a sua
melhor regulamentação, legislativa e jurisprudencial, é imprescindível para nos livramos dos
equívocos do RE 579.951-4 e reduzirmos as suas nefastas consequências.

REFERÊNCIAS

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105
BRASIL. Decreto n.º 2848 de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
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UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

O CONTEÚDO JURÍDICO DA LIBERDADE DE PROFISSÃO106

DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR


Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de
Lisboa/Portugal. Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP.
Mestre em Direito Econômico pela UFBA. Professor Titular da
Universidade Católica do Salvador (UCSAL), onde leciona Direito 35
Constitucional, Direitos Fundamentais e Efetividade dos Direitos
Sociais nos Cursos de Graduação em Direito e Mestrado e Doutorado
no Programa de Políticas Sociais e Cidadania. Professor Associado da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) onde leciona Direito
Constitucional nos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em
Direito. Professor Adjunto e Coordenador do Núcleo de Direito do
Estado e da Pós-Graduação em Direito Público da Faculdade Baiana de
Direito. Conferencista e autor de diversas obras jurídicas. Juiz Federal
da Seção Judiciária da Bahia. Ex-Procurador da República (1995-
1999). Ex-Promotor de Justiça do Estado da Bahia (1992-1995).

SUMÁRIO: 1. UMA BREVE INTRODUÇÃO ÀS LIBERDADES PÚBLICAS E A


LIBERDADE DE PROFISSÃO. 2. LIBERDADE DE PROFISSÃO COMO DIREITO
FUNDAMENTAL. 3. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LIBERDADE DE PROFISSÃO
NO BRASIL. 4. LIMITAÇÕES À LIBERDADE DE PROFISSÃO. 5. CONSIDERAÇÕES
FINAIS. REFERÊNCIAS.

Tal como a chuva caída


Fecunda a terra, no estio,
Para fecundar a vida
O trabalho se inventou.
Feliz quem pode, orgulhoso,
Dizer: “Nunca fui vadio:
E, se hoje sou venturoso,
Devo ao trabalho o que sou!”
É preciso, desde a infância,
Ir preparando o futuro;
Para chegar à abundância,
É preciso trabalhar.
Não nasce a planta perfeita,
Não nasce o fruto maduro;
E, para ter a colheita,
É preciso semear
Olavo Bilac

106
Artigo dedicado ao Constitucionalista, Professor, Advogado e Ex-Presidente da OAB/BA, Dr. SAUL VENÂNCIO
DE QUADROS FILHO, que foi um dos maiores defensores das Liberdades Públicas, especialmente da Liberdade de
Profissão.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

1. UMA BREVE INTRODUÇÃO ÀS LIBERDADES PÚBLICAS E A LIBERDADE DE


PROFISSÃO

É inegável que o grau de democracia em um país mede-se precisamente pelo reconhecimento,


respeito e promoção das liberdades fundamentais. Não há falar em democracia sem o reconhecimento
36
e proteção das liberdades fundamentais. Elas têm um papel decisivo na sociedade, porque é por meio
das liberdades públicas que se avalia a legitimação de todos os poderes sociais, políticos e individuais.
Onde quer que essas liberdades padeçam de lesão, a Sociedade se acha enferma107.
Por essa razão, o reconhecimento, respeito e a proteção dos direitos e das liberdades
fundamentais – como salienta Karl Loewenstein108 – são o núcleo essencial da democracia
constitucional. Os direitos fundamentais, portanto, segundo escólio do autor,

encarnan la distribución del poder sin la que la democracia constitucional no puede funcionar.
Cuanto más amplios sean estos âmbitos y más intensa sea su protección, tanto menos peligro
existirá para que se produzca una concentración del poder. Reconocimiento y observancia de
las libertades fundamentales separan el sistema político de la democracia constitucional de
la autocracia.109

Historicamente, as liberdades públicas fundamentais foram identificados com os valores mais


importantes da convivência humana, ou seja, aqueles sem os quais as sociedades acabam perecendo,
fatalmente, por um processo irreversível de desagregação110. A história foi demonstrando,
progressivamente, que os seres humanos, não obstante as profundas diferenças biológicas e culturais
que os distinguem entre si, são merecedores de idêntico respeito, como únicos seres no mundo
capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. A partir do chamado período axial (entre os
séculos VIII e II a.C.), foi-se reconhecendo, assim, e em todo o mundo, que em face dessa igualdade
essencial, nenhum indivíduo, grupo ou nação, pode afirmar-se superior aos demais111. A dignidade
humana os torna todos essencialmente iguais.
Porém, os direitos e as liberdades fundamentais surgiram, formalmente, na modernidade
constitucional, com a criação do Estado de Direito, no final do século XVIII, fruto do seu
reconhecimento pelas primeiras declarações de Direitos.
E a liberdade de profissão, também denominada de liberdade de trabalho ou de ofício, foi
consagrada inicialmente como direito fundamental nos textos constitucionais franceses (Declaração

107
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 528.
108
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, p. 392. No mesmo sentido, Norberto Bobbio, A Era dos Direitos,
p. 01.
109
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, p. 390.
110
COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p. 26.
111
COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p. 01.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Universal de 1789 e Constituição de 1793), passando posteriormente para a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948112 e para quase todos os textos constitucionais do mundo113.

2. LIBERDADE DE PROFISSÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

37
De fato, como no poema acima citado, para ter a colheita é preciso semear. Por essa razão, o
trabalho sempre foi fundamental para a existência e evolução da própria humanidade. Não como uma
obrigação ou mera ocupação, mas como um instrumento de criação, desenvolvimento e
transformação da sociedade.
Pensado nestes termos, o trabalho deve ser considerado um instrumento de libertação. Não
por acaso, a maioria das nações o consideram um direito fundamental. Entretanto, tão fundamental
como o trabalho é o direito de escolha e exercício de qualquer profissão, ofício ou trabalho.
A Constituição de 1988 consagra a liberdade de profissão, de trabalho ou de ofício como um
Direito Fundamental (Art. 5º, XIII). Não apenas como um direito de a pessoa humana escolher e
exercer a sua profissão de acordo com as suas legítimas opções e vocações114, mas também como um
direito extensivo às pessoas jurídicas em relação a sua liberdade de exercer atividade econômica,
indústria ou comércio115.
Mas cumpre acentuar que o direito à liberdade de profissão, trabalho ou ofício, possui uma
dimensão positiva e uma dimensão negativa.
Sua dimensão positiva destaca-se com a possibilidade de a pessoa realizar escolhas: a) de
trabalhar; b) de não trabalhar; e c) de trabalhar com a profissão ou ofício de sua predileção. Com
efeito, a Constituição de 1988, muito embora prestigie o trabalho (art. 7º) e os valores sociais dele
decorrentes (art. 1º, IV e art. 170), também abriga a liberdade de não trabalhar. Assim, apesar de
socialmente censurada, a livre opção por não trabalhar é expressão do direito de liberdade de trabalho,
ofício ou profissão, de modo que a pessoa não pode ser prejudicada porque se entregou ao ócio. A
própria Constituição vedou o trabalho forçado, mesmo como pena imposta a condenados pela prática

112
Art. 23, nº 1: Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de
trabalho e à proteção contra o desemprego.
113
Citem-se, por exemplo, os atuais textos constitucionais: de Portugal (art. 47, nº 1); da Alemanha (art. 12); da Espanha
(art. 35, nº 1); do México (art. 5º); do Japão (art. 22); da Índia (art. 19, nº 1, b); da Holanda (art. 19, nº 3); da Bulgária
(art. 48, nºs 3 e 4); da Colômbia (art. 26); do Peru (art. 2º, nº 13); da Venezuela (arts. 82 e 84); do Equador (art. 19, nº
10).
114
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed., Salvador: editora Juspodivm, 2015.
115
Nesse sentido, FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, V. 1, arts. 1º a 21, 1989:
“A liberdade de profissão não é somente a liberdade de exercer uma determinada profissão, pois também cabe às pessoas
jurídicas. Assim sendo, o preceito constitucional é amplo e abrangente, para assegurar a liberdade de escolha de profissão
ou tipo de profissão, indústria ou comércio, extensivo às pessoas jurídicas”.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

de crimes (Art. 5º, XLVII, c)116, ressalvado o serviço militar, cujo ofício ainda é obrigatório no Brasil
(Art. 143).
A dimensão negativa do direito de liberdade de trabalho, ofício ou profissão reside na
impossibilidade de o Estado intervir no seu exercício, salvo para exigir, quando necessário o controle
social da profissão, determinadas qualificações profissionais.
38
Por fim, também cabe asseverar que o direito de liberdade de trabalho, ofício ou profissão
manifesta-se tanto como liberdade de escolha quanto como liberdade de exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão. Uma pressupõe a outra, embora a liberdade de escolha tenha um alcance
bem maior que a liberdade de exercício117.
Segundo Jorge Miranda118, a liberdade de escolha de profissão compreende: 1) o direito de
decidir livremente, sem embaraços, qual a profissão a seguir; 2) o direito de acesso à formação escolar
correspondente à profissão desejada, de acesso à preparação técnica necessária e de obter as
necessárias habilitações; 3) o direito de, a qualquer tempo, mudar de profissão.
Enquanto a liberdade de exercício de profissão abrange: 1) o direito de obter, sem qualquer
obstáculo ou discriminação, as habilitações legais e demais requisitos para o exercício da profissão;
2) o direito de escolher o lugar de exercício da profissão; 3) o direito de praticar os atos materiais e
jurídicos necessários para o desempenho da profissão; 4) o direito de inscrição – e de não inscrição –
em associações profissionais; 5) o direito de não ser privado do exercício da profissão, salvo nos
casos e nos termos da lei.

3. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LIBERDADE DE PROFISSÃO NO BRASIL

O direito de liberdade de trabalho, ofício ou profissão teve o reconhecimento de todas as


Constituições brasileiras.
Com efeito, a Constituição de 1824 o disciplinou nos seguintes termos:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem
por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição
do Imperio, pela maneira seguinte.
(...)
XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido,
uma vez que não se opponha aos costumes publicos, à segurança, e saúde dos Cidadãos.

116
Também nesse sentido, BASTOS, Celso Ribeiro. In: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários
à Constituição do Brasil. São Paulo: Saravia, V. 2, Arts. 5º a 17, p. 76, 1989. Porém, em sentido oposto, FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 3ª Ed., São Paulo: Saraiva, V. 1, Arts. 1º a
103, p.37/38, 2000.
117
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª Ed, Coimbra: Coimbra Editora, Tomo IV, p. 439, 1998.
118
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª Ed, Coimbra: Coimbra Editora, Tomo IV, p. 440/441, 1998.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Assim, desde que não contrariasse os costumes públicos, à segurança e saúde das pessoas, a
liberdade de trabalho, ofício ou profissão era garantido.
A Constituição Federal de 1891, sem possibilitar qualquer restrição, tratou da liberdade de
trabalho da seguinte maneira:

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no pais a 39


inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade,
nos termos seguintes: (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)
(...)
§ 24. É garantido o livre exercicio de qualquer profissão moral, intellectual e industrial.
(Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)

Já a Constituição de 1934, assim dispôs:

Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a


inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual
e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
13) É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade técnica
e outras que a lei estabelecer, ditadas pelo interesse público.

Observa-se dessa Constituição de 1934 a possibilidade de o Estado exigir a prévia capacidade


técnica para o exercício de determinadas profissões, como condição imposta pelo interesse público.
A partir da Constituição de 1934 passa a se delinear no Brasil uma teoria dos limites gerais à liberdade
de profissão.
Assim, sempre que o trabalho, ofício ou profissão requeira habilitação, necessária para que o
público seja bem servido e o interesse coletivo satisfeito, não constitui violação a esse direito a
existência de lei fixando o mínimo de conhecimentos específicos necessários119.
A Constituição de 1937 também chegou a prever o direito:

Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito
à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
8º) a liberdade de escolha de profissão ou do gênero de trabalho, indústria ou comércio,
observadas as condições de capacidade e as restrições impostas pelo bem público nos termos
da lei.

Todavia, o direito de liberdade de trabalho foi suspenso pelo Decreto nº 10.358, de 1942, que
declarou o estado de guerra em todo o território nacional.
A Constituição de 1946 restabeleceu o direito de liberdade de trabalho ou profissão nos
seguintes termos:

119
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen Editor, V. III, Arts.
129 a 144, p. 255.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 14 - É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que
a lei estabelecer.

A Constituição de 1967 também assegurou o direito de liberdade de trabalho, ofício ou


40
profissão:

Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:
(...)
§ 23 - É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições
de capacidade que a lei estabelecer.

A Emenda Constitucional nº 01/69 reiterou a proteção ao direito:

Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos
têrmos seguintes:
(...)
§ 23. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições
de capacidade que a lei estabelecer.

E, finalmente, a Constituição de 1988, que, mantendo o direito na linha das Constituições


anteriores, apenas substituiu a referência a “condições de capacidade” pela “qualificações
profissionais”:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer

4. LIMITAÇÕES À LIBERDADE DE PROFISSÃO

O direito de liberdade de trabalho, ofício ou profissão está previsto em norma constitucional


de eficácia contida. Isto significa que, conquanto de aplicação direta e imediata, a norma definidora
do direito pode ser contida em seus efeitos e o próprio direito que ela reconhece pode ser limitado.
Essa é a razão da parte final do inciso XIII do art. 5º: “(...) atendidas as qualificações profissionais
que a lei estabelecer”.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Observa-se, daí, a possibilidade de o legislador limitar a liberdade de trabalho, ofício ou


profissão, sujeitando o seu exercício à prévia qualificação profissional. Isso ocorre para as chamadas
profissões regulamentadas, que são todas aquelas para o desempenho das quais a lei exige o
cumprimento de certas condições e habilidades especiais, como a conclusão de curso de graduação
em Universidades ou Instituições de Ensino Superior, a aprovação em exames de ingresso em
41
conselhos profissionais, o registro em conselhos profissionais, entre outros.
Contudo, considerações devem ser feitas a essa possibilidade prevista na Constituição
brasileira, que está em simetria com as Constituições de outros Países, que também estabelecem
formas de restrição a essa liberdade pública fundamental.
Noutro giro, a possibilidade jurídica de restrição do direito ao trabalho, ofício ou profissão
está associada à estrutura normativa desse direito fundamental. Com efeito, se se considerar a norma
de direito fundamental ao trabalho, ofício ou profissão como princípio, como efetivamente é, a sua
restringibilidade é perfeitamente possível, em razão do caráter prima facie dos princípios, que, longe
de encerrarem determinações definitivas, prontas e acabadas, se caracterizam como mandamentos de
otimização, a expressar tão somente comandos provisórios, incertos e a priori, que dependem, para a
sua definição final, das condições fáticas e jurídicas existentes. A essa conclusão se chegar com
fundamento na teoria dos princípios do alemão Robert Alexy120.
Inicialmente, é imperioso afirmar que a regra é a liberdade de escolha e exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão.
Apenas excepcionalmente é que pode o legislador, atendidas determinadas condições,
restringir a liberdade de exercício de determinado trabalho, ofício ou profissão, para ajustá-lo ao bem-
estar geral da sociedade. Isto é, além de excepcional a limitação ao exercício do direito, nem todo
trabalho, ofício ou profissão pode ser limitado, mas apenas aquele que, dissociado de outros valores
constitucionais, necessite de um controle social, em razão dos riscos anormais que pode infligir à
comunidade.
Assim, há condicionamentos formais e materiais para a limitação dessa liberdade
fundamental.
Primeiro, o inciso XIII do art. 5º da Constituição brasileira submeteu qualquer espécie de
limitação à liberdade de trabalho, ofício ou profissão a uma reserva legal absoluta, na medida em
que a limitação deve ser integralmente regulada por lei formal. Isto é, sujeitou a matéria – limitação
à liberdade de trabalho, ofício ou profissão – à estrita reserva legal, de sorte que não é possível outro

120
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. 2ª
edição, da 4º tiragem, São Paulo: Malheiros, 2015.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

meio senão a própria lei para fixar a limitação e exigir o cumprimento das qualificações profissionais.
E cuida-se de lei federal, pois é da competência privativa da União legislar sobre as condições para
o exercício das profissões (art. 22, XVI).
Ademais, a lei limitadora da liberdade de trabalho, ofício ou profissão deve satisfazer
requisitos de natureza material, sob pena de abuso do poder de legislar e consequente
42
inconstitucionalidade da restrição.
Desse modo, é necessário que a limitação legal restrinja-se a estabelecer, de forma razoável e
proporcional, as qualificações profissionais para o exercício do trabalho, ofício ou profissão e se
baseie em fundamento plenamente e racionalmente justificável. Não basta a simples alegação de que
a limitação consistente na exigência de qualificação profissional é uma imposição do interesse
público; é preciso demonstrar esse interesse público e que ele seja compatível com os valores
constitucionais para justificar a regulamentação da profissão.
Não pode a lei, portanto, restringir o exercício da liberdade profissional a ponto de atingir o
seu próprio núcleo essencial e violar o seu âmbito de proteção. Impõe-se recordar, neste particular,
que as restrições legais a direitos fundamentais são sempre limitadas, por aplicação da teoria do limite
dos limites (Schranken-Schranken), que parametriza a ação restritiva do legislador que recai sobre as
liberdades fundamentais. Assim, apesar de a Constituição brasileira não adotar expressamente a
cláusula da proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais121, é inegável que a garantia da
intocabilidade do conteúdo essencial resulta como uma exigência imanente do nosso texto
constitucional, necessário para evitar restrições legais que esvaziem o conteúdo mínimo do direito
fundamental e neguem o próprio direito.
Portanto, nem todo trabalho, ofício ou profissão, ainda que contraposto com outros direitos
ou interesses, pode ser regulamentado. A regulamentação pressupõe a necessidade de exigir
conhecimentos especiais, técnicos e científicos para o desempenho do trabalho, ofício ou profissão;
e a necessidade de proteção do cidadão e da sociedade dos potenciais riscos de dano social que o
exercício do direito pode causar.
Por essa razão, como nem todo trabalho, ofício ou profissão exige a apropriação de relevantes
conhecimentos técnicos e científicos, não sendo ensejadores de risco social potencial, nem todo
trabalho, ofício ou profissão pode ser regulamentado e submeter-se a privações decorrentes da
necessidade de prévia qualificação profissional.
Como afirmou Celso Ribeiro Bastos:

121
Como o fizeram as Constituições da Alemanha (art. 19, II), de Portugal (art. 18, III) e da Espanha (art. 53, nº 1).
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Para que uma determinada atividade exija qualificações profissionais para o seu desempenho,
duas condições são necessárias: uma, consistente no fato de a atividade em pauta implicar
conhecimentos técnicos e científicos avançados. É lógico que toda profissão implica algum
grau de conhecimento. Mas muitas delas, muito provavelmente a maioria, contentam-se com
um aprendizado mediante algo parecido com um estágio profissional. A iniciação destas
profissões pode-se dar pela assunção de atividades junto às pessoas que as exercem, as quais,
de maneira informal, vão transmitindo os novos conhecimentos.
Outras contudo demandam conhecimento anterior de caráter formal em instituições
reconhecidas. As dimensões extremamente agigantadas dos conhecimentos aprofundados 43
para o exercício de certos misteres, assim como o embasamento teórico que eles pressupõem,
obrigam na verdade a este aprendizado formal.
Outro requisito a ser atendido para regulamentação é que a profissão a ser regulamentada
possa trazer um sério dano social.
É óbvio que determinadas atividades ligadas à medicina, à engenharia, nas suas diversas
modalidades, ao direito, poderão ser geradoras de grandes malefícios, quer quanto aos danos
materiais, quer quanto à liberdade e quer ainda quanto à saúde do ente humano. Nestes casos,
a exigência de cumprimento de cursos específicos se impõe como uma garantia oferecida à
sociedade.
Em outros casos, a própria pessoa interessada pode perfeitamente acautelar-se contra o
profissional desqualificado, obtendo informações sobre o mesmo. É certo que a evolução
tecnológica recente torna cada vez mais complexas certas profissões. Alguma sorte de curso
faz-se quase sempre necessária. Nestes casos no entanto, em que inexistem grandes riscos
para a sociedade, é preferível manter-se a atividade livre em nome precisamente do direito à
livre opção profissional. O excesso de regulamentação nega este direito 122.

