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POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO

Brasil – Portugal
Copyright © 2017 dos autores

COORDENAÇÃO EDITORIAL: Valentim Facioli


CAPA E PROJETO GRÁFICO DO MIOLO: Antônio do Amaral Rocha
REVISÃO: Thiago Valentim Janeiro
COMERCIAL: Margarida Cougo

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

P798

Poesia contemporânea e tradição: Brasil – Portugal / organização Solange Fiuza , Ida Alves.
– 1. ed. – São Paulo: Nankin, 2017.
280 p.; 23 cm.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7751-115-0

1. Poesia brasileira. 2. Poesia portuguesa. 3. Ensaio brasileiro. 4. Ensaio português.


I. Fiuza, Solange. II. Alves, Ida.

17-40318 CDD: 869.4


CDU: 821.134.3(81)-4

13/03/2017

Direitos reservados a:

Nankin Editorial
Rua Tabatinguera, 140, 8 o andar, conj. 803
Centro – 01020-000 – São Paulo – SP – Brasil
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nankin@nankin.com.br

2017
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Solange Fiuza
Ida Alves
(Organizadoras)

POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO


Brasil – Portugal
SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................... 7
SOLANGE FIUZA E IDA ALVES (ORGANIZADORAS)

A “poesia pura” como paradigma de tradição poética ...................... 15


MARCOS SISCAR

A crise em crise ..................................................................................... 37


PAULO FRANCHETTI

O evangelho segundo Ruy Cinatti: bendita tradição maldita ............ 51


JOANA MATOS FRIAS

Ao diabo com Herberto ......................................................................... 79


LUIS MAFFEI

O espaço da cidade de São Paulo na poesia de Donizete Galvão ... 95


ALEXANDRE BONAFIM

Orfeu mestiço e sua gravata colorida (Outros fios da trama poética


de Adriano Espínola) ....................................................................... 111
ANTÔNIO DONIZETI PIRES

Utopia e História: Os Lusíadas (Camões) e Uma viagem à Índia


(Gonçalo Tavares) ............................................................................ 127
HELENA CARVALHÃO BUESCU
Latinomérica: subalternidade e História ........................................... 141
ALBERTINA VICENTINI, CÉLIA SEBASTIANA SILVA e HELEN SUELY SILVA AMORIM

Dois urubus, de Heleno Godoy: tradição do romance em verso e


outras tradições .............................................................................. 161
CLAUDINE FALEIRO GILL

Entre a realidade e a realidade (Cesário Verde, José Miguel Silva,


Manuel de Freitas) .......................................................................... 175
ROSA MARIA MARTELO

Álvaro de Campos fala aos contemporâneos, aos nossos .............. 191


IDA ALVES

A tradição visível: poesia e citação.................................................... 203


WILBERTH SALGUEIRO

A natureza como retorno e extravio na poesia brasileira


contemporânea ............................................................................... 219
CELIA PEDROSA

Marcos Siscar e a reinvenção do legado de João Cabral ................ 237


SOLANGE FIUZA

Variações do tempo em dois poetas contemporâneos .................... 255


VIVIANA BOSI

Posfácio: Acidente como forma de chegar ao destino .................... 269


LEONARDO GANDOLFI

Sobre os autores ................................................................................. 273


ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE
(Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas)1

ROSA MARIA MARTELO


Águas! Quando tomareis a inclinação de correr para cima?
Raimundo Lull, morto à pedrada no deserto
MÁRIO CESARINY, As mãos na água a cabeça no mar
O sentido poético é o que desloca o espectador para um ponto onde uma
nova construção da realidade pode acontecer. O fim da poesia é estabe-
lecer um desvio, é quebrar e desconstruir todos os códigos de comuni-
cação existentes, alterar o mundo como os homens o conhecem, abrir
fissuras no espaço com a sua presença.
RUI CHAFES, Entre o céu e a terra

O mais recente número da revista Cão Celeste inclui um notável poema


de José Miguel Silva no qual somos incentivados a atentar no exemplo
da água para assim aprendermos a lidar com realidade. “Põe os olhos na
água”, exorta o título. Mas o que vamos encontrar a seguir é muito diferen-
te do banho lustral que Philip Larkin imaginou no belíssimo “Water”, nada
tem em comum com essa liturgia de “Images of sousing,/ A furious devout
drench” (LARKIN, 1990: 93). Agora, a água é objecto de uma visão desen-
cantada e irónica, e a sua descrição sugere a irrelevância de quaisquer velei-
dades de mudar o mundo. A culminar neste final:

[...]. Como a formiga,


o diamante, a bactéria, a água é cem por cento
de direita, não acredita em nada, nem sequer
no ciclo da água. Dois átomos de paciência
e um de realismo. Por isso não acorda
de manhã com o delírio de querer mudar
o mundo (mudá-lo para onde?). Tem a noção
do ridículo, compreende que há limites para tudo.

1 O presente ensaio foi desenvolvido no âmbito do programa estratégico Literatura e


Fronteiras de Conhecimento – Políticas de Inclusão do Instituto de Literatura Compa-
rada Margarida Losa (UID/ELT/00500/2013; POCI-01-0145-FEDER-007339).
176 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

O corpo humano é composto principalmente


por água, mas a humanidade prefere o álcool
da fantasia, sem o qual a realidade pareceria
quase tão insuportável como a realidade.
(SILVA, 2016: 25-26)

Que o poema de José Miguel Silva tenha vindo ao meu encontro (ou o
tenha encontrado eu; a ordem dos factores é incerta) no exacto momento
em que me preparava para começar a escrever este texto, no qual pretendo
recordar Cesário Verde e falar de amplitudes do realismo na poesia contem-
porânea, é por certo uma coincidência; mas também é mais alguma coisa.
José Miguel Silva, que se estreou como poeta em 1999, com O sino de
areia, tem publicado notoriamente menos nestes últimos anos (o último li-
vro, Serém, 24 de março, data de 2011); mas em cada poema novo que pu-
blica de modo disperso faz mira a um alvo bem determinado. Sem subscre-
verem nenhuma utopia – antes pelo contrário, com muito desencanto –, al-
guns dos seus poemas mais recentes, divulgados em revistas ou obras co-
lectivas e no blogue Achaques e Remoques, denunciam hipocrisias sociais
e políticas e explicitam dimensões menos visíveis do mundo em que vive-
mos. Paralelamente, JMS (é esta a abreviatura que usa na blogosfera) man-
tém um acompanhamento atentíssimo dos efeitos do capitalismo neo-libe-
ral e da globalização, e avalia o escasso combate em que continuamos a
não responder aos avanços do aquecimento global, ou à escandalosa finan-
ceirização da economia mundial.
A palavra “realidade” é recorrente no poema que comecei por citar, bem
como noutros poemas de José Miguel Silva. Mas o que significa, neste
contexto? Há alguns anos, numa entrevista concedida a João Bonifácio na
sequênciada publicação de Erros individuais (2010), o poeta fazia questão
de deixar claro: “Mais pertinente do que o carácter realista da minha poesia
talvez seja a sua vocação política, a sua propensão para interpelar não ape-
nas o íntimo e pessoal, mas também o social”. E concluía: “Isto só para
dizer que me dou melhor, apesar de tudo, sob a etiqueta de poeta político
do que de poeta realista” (BONIFÁCIO, 2011: 22). Acontece, no entanto, que,
pelo menos desde Guilherme de Azevedo e Cesário Verde, a interpelação
do social e as preocupações de carácter político convocam esse termo espe-
cialmente ambíguo que é realidade, o qual, por sua vez, atrai a não menos
evasiva noção de realismo.
Portanto, recomecemos. “Põe os olhos na água”, diz o título do poema,
exortação que não pode deixar de nos remeter para a tradição lírica portu-
guesa, na qual a água constitui uma temática recorrente. E todavia, é óbvio
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 177

não ser o exemplo “dessa” água que o poeta quer que tenhamos em linha
de conta. Desde as cantigas medievais, em que ainda ouvimos as “Ondas
do mar de Vigo”, cruzam-se inúmeros fios de água na lírica nacional, até
chegar, por exemplo, ao poema em que Adília Lopes retoma este verso de
Martin Codax para o combinar com a memória do filme L’Atalante: “De
mão dada com o meu amigo/ vejo os filmes de Jean Vigo” (LOPES, 2014:
312).2 Não há nestes versos de Adília nenhuma presença aparente da água,
no entanto, é ela o tema que verdadeiramente lhes dá coesão e sentido, seja
porque as palavras unidas na rima são “amigo” e “Vigo”, a lembrar as can-
tigas galaico-portuguesas, seja pela inevitável evocação dos canais fluviais
de Paris tão presentes em L’Atalante, um dos mais célebres filmes de Jean
Vigo, e de resto tema também de um poema de Movimentos no escuro, de
José Miguel Silva.3 Mas, malgrado esta vasta tradição temática, a água
apontada no título do poema em análise nada tem a ver com o mar de
Camões, Pessoa e Sophia, sequer com o de Camilo Pessanha ou Eugénio
de Andrade. Agora, a água tornou-se um exemplo de adaptabilidade e resig-
nação, num mundo onde não imperam a justiça e a equidade: “[...] ao con-
trário de nós,/ a água não discute com a lei da gravidade,/ não tem ideias
fixas, não se mete em escaladas// impossíveis [...]” (SILVA, 2016: 25); em vez
disso, aceita as circunstâncias adversas e, como diz o poema, “aguarda// as
instruções do terramoto”.
Atentemos nos versos que me falta reproduzir. Eis como começava o
poema:

A realidade, percebes agora, é a realidade.


Não favorece a beatice dos bons sentimentos,
não se rege por princípios morais
nem reconhece direitos humanos.