O Supremo Tribunal Federal segue essa orientação doutrinária, como se verá adiante com a
análise de alguns importantes julgados.
No RE 511961/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES, Julgado em 17/06/2009123, o STF declarou
como não recepcionado pela Constituição de 1988 o art. 4º, inciso V, do DL 972/1969, que exigia

122
BASTOS, Celso Ribeiro. In: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do
Brasil. São Paulo: Saravia, V. 2, Arts. 5º a 17, p. 76, 1989.
123
JORNALISMO. EXIGÊNCIA DE DIPLOMA DE CURSO SUPERIOR, REGISTRADO PELO MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO, PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE JORNALISTA. LIBERDADES DE PROFISSÃO, DE
EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. CONSTITUIÇÃO DE 1988 (ART. 5º, IX E XIII, E ART. 220, CAPUT E § 1º).
NÃO RECEPÇÃO DO ART. 4º, INCISO V, DO DECRETO-LEI N° 972, DE 1969.
(...). 4. ÂMBITO DE PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL (ART. 5º, INCISO XIII, DA
CONSTITUIÇÃO). IDENTIFICAÇÃO DAS RESTRIÇÕES E CONFORMAÇÕES LEGAIS
CONSTITUCIONALMENTE PERMITIDAS. RESERVA LEGAL QUALIFICADA. PROPORCIONALIDADE. A
Constituição de 1988, ao assegurar a liberdade profissional (art. 5º, XIII), segue um modelo de reserva legal qualificada
presente nas Constituições anteriores, as quais prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como
condicionantes para o exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na formulação
do art. 5º, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e
proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como
condicionantes do livre exercício das profissões. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Representação n.° 930,
Redator p/ o acórdão Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 2-9-1977. A reserva legal estabelecida pelo art. 5º, XIII, não
confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade profissional a ponto de atingir o seu próprio núcleo
essencial. 5. JORNALISMO E LIBERDADES DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. INTEPRETAÇÃO DO ART.
5º, INCISO XIII, EM CONJUNTO COM OS PRECEITOS DO ART. 5º, INCISOS IV, IX, XIV, E DO ART. 220 DA
CONSTITUIÇÃO. O jornalismo é uma profissão diferenciada por sua estreita vinculação ao pleno exercício das
liberdades de expressão e de informação. O jornalismo é a própria manifestação e difusão do pensamento e da informação
de forma contínua, profissional e remunerada. Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao
exercício pleno da liberdade de expressão. O jornalismo e a liberdade de expressão, portanto, são atividades que estão
imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensadas e tratadas de forma separada. Isso implica, logicamente,
que a interpretação do art. 5º, inciso XIII, da Constituição, na hipótese da profissão de jornalista, se faça,
impreterivelmente, em conjunto com os preceitos do art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e do art. 220 da Constituição, que
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista. Segundo a Excelsa Corte, a
profissão de jornalista não pode sofrer qualquer tipo de controle ou regulamentação do Estado,
exatamente porque não implica risco à saúde ou à vida dos cidadãos em geral. Eis uma parte do
acórdão:

44
O jornalismo é uma profissão diferenciada por sua estreita vinculação ao pleno exercício das
liberdades de expressão e de informação. O jornalismo é a própria manifestação e difusão do
pensamento e da informação de forma contínua, profissional e remunerada. Os jornalistas
são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de
expressão. O jornalismo e a liberdade de expressão, portanto, são atividades que estão
imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensadas e tratadas de forma separada.
Isso implica, logicamente, que a interpretação do art. 5º, inciso XIII, da Constituição, na
hipótese da profissão de jornalista, se faça, impreterivelmente, em conjunto com os preceitos
do art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e do art. 220 da Constituição, que asseguram as liberdades de
expressão, de informação e de comunicação em geral.

Prossegue o Supremo, para afirmar que:

A exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua


essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não

asseguram as liberdades de expressão, de informação e de comunicação em geral. 6. DIPLOMA DE CURSO SUPERIOR


COMO EXIGÊNCIA PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE JORNALISTA. RESTRIÇÃO
INCONSTITUCIONAL ÀS LIBERDADES DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. As liberdades de expressão e de
informação e, especificamente, a liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas pela lei em hipóteses
excepcionais, sempre em razão da proteção de outros valores e interesses constitucionais igualmente relevantes, como os
direitos à honra, à imagem, à privacidade e à personalidade em geral. Precedente do STF: ADPF n° 130, Rel. Min. Carlos
Britto. A ordem constitucional apenas admite a definição legal das qualificações profissionais na hipótese em que sejam
elas estabelecidas para proteger, efetivar e reforçar o exercício profissional das liberdades de expressão e de informação
por parte dos jornalistas. Fora desse quadro, há patente inconstitucionalidade da lei. A exigência de diploma de curso
superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de
expressão e de informação - não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento,
uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido
pelo art. 220, § 1º, da Constituição. 7. PROFISSÃO DE JORNALISTA. ACESSO E EXERCÍCIO. CONTROLE
ESTATAL VEDADO PELA ORDEM CONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL QUANTO À
CRIAÇÃO DE ORDENS OU CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. No campo da profissão de
jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e o
art. 220, não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista. Qualquer
tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística,
configura, ao fim e ao cabo, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de
informação, expressamente vedada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição. A impossibilidade do estabelecimento de
controles estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho
profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado
nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação. Jurisprudência do STF: Representação n.° 930,
Redator p/ o acórdão Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 2-9-1977. 8. JURISPRUDÊNCIA DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. POSIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS
- OEA. A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que a
obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de jornalista
viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo
(caso "La colegiación obligatoria de periodistas" - Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também
a Organização dos Estados Americanos - OEA, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que
a exigência de diploma universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola o
direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 25 de fevereiro de
2009). RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS CONHECIDOS E PROVIDOS.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento,
uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade
jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1º, da Constituição.

Certamente, entendeu o STF que o âmbito de proteção da liberdade de profissão de jornalista


é mais abrangente do que outras profissões ou ofícios, por compreender, em seu núcleo, as máximas
liberdades de expressão e de informação: 45

No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às


qualificações profissionais. O art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, não autorizam o
controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista.
Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do
próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio que, em
verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação,
expressamente vedada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição. A impossibilidade do
estabelecimento de controles estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que
não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a
fiscalização desse tipo de profissão. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse
campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação.

Também em razão da liberdade de profissão, o Plenário do STF, no julgamento da ADPF 130,


declarou como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei
5.250/1967 (Lei de Imprensa)124.
No RE 565.048, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29-5-2014, com repercussão geral
reconhecida, o STF deixou claro que a “exigência, pela Fazenda Pública, de prestação de fiança,
garantia real ou fidejussória para a impressão de notas fiscais de contribuintes em débito com o fisco
viola as garantias do livre exercício do trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 5º, XIII), da atividade
econômica (CF, art. 170, parágrafo único) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV)”.
No RE 603.583, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 26-10-2011, DJE de 25-5-2012, com
repercussão geral, o STF decidiu que o Exame de Ordem mostra-se consentâneo com a Constituição
Federal, não violando a liberdade de profissão125.
No RE 414.426, rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe de 10-10-2011, decidiu a Corte que “Nem
todos os ofícios ou profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições legais para o
seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode

124
ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009.
125
TRABALHO – OFÍCIO OU PROFISSÃO – EXERCÍCIO. Consoante disposto no inciso XIII do artigo 5º da
Constituição Federal, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer”. BACHARÉIS EM DIREITO – QUALIFICAÇÃO. Alcança-se a qualificação de
bacharel em Direito mediante conclusão do curso respectivo e colação de grau. ADVOGADO – EXERCÍCIO
PROFISSIONAL – EXAME DE ORDEM. O Exame de Ordem, inicialmente previsto no artigo 48, inciso III, da Lei nº
4.215/63 e hoje no artigo 84 da Lei nº 8.906/94, no que a atuação profissional repercute no campo de interesse de terceiros,
mostra-se consentâneo com a Constituição Federal, que remete às qualificações previstas em lei. Considerações.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional.” No referido julgado, o Supremo


entendeu que a “atividade de músico prescinde de controle”, exatamente porque dificilmente pode
ser considerada causadora de potencial risco de dano social.
Ainda segundo o STF, a atividade de músico também está fundamentada noutra liberdade,
pois “constitui, ademais, manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão”126.
46

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A liberdade de trabalho, ofício ou profissão consiste num direito fundamental individual que
investe a pessoa do poder de escolher e exercer qualquer profissão de acordo com as suas legítimas
opções e vocações.
Envolve uma dimensão positiva e uma dimensão negativa. Em sua dimensão positiva, o direito
compreender: a) a liberdade de trabalhar; b) a liberdade de não trabalhar; e c) a liberdade de trabalhar
com a profissão ou ofício de sua predileção. Em sua dimensão negativa, do direito de liberdade de
trabalho, ofício ou profissão reside na impossibilidade de o Estado intervir no seu exercício, salvo
para exigir, quando adequado, necessário e proporcional o controle social da profissão, determinadas
qualificações profissionais.
A Constituição brasileira, contudo, consagra o direito de liberdade de trabalho, ofício ou
profissão em norma constitucional de eficácia contida (Art. 5º, XIII), permitindo ao legislador limitar
a liberdade de trabalho, sujeitando o seu exercício à prévia qualificação profissional. Isso ocorre para
as chamadas profissões regulamentadas, que são todas aquelas para o desempenho das quais a lei
exige o cumprimento de certas condições e habilidades especiais.
Ademais, as normas de direito fundamental de liberdade de trabalho, ofício ou profissão têm
estrutura de princípios, que são meros mandamentos de otimização, de caráter prima facie, e que

126
DIREITO CONSTITUCIONAL. EXERCÍCIO PROFISSIONAL E LIBERDADE DE EXPRESSÃO. EXIGÊNCIA
DE INSCRIÇÃO EM CONSELHO PROFISSIONAL. EXCEPCIONALIDADE. ARTS. 5º, IX e XIII, DA
CONSTITUIÇÃO. Nem todos os ofícios ou profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições legais
para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida
inscrição em conselho de fiscalização profissional. A atividade de músico prescinde de controle. Constitui, ademais,
manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão. (RE 414.426, rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe
de 10-10-2011). No RE 795467 RG/SP, COM REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO,
Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, Julgamento em 05/06/2014, o Supremo reafirmou o seu entendimento: “1. O Plenário do
Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 414.426, rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe de 10-10-2011, firmou o
entendimento de que a atividade de músico é manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão,
sendo, por isso, incompatível com a Constituição Federal de 1988 a exigência de inscrição na Ordem dos Músicos do
Brasil, bem como de pagamento de anuidade, para o exercício de tal profissão. 2. Recurso extraordinário provido, com o
reconhecimento da repercussão geral do tema e a reafirmação da jurisprudência sobre a matéria.”.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

dependem das condições fáticas e jurídicas existentes, podendo esse direito, por essa razão, quando
sopesado com outro direito fundamental com o qual colide, ser restringido.
Nada obstante, é imperioso afirmar que a regra é a liberdade de escolha e exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão. Apenas excepcionalmente é que pode o legislador, atendidas
determinadas condições, restringir a liberdade de exercício de determinado trabalho, ofício ou
47
profissão, para ajustá-lo ao bem-estar geral da sociedade. É necessário, assim, que a limitação legal
restrinja-se a estabelecer, de forma razoável e proporcional, as qualificações profissionais para o
exercício do trabalho, ofício ou profissão e se baseie em fundamento plenamente justificável.
Ademais, não pode a lei restringir o exercício da liberdade profissional a ponto de atingir o
seu próprio núcleo essencial e violar o seu âmbito de proteção. Impõe-se recordar, neste particular,
que as restrições legais a direitos fundamentais são sempre limitadas, por aplicação da teoria do limite
dos limites (Schranken-Schranken), que parametriza a ação restritiva do legislador que recai sobre as
liberdades fundamentais.
Portanto, nem todo trabalho, ofício ou profissão pode ser regulamentado. A regulamentação
pressupõe a necessidade de exigir conhecimentos especiais, técnicos e científicos para o desempenho
do trabalho, ofício ou profissão; e a necessidade de proteção do cidadão e da sociedade dos potenciais
riscos de dano social que o exercício do direito pode causar. Por essa razão, como nem todo trabalho,
ofício ou profissão exige a apropriação de relevantes conhecimentos técnicos e científicos, não sendo
ensejadores de risco social potencial, nem todo trabalho, ofício ou profissão pode ser regulamentado
e submeter-se a privações decorrentes da necessidade de prévia qualificação profissional.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã.
2ª edição, da 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2015.

BASTOS, Celso Ribeiro. In: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição
do Brasil. São Paulo: Saraiva, V. 2, Arts. 5º a 17, p. 76, 1989.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. rev. atual. ampl., São Paulo: Malheiros, 2000.

COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 15ª Ed., Salvador: JusPodivm, 2021.

FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, V. 1, arts. 1º a 21, 1989.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 3ª Ed., São Paulo:
Saraiva, V. 1, Arts. 1º a 103, p.37/38, 2000. 48

LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª ed., trad. Alfredo Gallego Anabitarte, Barcelona:
Ediciones Ariel, 1970.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª Ed, Coimbra: Coimbra Editora, Tomo IV, p. 439,
1998.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

QUANDO A VIDA IMITA A ARTE:


CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL EM TRIBUTO AO
LEGADO DO MINISTRO CELSO DE MELLO E UMA
HOMENAGEM A SAUL QUADROS FILHO
49

FÁBIO PERIANDRO DE ALMEIDA HIRSCH


Doutor (2012) e Mestre (2007) em Direito Público, ambos com ênfase
em Direito Constitucional, pela Universidade Federal da Bahia (PPGD-
UFBA). Professor integrante do Programa de Pós Graduação em
Direito da UFBA – Mestrado e Doutorado (PPGD-UFBA). Professor
Adjunto de Direito Constitucional da graduação da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), Adjunto de Direito Constitucional e
Administrativo da graduação da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) e de Jurisdição Constitucional da graduação da Faculdade
Baiana de Direito e da Universidade Jorge Amado (UNIJORGE).
Membro fundador do Instituto de Direito Constitucional da Bahia
(IDCB). Coordenador do Serviço de Pesquisa em Direitos e Deveres
Fundamentais no Brasil - SPDDF, grupo certificado no DGP do CNPQ.
Advogado e Árbitro.

SUMÁRIO: 1. EXPLICAÇÃO INICIAL; 2. ISSO NUNCA VAI ACONTECER – ATÉ QUE...;


3. AS CONTRIBUIÇÕES DE CELSO DE MELLO PARA CONCRETIZAR A
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA AO LONGO DO SEU CAMINHAR NO STF; 4.
CONCLUSÃO: MEMÓRIAS E SAUDADE; REFERÊNCIAS.

1. EXPLICAÇÃO INICIAL

A aposentadoria do Ministro Celso de Mello dos quadros do Supremo Tribunal Federal (STF)
brasileiro foi mais um duro golpe que o fatídico e extravagante ano de 2020 trouxe para a população
brasileira, em especial a comunidade jurídica.

José Celso de Mello Filho integrou a Suprema Corte nacional entre 17/08/1989 e 13/10/2020. Presidiu
a mesma nos anos de 1997 a 1999 e se tornou o decano do STF a partir de 2007.127

Escrevia com um estilo totalmente próprio, mesclando itálicos, negritos e sublinhados nos textos em
um formato que qualquer leitor mais atento às suas lições sabia que era da sua lavra aquele texto –

127
Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaMinistro&pagina=Cel
soMelloDadosDatas. Acesso em: 17 nov. 2020.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

usualmente longo, erudito, fundado em doutrina nacional e estrangeira de grande respeitabilidade e,


em especial, preciso. Um feliz registro do que agora se disse vem de Felipe Recondo e Luiz Weber,
transcrevendo-se como está no original por razões óbvias:
A vitaliciedade do cargo transforma os ambientes em cápsulas da personalidade de cada
ministro, os quais também imprimem suas normas de estilo ao gabinete. Uma linguagem
própria para uma nação particular. Celso de Mello hierarquiza passagens de seus votos com
negritos, sublinhados e negritos sublinhados. As marcações indicam ênfase, tonalidades 50
mais graves, uma cadência especial – dicas para orientar a impostação de sua voz durante a
leitura dos votos em plenário. Todo novo assessor é apresentado a esse sistema de códigos.
A palavra que o ministro sublinhar no texto deve ser negritada quando passada a limpo. Se
for sublinhada duas vezes, o assessor deve negritá-la e sublinhá-la. Se Mello circular um
termo três vezes, é sinal de que o quer sublinhado e em itálico. E, ao final das regrinhas, uma
observação (com os sublinhados reproduzidos do manual): ‘Ministro não utiliza negrito,
sublinhado e itálico juntos na mesma palavra’. O decano costuma recortar e adaptar trechos
de decisões por ele já proferidas nos votos que elabora. No meio, enxerta frases novas para
darem sentido ao caso concreto, ao personagem da hora, ou, por exemplo, para enfatizar sua
censura a determinadas condutas. Ouvir o voto de Celso de Mello, portanto, causa sempre
aquela sensação de déja-vu. Ali, nada se perde, tudo se transforma.128

O texto adiante é, ao mesmo tempo, um registro de fatos recentes da história brasileira associado a
decisões do Ministro Celso de Mello, usando a inteligência de Sua Excelência como base para
evidenciar que o respeito à Constituição é o único caminho seguro o suficiente para conduzir um país
que se pretende concretamente democrático ao sucesso social e institucional.

Serão mesclados julgamentos que, ao ver do autor, ostentaram de forma determinante a verve e as
ideias do Ministro Celso com fatos que revelam como a realidade faz com que a Constituição se
mostre viva, ainda que suas disposições pareçam por vezes inalcançáveis, fruto da imaginação criativa
dos legisladores originários da Assembleia Constituinte de 1987.

O objetivo (ou seria a pretensão?): prestar, simultaneamente, uma homenagem a quem tanto ensinou
com seus votos carregados de estilo e de qualidade e demonstrar que a vida é muito mais rica do que
as normas – e que a concretização constitucional é um caminho sem volta em um Brasil que se
pretende querer sair da constitucionalidade tardia.

2. ISSO NUNCA VAI ACONTECER – ATÉ QUE...

128
RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo : Companhia das Letras,
2019, p. 50/51, grifos do original.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

A leitura de textos constitucionais analíticos costuma trazer normas que são consideradas quase
inatingíveis, construções cerebrinas, produtos de imaginação fértil dos parlamentares ou dos que
idealizaram e cultivaram a Constituição do local em questão.
A Constituição Federal de 1988 da República Federativa do Brasil continha, originariamente, 245
artigos em seu corpo principal, aos quais se associavam mais 70 artigos do Ato das Disposições
51
Constitucionais Transitórias (ADCT), totalizando 315 dispositivos.

Quando da elaboração do presente artigo (17 de novembro de 2020) são 250 artigos nominalmente
no corpo principal (sendo 249 vigentes, ante a revogação do artigo 233 pela Emenda 28 de 25 de
maio de 2000) mais 114 artigos no ADCT, 06 emendas constitucionais de revisão e outras 108
emendas constitucionais regulares, além de dois Decretos com status de norma constitucional (na
forma do artigo 5º, § 3º).129

Somados todos os dispositivos principais (ou seja, excetuando-se subdivisões de escrita como incisos,
alíneas e parágrafos) o fecundo bloco de constitucionalidade nacional130131 ostenta substanciais 403

129
Decreto nº 9.522, de 8.10.2018, publicado no DOU de 9.10.2018, o qual “Promulga o Tratado de Marraqueche para
Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter
Acesso ao Texto Impresso, firmado em Marraqueche, em 27 de junho de 2013” e Decreto nº 6.949, de 25.8.2009,
publicado no DOU de 25.8.2009, o qual “Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007”, com base no artigo 5º, §3º
da Constituição Federal de 1988, com a redação dada pela Emenda 45/2004: “Os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 17 nov. 2020.
130
Já tivemos oportunidade de sustentar o seguinte: “Entendemos, portanto, que bloco de constitucionalidade é decorrente
de uma maximização da força normativa da Constituição de um Estado determinado, reconhecendo-se status ou dignidade
ou importância de norma constitucional a outros dispositivos para fins de ampliação do conjunto de comandos supremos
de um ordenamento jurídico. A noção conceitual de bloco de constitucionalidade é o conjunto de normas, positivadas ou
constantes do sistema jurídico de um Estado, que são consideradas pela jurisprudência do Tribunal Constitucional ou
mesmo pelo Texto Constitucional como equiparadas em força normativa às disposições constitucionais escritas, dotadas
de supremacia dentro do ordenamento sobre as demais normas infraconstitucionais e servindo de paradigma para fins de
controle da constitucionalidade. A utilidade prática das considerações deste conceito de bloco de constitucionalidade é o
aumento das normas que podem ser consideradas como modelo para fins de controle de constitucionalidade. A questão
se reconduz a ideia de parametricidade, ou seja, do grupo de normas que serve de paradigma hierarquicamente superior
para fins de comparação com as demais normas do sistema, aferindo-se a validade real das últimas em detrimento das
primeiras. O conceito de bloco pressupõe que há mais normas com o mesmo status das constitucionais e, por isso mesmo,
diante do princípio da supremacia de tais comandos, todas as proposições normativas do sistema e mesmo os atos
administrativos e judiciários, bem como o agir dos particulares, deve se subordinar ao que a Constituição diz – que, na
espécie, corresponde a tudo o que se engloba no bloco de constitucionalidade.”. HIRSCH, Fábio Periandro de Almeida;
ARCHANJO, Camila Celestino Conceição. Direitos fundamentais do Brasil: teoria geral e comentários ao artigo 5º da
Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte : Dialética, 2020, p. 74/75.
131
Eis um bom exemplo de decisão inovadora da lavra do Ministro Celso de Mello: “[...] Não foi por outra razão que o
Supremo Tribunal Federal, certa vez, e para além de uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar -
distanciando-se, então, das exigências inerentes ao positivismo jurídico - que a Constituição da República, muito mais do
que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser também entendida em função do próprio
espírito que a anima, afastando-se, desse modo, de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual (RTJ
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

comandos principais (resultado da adição dos 249 artigos do corpo principal mais os 114 do ADCT
+ os 22 artigos do Decreto 9522 + os 18 artigos do Decreto 6949), isso sem contar as variadas normas
constitucionais autônomas incrustradas no ventre de parte das 108 emendas constitucionais.

A questão se reconduz também para uma classificação das Constituições que merece referência. É
52
costume dos doutrinadores de Direito Constitucional afirma que a norma máxima pode ser
compreendida em duas perspectivas – material e formal. A primeira classificação envolveria, tão

71/289, 292 - RTJ 77/657). É por tal motivo que os tratadistas - consoante observa JORGE XIFRA HERAS ("Curso de
Derecho Constitucional", p. 43) -, em vez de formularem um conceito único de Constituição, costumam referir-se a uma
pluralidade de acepções, dando ensejo à elaboração teórica do conceito de bloco de constitucionalidade, cujo significado
- revestido de maior ou de menor abrangência material - projeta-se, tal seja o sentido que se lhe dê, para além da totalidade
das regras constitucionais meramente escritas e dos princípios contemplados, explícita ou implicitamente, no corpo
normativo da própria Constituição formal, chegando, até mesmo, a compreender normas de caráter infraconstitucional,
desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei
Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da idéia
de ordem constitucional global. Sob tal perspectiva, que acolhe conceitos múltiplos de Constituição, pluraliza-se a noção
mesma de constitucionalidade/inconstitucionalidade, em decorrência de formulações teóricas, matizadas por visões
jurídicas e ideológicas distintas, que culminam por determinar - quer elastecendo-as, quer restringindo-as - as próprias
referências paradigmáticas conformadoras do significado e do conteúdo material inerentes à Carta Política. Torna-se
relevante destacar, neste ponto, por tal razão, o magistério de J. J. GOMES CANOTILHO ("Direito Constitucional e
Teoria da Constituição", p. 811/812, item n. 1, 1998, Almedina), que bem expôs a necessidade de proceder-se à
determinação do parâmetro de controle da constitucionalidade, consideradas as posições doutrinárias que se digladiam
em torno do tema: "Todos os actos normativos devem estar em conformidade com a Constituição (art. 3.º/3). Significa
isto que os actos legislativos e restantes actos normativos devem estar subordinados, formal, procedimental e
substancialmente, ao parâmetro constitucional. Mas qual é o estalão normativo de acordo com o qual se deve controlar a
conformidade dos actos normativos? As respostas a este problema oscilam fundamentalmente entre duas posições: (1) o
parâmetro constitucional equivale à constituição escrita ou leis com valor constitucional formal, e daí que a conformidade
dos actos normativos só possa ser aferida, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade,
segundo as normas e princípios escritos da constituição (ou de outras leis formalmente constitucionais); (2) o parâmetro
constitucional é a ordem constitucional global, e, por isso, o juízo de legitimidade constitucional dos actos normativos
deve fazer-se não apenas segundo as normas e princípios escritos das leis constitucionais, mas também tendo em conta
princípios não escritos integrantes da ordem constitucional global. Na perspectiva (1), o parâmetro da constitucionalidade
(= normas de referência, bloco de constitucionalidade) reduz-se às normas e princípios da constituição e das leis com
valor constitucional; para a posição (2), o parâmetro constitucional é mais vasto do que as normas e princípios constantes
das leis constitucionais escritas, devendo alargar-se, pelo menos, aos princípios reclamados pelo 'espírito' ou pelos
'valores' que informam a ordem constitucional global" (grifei). Veja-se, pois, a importância de compreender-se, com
exatidão, o significado que emerge da noção de bloco de constitucionalidade - tal como este é concebido pela teoria
constitucional (BERNARDO LEÔNCIO MOURA COELHO, "O Bloco de Constitucionalidade e a Proteção à Criança",
in Revista de Informação Legislativa nº 123/259-266, 263/264, 1994, Senado Federal; MIGUEL MONTORO PUERTO,
"Jurisdicción Constitucional y Procesos Constitucionales", tomo I, p. 193/195, 1991, Colex; FRANCISCO CAAMAÑO
DOMÍNGUEZ/ANGEL J. GÓMEZ MONTORO/MANUEL MEDINA GUERRERO/JUAN LUIS REQUEJO PAGÉS,
"Jurisdicción y Procesos Constitucionales", p. 33/35, item C, 1997, Berdejo; IGNACIO DE OTTO, "Derecho
Constitucional, Sistema de Fuentes", p. 94/95, § 25, 2ª ed./2ª reimpressão, 1991, Ariel; LOUIS FAVOREU/FRANCISCO
RUBIO LLORENTE, "El bloque de la constitucionalidad", p. 95/109, itens ns. I e II, 1991, Civitas; JOSÉ ALFREDO
DE OLIVEIRA BARACHO, "O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e Evolução", p. 77/81, 2000, Forense;
DOMINIQUE TURPIN, "Contentieux Constitutionnel", p. 55/56, item n. 43, 1986, Presses Universitaires de France, v.g.)
-, pois, dessa percepção, resultará, em última análise, a determinação do que venha a ser o paradigma de confronto, cuja
definição mostra-se essencial, em sede de controle de constitucionalidade, à própria tutela da ordem constitucional. E a
razão de tal afirmação justifica-se por si mesma, eis que a delimitação conceitual do que representa o parâmetro de
confronto é que determinará a própria noção do que é constitucional ou inconstitucional, considerada a eficácia
subordinante dos elementos referenciais que compõem o bloco de constitucionalidade.” – BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2971/RO, rel. Min. Celso de Mello, DJU de
18/05/2004, p. 28.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

somente, o que é da essência de uma Constituição (ou seja, as regras inerentes à separação e
organização dos poderes e os direitos e garantias fundamentais132); já a segunda abarcaria o essencial
antes citado e todas as demais disposições que os constituintes originário e derivados vierem a
enxertar em nível constitucional.133

53
Dentro deste complexo de normas variadas há dispositivos que, em primeira leitura, hão de ser
considerados como regras sem aplicação prática, apenas registradas para a posteridade, tratando de
temas inalcançáveis na prática das relações sociais brasileiras.

Eis o engano que justifica o título do ensaio: de fato, a vida imita a “arte constitucional”.

Os exemplos são relevantes:


a) a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para (...) pôr termo a grave
comprometimento da ordem pública (art. 34, III);
b) perderá o mandato o Deputado ou Senador (...) que deixar de comparecer, em cada sessão
legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou
missão por esta autorizada (art. 55, III);
c) a Constituição poderá ser emendada mediante proposta (...) de mais da metade das
Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela
maioria relativa de seus membros” (art. 60, III);
d) a Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de
defesa ou de estado de sítio (art. 60, §2º);
e) a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto
de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos
por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles
(art. 61, § 2º);

132
“Neste caso, constituição só se refere à matéria essencialmente constitucional; as demais, mesmo que integrem uma
constituição escrita, não seria constitucionais” – SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo
brasileiro. 42 ed. São Paulo : Malheiros, 2019, p. 42/43.
133
“Assim, convém observar que poderão verificar-se normas constitucionais apenas sob o aspecto formal. Isto ocorre
em todos aqueles casos em que determinadas regras jurídicas, de natureza não substancialmente constitucional, tenham
sido inseridas na Constituição em sentido formal, para obter aquela tutela especial e típica da Constituição”. BASTOS,
Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22 ed. São Paulo : Malheiros, 2010, p. 78.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

f) se nenhum candidato alcançar maioria absoluta na primeira votação, far-se-á nova eleição em
até vinte dias após a proclamação do resultado, concorrendo os dois candidatos mais votados
e considerando-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos (art. 77, §3º).

Dentro do catálogo acima exposto algumas se destacam por conta da realidade recente do país.

54
134
O ano de 2018 não registra nenhuma emenda constitucional promulgada no Brasil. Isso porque se
concretizou o disposto no artigo 60, §2º da CF, na medida em que, desde fevereiro, fora decretado o
início da primeira135 intervenção federal parcial da história brasileira pós 1988 (por meio do Decreto
federal nº 9288, de 16 de fevereiro de 2018, assinado pelo então presidente Michel Temer e publicado
no DOU da mesma data, foi decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de
dezembro de 2018, limitada, porém, à área de segurança pública).136

Dentre as 108 emendas constitucionais não se tem notícia concreta da previsão de iniciativa
parlamentar estadual contida no artigo 60, inciso III, da CF ter sido aplicada de forma substancial –
ao contrário, José Afonso da Silva afirma a inexistência de tal ocorrência.137

134
Após a Emenda 99, de 14/12/2017 a listagem passa para a Emenda 100, de 26/06/2019. Cf.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/quadro_emc.htm. Acesso em: 17 nov. 2020.
135
No mesmo ano de 2018, por meio do Decreto Federal 9602, de 08 de dezembro, o Presidente Michel Temer decretou
nova intervenção, desta vez no Estado de Roraima, com a peculiaridade de ter sido nomeado como interventor o
governador eleito no pleito anterior e que aguardava posse e exercício no cargo, equivalendo, na prática, a uma quase
antecipação do mandato: “Art. 1º É decretada intervenção federal no Estado de Roraima até 31 de dezembro de 2018,
para, nos termos do art. 34, caput, inciso III, da Constituição , pôr termo a grave comprometimento da ordem pública.
Parágrafo único. A intervenção de que trata o caput abrange todo o Poder Executivo do Estado de Roraima. Art. 2º É
nomeado para o cargo de Interventor Antonio Oliverio Garcia de Almeida, mais conhecido como Antonio Denarium. Art.
3º As atribuições do Interventor são aquelas previstas para o Governador do Estado de Roraima”. BRASIL. Decreto 9602,
de 08 de dezembro de 2018. Decreta intervenção federal no Estado de Roraima com o objetivo de pôr termo a grave
comprometimento da ordem pública. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/Decreto/D9602.htm. Acesso em: 17 nov. 2020.
136
“Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018. § 1º A intervenção
de que trata o caput se limita à área de segurança pública, conforme o disposto no Capítulo III do Título V da Constituição
e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. § 2º O objetivo da intervenção é pôr termo a grave
comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”. BRASIL. Decreto 9288, de 16 de fevereiro de 2018.
Decreta intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da
ordem pública. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Decreto/D9288.htm#textoimpressao. Acesso em: 17 nov. 2020.
137
“Pelo citado art. 60, I a III, vê-se que a Constituição poderá ser emendada por proposta de iniciativa (...) – retomando,
aqui, uma regra que vinha desde a Constituição de 1891, suprimida pela de 1969, regra que não teve uma única aplicação
nesses 105 anos de República”. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo : Malheiros,
2005, p. 440.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Dada a dificuldade inerente, apesar da presença em diversas constituições brasileiras 138, são poucas
as referências a ela, estando ainda em tramitação a Proposta de Emenda (PEC) nº 47, de 2012, de
iniciativa das Assembleias Legislativas dos Estados do Amapá, Ceará, Espírito Santo, Goiás,
Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Pará, Piauí, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e
São Paulo, além da Câmara Legislativa do Distrito Federal.139
55

A possibilidade de empate concreto em eleições para chefia dos executivos é outra disposição com
aparente impossibilidade prática de ocorrência. Contudo, no contexto das eleições em período
excepcional regulado pela Emenda 107/2020 (derivada da emergência sanitária decorrente da
pandemia da COVID-19 no Brasil), o dia 15 de novembro de 2020 registrou ao menos três empates
entre candidatos a prefeitos no país:

Ao menos três cidades brasileiras encerraram a apuração para prefeito com empate. Em
Caraúbas (PB), Jardinópolis (SC) e Kaloré (PR), nenhum candidato a prefeito terminou o
pleito realizado no domingo 15 à frente de todos os concorrentes.
Em municípios com mais de 200 mil eleitores, o desempate se daria com a realização do
segundo turno. Como as três cidades em questão são consideradas de pequeno porte, sem
contingente de eleitores que permita a segunda rodada do pleito, a eleição foi definida ontem
mesmo.
(...) De acordo com as regras definidas pela legislação eleitoral em vigor no país, em caso de
empate entre dois ou mais candidatos em localidades com menos de 200 mil eleitores, será
declarado eleito o político mais velho envolvido no imbróglio. “Em caso de empate, haver-
se-á por eleito o candidato mais idoso”, define o Código Eleitoral Brasileiro.
(...) Diante disso, a disputa nos três municípios mencionados acima ficou assim:
Caraúbas/Prefeito eleito: Silvano Dudu (DEM) - O empate: ele e Nerivan (MDB) receberam
1.761 votos cada um. Atual prefeito, Dudu foi reeleito por ter 52 anos, enquanto o adversário
tem somente 34. Jardinópolis/Prefeito eleito: Mauro Risso (MDB) - O empate: com 50 anos
de idade, o emedebista foi eleito por ser dois meses mais velho que seu adversário, Antoninho
Bevilacqua (PT). Na urna, cada um deles obteve 748 votos. Kaloré/Prefeito eleito: Edmilson

138
A prerrogativa de os parlamentos estaduais iniciarem emendas à Constituição Federal esteve presente nas Constituições
brasileiras de 1891, 1934, 1946 e 1967, além da atualmente em vigor. CANOTILHO, J. J. Gomes et alli. Comentários à
Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva/Almedina, 2013, p. 1125.
139
A PCE visa alterar “os arts. 22, 24, 61 e 220 da Constituição Federal, para retirar da competência legislativa da União
(no art. 22) as normas sobre direito processual e agrário, bem como sobre licitações e contratos, propaganda comercial e
trânsito e transporte, que passam a ser de competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24).
Acrescenta como matéria de competência concorrente (no inciso XII do art. 24) a assistência social. Altera a redação dos
§§ 2º e 3º do art. 24, para definir que as normas gerais sobre as matérias de competência concorrente, a ser editadas pela
União, restringem-se a princípios, diretrizes e institutos jurídicos e que aos Estados e ao Distrito Federal compete
suplementar as normas gerais no que for de predominante interesse regional, renumerando os atuais §§ 3º e 4º, que passam
a ser 4º e 5º. Retira do texto constitucional a referência a diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV) como
competência privativa da União. Inclui novo parágrafo (que passa a ser o 2º, renumerando o atual 2º como 3º) no art. 61,
para permitir à maioria dos membros das Casas do Congresso Nacional apresentar projeto de lei que verse sobre matéria
de iniciativa privativa do Presidente da República, exceto quanto a organização interna do Poder Executivo e matéria
orçamentária”, tendo sido incluída na ordem do dia do Senado da República no dia 15/10/2019. BRASIL. Senado Federal.
Proposta de Emenda Constitucional nº 47, de 12 de setembro de 2012. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/107349. Acesso em: 17 nov. 2020.
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(PL) - O empate: o candidato liberal recebeu os mesmos 1.186 votos de Ritinha (PSD).
Edmilson foi mais um a vencer pela idade: 59 anos contra 42. 140

O que se pode concluir parcialmente é que a realidade e o dinamismo dos fatos no Brasil fazem com
que até mesmo previsões aparentemente inaplicáveis na vida prática são concretizadas e fazem com
que a Constituição se mostre viva e consentânea com as demandas sociais.
56

3. AS CONTRIBUIÇÕES DE CELSO DE MELLO PARA CONCRETIZAR A


CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA AO LONGO DO SEU CAMINHAR NO STF

O legado do Ministro Celso de Mello pode ser sintetizado como o de um obstinado perseguidor da
efetividade da Constituição Federal de 1988.