Tenta agir naturalmente. Não consegues,


porque faltaste à aula de biologia e portanto

2 O poema de Adília Lopes tem como epígrafe dois versos de Vitorino Nemésio, impor-
tantes para entendermos em toda a amplitude o efeito pretendido com a rima: “Já
portuguesmente/ Rimam ‘noite’ e ‘boîte’” (2014: 312).
3 Cf. “O Atalante – Jean Vigo (1934)”: “No dia em que fomos ver O Atalante/ eu leva-
va, por coincidência, um cubo de gelo/ no bolso do casaco. Lembro-me de tremer/ um
pouco. Até aí, tudo bem. Pior,/ foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:/ quem
procura o seu amor debaixo de água,/ acaba constipado./ Na altura, ri-me: pensei que
falavas do filme./ Sou tão estúpido.” (SILVA, 2005: 14)
178 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

desconheces a natureza da realidade,


o mesmo é dizer, a realidade da natureza.

Mas tira da cabeça o capacete noosférico


e põe os olhos na água: ao contrário de nós,
a água não discute com a lei da gravidade,
não tem ideias fixas, não se mete em escaladas

impossíveis. Quando encontra uma barragem,


não pensa “Aqui está um problema a superar”
nem clama – que absurdo – por justiça.
Senta-se na terra, simplesmente, e aguarda

as instruções do terramoto. [...]

José Miguel Silva exprime um notório desencanto perante a ineficácia das


boas intenções de mudar o mundo (“mudá-lo para onde?”, pergunta, sarcás-
tico). É neste contexto que a água nos dá lições, com a sua aparente resig-
nação e com uma capacidade de se moldar às circunstâncias adversas na
qual o poema identifica acima de tudo resiliência, um saber esperar pelas
condições favoráveis à conquista de dimensões de realidade por agora ina-
cessíveis. Daí que também a esperança de um “terramoto” surja no hori-
zonte do texto. As circunstâncias, no que à humanidade diz respeito, terão,
é claro, que ser criadas por nós – se não for já demasiado tarde. O poema
não pode dizer tudo, e não desenvolve este aspecto, embora sem deixar de
lhe aludir. Para o que aqui interessa, é de assinalar a recusa evidente de
esclarecer o conceito de realidade: “A realidade, percebes agora, é a reali-
dade”. Ou seja, é o que é – sem explicações nem hermenêutica nem onto-
logia. E o realismo, termo que também comparece a definir a água – “[...]
Dois átomos de paciência/ e um de realismo” –, não traduz mais do que a
percepção de que a expressão de bons sentimentos ou a reivindicação de prin-
cípios e direitos humanos não chegam por si só para mudar coisa nenhuma.
Temos, portanto, um poema que fala de realidade e de realismo, e que,
mesmo depois de reconhecer que ao “realismo” resiliente da água a huma-
nidade há-de preferir sempre “o álcool da fantasia”, recusa estabelecer um
nexo dicotómico do tipo real/imaginário, ou realismo/fantasia, preferindo
integrar esta última numa equação tautológica: sem “o álcool da fantasia”,
“a realidade pareceria/ quase tão insuportável como a realidade”. Talvez
pudéssemos substituir a primeira ocorrência do termo por “imaginação”,
isto é, talvez pudéssemos atribuir-lhe esse valor, mas a questão é que, no
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 179

contexto, tal gesto não retiraria a imaginação da alçada do real, ou da rea-


lidade – e nem mesmo da esfera do realismo. E este é um ponto importante
a reter.
A poesia de José Miguel Silva sempre teve preocupações de carácter
político. Com recurso à ironia e a um humor desencantado, por vezes mes-
mo cáustico, tem vindo a denunciar eficazmente as contradições e a hipo-
crisia política de poderes nos quais não deposita grande esperança. No
blogue Achaques e Remoques, JMS recolhe e comenta análises de carácter
económico, político, e sobretudo ecológico e ambiental nas quais não há
ilusões quanto a esperar-nos a curto ou médio prazo um colapso civilizacio-
nal sem remissão. Entre uma coisa e outra, José Miguel Silva foi objecto
alguma vezes de leituras que o descreveram como realista, ou mesmo (e
com muito desconhecimento do que se está a dizer) como neo-realista,
epítetos que, de resto, sempre recusou. Evitando esse tipo de etiquetas,
Joana Matos Frias concluía o seguinte, no ensaio que dedicou ao poeta:

Se tivéssemos de escolher uma única palavra que sintetizasse a ética interna


da poesia e da poética de Silva, ela seria sem dúvida esta: compaixão. Não
a compaixão cristã e católica a que o poeta ironicamente alude no seu pe-
núltimo livro, Erros individuais (2010), essa que se reduz “ao gosto com-
placente duma liberdade baratucha / – toda feita de moções, duplicidades,
emoções / e florações de lavadinha consciência” (22). Mas a compaixão
no seu significado mais literal e etimológico de co-pathia, a partilha da-
quela “peste emocional” que aparece já no meio da Desordem e que
Schiller tão bem problematizou na sua teoria estética. (FRIAS, 2013: 63)