Humano, não foi perfeito e nem sempre sua escrita traduziu as melhores decisões possíveis. Porém,
sem dúvidas, cada voto (longo, detalhado, minucioso) serviu para que temas relevantes fossem
esmiuçados com riqueza de detalhes, bases de pesquisa e argumentos sólidos bem expostos.

De um lado as manifestações de Sua Excelência nas pautas do Plenário e das Turmas que compôs –
pressionadas pelo tempo e pelo formato de atuação do STF – por reiteradas vezes fizeram com que
toda a sessão fosse exclusiva para a leitura de sua contribuição.

Os “votos doutrina” que proferia são usados com destaque em temas que oscilam desde a teoria da
constituição, passando pela hermenêutica da CF e tratando de questões sensíveis como a densificação
dos direitos fundamentais, os limites do poder público e as balizas do federalismo brasileiro.

Um destacado exemplo é a decisão de sua lavra proferida na Arguição de Descumprimento de


Preceito Fundamental (ADPF) nº 45. Em 29 de abril de 2004 o Ministro Celso de Mello, como de
costume, proferiu alentada manifestação versando acerca do tema da implementação das políticas
públicas e dos limites do controle jurisdicional das mesmas.

140
Cidades terminam com empate na briga pela prefeitura; saiba como fica a eleição. Revista eletrônica Oeste. 16 nov.
2020. Disponível em: https://revistaoeste.com/cidades-terminam-com-empate-na-briga-pela-prefeitura-saiba-como-fica-
a-eleicao/. Acesso em: 17 nov. 2020. O artigo 29, II, parte final, da CF consagra que as regras de eleições em dois turnos
somente se aplicam aos municípios com mais de 200 mil eleitores.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

A referida ADPF fora “promovida contra veto, que, emanado do Senhor Presidente da República,
incidiu sobre o § 2º do art. 55 (posteriormente renumerado para art. 59), de proposição legislativa que
se converteu na Lei nº 10.707/2003 (LDO), destinada a fixar as diretrizes pertinentes à elaboração da
lei orçamentária anual de 2004”, como consta do relatório da decisão.

57
Prosseguiu o Ministro relatando que “o Senhor Presidente da República, logo após o veto parcial ora
questionado nesta sede processual, veio a remeter, ao Congresso Nacional, projeto de lei, que,
transformado na Lei nº 10.777/2003, restaurou, em sua integralidade, o § 2º do art. 59 da Lei nº
10.707/2003 (LDO), dele fazendo constar a mesma norma sobre a qual incidira o veto executivo”.

Avançou na análise do mérito, porém. Mesmo reconhecendo que “o objetivo perseguido na presente
sede processual foi inteiramente alcançado com a edição da Lei nº 10.777, de 24/11/2003, promulgada
com a finalidade específica de conferir efetividade à EC 29/2000”, afirmou:

Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar
situação de prejudicialidade da presente argüição de descumprimento de preceito
fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência,
considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar
a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como
sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas
instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da
República.
(...) É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder
Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de
implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina,
Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se
ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os
encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados
de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo
programático.
(...) Todas as considerações que venho de fazer justificam-se, plenamente, quanto à sua
pertinência, em face da própria natureza constitucional da controvérsia jurídica ora suscitada
nesta sede processual, consistente na impugnação a ato emanado do Senhor Presidente da
República, de que poderia resultar grave comprometimento, na área da saúde pública, da
execução de política governamental decorrente de decisão vinculante do Congresso
Nacional, consubstanciada na Emenda Constitucional nº 29/2000.
Ocorre, no entanto, como precedentemente já enfatizado no início desta decisão, que se
registrou, na espécie, situação configuradora de prejudicialidade da presente argüição de
descumprimento de preceito fundamental. A inviabilidade da presente argüição de
descumprimento, em decorrência da razão ora mencionada, impõe uma observação final: no
desempenho dos poderes processuais de que dispõe, assiste, ao Ministro-Relator,
competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos
dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios
que, nessa condição, venha a praticar.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

(...) Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, julgo prejudicada a presente
argüição de descumprimento de preceito fundamental, em virtude da perda superveniente de
seu objeto. Arquivem-se os presentes autos.141

A respeitabilidade do Ministro sempre foi tamanha que a decisão acima citada é referida em diversas
outras manifestações do STF – mesmo que, ao final, a deliberação tenha sido pela prejudicialidade
da ADPF.
58

Em temas sensíveis o Ministro Celso sempre se destacou.

Relatou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26. Por meio dela, a um só
tempo:
a) doutrinou acerca da utilidade contemporânea da ADO, condenando a inércia do Poder Público
em não colmatar e concretizar direitos fundamentais previstos na CF do Brasil142;
b) ampliou as possibilidades do direito constitucional à liberdade de manifestação do
pensamento, inserindo no mesmo o ideário contramajoritário, qual seja, focando na proteção
daqueles que pensam de forma antagônica à maioria estabelecida, reverenciando a diferença
e a tolerância como base da sociedade democrática efetiva143;

141
Eis a ementa da decisão: “ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO
DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM
TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE
ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA
LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA
“RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA
INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO
EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO
DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA
GERAÇÃO)”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45 DF, Relator: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento:
29/04/2004, DJ de 04/05/2004, p. 12.
142
“Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir
integralmente ou, então, do que a promulgar com o intuito de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la
aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes ou de grupos majoritários,
em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos ou, muitas vezes, em frontal desrespeito aos direitos das minorias,
notadamente daquelas expostas a situações de vulnerabilidade. – A ação direta de inconstitucionalidade por omissão,
nesse contexto, tem por objetivo provocar legítima reação jurisdicional que, expressamente autorizada e atribuída ao
Supremo Tribunal Federal pela própria Carta Política, destina-se a impedir o desprestígio da Lei Fundamental, a
neutralizar gestos de desprezo pela Constituição, a outorgar proteção a princípios, direitos e garantias nela proclamados
e a obstar, por extremamente grave, a erosão da consciência constitucional”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO
26 DF, Relator: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento: 13/06/2019, DJe 243 de 06/10/2020.
143
“As ideias, nestas compreendidas as mensagens, inclusive as pregações de cunho religioso, podem ser fecundas,
libertadoras, transformadoras ou, até mesmo, revolucionárias e subversivas, provocando mudanças, superando
imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais. O verdadeiro sentido da proteção
constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas,
igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas)
que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada
coletividade.”. Idem, ibidem.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

c) assentou a proscrição categórica no constitucionalismo brasileiro das tentativas de inserir as


manifestações de discursos de ódio como exemplos abarcados pela liberdade de exteriorização
do pensamento, caldado tanto na CF brasileira quanto na Convenção Americana de Direitos
Humanos144;
d) balizou que o respeito às convicções e dogmas religiosos não são de forma alguma obstáculos
59
para que se combata e se entenda como abominável a homotransfobia145;
e) conferiu adequada amplitude ao fenômeno aberrante do racismo brasileiro, reconhecendo a
dimensão social do mesmo e sua profunda violência para os grupos segregados pela sua
identidade sexual ou mesmo pela cor da pele ou ainda pela sua condição de mulher, fixando
a premissa que “ninguém pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de
ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual ou em razão de sua identidade de
gênero”146;

144
“É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima
nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento – e, particularmente, o pensamento religioso –
não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias, especialmente as de natureza confessional, possam
florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes,
legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções
antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao
pluralismo e à tolerância. – O discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a
discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de
sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão nem
na Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 13, § 5º), que expressamente o repele.” – Idem, ibidem.
145
“COMPATIBILIDADE CONSTITUCIONAL ENTRE A REPRESSÃO PENAL À HOMOTRANSFOBIA E A
INTANGIBILIDADE DO PLENO EXERCÍCIO DA LIBERDADE RELIGIOSA – A repressão penal à prática da
homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação
confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes
ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela
palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que
se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica,
podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço,
público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio,
assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em
razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”. Idem, ibidem.
146
“Os integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem
igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no
que concerne à sua vivência homoerótica. Ninguém, sob a égide de uma ordem democrática justa, pode ser privado de
seus direitos (entre os quais o direito à busca da felicidade e o direito à igualdade de tratamento que a Constituição e as
leis da República dispensam às pessoas em geral) ou sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em razão de sua
orientação sexual ou de sua identidade de gênero! Garantir aos integrantes do grupo LGBTI+ a posse da cidadania plena
e o integral respeito tanto à sua condição quanto às suas escolhas pessoais pode significar, nestes tempos em que as
liberdades fundamentais das pessoas sofrem ataques por parte de mentes sombrias e retrógradas, a diferença essencial
entre civilização e barbárie. AS VÁRIAS DIMENSÕES CONCEITUAIS DE RACISMO. O RACISMO, QUE NÃO SE
RESUME A ASPECTOS ESTRITAMENTE FENOTÍPICOS, CONSTITUI MANIFESTAÇÃO DE PODER QUE, AO
BUSCAR JUSTIFICAÇÃO NA DESIGUALDADE, OBJETIVA VIABILIZAR A DOMINAÇÃO DO GRUPO
MAJORITÁRIO SOBRE INTEGRANTES DE GRUPOS VULNERÁVEIS (COMO A COMUNIDADE LGBTI+),
FAZENDO INSTAURAR, MEDIANTE ODIOSA (E INACEITÁVEL) INFERIORIZAÇÃO, SITUAÇÃO DE
INJUSTA EXCLUSÃO DE ORDEM POLÍTICA E DE NATUREZA JURÍDICO-SOCIAL – O conceito de racismo,
compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois
resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

f) considerando a omissão injustificável no regulamentar as disposições constitucionais tidas


como “mandados constitucionais de criminalização” contidas nos incisos XLI e XLII do
artigo 5º da CF do Brasil, adotou postura absolutamente adequada ao nosso entender quando,
visando conferir a máxima efetividade constitucional por meio da jurisdição concentrada,
fixou norma precária vinculante (temporária e condicionada à manutenção da inércia por parte
60
do Poder Legislativo nacional) para equiparar as condutas de homotransfobia ao crime de
racismo, com suas sanções relevantes147;
g) tudo isso tendo que adotar firme postura para que o julgamento não fosse considerado
prejudicado (na medida em que fora suscitada a pendência de projeto de lei no Congresso
Nacional tratando do tema), convencendo seus pares, por maioria, que a decisão do STF não
poderia mais ser de aguardar o exercício de competência afeta ao Parlamento que está, há
tempo relevante, na condição de devedor inadimplente com a sociedade brasileira.148

Mesclando uma postura silenciosa à mídia com atuações pontuais de enfrentamento do status quo
político ao envergar o peso institucional da sua condição de decano para ser o pioneiro a votar em

justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da
alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem
ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes,
degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de
perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito”. Idem,
ibidem.
147
“Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização
definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais
ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem
expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante
adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também,
na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º,
I, “in fine”)”. Idem, ibidem.
148
“Entendo, Senhor Presidente, que a mera existência de proposição legislativa em tramitação no Congresso Nacional
não tem o condão de afastar, por si só, a configuração, na espécie, de inércia por parte do Poder Legislativo. É que, tal
como já enfatizei no voto por mim proferido nesta causa, decorridos mais de trinta (30) anos da promulgação da vigente
Carta Política, ainda não se registrou – no que concerne à punição dos atos e comportamentos resultantes de discriminação
contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou em decorrência de sua identidade de gênero – a necessária
intervenção concretizadora do Congresso Nacional, que se absteve, até o presente momento, de editar o diploma
legislativo essencial ao desenvolvimento da plena eficácia jurídica dos preceitos constitucionais inscritos nos incisos XLI
e XLII do art. 5º da Carta Política. (...) Não obstante respeitável o esforço dispensado pelo Congresso Nacional no sentido
de instaurar o debate legislativo em torno da questão da criminalização da homofobia, revela-se inquestionável, no
entanto, a ausência conspícua de qualquer providência efetiva no sentido de superar a situação de inequívoca e irrazoável
“inertia deliberandi” ora constatada no presente caso. (...) A constatação objetiva de que se registra, na espécie, hipótese
de mora inconstitucional, apta a instaurar situação de injusta omissão geradora de manifesta lesividade à posição jurídica
das pessoas tuteladas pela cláusula
constitucional inadimplida (CF, art. 5º, XLI e XLII), justifica, plenamente, a intervenção do Poder Judiciário, notadamente
a do Supremo Tribunal Federal. Não tem sentido que a inércia dos órgãos estatais, evidenciadora de
comportamento manifestamente inconstitucional, possa ser tolerada”. Idem, ibidem.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

questões polêmicas e relevantes, a postura do Ministro sempre será recordada como a de um


verdadeiro referencial nas letras jurídicas.

A contribuição deixada pelo Ministro Celso de Mello é indelével para o Direito brasileiro.

61

4. CONCLUSÃO: MEMÓRIAS E SAUDADE

A hora da despedida de uma grande personagem da seara jurídica é sempre um momento de


dificuldade para quem fica, mas também uma oportunidade de reverenciar os feitos realizados em
vida, os quais são imorredouros quando voltados para o bem e para o progresso.

A aposentadoria e os limites físicos (além do desgaste emocional, sem dúvida) tornaram a cultura
jurídica brasileira mais rarefeita sem a presença constantes dos destaques, grifos e impostações do
Ministro Celso de Mello, certamente uma das mais paradigmáticas e respeitáveis mentes pensantes
brasileiras.

A malsinada COVID-19, na Bahia, ceifou o nosso battonier da Seção Bahia da Ordem dos
Advogados, conselho federal da Ordem, professor de gerações e advogado combativo Saul Quadro
Filho. Mas seu legado de busca pelo Direito, de empoderamento da classe da advocacia e de luta
constante pelo Esporte Clube Bahia e pelo Estado da Bahia serão lembrados por todos os que, tal qual
este que escreve, foram brindados pelas lições de direito, de política e de vida ministradas diariamente
no sacerdócio de Saul.

Dois grandes que saem dos palcos da vida profissional (por motivos e circunstâncias distintas) e viram
saudade, referências e exemplos de capacidade, qualidade e seriedade no trato do ser humano e do
Direito como um todo. Meus respeitos aos mestres!

REFERÊNCIAS

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22 ed. São Paulo : Malheiros, 2010;

BRASIL. Decreto 9288, de 16 de fevereiro de 2018. Decreta intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro
com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública. Disponível em:
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9288.htm#textoimpressao. Acesso em:


17 nov. 2020;

BRASIL. Decreto 9602, de 08 de dezembro de 2018. Decreta intervenção federal no Estado de Roraima com
o objetivo de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Decreto/D9602.htm. Acesso em: 17 nov. 2020;

BRASIL. Decreto nº 9.522, de 8.10.2018, publicado no DOU de 9.10.2018, o qual “Promulga o Tratado de
62
Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com
Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, firmado em Marraqueche, em 27 de junho de 2013”
e Decreto nº 6.949, de 25.8.2009, publicado no DOU de 25.8.2009, o qual “Promulga a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova
York, em 30 de março de 2007”;

BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda Constitucional nº 47, de 12 de setembro de 2012.


Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/107349. Acesso em: 17 nov.
2020;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO 26 DF, Relator: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento:
13/06/2019, DJe 243 de 06/10/2020;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45 DF, Relator: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento:
29/04/2004, DJ de 04/05/2004, p. 12;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:


http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaMinistro&p
agina=CelsoMelloDadosDatas. Acesso em: 17 nov. 2020;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº


2971/RO, rel. Min. Celso de Mello, DJU de 18/05/2004, p. 28;

CANOTILHO, J. J. Gomes et alli. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva/Almedina,


2013;

CIDADES terminam com empate na briga pela prefeitura; saiba como fica a eleição. Revista eletrônica Oeste.
16 nov. 2020. Disponível em: https://revistaoeste.com/cidades-terminam-com-empate-na-briga-pela-
prefeitura-saiba-como-fica-a-eleicao/. Acesso em: 17 nov. 2020;

HIRSCH, Fábio Periandro de Almeida; ARCHANJO, Camila Celestino Conceição. Direitos fundamentais
do Brasil: teoria geral e comentários ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte : Dialética,
2020;

RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo : Companhia das
Letras, 2019;

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo : Malheiros, 2005;

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo brasileiro. 42 ed. São Paulo : Malheiros,
2019.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

GLOBALIZAÇÃO, SOBERANIA E PÓS-MODERNIDADE:


NOTAS SISTEMÁTICAS

MATEUS BARBOSA GOMES ABREU


Pós-doutorando pelo Mediterranea International Centre for Human 63
Rights Research, da Università degli Studi Mediterranea di Reggio
Calabria (Itália). Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade
Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado pelo JusPodivm.
Membro do Colégio de Professores da Academia Brasileira de Direito
Constitucional - ABDConst. Membro do Instituto de Direito
Constitucional da Bahia - IDCB. Presidente da Comissão de Direito
Constitucional e Eleitoral da Associação Brasileira de Advogados -
ABA. Parecerista das Revistas Interesse Público (Editora Fórum),
Constituição, Economia e Desenvolvimento (ABDConst), Publicum
(UERJ) e Estudos Institucionais (UFRJ). Membro do Conselho
Editorial da Editora Dom Modesto (Blumenau/SC). Advogado,
consultor jurídico e professor universitário em cursos de graduação e
pós-graduação. Website acadêmico: www.mateusabreu.com.br. E-mail
acadêmico: contato@mateusabreu.com.br

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. GLOBALIZAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES DOS


ESTADOS; 2.1. CONCEITO, AMPLITUDE E PANORAMA GERAL; 2.2. CRONOLOGIA: AS
“QUATRO ONDAS DE GLOBALIZAÇÃO”; 3. AS TRANSFORMAÇÕES DOS ESTADOS E
DO DIREITO; 3.1. A SUPERAÇÃO DOS PARADIGMAS DA MODERNIDADE; 3.2. O
DIREITO DA PÓS-MODERNIDADE; 4. SOBERANIA: DISCUSSÕES ACERCA DO SEU
CONCEITO; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

1. INTRODUÇÃO

O artigo em voga tem por finalidade apresentar, de forma breve e sistematizada, as


principais controvérsias da atualidade sobre globalização, soberania e pós-modernidade, sem
objetivar, contudo, esgotar o tema.
Para tanto, em um primeiro momento, expõe-se diversas questões acerca da globalização
e as consequências deste evento no plano dos Estados, da Sociedade e do Direito.
Em seguida, passa-se a expor acerca da controvertida “pós-modernidade”, abrangendo as
acepções apresentadas por diversos autores e as suas implicações na sociedade. Por fim, cumpre
discutir se, diante do atual cenário de globalização e de “pós-modernidade”, a soberania ainda se
faz presente ou se, por outro lado, foi relativizada ou extinta.

2. GLOBALIZAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES DOS ESTADOS


UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

O presente item visa apresentar reflexões acerca da globalização e seus impactos nos
Estados e no Direito.
Para tanto, em um primeiro momento, cumpre verificar os principais conceitos presentes
na doutrina. Demonstrar-se-á, ainda, que a globalização, ao contrário do que reza parcela
64
significativa da doutrina, não é fenômeno recente, podendo ser verificada em diversos estágios na
história.