É uma perspectiva que interessa ponderar, tanto mais que essa “co-
pathia” também está presente na obra do segundo poeta que pretendo trazer
para este texto: o oitocentista, intemporal, Cesário Verde. Embora muito
contido emocionalmente, Cesário aliava à plasticidade e à nitidez das suas
imagens o envolvimento subjectivo. E se usou como ninguém os instru-
mentos analíticos que a linguagem lhe facultava para ser descritivo, nítido
e exacto, a exactidão que foi a sua nunca se tornou descarnada, estrita.
Leitor de Baudelaire até naquelas entrelinhas em que o autor de As flores
do mal já intuía o que depois foi a sensibilidade ao mesmo tempo voraz,
fascinada e desistente da poesia urbana das metrópoles do século XX e
mesmo do século XXI, Cesário sabia que a paixão do real envolve tanto a
visão quanto o visionarismo; sabia que “ver” nos acrescenta às coisas na
mesma proporção em que delas nos acrescentamos. Por isso, o seu ambici-
onado realismo nunca teve a ingenuidade de se pretender neutro, ou trans-
180 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

parente, e sempre buscou nas imagens perceptivas uma possibilidade de so-


breposição e ressonância que não excluía a alucinação e a transfiguração.
Nessa medida, a sua poesia faz-nos passar, quase sem darmos conta, das
imagens de um mundo reconhecível, e de um efeito de realismo, à visão
expansiva e transfiguradora na qual subentendemos uma forma de subjec-
tividade e um imaginário muito particular.
Ora, muito do que há de comovente nos dois poetas passa precisamente
pelo que Joana Matos Frias chama “compaixão”, uma rede de sentimentos
que, em ambos os casos, se lê mais nas entrelinhas do que nas imagens que
estruturam o descritivismo dos versos. Cesário Verde sugeria sentimentos
fazendo-os passar muito subtilmente entre as sensações (visuais acima de
tudo, embora não só) que combinava de modo inesperado. Talvez por isso,
tem versos de um cinematismo que nos comove desprevenidamente. Como
por exemplo estes, de “O sentimento dum ocidental”: “Um parafuso cai nas
lajes, às escuras:/ Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,/ E os olhos
dum caleche espantam-me, sangrentos” (2001: 130). À primeira vista, é
descrito um espaço exterior ao sujeito, um contexto urbano que age sobre
ele; mas, a um segundo olhar, a experiência subjectiva, o desconforto exis-
tencial e uma generalizada sensação de opressão ganham evidência. Um
medo indefinido do crime, da agressão injustificada, emerge do som que
assinala uma presença próxima e desconhecida no meio da escuridão; o
som metálico do parafuso combina-se com a descrição do fechar das por-
tas, que faz ecoar o medo nos gestos dos outros, e que, acima de tudo, é
agravado com a irrealidade do sangue entrevisto nas luzes da caleche atra-
vés de uma metáfora em que estas são associadas à sensação de ser espiado
(as luzes transformam-se em “olhos”) e à ameaça (esses olhos são “san-
grentos”). Desde modo, Cesário, para quem Lisboa era à época uma cidade
doente,4 faz emergir de modo indirecto, da sobreposição de sensações visu-
ais e auditivas, a sua visão disfórica, sendo as sensações expressas ao mes-
mo tempo pessoais e interpessoais. Nessa cidade doente, a simpatia do
poeta irá para aqueles que trabalham e de algum modo são humilhados ou
desvalorizados, como fica claro em poemas como “Cristalizações”, “Con-
trariedades”, “Humilhações” e muitos outros. E por isso os seus poemas
estarão cheios de figuras lisboetas.

4 Na sucinta apresentação de “O sentimento dum ocidental” enviada por Cesário ao


“Boletim do Centenário”, organizado pelo Jornal de Viagens, que viria a publicar o
poema, podemos ler que face ao seu “glorioso passado”, Lisboa “parece um cadáver
de cidade” (VERDE, 1880: 27).
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 181

A compaixão, no sentido de uma disposição para sentir com o outro,


para com ele pôr em comum sensações e sentimentos, é um aspecto fulcral
tanto na poesia de José Miguel Silva quanto na de Cesário Verde. Sintoma-
ticamente, esse é também um aspecto que Silva destaca na obra do terceiro
poeta que trago para este texto:

Pelos livros de Manuel de Freitas vão passando, erguidas da lama [...] essas
pungentes figuras de deserdados, sombras de velhos e viúvas, mendigos,
mal-amadas, prostitutas, traficantes de droga ou alcoólicos, numa profana
procissão de almas sem brilho nem fortuna, habitantes de um mundo meta-
forizado como inferno ou como Hades. (SILVA, 2010: 159-160)