2.1. CONCEITO, AMPLITUDE E PANORAMA GERAL

A globalização, com impactos em amplitude mundial, acarretou profundas


modificações nas relações sociais e nos Estados. A expressão, por vezes associada ao mercado
especulativo de capitais, por vezes à aproximação dos povos através dos avanços das
comunicações – atualmente, com especial realce ao papel da internet –, é dotada de forte
ambiguidade semântica (SILVA NETO, 2002, p. 152) e natureza integrativa149. Importante
advertir, ainda em linhas inaugurais, que, como todo fenômeno, a globalização possui repercussões
tanto positivas como negativas.
Segundo Paulo Sandroni, não é possível restringir globalização a somente um sentido ou
dimensão. Para esse autor, portanto, o termo representa

[...] o fim das economias nacionais e a integração cada vez maior dos mercados, dos
meios de comunicação e dos transportes. Um dos exemplos mais interessantes do
processo de globalização é o global sourcing, isto é, o abastecimento de uma empresa
por meio de fornecedores que se encontram em várias partes do mundo, cada um
produzindo e oferecendo as melhores condições de preço e qualidade naqueles produtos
que têm maiores vantagens comparativas (1999, p. 265).

No mesmo sentido é a compreensão de Silva Neto (2002, p.152), para quem


globalização é o resultado da eliminação de barreiras alfandegárias e comerciais, bem como o
afastamento de obstáculos relacionados à tecnologia – na medida em que estes somente
viabilizavam o acesso às inovações técnicas aos povos mais ricos, que podiam custear as suas
pesquisas, e à circulação de pessoas – com o desenvolvimento dos meios de transporte, além dos
significativos avanços das comunicações.

149
A internet, em razão da sua descentralização, tem o poder de aproximar pessoas das mais distintas localidades, ainda
que fisicamente distantes entre si.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Para Danilo Zolo (2010, p.15), o termo globalização tem forte imbricação com o
processo de extensão global das relações sociais entre os seres humanos, amplo a ponto de ter
envergadura para cobrir o espaço territorial e demográfico de todo o planeta. O fenômeno da
globalização, mormente sob o prisma econômico – sem, contudo, restringir a expressão a
somente esse espectro –, provocou aceleradas transformações nas perspectivas de Estado,
65
Direito e Política a partir da década de 1990, muito embora não seja um fenômeno recente,
conforme será visto a seguir.
Em um olhar mais atento à macroeconomia mundial, durante o século XIX, sobretudo
na segunda metade, já era possível constatar enormes transformações havidas em dois processos:
por um lado, havia uma considerável aceleração na acumulação de capitais nos sistemas de
produção; e de outro, uma intensificação do comércio internacional. Tais fatores implicaram
aumentos substanciais da produtividade do fator trabalho (FURTADO, 1996, p.18).
Esse processo de globalização, nas últimas três décadas do século passado, ganhou
sentido mais específico, atrelado ao processo social, “Influenciado pelo desenvolvimento
tecnológico, pela velocidade dos transportes e pela ‘revolução informática’” (ZOLO, 2010,
p.15-16). A essa nova fase, doutrinariamente, foi atribuída a alcunha de “Sociedade da
informação” (CHEVALLIER, 2010, p.35), representando um mundo onde as informações são
disponibilizadas em um ponto do planeta e acessadas em qualquer outro, em apenas alguns
segundos. Assim, nesse contexto, realça-se o papel da internet, que, porquanto essencialmente
deslocalizada, torna possível a mitigação das tradicionais fronteiras, das distâncias físicas,
permitindo múltiplas interações em um mundo interconectado.
Essa revolução cibernética resultou em uma aceleração das comunicações, a ponto de
possibilitar, quase de forma instantânea, a troca de informações entre distantes localidades do
mundo (RUARO, 2007, p.227). Nesse sentido, como rememora Limberger,

Hoje em dia os computadores não estão mais isolados, mas sim interligados em redes,
em conexão com outros computadores. Isso faz com que seus efeitos saiam de um
âmbito restrito e sejam transmitidos globalmente e com uma velocidade ímpar,
combinando os fatores de tempo e espaço (2006, p.35).

Segundo ensinamentos de Nora e Minc referidos por Limberger (2006, p.35), a


telemática, diversamente das transmissões por via da eletricidade, não transmite uma corrente
inerte, mas sim com veiculação de informação; nesse sentido, quando essa informação é
corretamente utilizada, significa poder. Com efeito, o progresso tecnológico e o direito à
informação vão trazer implicações no mundo jurídico em muitos aspectos, in casu, o uso das
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

novas tecnologias vai propiciar uma maneira diferente de mobilização social e participação
política, fator que tem elevado a própria legitimidade da atuação democrática frente aos
desmandos do Estado.
Para parcela da doutrina, da qual se ousa discordar em virtude de se tratar de fenômeno
cronologicamente anterior, a globalização teve partida com o advento da Revolução Industrial,
66
ocorrida entre os séculos XVIII e XIX (ZOLO, 2010, p.15). Para Zolo, essa tendência de que as
nações se unificassem econômica e politicamente ganhou espaço inicialmente no império
britânico e, posteriormente, entre os séculos XIX e XX, na hegemonia europeia proporcionada
em decorrência das colonizações. Assim, a partir da perspectiva dos Subaltern Studies,
“Existiria uma linha de continuidade entre colonialismo, pós-colonialismo e globalização”
(ZOLO, 2010, p.15).
Em se tratando de mundialização, não menos abalizada é a doutrina de Milton Santos,
para quem, saindo do lugar comum, a globalização deve ser vista em três eixos, de modo a
analisar como a história humana se desenvolve: o primeiro é o da globalização como fábula; o
segundo seria o mundo tal qual ele é, representado pela metáfora da globalização como
perversidade; e no terceiro, figura a perspectiva do mundo como ele pode ser, aonde o autor
pugna por uma outra globalização (2001, p.18), nomenclatura esta que dá título a uma das suas
principais obras.
No caso da globalização como fábula, verifica-se certo número de fantasias que, em
função da sua repetição, acaba por se tornar uma base sólida (SANTOS, 2001, p.18). Como
exemplo, o autor apresenta a ideia doutrinariamente difundida da morte do estado:

Fala-se, igualmente, com insistência, na morte do Estado, mas o que estamos vendo é o
seu fortalecimento para atender aos reclamos da finança e de outros grandes interesses
internacionais, em detrimento dos cuidados com as populações cuja vida se torna mais
difícil (SANTOS, 2001, p. 19).

Já a globalização como perversidade reflete as mazelas da globalização, tais como


desemprego, aumento da pobreza e redução da qualidade de vida, tendência de redução das
médias salariais, surgimento de novas doenças, dentre outros. Para o autor, nesse vértice,

A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem
relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente
caracterizam ações hegemônicas. Todas essas mazelas são direta ou indiretamente
imputáveis ao presente processo de globalização (SANTOS, 2001, p.20).
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Contudo, o autor apresenta também corrente de otimismo: a possibilidade de existir


uma outra globalização. Para o autor, é possível pensar na construção de outro mundo, mediante
mundialização mais humana. A partir do conhecimento empírico, Milton Santos menciona
alguns fenômenos que representam verdadeiras evidências do início da construção desse novo
mundo, que começaram a surgir no final do século XX, tais como: a mistura de povos, raças e
67
culturas em todos os continentes; progressos da informação e “mistura” de filosofias, em
detrimento do racionalismo europeu, o que imprime dinamismo à mistura entre pessoas e
filosofias, tratando-se, assim, de “verdadeira sociodiversidade” (SANTOS, 2001, p.20-21).
Entretanto, essa outra globalização, como propõe Milton Santos, exigirá mudança
radical das condições atuais, de modo que o homem, e não o dinheiro, seja a finalidade precípua
de todas as ações. Somente assim estariam presentes as condições para que exista dignidade no
seio da globalização.

A nova paisagem social resultaria do abandono e da superação do modelo atual e sua


substituição por um outro, capaz de garantir para o maior número a satisfação das
necessidades essenciais a uma vida humana digna, relegando a uma posição secundária
necessidades fabricadas, impostas por meio da publicidade e do consumo conspícuo.
Assim o interesse social suplantaria a atual precedência do interesse econômico e tanto
levaria a uma nova agenda de investimentos como a uma nova hierarquia nos gastos
públicos, empresariais e privados. Tal esquema conduziria, paralelamente, ao
estabelecimento de novas relações internas a cada país e a novas relações
internacionais (SANTOS, 2001, p.148).

Desse modo, conforme se verifica na lição de Milton Santos, em que pese não ser tarefa
das mais fáceis, é possível uma globalização mais humanitária, com mais elevado nível de
respeito pelos direitos humanos. Somente assim, com outra forma de pensar a globalização, é
possível haver justiça, liberdade e igualdade entre os seres humanos.

2.2. CRONOLOGIA: AS “QUATRO ONDAS DE GLOBALIZAÇÃO”

A globalização não é fenômeno novo. Sobre a cronologia da globalização, parece


acertada a lição de Silva Neto (2002, p.151), quando salienta que, mesmo entre os estudiosos da
academia, não são poucos aqueles que erroneamente compreendem a globalização enquanto
fenômeno relativamente recente. Segundo esse autor, existem quatro ondas de globalização,
sendo que atualmente se vive a quarta.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

A primeira onda de globalização, decorrente da política expansionista do Império


Romano, ocorre por volta de 753 a.C., quando, segundo o autor, os Latinos do Monte Palatino
uniram-se aos Sabinos do Monte Quirinal:

A expansão da externa romana começou com as chamadas Guerras Púnicas contra a


68
cidade de Cartago, a mais rica e poderosa de todo o Mediterrâneo. Após submeter
Cartago, os romanos dominaram a Espanha, Portugal, o norte da África, a Macedônia,
a Síria, e, por fim, com a conquista da Gália por Júlio César, Roma se transformou no
maior império da História Antiga, o que perdurou até o fim do Império Romano do
Ocidente, no Século IV d.C (SILVA NETO, 2002, p.153).

A segunda onda de globalização, ao seu turno, é atribuída à expansão marítima e colonial,


ocorridas a partir do século XV:

Diversas circunstâncias contribuíram para a política expansionista europeia, dentre as


quais podem ser indicadas a necessidade de novos mercados – em face da crise feudal
que desorganizou o sistema produtivo europeu –, a escassez de metais preciosos do
Velho Continente, a busca de especiarias e as novas invenções (que não tinham outro
propósito senão aprimorar as técnicas de navegação rudimentares [...]) (SILVA NETO,
2002, p. 153-154).

Nesse sentido, destacaram-se Portugal, a quem é atribuído pioneirismo do expansionismo


marítimo e comercial, e Espanha, que se converteu em sua maior rival na busca por novos mercados
e novas terras.
Por outro turno, igualmente relevante é a terceira onda de globalização, que se inicia
com a Revolução Industrial, na medida em que o avanço tecnológico havido a partir da
descoberta da máquina a vapor possibilitou ampla instalação de indústrias onde houvesse carvão,
sendo a Inglaterra largamente beneficiada. Nesse sentido, dentre as alterações no quadro social
destaca-se a drástica alteração nas relações de trabalho, sobretudo com a substituição de postos
de trabalho humanos por máquinas automáticas (SILVA NETO, 2002, p. 154).
A quarta onda de globalização, que representa o estágio atual, pode ser associada à
queda do muro de Berlim, em 1989, fato simbólico que representa a democratização dos países
até então pertencentes à “Cortina de Ferro”, das transformações no modelo do sistema
econômico – de socialismo ao capitalismo e do encorajamento para a busca da independência
nacional de algumas antigas províncias da antiga União Soviética (SILVA NETO, 2002, p. 154).
Assim, se algo inovador pode ser atribuído à globalização, certamente não é o fenômeno
propriamente dito, mas sim os distintos processos expansionistas que, com amparo na tecnologia e
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

nas modernas formas de comunicação, implicam substanciais interferências nas economias


nacionais (SILVA NETO, 2002, p. 154).

3. AS TRANSFORMAÇÕES DOS ESTADOS E DO DIREITO

69
Para o pormenorizado estudo do objeto proposto neste trabalho, é relevante analisar as
principais transformações havidas nos Estados e no próprio Direito. Neste sentido, é essencial
investigar a superação dos paradigmas da modernidade e o direito pós-moderno.

3.1. A SUPERAÇÃO DOS PARADIGMAS DA MODERNIDADE

Com o advento da globalização, é incontestável que houve mudanças significativas nos


modelos previamente estabelecidos na modernidade, seja de Estado, Direito ou política. Nesse
sentido, é relevante verificar a amplitude dessas novas transformações e os reflexos delas
decorrentes.
O modelo estabelecido pela modernidade, que se sustenta nos pilares do culto à razão150
– em substituição aos deuses e às leis da natureza e do individualismo – com a desvinculação da
comunidade, e balizada nos caminhos da simplicidade, ordem e coerência, se vê em crise com o
advento dos novos paradigmas da sociedade contemporânea: complexidade, desordem,
indeterminação e incerteza (CHEVALLIER, 2010, p.17-18).
A essa nova fase151, que alguns preferiram intitular de “modernidade tardia” ou
“modernidade líquida”, insistindo nos elementos que caracterizam apenas continuidade, outros

150
Neste sentido, “o postulado segundo o qual as sociedades guiadas pela Razão seriam destinadas a ser cada vez
mais eficientes e operacionais não prevalece mais como uma evidência por si só: a evolução social não aparece
como sendo ditada apenas pelas leis da Razão, mas é dominada pela incerteza e pela imprevisão (J. P. DUPUY,
2002); e essa superação do primado da razão conduz à perda da confiança na ‘Ciência’ (J. F. LYOTARD, 1970) cuja
dinâmica de desenvolvimento parece escapar a qualquer controle [...]”. (CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-
Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 17). Registre-se que foi com a obra
“O Pós-Moderno”, de Jean-François Lyotard que a expressão “pós-moderno” se popularizou. LYOTARD, Jean-
François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
151
De fato, muitas foram as nomenclaturas atribuídas a esse período que sucedeu a modernidade, a depender do
aspecto ou ponto de vista que se quer enfatizar. É possível destacar a “hipermodernidade” de Gilles Lipovetsky
(LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Barueri: Manole, 2007), a “sobremodernidade” de Marc
Augé (AUGÉ, Marc. Los no lugares: espacios del anonimato: una antropología de la sobremodernidad. Tradução
de Margarida Mizraji. Barcelona: Gedisa, 2000), a “modernidade líquida” de Zygmunt Bauman (BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001); a “modernidade
tardia” de Antony Giddens (GIDDENS, Antony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005), a “modernidade
reflexiva” de Ulrich Beck (BECK, Ulrich. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social
moderna. São Paulo: EDUSP, 1995).
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

autores optaram por “hipermodernidade” ou “sobremodernidade”, tendo em conta somente a


radicalização da ideia de modernidade.

Entretanto, tal como o termo modernidade, é difícil definir, de forma precisa, o


significado de pós-modernidade, visto que se trata de termos polissêmicos. Assim, o significado
assumido pelo prefixo “pós” pode representar diferentes cenários ou planos de sucessão ou
70
censura da modernidade.
Ao que se tem registro, a primeira alusão ao termo pós-modernidade é atribuída ao
filósofo alemão Rudolf Pannwitz, em 1917. Esse autor, sob influência de Nietzsche, identificava
o pós-moderno com o niilismo reinante na cultura ocidental do século XX (DINIZ, 2006, p.647).
Entretanto, somente no início dos anos de 1970, a expressão ganha o sentido atual, através de
Ihab Hassan, crítico literário norte-americano de origem egípcia. Ao tentar descrever o que
considerava como indescritível, Hassan elaborou uma série de categorias conceituais na conta
de aproximações do que compreenderia por cultura pós-moderna, tais como: indeterminação,
rebeldia, aleatoriedade, fragmentação e pluralismo (DINIZ, 2006, p.647).
Ao denominar esse novo estágio, Bauman optou pela alcunha de “modernidade
líquida”152, expressão esta que dá nome a uma de suas mais conhecidas obras. Essa modernidade
“leve”, “líquida”, “fluida”, segundo o autor, sucedeu a “modernidade sólida”. “Modernidade
sólida” representa as transformações clássicas e a estabilidade dos valores e modos de vida
cultural e político. Na modernidade líquida, inversamente, tudo é volátil, instável, efêmero.
Assim, segundo Bauman, a liquidez hoje, tal qual se configura, é importante
instrumento de poder econômico. Para ilustrar essa afirmação, segundo ele, basta observar que
“É a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da
substituição que traz lucro hoje – e não a durabilidade e confiabilidade do produto” (2001, p.21),
fazendo alusão à ideia de obsolescência programada dos bens de consumo.
Entretanto, o pensamento de Bauman, como bem aponta Berman (1986, p.87), de certo
modo já se fazia presente em Karl Marx e Friedrich Engels, em sua obra “Manifesto Comunista”
(2005), quando aponta que a ação das revoluções modernas termina por desmanchar tudo que é
sólido. Assim, em que pese o ponto básico da obra tratar do desenvolvimento da moderna

152
A metáfora da liquidez, tema recorrente em diversas outras obras de Bauman, tem por condão, sobretudo,
demonstrar a fragilidade das relações humanas, a banalidade das relações interpessoais e a descartabilidade do
outro. Em sua obra “amor líquido”, por exemplo, Bauman afirmou que se trata de uma forma de amor até segundo
aviso, típica da “modernidade líquida”, e que segue o padrão dos bens de consumo, ou seja, é aquele amor de
conveniência, que deve ser mantido enquanto trouxer satisfação e deverá ser substituído, sem pesar, tão logo
encontre outro que trouxer nível de satisfação ainda maior. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a
fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 14.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

burguesia, do proletariado e da luta entre ambos, é possível encontrar, nesse contexto, uma
tensão entre a visão “sólida” e a visão “diluidora” de Marx e Engels sobre a vida moderna
(BERMAN, 1986, p. 88), demonstrando a afinidade havida entre os autores e os modernistas.

Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de


concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam- 71
se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se desmancha
no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a
encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens (MARX;
ENGELS, 2005, p.43).

No entanto, Jacques Chevallier defende a opção pela denominação “pós-modernidade”,


na medida em que, segundo esse autor, ao mesmo tempo em que se assiste à exacerbação de
algumas características típicas da modernidade, surgem outras potencialidades distintas:

Comportando aspectos complexos, mesmo contraditórios, a pós-modernidade se


apresenta como uma ‘hipermodernidade’, na medida em que eleva ao extremo certas
dimensões presentes no cerne da modernidade, tais como o individualismo, e como
uma ‘antimodernidade’, na medida em que ela se desvincula de certos esquemas da
modernidade (CHEVALLIER, 2010, p.20).