No posfácio de A última porta, antologia de poemas de Manuel de


Freitas organizada por José Miguel Silva, este observa que nos versos de
Freitas também circula um “flâneur ensimesmado e vagamente compade-
cido” que nos dá “o retrato de uma certa Lisboa”: “um lugar onde a única
beleza possível coincide com «a cruel poesia/ dos tonéis, o mármore dos
balcões engordurados,/ este morrer/ de um modo gentil, quase despercebi-
do»” (SILVA in FREITAS, 2010: 160).
A errância por uma certa Lisboa que não vem nos mapas turísticos, mas
onde a precariedade da vida humana passa mais perto e mais nitidamente,
permite a Manuel de Freitas unir às considerações alheias um fio de refle-
xões marcado por uma dolorosa consciência da mortalidade. Como aconte-
ce no poema “Calçada dos mestres”, que começa num tom de humor ne-
gro: “Três velhas e eu,/ na última taberna de Campolide./ Falavam de ir
“levantar” os maridos, / o que deles resta. / Mas não estão “capazes”:/ dois
anos debaixo da terra/ nem sempre é o bastante” (FREITAS, 2010: 109). E
mais adiante: “Há quem tenha estado/ dez anos debaixo da terra,/ antes de
poder ser “levantado”/ – e há quem nunca tenha estado vivo,/ acrescenta o
autor destes versos,/ condensando a tarde numa garrafa vazia [...]” (FREITAS,
2010: 109).
Sendo evidentes as afinidades estruturais decorrentes do retomar da
“flânerie”, bem como de uma idêntica contenção do intimismo pela valori-
zação da presença dos outros nos poemas, não admira que encontremos na
obra de Manuel de Freitas várias referências a Cesário Verde. Em Blues for
Mary Jane, por exemplo:5

5 Cf. ainda os poemas “Por causa de um grafitti”, de Os infernos artificiais (2001), “Li-
ceu Sá da Bandeira, 1988”, de BWV 244 (2001) e “Coche Real”, de Blues For Mary
Jane (2004).
182 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

REQUIEM PARA UMA JUKEBOX

Pensavas tu, errando o título.


O Manel do Estádio informa-te
de que a máquina foi só a arranjar
e vem depois das férias da Páscoa,
para semear de tristeza ou escárnio
os mesmos fados. Ainda bem.

Na mesa em frente, duas putas


antigas têm a razão suprema
de confundir Fernando Pessa
com Fernando Pessoa – o que
morreu cedo, aqui perto, e é agora
«grande» nas bocas que não o
leram nem amaram. Ao outro,
pelo contrário, parece faltar
qualquer vocação para a morte.

Mas eis que entra o Rui de Castro,


encostando-se a um bagaço
e à consequente voz acanalhada.
Vai mudar a hora, é sexta-feira
de Paixão. E se estamos aqui
sentados é apenas para que o tempo
passe, não doam tanto as certezas
– que é como quem diz a morte.

Da televisão, espreita-nos a vida


em technicolor do crucificado.
Eu sou o pão que escurece,
o cordeiro do infortúnio – diria
um qualquer desses émulos de Celan
que só chegam ao cair da noite
e não gostam de Cesário.
Mas a melhor poesia portuguesa
está agora sentada neste café
e não se chama Manuel de Freitas
nem deixará como ele inúteis vestígios
de paixão, pedacinhos de ócio,

o milagre incerto da multiplicação da morte.


(FREITAS, 2004: 15)
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 183

A poesia de Manuel de Freitas, tal como a de Cesário, tematiza muitas


vezes as deslocações citadinas de um flâneur que observa, escuta, e que
conta o que vê e ouve. Recorde-se, de resto, que Walkmen é o sugestivo
título de um livro de poemas cuja autoria é partilhada por Silva e Freitas
(2007) e que glosa canções dos Tuxedomoon e da banda portuguesa Pop
Dell’Arte de modo a, como bem viu António Guerreiro, “deixar que um
mundo ganhe figura só a partir de fragmentos: um lugar, uma situação, uma
pessoa” (2008: 2). Nesse livro, as deambulações citadinas são frequentes, e
o que é visto e ouvido ganha a dimensão de uma alegoria que extravasa, e
muito, do caso singular e ganha universalidade. Assim acontece em “So-
nhos Pop”, um poema de Manuel de Freitas cujo título evoca um tema dos
Pop Dell Arte:

“Eu ainda tenho um sonho a dois,


para citar o meu mestre” – dizia
o já não muito rapaz que no Estádio
ocupava a mesa à minha frente,
por volta das duas da manhã.

Não era comigo que falava


(creio, aliás, que nunca o fez),
embora nos conheçamos de beber
excessivamente nos mesmos sítios.
Mas comoveu-me perceber que
alguém, àquela hora, ainda
tinha mestres – e parecia acreditar
neles, rodeado de cervejas e canções.
Poderá isto caber na prosa dos meus versos?

Lembrei-me, claro, de ver “o mestre”


dele em 89, encostado à porta
do bar, como se pretendesse insinuar
que não há qualquer saída: estamos presos
neste elevador e a noite, a partir
dos trinta, termina sempre muito mal.

Era antes da morte, José Miguel.


(FREITAS, in: SILVA E FREITAS, 2007: 19)

Nos poemas de Manuel de Freitas há um sujeito de enunciação que tam-


bém se mostra como “alguém” com biografia, uma figura recorrente que
184 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

vamos conhecendo melhor de livro para livro. Podemos “vê-lo” sentado em


tabernas e cafés, a observar os que entram e saem enquanto regista as suas
elucubrações, processo enunciativo que faz pensar na personagem do céle-
bre conto de Poe traduzido por Baudelaire sob o título L’homme des foules.
Especialmente nos primeiros livros, o que este sujeito pensa mistura-se
com o que acabara de ouvir na mesa ao lado (a ordem também pode ser a
inversa), como vemos nos poemas acimas transcritos, que exemplificam de
que modo uma disposição existencial de “co-pathia” se transforma em for-
ma, isto é, em dispositivo de escrita.
Tanto em “Sonhos pop” como em “Requiem para uma jukebox”, temos
um lugar reconhecível para o leitor – o Café Estádio, que até há bem pouco
tempo ainda resistia ao impacto da gentrificação lisboeta –, acompanhamos
a conversa com o empregado Manuel, sabemos dos diálogos em mesas vi-
zinhas, assistimos à entrada de uma cliente habitual, sabemos da televisão
ligada... O que justifica a presença um tanto intempestiva do nome de Ce-
sário no primeiro poema transcrito é certamente o quadro de “real quotidi-
ano” que o poema “reabilita”, para recordar aqui os termos de Cesariny,
poeta que é, sem dúvida, uma referência para Manuel de Freitas, e, de res-
to, outro leitor incondicional de Cesário, cuja poesia celebrou com humor
em “Homenagem a Cesário Verde” (1999: 11).

Se a economia e a simplicidade fazem a beleza de uma definição, então


não conheço melhor definição de realismo do que a formulada por Nelson
Goodman nestas poucas palavras: “o realismo é uma questão de hábito”
(cf. 1990: 63)6. O que está em causa em tão breve equação é uma definição
não essencialista de realismo, aplicada às artes plásticas. Este dependeria
do reconhecimento, por parte do receptor, de: a) um mundo tido por habi-
tual; b) uma forma que, porque reconhecível, criaria uma ilusão de transpa-
rência. O interesse desta definição está em permitir entender que o realismo
não existe senão como efeito relacional, podendo decorrer de quaisquer
traços estilísticos desde que estes não provoquem no receptor o estranha-
mento do sistema de representação. Neste sentido, será legítimo inferir que
as obras não são realistas por provocarem um “efeito de real”, nos conheci-

6 Reporto-me à tradição francesa, na qual se lê “le réalisme est affaire d’habitude”. E


ainda: “En résumé, la représentation réaliste ne repose pas sur l’imitation, l’illusion
ou l’information, mais sur l’inculcation” (GOODMAN, 1976: 73).
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 185

dos termos barthesianos. Como diz Goodman, o realismo não depende nem
da semelhança, nem da imitação, nem da maior quantidade de informação;
depende da inculcação, ou seja, do reconhecimento. O que acontece é que
certas obras provocam um efeito de realismo em determinados públicos
leitores, que nelas reconhecem determinado sistema de representação e/ou
reconhecem um mundo tido por habitual.
No caso da poesia, podemos perceber que um poema só é considerado
realista se, e quando, o leitor também o puder ser, por via de pelo menos
um dos dois processos de reconhecimento acima referidos. O realismo, ou
mais precisamente o efeito de realismo, pressupõe uma relação comunica-
cional, e é no contexto dessa relação que deve ser situado o reconhecimento
de formas e/ou mundos habituais. O que não significa que esse reconheci-
mento não possa conviver com o estranhamento; ou que o efeito de realis-
mo não possa surgir articulado com o visionarismo e a transfiguração.
Qualquer dos autores aqui referidos nos mostra rapidamente que entre rea-
lismo e transfiguração, entre entranhamento e estranhamento, há uma com-
plementaridade essencial.
Cesário Verde é absolutamente surpreendente nesse tipo de articulações,
ou sobreposições. “E eu que medito um livro que exacerbe/ quisera que o
real e a análise mo dessem”, diz em “O sentimento dum ocidental” (2001:
128). Mas a questão está no que significa, para Cesário, a palavra “análise”,
pois o seu descritivismo é permanentemente relacionado com efeitos de
memória involuntária, com associações e reacções assumidamente
subjectivas. Senão vejamos este excerto do mesmo poema:

Cerca-me as lojas, tépidas. Eu penso


Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
(VERDE, 2001: 128)