Entretanto, ao optar pela referida nomenclatura, Chevalier faz algumas ressalvas, na


medida em que, para ele, semanticamente, a expressão contém alguns equívocos, dentre os quais,
destacam-se os seguintes: a) a suposição de estabilização desse novo estágio; b) a afirmação de
que a sociedade pós-moderna teria substituído a sociedade moderna; c) a adesão global – já que
o processo de globalização exerce pouca ou nenhuma implicação nas sociedades extremamente
diferentes.
Nesse liame, a função primordial do conceito de “pós-modernidade” é oferecer um
“quadro de análise” das modificações sofridas pela forma estatal, evidenciando determinadas
tendências que se apresentam nos Estados, em maior ou menor intensidade (CHEVALLIER,
2010, p.21).
Enfim, independentemente da denominação que venha a ser atribuída a esse novo
estágio em que a sociedade se encontra, seguramente não se pode ignorar as transformações
havidas, na medida em que as crenças no mito do progresso linear e no planejamento coerente
e retilíneo da vida humana cederam lugar às descontinuidades e indeterminações da pós-
modernidade. Em síntese: já não há mais garantia de que as coisas saíam como o esperado ou de
que avancem no sentido do bem geral (DINIZ, 2006, p.648).
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

3.2. O DIREITO DA PÓS-MODERNIDADE

Nas últimas duas décadas do século XX, o comércio mundial de bens aumentou para muito
além do mercado interno, notadamente pelo avanço dos transportes e das comunicações. Impôs-se
uma economia mundial, global, na qual a empresa com sede em um Estado pode ter 72

estabelecimentos produtivos em outros e seus clientes, ainda, em uma terceira nação. Diante desse
quadro, é também necessário verificar quais os impactos da globalização sobre a forma de se
conceber o Direito, sobretudo no plano internacional.
Ao lado do Estado e das tradicionais instituições internacionais, tais como Nações
Unidas, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, figuram novos sujeitos do
ordenamento jurídico internacional, a exemplo das “Uniões regionais – in primis a Europa –, as
alianças político militares, como a OTAN, as cortes penais internacionais, as corporations
multinacionais, as organizações para regulação financeira internacional [...]” (ZOLO, 2010,
p.70), assim como também emergem novas formas de regulamentação ao lado dos tratados,
convenções e costumes internacionais, como é o caso, dentre outros, dos atos normativos das
autoridades regionais e da jurisprudência arbitral internacional.
Diante das transformações da pós-modernidade, o direito também não restou imune aos
efeitos da globalização, afirma Chevallier. É que, segundo esse autor, “[...] à emergência de um
Estado pós-moderno corresponde inevitavelmente o surgimento de um Direito pós-moderno”
(CHEVALLIER, 2010, p.115).
Dentre as principais evidências da crise da modernidade estão a perda da
sistematicidade, generalidade e estabilidade do direito, dando lugar à proliferação de regras
destituídas de significação para o direito, ou seja, à banalização legislativa. Dentro do sistema
brasileiro, é possível identificar normas desprovidas de relevância jurídica (banalização), a
exemplo da Lei Estadual nº 11.929, de 20 de junho 2003, do Rio Grande do Sul, que, dentre
outras coisas, visa estabelecer como fazer (receita) um churrasco gaúcho 153.

Apesar disso, para Chevallier (2010, p.124), a crise da modernidade jurídica não significa
a morte do direito: ela anuncia e prepara para o desenvolvimento de nova concepção do direito –

153
Art. 1º. [...]. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por churrasco à gaúcha a carne temperada com
sal grosso, levada a assar ao calor produzido por brasas de madeira carbonizada ou in natura, em espetos ou disposta
em grelha, e sob controle manual”. RIO GRANDE DO SUL. Assembléia Legislativa. Lei n. 11.929, de 20 de junho
de 2003. Institui o churrasco como “prato típico” e o chimarrão como “bebida símbolo” do Estado do Rio Grande do
Sul e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/11.929.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2014.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

“pós-moderna” –, sem romper radicalmente com a concepção precedente. Abandona-se o universo


das certezas, resultante do primado da razão, para entrar em um mundo de incerteza, de relativismo
e de indeterminação.
No âmbito do direito internacional, dentre as novas formas de pensar sobre o direito,
encontra-se a da teoria do metaconstitucionalismo (FINKELSTEIN, 2013, p.171) 154. Segundo
73
Neil Walker, citado por Finkelstein, a conceituação de metaconstitucionalismo

analisa a interação o direito contemporâneo com as normas formas de ‘meta-Estado’,


principalmente aquelas da Europa, o Acordo Shengen (a Eurozona), o Conselho da Europa
e o GATT/WTO, que estão associados com um padrão de flexibilidade e
multidimensionalidade no Direito Público (FINKELSTEIN, 2013, p.169-170).

Nesse sentido,

o metaconstitucionalismo seria um tipo de discurso legal com o mesmo objetivo e


referências do direito constitucional, mas que, ao contrário do direito constitucional,
não está inserida no Estado e não busca no Estado sua fonte fundamental de validade.
Ao contrário, o direito metaconstitucional, a despeito dos costumeiros reclamos feitos
em favor do Estado através de seu discurso constitucional e afirmações de soberania,
sempre clama por uma autoridade normativa maior e mais profunda, procurando
distintamente autorizar, instruir, influenciar, suplementar ou suplantar o direito Estatal.
[...] As regras metaconstitucionais – ou normas e axiomas – são regras sobre as regras
constitucionais. No final, o objeto delas é o mesmo, mas elas se pautam em seus próprios
termos autorizativos, com uma prevalência constitucional maior e mais profunda que
as normas constitucionais (FINKELSTEIN, 2013, p.171).

Portanto, o metaconstitucionalismo é uma nova estrutura conceitual com o mesmo


objeto e referências do direito constitucional, mas que, contudo, em vez de buscar no Estado sua
fonte fundamental de validade, opta por uma autoridade normativa maior e mais profunda, de
modo a, de forma inovadora, autorizar, instruir, influenciar, suplementar ou suplantar o direito
Estatal.
Ainda no campo do direito pós-moderno, para Ricardo Maurício Freire Soares, são
quatro os elementos da cultura jurídica da pós-modernidade: direito plural, reflexivo, discursivo,
relativo e prospectivo (2013, p. 193).
A pluralidade do direito, segundo Soares, revela-se evidente com a abertura de espaço
para que múltiplas fontes legislativas regulem os mesmos comportamentos sociais (2013, p.193).
Chevallier, no mesmo sentido, ressalta a necessidade de um pluralismo ordenado entre as diversas

154
Segundo Finkelstein, “semanticamente, o prefixo ‘meta’ se coloca em relação à atividade denotada pelo
conceito prefixado como uma ‘ciência maior da mesma natureza, mas lidando com problemas futuros. Assim, o
metaconstitucionalismo se relaciona com o constitucionalismo do mesmo modo que a metafísica faz com a física,
ou a metaética faz com a ética”. FINKELSTEIN, Cláudio. Hierarquia das normas no direito constitucional: jus
cogens e metaconstitucionalismo. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 171.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

fontes do direito – direito extraestatal155, supraestatal156 e infraestatal157 – de modo a fortalecer a


integridade do sistema normativo dos Estados e do Direito Internacional.
Em relação à reflexividade do direito, para Soares, se antes “O direito moderno figurava
como centro normativo diretor que, mediante o estabelecimento de pautas comportamentais,
plasmava condutas e implementava um projeto global de organização e regulação social”, na pós-
74
modernidade, “O direito passa a espelhar as demandas da coexistência societária. Sedimenta-se a
consciência de que o direito deve ser entendido como um sistema aberto, suscetível aos influxos
fáticos e axiológicos” (2013, p.194).
No âmbito do Direito Constitucional, um exemplo da necessidade de abertura do direito é
declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, atividade interpretativa em que:

Não se declara a inconstitucionalidade da norma, mas o STF diz que tal ou qual
aplicação da norma pode conduzir à incompatibilidade da lei com a Constituição, sendo
que a forma de interpretar a lei dada pelo Tribunal vincula os demais órgãos do Poder
Judiciário e da Administração Pública, em todos os níveis (SILVA NETO, 2013,
p.175).

Se inexistente a referida abertura, não seria possível excluir, sem redução de texto,
hipóteses de aplicação de normas que colidam com a Constituição.
No mesmo sentido, outro exemplo de abertura do direito é a cláusula de abertura
material ou inesgotabilidade dos direitos fundamentais, extraída do §2º do art. 5º, da CF 88,
quando admite que a listagem dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna compõe rol
meramente exemplificativo, ou seja, ali não está exaurido todo o seu conteúdo (NÁPOLI, 2013, p. 113).
Portanto, “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte”
(art. 5º, § 2º, CF 88).
No contexto da pós-modernidade, a discursividade do direito realça-se com a ascensão
da dimensão discursivo-comunicativa: “Torna-se, cada vez mais plausível, o entendimento de
que os juristas devem procurar as significações do direito no contexto de interações

155
No tocante ao Direito extraestatal, o “direito da globalização” aparece como marca característica preponderante,
na medida em que ele é, em boa parte, construído pela iniciativa dos operadores econômicos. As trocas entre esses
atores econômicos passariam gradativamente à elaboração de regras e utilização de mecanismos de solução de
conflitos que evitam a mediação estatal. Nesse sentido, destaca-se a arbitragem. CHEVALLIER, Jacques. O Estado
Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 145-146.
156
O Direito supraestatal, por sua vez, destina-se a limitar a soberania dos Estados. Portanto, os Estados são
obrigados a adotar os acordos necessários ao seu desenvolvimento e a tecer liames de interdependência que não
poderão romper de forma unilateral. CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen
Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 128-150.
157
O Direito infraestatal, ao seu turno, promove a regulação oriunda das mais diversas fontes do direito interno
(leis federais, estaduais, locais, decretos, resoluções, dentre outros). CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-
Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 150.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

comunicativas” (SOARES, 2013, p.195), que ocorrem através da linguagem, fulcral na


atividade interpretativa158.
Cumpre referir, ainda, a relatividade do direito, também indicada por Soares como
elemento do direito pós-moderno. Para ele, o direito pós-moderno é relativo, posto que “Não se
pode conceber verdades jurídicas absolutas, mas sempre dados relativos e provisórios”
75
(SOARES, 2013, 196). Isso figura evidente no campo do direito processual. Na esfera do
processo penal, faz-se referência à necessidade de se perseguir a “verdade real”, contudo, essa
figura é, na verdade, é um mito, conforme leciona Ada Pellegrini Grinover:

O princípio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado para a
liberdade absoluta do juiz e para a utilização de poderes ilimitados na busca da prova,
significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza próxima da verdade judicial:
uma verdade subtraída à exclusiva influência das partes pelos poderes instrutórios do
juiz e uma verdade ética, processual e constitucionalmente válida. Isso para os dois
tipos de processo, penal e não penal. E ainda, agora exclusivamente para o processo
penal tradicional, indica uma verdade a ser pesquisada mesmo quando os fatos forem
incontroversos, com a finalidade de o juiz aplicar a norma de direito material aos fatos
realmente ocorridos, para poder pacificar com justiça (2005, p.23).

A prospectividade do direito, referida por Soares, traduz-se no fato de que a “Própria


dinamicidade do fenômeno jurídico exige do legislador a elaboração de diplomas legais
marcados pela textura aberta” (2013, p.194). Segundo ele, “A utilização de fórmulas normativas
propositadamente genéricas, indeterminadas e contingenciais revela a preocupação de conferir
a necessária flexibilidade aos modelos normativos, a fim de poder adaptá-los aos novos tempos”
(2013, p.194).
Em relação à flexibilidade do direito, Chevallier afirma que o Estado perdeu o papel de
protagonista, passando a negociar de igual para igual com outros atores (tais como organismos
internacionais, a exemplo da Organização Mundial do Comércio e até mesmo com empresas
privadas), em uma espécie de contratualização, ou seja, um direito de coordenação e não de
subordinação: um denominador comum entre os atores envolvidos (CHEVALLIER, 2010,
p.157).

158
“A linguagem [...] funda e constitui o mundo. Por isso mesmo, a interpretação não se reduz a uma atividade
passiva. Não somos o mero receptáculo em estados interiores das impressões do mundo exterior. O mundo é feito
por nós quando nos aproximamos dele interpretativamente. Nessa mediação linguística da compreensão, o mundo
é por nós transformado, constantemente desfeito e refeito. Mas nem todas as linguagens são iguais. Existem certas
linguagens dotadas de capacidade de mobilizar grandes poderes sociais, como é o caso do direito. Tais linguagens-
poderes imprimem novas condições de possibilidade à vivência do e no mundo. Quem por ofício manipula essas
linguagens em sua lide quotidiana recebe então uma responsabilidade adicional: a de fazer não só seu próprio
mundo, mas também o daqueles onde muitos outros podem viver”. SOARES, Ricardo Maurício Freire. Elementos
de Teoria Geral do Direito. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 195.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Contudo, a proposta de Chevallier deve ser vista com ressalvas. Isso porque, se por um
lado, de fato o caminho do diálogo entre o Estado e outras entidades parece ser promissor, por
outro, não é correto afirmar que os Estados tendem a abrir mão da prerrogativa da soberania
para, de forma indistinta, dialogar em pé de igualdade com empresas e Organizações
Internacionais.
76
Por exemplo: uma coisa é o Estado brasileiro criar situações favoráveis para que
determinada empresa multinacional venha a instalar filial determinada localidade, concedendo-lhe
isenções fiscais por determinado período (política extrafiscal), posto que, ponderando as
circunstâncias em jogo, em dado momento, a contrapartida da geração de empregos pode ser mais
favorável do que eventual arrecadação de tributos. Entretanto, diferentemente é a situação em que
o Estado viole o princípio da legalidade para negociar da forma que melhor aprouver, até que a
situação fique ao agrado do particular.
O Estado não tem margem para negociar além dos limites determinados em lei, isso
porque, se para o particular é permitido fazer tudo que a lei não proíbe, para o Poder Público
ocorre o inverso: só é lícito adotar medidas dentro da moldura legal. Até mesmo os atos
discricionários devem ser praticados sob o manto da legalidade, na medida em que
discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Se não fosse assim, violado estaria o
interesse público.
Em relação aos contratos, ainda no exemplo brasileiro, a regra geral é a da existência de
prerrogativas contratuais em favor do Poder Público, tais como a possibilidade de alteração
unilateral, rescisão unilateral, fiscalização da execução, aplicação de sanções ou ainda, ocupação
provisória de bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, quando
o ajuste vise à prestação de serviços essenciais, na forma da Lei 8.666/93 (CARVALHO FILHO,
2009, p.185), o que revela nitidamente a superioridade do Ente público frente ao particular,
também em razão da supremacia do interesse público sobre o privado.
Entretanto, conforme mencionado, a alteridade parece mesmo apontar para um próspero
caminho para a convivência entre os Estados, na medida em que, sem isso, há a imposição de
um perante o outro, o que pode resultar em guerras, o que seria contrário ao princípio
constitucional da solução pacífica dos conflitos (art. 4º, VII, CF).
Tendo em conta todas as características do direito da pós-modernidade descritas
anteriormente, Ricardo Maurício Freire Soares conclui que se abre espaço para o
desenvolvimento do pós-positivismo jurídico (também conhecido por
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

neoconstitucionalismo 159), “Como movimento que busca superar a dicotomia jusnaturalismo


versus positivismo jurídico na fundamentação do significado de um direito justo” (SOARES,
2013, p.197).
Na medida em que uma das principais marcas do neoconstitucionalismo é a
concretização de direitos (DIDIER JR., 2009. p.25), é da própria Constituição que se deve extrair
77
o substrato jurídico fundamental (ou seja, a base) para resolver os impasses envolvendo a
soberania.

4. SOBERANIA: DISCUSSÕES ACERCA DO SEU CONCEITO

Diante desse cenário de transformações, cumpre verificar em que medida globalização


impactou na Soberania dos Estados. Uma vez que a espionagem internacional é um problema
para além das fronteiras nacionais, esse tema revela-se bastante caro ao objetivo final deste
trabalho, razão pela qual merece especial atenção.
As teorias sistemáticas sobre a soberania têm origem a partir do século XVI, quando a
instabilidade política deu ensejo a novas formas de pensar o exercício do poder político.
Jean Bodin foi o primeiro autor a tratar a temática da soberania sob um viés sistemático,
em sua obra “Os seis livros da República” (BODIN, 1997) (Les six livres de la republique), cuja
primeira edição é datada de 1576. Para Quentin Skinner, este livro “Foi talvez a obra de filosofia
política mais original e influente entre as escritas do século XVI” (SKINNER, 1996, p.227) e,
segundo Bobbio, “O livro é, sem exagero, a obra de teoria política mais ampla e sistemática desde
a Política de Aristóteles” (1976, p.95).

Bodin passou para a história do pensamento político como o teórico da soberania.


Contudo, o conceito de soberania como caracterização da natureza do Estado não foi
inventado por ele. ‘Soberania significa simplesmente poder supremo’. Na escalada dos
poderes de qualquer sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é
subordinado a um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder
superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum outro — e esse
poder supremo, ‘summa potestas’, é o poder soberano. Onde há um poder soberano, há
um Estado (BOBBIO, 1976, p.95).
Nas palavras de Jean Bodin, em sua obra Les Six Livres de la République, de 1576, já
era possível se verificar a presença da concepção de soberania como poder não só incontrastável,
mas também absoluto, verbis: “Dado que, después de Dios, nada hay de mayor sobre la tierra

159
Para Fredie Didier, tais expressões são sinônimas: “A essa fase deu-se o nome de Neoconstitucionalismo ou pós-
positivismo”. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2009. (v. 1: Teoria
geral do processo e processo de conhecimento). p. 25.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

que los príncipes soberanos, instituídos por Él como sus lugartenientes para mandar a los demás
hombres” (BODIN, 1997, p.72). Em outras palavras, depois de Deus, não haveria nada mais
importante do que a autoridade soberana, com a sua aptidão divina para dar ordens aos demais
homens. Como bem sintetiza Bobbio, para Bodin, soberania é, portanto, o poder absoluto e
perpétuo que é próprio do Estado (BOBBIO, 1976, p.96).
78

Es necesario que quienes son soberanos no estén de ningún modo sometidos al imperio
de otro y puedan dar ley a los súbditos y anular o enmendar las leyes inútiles; esto no
puede ser hecho por quien está sujeto a las leyes o a otra persona. Por esto, se disse
que el príncipe está exento de la autoridad de las leyes. El próprio término latino ley
implica el mandato de quien tiene la soberania (BODIN, 1997, p.52-53).

Outra relevante contribuição ao tema é a obra Leviatã, de Thomas Hobbes (2003).


Originariamente, Leviatã é um monstro bíblico, presente no livro de Jó160. Contudo, na obra de
Hobbes, Leviatã representa a figura do Estado. Nessa obra, Hobbes defende o Estado
Absolutista, em que as leis da natureza seriam imutáveis e eternas, diferentemente das leis civis.
Sendo assim, para Hobbes os soberanos estariam sujeitos às leis da natureza, na medida em que
tais leis são divinas e não podem ser revogadas por nenhum outro homem ou República,

Mas o soberano não está sujeito àquelas leis que ele próprio criou, ou melhor, que a
República fez. Pois estar sujeito a leis é estar sujeito à República, isto é, ao soberano
representante, ou seja, a si próprio, o que não é sujeição, mas liberdade em relação às
leis. Este erro, que coloca as leis acima do soberano, coloca também um juiz acima dele,
com o poder para castigá-lo, o que é fazer um novo soberano e também pela mesma
razão um terceiro para castigar o segundo, e assim sucessivamente, para confusão e
dissolução da República (HOBBES, 2003, p.275).

De fato, bastante difundida na concepção clássica de soberania é a de “Poder


juridicamente incontrastável”, com autonomia para definir o conteúdo e a aplicação de suas
normas, impondo-se coercitivamente o seu cumprimento no plano interno, assim como opor-se
a eventuais inferências externas (BOLZAN DE MORAIS, 2011, p.18-19).
Entretanto, hodiernamente, outra afirmação doutrinária também bastante recorrente – e
que exige cautela – é a de que, no momento atual de vida em sociedade, a crise enfrentada pelo
Estado representa a desfragmentação do Poder Público no plano interno e a perda da soberania
no plano internacional (CASSESE, 2010, p.14). Assim, a crise de unidade e a perda da soberania

160
“Que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, os entendidos em conjurar Leviatã!” (Jó 3.8) e “Poderás pescar
o Leviatã com anzol e atar-lhe a língua com uma corda? Serás capaz de passar-lhe um junco pelas narinas, ou
perfurar-lhe as mandíbulas com um gancho? [...] A tua esperança seria ilusória, pois somente vê-lo atemoriza.
Não se torna cruel quando é provocado? Quem lhe resistirá a frente? Quem ousou desafiá-lo e ficou ileso?
Ninguém debaixo do céu.” (Jó 40 25, 25 e Jó 41. 1 – 3).
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

convergiriam para um resultado em especial, qual seja, a constituição de ordens supranacionais,


organizadas em rede, em vez de estruturaras hierarquizadas (CHEVALLIER, 2010, p.31).
Na lição de Chevallier (2010, p.32), ratificada por Cassese, após a segunda grande
guerra e em especial após a década de 1990, o processo de globalização traduziu uma aceleração
da internacionalização. As fronteiras que delimitavam os Estados, por sua vez, físicas ou
79
simbólicas, tornaram-se porosas e, além disso, nesse período, verificou-se um concreto
desenvolvimento das trocas internacionais e das empresas multinacionais.
Em outras palavras, dentre as principais modificações no panorama do Estado apontadas
pela doutrina, está a da desconstrução da tradicional concepção de soberania e das fronteiras físicas
(ou relativação, se preferir), como se houvesse uma tendência à decadência da própria ideia de
soberania. Entretanto, dada a seriedade do tema, é preciso observar a questão com bastante cautela,
posto que uma compreensão equivocada pode ensejar gravíssimas consequências.
No Brasil, a Soberania é um dos fundamentos do Estado brasileiro, nos termos do art.
1º, I, da Constituição Federal de 1988, o que significa dizer que “Dentro do nosso território não
se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo
qualquer agente estranho à nação intervir nos seus negócios” (BASTOS, 1999, p.172).
Contudo, como bem adverte Celso Ribeiro Bastos, o princípio da soberania tem sido
fortemente atacado pelo avanço da ordem jurídica internacional (1999, p.173), na medida em que,
por exemplo, os acordos internacionais pactuados entre a República Federativa do Brasil e o Fundo
Monetário Internacional impõem medidas muitas vezes contrárias ao interesse público do povo
brasileiro.
No pensamento jurídico e político tradicional, soberana é a pessoa ou instituição que
exerce a autoridade final dentro de um determinado território e sobre uma comunidade política
específica. No plano interno, soberania relaciona-se à existência de autoridade com poder
supremo (summa potestas) na estrutura da comunidade161. Por outro giro, no plano externo,
relacionado às relações entre diferentes comunidades políticas, soberania denota a inexistência
de hierarquia, ou seja, não poderá existir autoridade com pretensão de supremacia
(ARGUELHES, 2006, p.763).
Entretanto, como bem rememora Darcy Azambuja (2008, p.50), embora sejam dois os
planos de possíveis análises da soberania, ela é una e, sob o prisma jurídico, representa um poder
independente em relação aos demais Estados e supremo dentro do próprio Estado.

161
Em se tratando de Estados democráticos de Direito, importante é, contudo, que não se conclua que o poder
supremo possa conduzir ao pleno arbítrio e à tirania do governante, figuras estas permanentemente combatidas
pelo espírito democrático.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Na visão de Francis Harry Hinsley (1986, p.1), a soberania não é um fato, mas sim um
conceito. Nesse sentido, os homens não se submeteriam à soberania, mas à autoridade e ao poder
– que são elementos anteriores à própria ideia de soberania. Assim, por conseguinte, a finalidade
da Soberania, segundo o autor, seria a de articular poder e autoridade, fornecendo-lhes suporte
e justificação, mas também, por outro lado, estabelecendo condições e limites ao seu exercício.
80
Cumpre trazer a lição de Marcono e Souza, sobre as teses sobre a origem da soberania.
Segundo o autor, todas as teorias teológicas partem da afirmação da soberania absoluta de Deus,
enquanto única fonte de onde emana todo o poder (1910, p.9). Nesse sentido, a Igreja, fundada por
Deus, revelar-se-ia como sociedade externa e visível, figurando, portanto, como um Estado único
e universal para toda a humanidade. Logo, o chefe da igreja possuiria supremo poder espiritual
sobre toda a terra (MARCONO E SOUZA, 1910, p.11).

As principais críticas às correntes teológicas, segundo o autor, residem em atribuírem à


soberania uma origem sobrenatural, e, consequentemente, em contradição com os ditames
científicos: “O Estado não é uma instituição religiosa, mas uma organização política, e por isso
a soberania nunca pode ser uma emanação da divindade, mas um phenomeno natural próprio da
vida das sociedades” (MARCONO E SOUZA, 1910, p.14).
Outra teoria apresentada pelo autor é a da soberania popular, a qual considera metafísica
e cuja origem remonta à antiguidade clássica.
Em sede da teoria da soberania popular, importante destacar a realidade das cidades
italianas à época e sua luta contra o direito imperial, os barões, o Papa e os bispos, que
terminaram por preparar o meio social para a afirmação da doutrina da soberania popular. Da
mesma forma, não se pode olvidar das contribuições dos teóricos do contrato social, cujo maior
expoente fora Rousseau, e que vieram a dar novos contornos a essa teoria. Nesse sentido,
Rousseau negava, de forma absoluta, a legitimidade de todo o poder soberano que não seja o
da multidão ou, em suas palavras, a “vontade geral” (MARCONO E SOUZA, 1910, p.16-17).
Em outras palavras, é possível compreender que a teoria do contrato social representa, por
um lado, uma oposição à autotutela162, e por outro, uma investida contra a dominação do mais forte:

162
Segundo lição de Fredie Didier Jr. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus
Podivm, 2009. (v. 1: Teoria geral do processo e processo de conhecimento), autotutela é modalidade de solução
de conflito de interesses que se dá mediante a imposição da vontade de um deles, com o sacrifício do interesse do
outro. Nesse sentido, a solução acontece mediante imposição egoística, em que “o juiz da causa” é uma das partes.
Por evidente, trata-se de modalidade de solução que, via de regra, é vedada nos ordenamentos jurídicos civilizados.
No Direito brasileiro, por exemplo, é conduta tipificada como crime: se praticado por particular, representa o tipo
de exercício arbitrário das próprias razões (art. 354, do Código Penal), contudo, se praticado pelo Estado, o tipo
será o de exercício arbitrário ou abuso de poder (art. 350, do Código Penal). Entretanto, no ordenamento jurídico
brasileiro, existem hipóteses excepcionais em que se admite a autotutela, tais como: legítima defesa, direito de
greve, direi to de retenção, estado de necessidade, dentre outras.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

O mais forte nunca é bastante forte para ser sempre senhor, se não transformar sua força
em direito e a obediência em dever. Daí o direito do mais forte, direito tomado
aparentemente com ironia e na realidade estabelecido como princípio. Mas será que um
dia nos explicarão essa palavra? A força é um poder físico; não vejo que moralidade
pode resultar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, e não de vontade;
é, quando muito, um ato de prudência [...]. Convenhamos, pois, que a força não faz o
direito, e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos (ROUSSEAU, 1996, 81
p.12-13).

De forma sintética, os princípios fundamentais da teoria da soberania popular traduzem-


se nas seguintes máximas: i. a soberania reside essencialmente no indivíduo, não sendo a soberania
social outra senão a resultante da soma dos poderes individuais; ii. Os indivíduos são igualmente
soberanos; iii. Quando os indivíduos se reúnem, mediante contrato social, renunciam a sua
liberdade e soberania em prol da construção de um poder coletivo; iv. A soberania é, em última
instância, a vontade popular, entendida como a expressão da maioria dos cidadãos (MARCONO E
SOUZA, 1910, p.17).
A título de crítica à teoria da soberania popular, sobretudo com lastro nas contribuições
de Rousseau, Marcono e Souza (1910, p.22) afirma que não se deve levar em consideração
teorias metafísicas, que não possuem possibilidade empírica de verificação. Nesse sentido,
acrescenta que a teoria do Contrato Social de Rousseau não apresenta exemplo concreto de
formação de um Estado em virtude de um contrato entre indivíduos, sendo, portanto, uma
proposição teórica vã.
Outras teorias enumeradas por Marcono e Souza são as que compõem um grupo que o
autor denomina de teorias positivas, abrangido pela teoria da soberania da utilidade social, da
soberania do Estado, da soberania da nação e da soberania da sociedade.
A teoria da soberania da utilidade social considera que, para o Governo, o interesse
que deve prevalecer é sempre o da maioria (MARCONO E SOUZA, 1910, p.23). Ao que registra
Marcono e Souza à época da obra em voga (1910), já era evidente que a maior parte da doutrina
rechaçava a teoria da soberania da utilidade social, já que o direito não advém do utilitarismo
social, como queria Herbert Spencer.163
A teoria da soberania do Estado, amplamente difundida na Alemanha, tem como
dogma que o Estado tem natureza essencialmente jurídica, em virtude da supremacia do direito
que nele se personifica. Por essa razão, não pode deixar de ser considerado como o verdadeiro
possuidor da soberania. Assim, a soberania não seria anterior ao Estado e nem estaria fora ou

163
Spencer, que viveu no século entre 1820 e 1903, é um profundo admirador da obra evolucionista de Charles
Darwin, sendo considerado o pai do “Darwinismo social”.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

acima dele: seria simplesmente o poder de “majestade” do próprio Estado, manifestando-se no


plano externo como existência própria e independente de um Estado perante o outro e,
interiormente, como um Legislativo organizado (MARCONO E SOUZA, 1910, p.26).
Os adeptos dessa teoria defendem que a soberania é característica essencial do Estado,
portanto, onde não há soberania, não se pode falar na existência de um Estado. A crítica a essa
82
teoria reside no fato de que, embora seja um notável avanço perante as construções anteriores,
não seria possível reconhecer no Estado o fundamento da soberania.
A teoria da soberania da nação, por sua vez, contrapõe-se à supracitada teoria da
soberania do Estado, ao aduzir que a soberania não pertence nem ao povo, como pretende a
escola radical francesa, nem ao Estado, como pugna a escola alemã, mas a um agregado social
denominado “nação” (MARCONO E SOUZA, 1910, p.28). Entretanto, segundo Marcono e
Souza (1910, p.30), os defensores dessa teoria não conseguiram encontrar um consenso mínimo
e sólido acerca da natureza de nação, ora confundindo-a com o Estado, ora com povo, o que
implica a inviabilidade de sua aceitação.
Por fim, a teoria da soberania da sociedade tem como pilar a ideia de que os indivíduos
não apresentam equivalência real entre si, ou seja, segundo os adeptos dessa teoria, os indivíduos
não podem se coligar e cooperar senão através de subordinação de uns aos outros, de modo a
originar uma formação hierárquica. Nesse sentido, a soberania seria uma tendência para a
disposição hierárquica, manifestada ou em via de se manifestar na convivência ou, ainda, a
necessidade que tem toda a sociedade de organizar a sua forma em harmonia com o princípio de
autoridade (MARCONO E SOUZA, 1910, p.31-32).
A crítica a essa teoria reside no fato de que a sociedade, por si só, não tem valor político,
ou seja, somente a sociedade que tem os caracteres de nação teria o direito de se constituir e
organizar politicamente. Portanto, não seria possível atribuir à soberania um caráter social,
quando, em verdade, esta possui caráter essencialmente político.
Diante de todo o exposto, indaga-se: seria o conceito de soberania apenas um artefato
histórico, inútil para compreender os Estados contemporâneos? Estaria a concepção tradicional
de soberania fadada ao desaparecimento, como quer parcela da doutrina?
Como bem aponta Milton Santos, a maneira com que:

A globalização afeta a soberania das nações, as fronteiras dos países e a governabilidade


plena é uma questão que, volta e meia, ocupa os espíritos, seja teoricamente, seja em
função de fatos concretos. Nesse terreno, como em muitos outros, a produção de meias-
verdades é infinita e somos frequentemente convocados a repeti-las sem maior análise
do problema. Há, mesmo, quem se arrisque a falar de desterritorialidade, fim das
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

fronteiras, morte do Estado. Há os otimistas e pessimistas, os defensores e os acusadores


(SANTOS, 2001, p.76).

Há quem afirme, nesse sentido, que no plano interno, o Estado parece já não ser mais
capaz de assegurar a unidade de sociedades complexas e fragmentadas, tornando-se apenas mais
um ator, tal como com empresas, organizações da sociedade civil, veículos de comunicação e 83

outros, dentro do processo decisório de uma comunidade. Todavia, afirma-se que, externamente,
embora não exista uma autoridade última no âmbito internacional, supostamente, processos
como os de integração e o de formação de blocos regionais estariam dificultando a aplicação do
conceito tradicional de soberania (ARGUELHES, 2006, p.766-767), que estaria, portanto,
relativizado:

À pergunta de que o termo ‘soberania’ ainda é útil para qualificar o poder ilimitado do
Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Está caduco o conceito se por ele
entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição.
Será termo atual se com ele estivermos significando uma qualidade ou atributo da
ordem jurídica estatal. Neste sentido, ela – a ordem interna – ainda é soberana, porque,
embora exercida com limitações, não foi igualada por nenhuma ordem de direito interna,
nem superada por nenhuma outra externa (BASTOS, 1995, p.27).

De fato, é preciso estar sempre atento para as transformações do mundo e dos Estados.
Como bem aponta Silva Neto (2013, p.310), é importante ter em conta que a concepção de
Estado não é estática. Pelo contrário, Estado é processo, e como tal, deve renovar-se
indefinidamente, na medida em que “A transformação é característica atávica do ser humano,
que, por sua vez, termina conformando os caracteres da sociedade política à sua imagem e
semelhança” (SILVA NETO, 2013, p.310).
Importante salientar também a acertada lição de Manoel Jorge e Silva Neto quando trata
de soberania enquanto objeto cultural, na medida em que esta se molda às necessidades
humanas:

[...] disto deflui que a constatação segundo a qual é o espírito humano o promotor da
atualização do conceito de soberania, porque, malgrado continue sendo elemento
constitutivo do Estado, não o é mais daquela forma de Estado absolutista monárquico cujo
exercício do poder político ocorria sem peias e ensejou a concepção de soberania infrene,
conforme idealizado por Jean Bodin (SILVA NETO, 2013, p.310).

Entretanto, atualizar o conceito de soberania é completamente diferente de relativizar a


soberania propriamente dita. Como bem adverte Silva Neto (SILVA NETO, 2013, p.310), na
realidade dos Estados atuais, não é mais possível o fechamento absoluto em si mesmo, ao revés, é
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

necessário que os Estados recorram, cada vez mais, a tratados e convenções internacionais, até mesmo para
solucionar problemas domésticos. E sendo assim, uma vez que a subscrição a tratados e convenções é ato
voluntário, a presença do Estado, por si só, já demonstra o exercício da soberania.
Por essa mesma razão, merece acolhida a lição de Milton Santos, quando advoga que
no Brasil dos dias atuais, o que se tem, em verdade, é um território nacional da economia
internacional, ou seja, “O território continua existindo, as normas públicas que o regem são de 84

alçada nacional, ainda que as forças mais ativas de seu dinamismo atual tenham origem externa”
(SANTOS, 2001, p.76-77), ou seja, em que pese ter aumentado a contradição entre o externo e
o interno, “Todavia, é o Estado nacional, em última análise, que detém o monopólio das normas,
sem as quais os poderosos fatores externos perdem eficácia” (SANTOS, 2001, p.76-77).
Em suma, tal como asseverado acima, a tradicional concepção de noção de soberania
precisa ser atualizada, contudo é equivocado concluir que fatores como a economia ou política
internacional sejam suficientes, por si só, para ditar as formas de vida ou diretrizes políticas e
econômicas de dado Estado.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo científico teve por objetivo apresentar, de forma didática, os principais
debates da atualidade sobre globalização, soberania e pós-modernidade, obviamente, sem o
objetivo de esgotar estes temas.
Tratou-se, portanto, de uma tentativa de realimentar a discussão que, longe de terminar,
se renova e fortalece com a evolução tecnológica e das comunicações, sendo imperativo, portanto,
resgatar e refletir acerca das controvérsias apresentadas.

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UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

A ORDEM ECONÔMICA NA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

RICARDO MAURÍCIO FREIRE SOARES


Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós- 88
Doutor pela Università degli Studi di Roma. Professor dos cursos de
graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal da
Bahia. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto
dos Advogados da Bahia.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA, LIBERALISMO E


INTERVENCIONISMO ESTATAL. 2. OS CONTORNOS DA ORDEM ECONÔMICA NA
CONSTITUIÇÃO DE 1988. 3. 1CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

A proposta do presente artigo científico consiste em desenvolver um exame crítico do tratamento


oferecido pela Constituição brasileira de 1988 à ordem econômica, evidenciando, assim, os elementos
mais relevantes da evolução recente do constitucionalismo econômico pátrio.

Para tanto, sem pretensão de esgotar o tema, o trabalho buscará abordar os seguintes aspectos: a
relação entre o constitucionalismo econômico, liberalismo e intervencionismo estatal; os caracteres
fundamentais da ordem econômica na Constituição de 1988; e a exposição das necessárias notas
conclusivas.

1. CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA, LIBERALISMO E INTERVENCIONISMO ESTATAL

Durante os séculos XVIII e XIX, o constitucionalismo ocidental se desenvolveu na esteira das


revoluções liberais e individualistas que marcaram a ascensão política da burguesia. O ideário liberal
propugnava um modelo de Estado-mínimo, que não promovesse ingerências no livre jogo das forças
do mercado, as quais, supostamente, através das condutas particulares dos agentes econômicos,
garantiriam a distribuição equânime das riquezas na sociedade.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Nesse contexto, foram as Constituições entendidas como diplomas legislativos fundamentais, que se
limitariam a descrever a estrutura do Estado e assegurar os direitos individuais dos cidadãos (vida,
liberdade, igualdade, propriedade, segurança), sem prescrever normas que pudessem embaraçar a
dinâmica natural do sistema econômico.

89
Não é outro o entendimento de J.J. Gomes Canotilho (2003, p.110), para quem o pensamento liberal
considerou como princípio fundamental da constituição econômica, implícita nos textos
constitucionais liberais, o princípio de que, na dúvida, se devia optar pelo mínimo de restrições aos
direitos fundamentais economicamente relevantes, tais como a propriedade, a liberdade de profissão,
indústria ou comércio.

O liberalismo baseava-se, portanto, na livre circulação da riqueza, figurando o contrato como o


instrumento jurídico capaz de viabilizar as transações econômicas, alimentando a crença de que os
acordos contratuais permitiriam o equilíbrio harmônico dos interesses, sem a necessidade de que o
Estado interviesse no mercado, espaço cativo das operações privadas.

No início do século XX, com o agravamento dos problemas sociais gerados pelo sistema capitalista,
emergiu uma vigorosa reação aos postulados liberais, culminando com a constatação de que previsão
abstrata da liberdade econômica e da isonomia formal poderiam ocultar profundas injustiças.

Decerto, a igualdade consagrada nas Constituições modernas pecava pela total discrepância com a
realidade social, marcada pela concentração do capital e pela assimetria nas relações entre os
proprietários dos meios de produção e trabalhadores, bem como nas operações econômicas entre
fornecedores e consumidores.