Comparando as duas estrofes, observa-se entre elas uma assinalável


diferença: na primeira, a expressão “eu penso ver” articula duas séries de
imagens perceptivas, criando entre elas uma proximidade visual. A suces-
são das lojas é visualmente idêntica ao interior de uma grande catedral, e as
186 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

semelhanças são analisadas, sim, mas por um processo semelhante ao que


permite construir uma metáfora imagética: a análise identifica (e cruza vi-
sualmente) traços perceptivos comuns aos elementos aproximados. O efeito
obtido é este: 1) o que o leitor identifica como real e 2) o irreal (a imagem
perceptiva apenas convocada em ausência) sobrepõem-se, mas não se tor-
nam indiscerníveis. “Vemo-los” autonomamente, alternadamente, não se
cria um terceiro, que tivesse carácter fusional. Ora, isto é importante para se
manter o efeito de realismo, pois cada um dos dois elementos aproximados
em pares sucessivos (rua/catedral; lojas/capelas; manequins/santos; luzes
e flores das montras / velas e ramos das capelas) mantém rigorosamente a
sua integridade visual, pelo que o efeito obtido é o de uma trans-figuração.
Na estrofe seguinte, o binómio burguesinhas/freiras é tratado de um
modo muito mais subjetivista, menos visualista. Neste caso, as duas entida-
des aproximadas não mantêm tão facilmente intacta a sua identidade, e
sentimos, por isso mesmo, que o efeito de realismo é menor. De resto,
Cesário também usa outro tipo de metáforas, bem mais sincréticas.
O processo de “observar em verso” que Fernando Pessoa saudou com
tanto entusiasmo em Cesário Verde, e que radicalizou no interseccionismo
de “Chuva oblíqua”, contempla, como tentei mostrar em estudo anterior
(MARTELO, 2012: 74-75), uma relação analítica na qual duas realidades dis-
tintas são aproximadas em função da coexemplificação de traços percepti-
vos. É esse tipo de aproximação que acontece na primeira estrofe que citei:
se as ruas fazem ver uma catedral é porque visualmente apresentam traços
semelhantes de forma e de cor. A particularidade realista de Cesário eviden-
cia-se no dispositivo verbal usado para aproximar os dois reinos – neste
caso, as expressões “eu penso ver” e “lembram-me”. Graças a elas, e sob a
aparência de um símile,7 a metáfora é desmembrada perante o leitor, e este
assiste ao processo analítico. Já no verso “Vêm lágrimas de luz dos astros
com olheiras” (idem: 130), para dar um exemplo diferente mas extraído
também de “O sentimento dum ocidental”, o que nos é dado não é processo
analítico, mas apenas a imagem resultante. O efeito é já sincrético, como é
comum acontecer na metáfora, o efeito de realismo perde-se.
Cesário cria uma intermitência fantasista quando une dois reinos que se
mantêm, apesar de tudo, reconhecíveis, cada um em si, como pertencentes
ao nosso mundo habitual. Portanto, poderíamos dizer que é, de facto, o
hábito que nos permite considerar Cesário realista (reconhecemos as suas

7 Nunca é demais lembrar que devemos a Óscar Lopes a demonstração de que Cesário
Verde esconde algumas das suas metáforas sob a aparência de símile (cf. LOPES, 1987:
467).
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 187

descrições como sendo conformes em termos semânticos e formais). Mas


devemos acrescentar que entre “o real e a análise”, esta última funciona
unindo diferentes planos de realidade, sem os fundir num terceiro termo.
Embora nem sempre seja este o processo utilizado, ele parece fundamental
para o efeito de realismo proporcionado. Há, naturalmente, um conjunto de
preocupações de ordem política e social que fazem parte da tradição realis-
ta, mas o que tento dizer é que elas não são suficientes para falarmos de
realismo. A repressão política do Estado Novo está bem presente em poe-
mas de Luiza Neto Jorge, de Gastão Cruz e de Fiama Hasse Pais Brandão
nos quais ninguém veria um efeito de realismo precisamente por serem
textos que provocam um acentuado estranhamento, especialmente no plano
discursivo. Gastão Cruz tem sublinhado, e com toda a pertinência, que os
seus poemas de então tinham sempre na origem “alguma coisa muito real
e concreta” (2008: 371), o que é um facto, inclusivamente no plano políti-
co. Mas o efeito de realismo forma-se, como vimos, na relação do leitor
com o texto, isto é, no plano comunicacional, como “questão de hábito”, e
desse ponto de vista, parece inegável que esse efeito está mais visível nos
seus livros mais recentes.
Volto agora ao final do poema de José Miguel Silva. Tal como em Ce-
sário, também aqui há uma comparação aparente que introduz, de facto,
uma metáfora desenvolvida a partir de uma personificação: “[…] Como a
formiga,/ o diamante, a bactéria,/ a água é cem por cento/ de direita, não
acredita em nada, nem sequer/ no ciclo da água”. Só metaforicamente a
resiliência e a indiferença por parte da água e de três entidades tão distintas
quanto a formiga, o diamante e a bactéria podem ser classificadas como
“cem por cento de direita”. Na verdade, trata-se, como em Cesário, de uma
falsa comparação, que permite deixar à vista o processo analítico que está
na base da metáfora. Por isso, o poema consegue criar um mundo transfi-
gurado e essencialmente verbal, mas sem desfazer o efeito de realismo, ou
seja, a possibilidade de reconhecermos o nosso mundo habitual. Já nos
versos “O corpo humano é composto principalmente/ por água, mas a hu-
manidade prefere o álcool/ da fantasia [...]” é muito conseguida a passagem
de uma oposição simples (água/álcool) à metáfora que a recompõe através
do encavalgamento (“álcool/ da fantasia”).
Outro processo analítico que tem consequências relevantes na poesia de
José Miguel Silva, bem como na de Manuel de Freitas, é a alegoria, que
constitui igualmente uma forma de manter duas linhas de leitura em con-
fronto analítico (uma das quais em falha, ou em falta), sem lhes retirar a
autonomia relativa. Manuel de Freitas resumiu exemplarmente o processo
de leitura implicado pela alegoria quando terminou desta forma um poema
188 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