Diante dessa situação de flagrante desequilíbrio entre os agentes econômicos do mercado capitalista,
tornou-se necessária a pronta ingerência do chamado Estado Social (Welfare State), a fim de
relativizar os dogmas liberais da autonomia volitiva, da obrigatoriedade do contrato e da igualdade
formal dos agentes econômicos, tendo em vista a realização da justiça social.

Como salienta Norberto Bobbio (1998, p. 403), a crise do liberalismo gerou o nascimento do Estado
interventivo, cada vez mais envolvido no financiamento e na administração de programas de seguro
social, pelo que as primeiras formas de Welfare State visavam a contrapor-se ao socialismo real,
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

dando origem a formas singulares de política econômica que modificaram a fisionomia capitalista do
Estado contemporâneo.

O fortalecimento do movimento operário, a formação dos primeiros sindicatos e a crise estrutural do


sistema financeiro capitalista impulsionaram a progressiva substituição do Estado-mínimo de índole
90
liberal-burguesa por um verdadeiro Estado-intervencionista, que passou planificar o espaço de
produção e distribuição de riquezas, corrigindo os abusos do poder econômico e, ao mesmo tempo,
protegendo os cidadãos mais desfavorecidos.

Com a transição histórica do Estado-liberal para Estado-intervencionista, passaram a ser


desenvolvidas políticas públicas de concretização da isonomia material, mediante o implemento de
prestações capazes de socializar os institutos do contrato e da propriedade privada, além de realizar
os direitos econômicos dos cidadãos (trabalho, educação, saúde, moradia, previdência, assistência
social).

Seguindo o magistério autorizado de Orlando Gomes (1986, p. 16), pode-se dizer que, ao longo do
processo de consolidação dessas transformações do capitalismo, legitimou-se a intervenção do Estado
na vida econômica como forma de limitar a propriedade privada e a liberdade de contratar, realizando-
se, assim, a nova idéia de uma função social do Direito.

Em face dessas vertiginosas transformações, o constitucionalismo ocidental passou a ser reformulado,


contemplando, gradativamente, normas capazes de regular o novo fenômeno do intervencionismo
estatal no mercado capitalista. Isso ocorreu através da previsão, no texto das Constituições, de um
conjunto de regras e princípios jurídicos voltado para a disciplina das relações entre Estado e agentes
econômicos: a denominada “ordem constitucional econômica”.

Como pontifica Gilmar Ferreira Mendes (2008, p. 1354), a regulação constitucional da atividade
econômica é um acontecimento histórico relativamente recente, associado que está à passagem do
Estado Liberal ao Estado Social, com o fenômeno da socialização do sistema capitalista de produção,
nos albores do século vinte, marcando a transição do liberalismo ao intervencionismo estatal.

Nesse sentido, a Constituição mexicana de 1917 e, sobretudo, da Constituição germânica de Weimar,


datada de 1919, tornaram-se os marcos desse novo constitucionalismo econômico, ao prescrever a
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

intervenção do Estado na estrutura econômica capitalista, em nome da concretização de uma vida


social potencialmente mais justa.

Conforme salienta Walber de Moura Agra (2006, p. 621), o motivo de se regular a ordem
constitucional econômica não é apenas tentar incluir a maioria da população nos benefícios
91
provenientes do desenvolvimento econômico, mas, ao mesmo tempo, por intermédio da ação estatal,
organizar as atividades produtivas para que elas possam ser mais eficientes, inibindo as crises que
constantemente eclodem no sistema capitalista.

No âmbito do sistema jurídico brasileiro, coube, originariamente, à Carta Magna de 1934 a previsão
de uma ordem constitucional econômica, inaugurando, assim, uma rica tradição do
constitucionalismo pátrio, que se revelou presente em todas as Constituições posteriores, como na
vigente Carta Constitucional de 1988.

2. OS CONTORNOS DA ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Com o advento da Constituição brasileira de 1988, símbolo do processo de redemocratização político-


social brasileira, a ordem econômica passou a merecer um novo tratamento, mais consentâneo com a
reafirmação dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Como bem refere José Afonso da Silva (1995, p. 720), as normas integrantes da ordem constitucional
econômica adquiriram grande importância, buscando atribuir fins ao Estado, esvaziado pelo
liberalismo econômico. Essa característica teleológica conferiu-lhes relevância e função de princípios
gerais de toda a ordem jurídica, tendente a instaurar um regime de democracia substancial, ao
determinarem a realização de fins sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem
econômica, com vistas à realização da justiça social.

Não obstante a Constituição-cidadã tenha mantido as bases de um Estado intervencionista no campo


econômico-social, a inspiração autocrática da ideologia da segurança nacional restou superada, sendo
substituída pelo modelo de um constitucionalismo econômico democrático, voltado para a realização
inequívoca da justiça social.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Segundo as lições de Uadi Bulos (2007, p.1237), o Legislador Constituinte de 1988 optou por um
ordenamento econômico composto, visto que a ordem econômica na Carta de 1988 está
impregnada de princípios e soluções contraditórias, ora abrindo brechas para a hegemonia de um
capitalismo neoliberal, ora enfatizando o intervencionismo sistemático, aliado ao dirigismo
planificador, ressaltando até elementos socializantes.
92

Certamente, o papel do Estado brasileiro na ordem econômica da Carta Magna vigente não pode ser
compreendido sem a interpretação lógico-sistemática de outros relevantes comandos constitucionais,
tais como o art. 1º, que estabelece constituir-se a República Federativa do Brasil em Estado
Democrático de Direito, tendo, como fundamentos, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como o art. 3º, que arrola, dentre os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e a marginalização, bem
como a redução das desigualdades sociais e regionais.

De todos esses princípios fundamentais, sobreleva a dignidade da pessoa humana, pois, como ressalta
André Ramos Tavares (2003, p. 138), a ordem econômica pode ser vislumbrada como a projeção
dessa relevante norma constitucional, já que a dignidade da pessoa humana ou a existência digna tem,
por óbvio, implicações econômicas, pelo que a liberdade e a igualdade caminham com a dignidade,
resguardando-se a todos agentes sociais as condições materiais mínimas de subsistência.

Embasado nessa principiologia de índole democrática, marcada pela primazia da dignidade da pessoa
humana, previu o Legislador Constituinte de 1988, no Título VII, arts. 170 a 192, a ordem econômica
e financeira, disciplinando os princípios gerais da atividade econômica, a política urbana, a política
agrícola, fundiária e a reforma agrária, bem como as normas que regem o sistema financeiro nacional.

Decerto, no art. 170, a Constituição Federal de 1988 enuncia que a ordem econômica é fundada na
valorização do trabalho humano e na iniciativa privada, tendo por escopo assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social. Verifica-se, nesse relevante dispositivo, a
constitucionalização de um rol mais extenso de princípios da ordem econômica, tais como: a
valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, a liberdade de exercício da atividade econômica,
a soberania nacional econômica, a propriedade privada, a função social da propriedade, a livre
concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno
porte.

Conforme o magistério de Dirley da Cunha Jr. (2008, p. 1047), pode-se dizer que, malgrado tenha a
Constituição de 1988 consagrado uma economia de livre mercado, de natureza capitalista, porque
93
instrumentalizou uma ordem econômica apoiada na apropriação privada dos meios de produção e na
livre iniciativa econômica privada, instituiu ela numerosos princípios para limitar e condicionar o
processo econômico, no intuito de direcioná-lo a proporcionar o bem-estar social ou melhoria da
qualidade de vida.

Sendo assim, como inovações da Constituição Federal de 1988 no campo da principiologia da ordem
constitucional econômica, merecem destaque, pela estreita conexão com a tutela da dignidade da
pessoa humana, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades
regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno
porte, princípios esses que não foram mencionados expressamente na Constituição brasileira de 1946.

Ao examinar o art. 170 da Carta Magna, sustenta Eros Grau (2003, p. 218) que o referido
dispositivo oferece uma proposta principiológica de conciliação dialética entre diversos elementos
sócio-ideológicos, ora sinalizando para o capitalismo e a configuração de um Estado liberal, ora
apontando uma opção pelo socialismo e pela organização de um Estado intervencionista, a revelar
um compromisso entre as forças políticas liberais e as reivindicações populares de justiça social no
mercado capitalista.

De outro lado, no art. 172, a Carta Magna de 1988 estabelece que a lei disciplinará, com base no
interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará
a remessa de lucros, assim como, no art. 173, ressalva-se que a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional
ou a relevante interesse coletivo, não podendo as empresas públicas e as sociedades de economia
mista gozarem de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado, prevendo-se ainda que a lei
reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da
concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Outrossim, merece registro o art. 174 da Constituição-cidadã, ao preceituar que o Estado, como
agente normativo e regulador da atividade econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para
o setor privado, tendo em vista o desenvolvimento nacional equilibrado, o cooperativismo e outras
formas de associativismo.
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Como bem salienta Alexandre de Moraes (2008, p. 798), apesar de o texto constitucional de 1988
ter consagrado uma economia descentralizada de mercado, autorizou o Estado a intervir no
domínio econômico como agente normativo e regulador, com a finalidade de exercer as funções
de fiscalização, incentivo e planejamento indicativo ao setor privado, sempre com observância aos
princípios constitucionais da ordem econômica.

No art. 175, a Carta Magna disciplina a relação econômica entre Estado e particulares, quando
estabelece que incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos, cabendo à lei dispor sobre
o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de
seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da
concessão ou permissão, os direitos dos usuários, a política tarifária e a obrigação de manter serviço
adequado.

No que concerne a monopólios do Estado Brasileiro, prescreve o art. 176 que as jazidas, em lavra ou
não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta
da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao
concessionário a propriedade do produto da lavra, assim como o art. 177 preceitua que constituem
propriedade da União: a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros
hidrocarbonetos fluidos; a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; a importação e exportação
dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; o
transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo
produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados
e gás natural de qualquer origem; a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos
radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de
permissão.
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

Outras inovações relevantes da Constituição brasileira em 1988 em matéria de ordem econômica


estão presentes no art. 179, ao estabelecer que os entes federativos devem dispensar às microempresas
e às empresas de pequeno porte, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela
simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela
eliminação ou redução destas por meio de lei, assim como no art. 180, ao prescrever que União,
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Estados, Distrito Federal e Municípios devem promover e incentivar o turismo como fator de
desenvolvimento social e econômico.

No tocante à política urbana, merecem registro tanto o art. 182, ao estabelecer que a política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas
em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem- estar de seus habitantes, quanto o art. 183, ao prever o usucapião urbano para aquele que possuir
como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Em relação à política agrícola, fundiária e reforma agrária, a ordem econômica da Constituição


brasileira de 1988 intensificou a socialização da propriedade, devendo ser destacados os seguintes
dispositivos:

- o art. 184, ao estabelecer que compete à União desapropriar por interesse


social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo
sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida
agrária;

- o art. 186, ao prever que a função social é cumprida quando a propriedade


rural atende, simultaneamente, aos requisitos de aproveitamento racional e
adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as
relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários
e dos trabalhadores;
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

- o art. 187, ao preceituar que a política agrícola será planejada e executada


na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo
produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização,
de armazenamento e de transportes;
- o art. 188, ao prever que a destinação de terras públicas e devolutas será
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compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma
agrária;

- o art. 189, ao estabelecer que os beneficiários da distribuição de imóveis


rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de
uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos;

- o art. 191, ao contemplar que aquele que, não sendo proprietário de imóvel
rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição,
área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a
produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-
lhe-á a propriedade, sendo vedado, contudo, o usucapião de imóveis públicos.

Ademais, no que concerne ao sistema financeiro nacional, estabelece o art. 192 da Carta Magna atual
que o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado
do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as
cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a
participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.

De outro lado, o compromisso ético-social de um constitucionalismo econômico dirigente é que


também motivou o Poder Constituinte de 1988 a reservar uma posição de destaque aos direitos
sociais, antes mesmo de descrever a estrutura do Estado e a própria ordem econômica em sentido
estrito, prevendo-os logo no capítulo II, quando elenca, no art. 6o, os direitos sociais a educação, a
saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, assim como prevê um rol mais extenso de direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º), a liberdade de associação profissional ou sindical (art. 8º), a
amplitude para o exercício do direito de greve (art. 9º), a participação dos trabalhadores e
empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses sejam objeto de discussão
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

e deliberação (art. 10) e o direito de eleição, nas empresas de mais de duzentos empregados, de um
representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os
empregadores (art. 11).

Ademais, irmanada com os valores e finalidades da ordem econômica, ganhou a ordem social espaço
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mais dilatado e relativamente autônomo na Constituição Federal de 1988, nos arts. 193 a 232, que
tratam da seguridade social, da educação, da cultura, do desporto, da ciência e tecnologia, da
comunicação social, do meio ambiente, da família, da criança, do adolescente, do idoso e dos índios.
Dentre os referidos dispositivos, sobreleva, inegavelmente, o art. 193 da Carta Magna, ao preceituar
que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça
sociais.

Como bem salienta Pedro Lenza (2008, p. 709), o art. 193 da Carta Magna, ao estabelecer que a
ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivos o bem-estar e a justiça sociais,
revela perfeita harmonia com a ordem econômica, que também se funda, nos termos do art. 170, na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, afastando, assim, a idéia liberal clássica para consagrar uma perspectiva
de Estado Social de Direito e uma concepção humanizada do mercado capitalista.

Por derradeiro, cumpre salientar que a ordem econômica da Constituição brasileira de 1988 sofreu
algumas mudanças em seu espectro político-ideológico, após as sucessivas reformas constitucionais
ocorridas a partir da década de 90 (noventa). Em nome da implemento de um projeto neoliberal e da
correlata internacionalização da economia no mundo globalizado, o poder constituinte reformador
promoveu a minimização da ingerência do Estado no cenário econômico-social, a privatização de
diversos públicos e a abertura da economia nacional para investimentos do capital estrangeiro.

Nesse diapasão, valem ser mencionadas, cronologicamente, as seguintes alterações no texto


constitucional:

- a supressão do conceito nacionalista de empresa brasileira e a sua


substituição por empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua
sede e administração no País (Emenda Constitucional nº 6, de 1995);
UM GIGANTE DO DIREITO – homenagem do IDCB a Saul Quadros Filho

- a possibilidade, na ordenação do transporte aquático, do transporte de


mercadorias na cabotagem e a navegação interior serem feitas por
embarcações estrangeiras, devendo a lei dispor sobre a ordenação dos
transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do
transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido
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o princípio da reciprocidade. (Emenda Constitucional nº 7, de 1995);

- a relativização do monopólio da União sobre a exploração econômica de


jazidas de petróleo ou gás natural, permitindo-se União contratar com
empresas estatais ou privadas a realização dessas atividades (Emenda
Constitucional nº 9, de 1995);

- a mudança do regime jurídico da empresa pública, da sociedade de economia


mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção
ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, para maximização
da eficiência administrativa (Emenda Constitucional nº 19, de 1998);

- a mitigação do intervencionismo estatal no sistema financeiro nacional, com


a revogação da limitação anual de juros reais de doze por cento (Emenda
Constitucional nº 40, de 2003);

- a relativização do monopólio da União sobre a pesquisa, a lavra, o


enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de
minérios e minerais nucleares e seus derivados, com a exceção criada para os
radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser
autorizadas sob regime de permissão aos particulares (Emenda Constitucional
nº 49, de 2006).

Destarte, o Legislador Constituinte de 1988 optou por uma ordem econômica mais democrática e
comprometida com os direitos fundamentais da pessoa humana, suprimindo a orientação
autocrática da ideologia nacional e contemplando princípios jurídicos muitas vezes contraditórios,
ora abrindo brechas para a hegemonia de um capitalismo liberal, ora enfatizando o
intervencionismo estatal, aliado ao dirigismo planificador e socializante dos poderes públicos.
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3. CONCLUSÃO

Em face de tudo quanto foi exposto, pode-se sintetizar que:

- o ideário liberal defendia um modelo de Estado-mínimo, que não


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promovesse ingerências no livre jogo das forças do mercado, as quais,
supostamente, através das condutas particulares dos agentes econômicos,
garantiriam a distribuição equânime das riquezas na sociedade;

- as Constituições liberais foram entendidas como diplomas legislativos


fundamentais, que se limitariam a descrever a estrutura do Estado e assegurar
os direitos individuais dos cidadãos (vida, liberdade, igualdade, propriedade,
segurança), sem prescrever normas que pudessem embaraçar a dinâmica
natural do sistema econômico;

- a situação de flagrante desequilíbrio entre os agentes econômicos do


mercado capitalista tornou-se necessária a pronta ingerência do chamado
Estado Social, para relativizar os dogmas liberais da autonomia volitiva, da
obrigatoriedade do contrato e da igualdade formal dos agentes econômicos,
tendo em vista a realização da justiça social;

- o constitucionalismo do ocidente, em sua fase social, passou a ser


reformulado, contemplando, gradativamente, normas capazes de regular o
novo fenômeno do intervencionismo estatal no mercado capitalista, através
da previsão, no texto das Constituições, de um conjunto de regras e princípios
jurídicos voltado para a disciplina das relações entre Estado e agentes
econômicos, conformando a denominada ordem constitucional econômica;

- a Constituição mexicana de 1917 e, sobretudo, da Constituição germânica


de Weimar, datada de 1919, tornaram-se os símbolos desse novo
constitucionalismo econômico, ao prescrever a intervenção do Estado na
estrutura econômica capitalista, em nome da concretização de uma vida social
potencialmente mais justa, processo esse que se iniciou no Brasil com a Carta
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Magna de 1934 para alcançar a Carta Constitucional de 1988;

- a hipertrofia do Estado brasileiro, no contexto ideológico da polarização


entre o capitalismo e o socialismo, justificou-se pela preservação do valor
supremo da segurança nacional, guindado à condição de princípio norteador
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da interpretação e aplicação da Carta Constitucional de 1967, em face da
suposta ameaça de uma revolução socialista, que pudesse coletivizar os
meios-de-produção e implementar um governo socialista;

- o Legislador Constituinte de 1967 estabeleceu uma ordem econômica e


social marcada pelo paradigma de um Estado intervencionista, nacionalista e
centralizador, incumbido de planejar o desenvolvimento controlado das
forças produtivas do sistema capitalista, a fim de mitigar o acirramento da
luta entre classes sociais e manter um regime político de natureza autocrática;

- a Constituição pátria de 1988, símbolo do processo de redemocratização


político-social brasileira, previu uma ordem constitucional econômica mais
consentânea com a reafirmação dos direitos fundamentais dos cidadãos;

- a Constituição-cidadã manteve as bases de um Estado intervencionista no


campo econômico-social, superando, todavia, a inspiração autocrática da
ideologia da segurança nacional em favor de um modelo de um
constitucionalismo econômico democrático, voltado para a realização da
justiça social;

- o Legislador Constituinte de 1988 optou por uma ordem econômica mais


democrática e comprometida com os direitos fundamentais da pessoa
humana, suprimindo a orientação autocrática da ideologia nacional e
contemplando princípios jurídicos muitas vezes contraditórios, ora abrindo
espaço para a hegemonia de um capitalismo liberal, ora enfatizando a
projeção de um intervencionismo estatal.
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REFERÊNCIAS

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