de A for dos terramotos: “Estou a falar, naturalmente,/ de tabernas./ Mas


talvez não seja apenas isso” (FREITAS, 2005: 21). Mais tarde, daria idêntica
indicação de leitura num poema de A nova poesia portuguesa, no qual ecoa
a voz de Baudelaire:

TEMA SEM VARIAÇÕES

– para o Manuel de Freitas, mon semblable –

Sempre soubeste: a morte.


Sempre sentiste: a morte.
As tabernas, fechadas, eram
apenas uma espécie de refrão.

Mas isso, terás de convir,


não desculpa o facto
de andares há vinte anos
a escrever o mesmo.

Faz como as tabernas: cala-te.


(FREITAS, 2010a: 27)

No caso de José Miguel Silva, poderíamos perguntar de que fala, por


exemplo, a primeira das cinco “Vozes apanhadas do chão na Igreja de San
Miniato al Monte”, uma das vozes de além-túmulo que esse poema reco-
lhe, em Erros individuais:

Eu nunca gostei de portas, sempre as vi como


um grosseiro despotismo. Não percebia por
que razão davam passagem a uns e outros não.
Rebelei-me contra elas, tornei-me arrombador.
Decidido a contestar os seus desígnios, passei
os melhores anos da minha juventude a estudar
o idioma das fechaduras. Aos poucos, alcancei
uma secreta mestria: nenhuma resistia à sedução
dos meus arames. As portas franqueadas, e não
o que atrás delas se defende, procurava. Poucas
vezes roubei. Esta alegria me bastava – introduzir
desordem na composta segurança duma casa.
Agora que penso nisso, acho que havia algo
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 189

de bárbaro nessa minha obsessão por destruir


a ilusória placidez das fortalezas, os escudos
da propriedade, da suficiência. Porta atrás
de porta, a minha vida passou. Até chegar aqui,
a este lugar indistinto. Também nele há uma porta.
Não me seria difícil arrombá-la. Não fosse dar-se
o caso (e esse é o castigo da minha soberba)
de não saber se estou no céu ou no inferno.
(SILVA, 2010: 51)

A recusa da desigualdade e da propriedade, evidenciada na ambição de


desarticular a ordem vigente, por certo que sugere uma leitura política,
anarquizante, para os gestos deste arrombador de portas; ou seja, ao lermos
o poema, rapidamente passamos a um olhar alegorista. Neste caso, sem
recorrer a um efeito de realismo, José Miguel Silva conduz o leitor a fazer
uma interpretação política desta micronarrativa cheia de fantasia e invero-
similhança. Mas a fantasia é igualmente um meio de nos reconduzir, criti-
camente, à realidade do mundo em que vivemos. Um mundo que nunca
deixa de estar na mira de acerada ironia por parte do poeta.
Em Ladrador, volume colectivo com que, num gesto pleno de sentido,
a editora Averno revisitou dez anos depois o modelo antológico de Poetas
sem qualidades (2002), José Miguel Silva também recorre à alegoria no
poema “Grande circo de Montekarl”: “[...] Confesso que me atraiu sobre-
tudo o número/ da Grande Conflagração do Capitalismo, anunciado/ em
letras vermelhas no cartaz. A questão que se põe é:/ a que horas começa?
Pergunto, ninguém sabe” (2012: 35).
Parece, pois, legítimo concluir que entre a realidade e... a realidade,
nunca a transfiguração está ausente da escrita destes poetas, tanto mais que
desempenha um papel fulcral na legitimação da singularidade dos muitos
seres humanos que os poemas retiram da massificação e do anonimato. Se,
por um lado, o reconhecimento de um mundo habitual é inerente ao efeito
de realismo que os poemas dos três autores permitem, por outro lado, há,
em todos eles, uma notável imaginação verbal, que os três poetas usam
sabiamente, a par das notações que nos permitem reconhecer as circunstân-
cias de um mundo essencialmente injusto e ferido de irracionalidade. Infe-
lizmente, bem mais habitual do que desejaríamos.
190 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal

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