Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Brasil – Portugal
Copyright © 2017 dos autores
P798
Poesia contemporânea e tradição: Brasil – Portugal / organização Solange Fiuza , Ida Alves.
– 1. ed. – São Paulo: Nankin, 2017.
280 p.; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7751-115-0
13/03/2017
Direitos reservados a:
Nankin Editorial
Rua Tabatinguera, 140, 8 o andar, conj. 803
Centro – 01020-000 – São Paulo – SP – Brasil
Tels. (11) 3106-7567, 3105-0261 e (11) 3104-7033
www.nankin.com.br
nankin@nankin.com.br
2017
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Solange Fiuza
Ida Alves
(Organizadoras)
Apresentação ........................................................................................... 7
SOLANGE FIUZA E IDA ALVES (ORGANIZADORAS)
Que o poema de José Miguel Silva tenha vindo ao meu encontro (ou o
tenha encontrado eu; a ordem dos factores é incerta) no exacto momento
em que me preparava para começar a escrever este texto, no qual pretendo
recordar Cesário Verde e falar de amplitudes do realismo na poesia contem-
porânea, é por certo uma coincidência; mas também é mais alguma coisa.
José Miguel Silva, que se estreou como poeta em 1999, com O sino de
areia, tem publicado notoriamente menos nestes últimos anos (o último li-
vro, Serém, 24 de março, data de 2011); mas em cada poema novo que pu-
blica de modo disperso faz mira a um alvo bem determinado. Sem subscre-
verem nenhuma utopia – antes pelo contrário, com muito desencanto –, al-
guns dos seus poemas mais recentes, divulgados em revistas ou obras co-
lectivas e no blogue Achaques e Remoques, denunciam hipocrisias sociais
e políticas e explicitam dimensões menos visíveis do mundo em que vive-
mos. Paralelamente, JMS (é esta a abreviatura que usa na blogosfera) man-
tém um acompanhamento atentíssimo dos efeitos do capitalismo neo-libe-
ral e da globalização, e avalia o escasso combate em que continuamos a
não responder aos avanços do aquecimento global, ou à escandalosa finan-
ceirização da economia mundial.
A palavra “realidade” é recorrente no poema que comecei por citar, bem
como noutros poemas de José Miguel Silva. Mas o que significa, neste
contexto? Há alguns anos, numa entrevista concedida a João Bonifácio na
sequênciada publicação de Erros individuais (2010), o poeta fazia questão
de deixar claro: “Mais pertinente do que o carácter realista da minha poesia
talvez seja a sua vocação política, a sua propensão para interpelar não ape-
nas o íntimo e pessoal, mas também o social”. E concluía: “Isto só para
dizer que me dou melhor, apesar de tudo, sob a etiqueta de poeta político
do que de poeta realista” (BONIFÁCIO, 2011: 22). Acontece, no entanto, que,
pelo menos desde Guilherme de Azevedo e Cesário Verde, a interpelação
do social e as preocupações de carácter político convocam esse termo espe-
cialmente ambíguo que é realidade, o qual, por sua vez, atrai a não menos
evasiva noção de realismo.
Portanto, recomecemos. “Põe os olhos na água”, diz o título do poema,
exortação que não pode deixar de nos remeter para a tradição lírica portu-
guesa, na qual a água constitui uma temática recorrente. E todavia, é óbvio
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 177
não ser o exemplo “dessa” água que o poeta quer que tenhamos em linha
de conta. Desde as cantigas medievais, em que ainda ouvimos as “Ondas
do mar de Vigo”, cruzam-se inúmeros fios de água na lírica nacional, até
chegar, por exemplo, ao poema em que Adília Lopes retoma este verso de
Martin Codax para o combinar com a memória do filme L’Atalante: “De
mão dada com o meu amigo/ vejo os filmes de Jean Vigo” (LOPES, 2014:
312).2 Não há nestes versos de Adília nenhuma presença aparente da água,
no entanto, é ela o tema que verdadeiramente lhes dá coesão e sentido, seja
porque as palavras unidas na rima são “amigo” e “Vigo”, a lembrar as can-
tigas galaico-portuguesas, seja pela inevitável evocação dos canais fluviais
de Paris tão presentes em L’Atalante, um dos mais célebres filmes de Jean
Vigo, e de resto tema também de um poema de Movimentos no escuro, de
José Miguel Silva.3 Mas, malgrado esta vasta tradição temática, a água
apontada no título do poema em análise nada tem a ver com o mar de
Camões, Pessoa e Sophia, sequer com o de Camilo Pessanha ou Eugénio
de Andrade. Agora, a água tornou-se um exemplo de adaptabilidade e resig-
nação, num mundo onde não imperam a justiça e a equidade: “[...] ao con-
trário de nós,/ a água não discute com a lei da gravidade,/ não tem ideias
fixas, não se mete em escaladas// impossíveis [...]” (SILVA, 2016: 25); em vez
disso, aceita as circunstâncias adversas e, como diz o poema, “aguarda// as
instruções do terramoto”.
Atentemos nos versos que me falta reproduzir. Eis como começava o
poema:
2 O poema de Adília Lopes tem como epígrafe dois versos de Vitorino Nemésio, impor-
tantes para entendermos em toda a amplitude o efeito pretendido com a rima: “Já
portuguesmente/ Rimam ‘noite’ e ‘boîte’” (2014: 312).
3 Cf. “O Atalante – Jean Vigo (1934)”: “No dia em que fomos ver O Atalante/ eu leva-
va, por coincidência, um cubo de gelo/ no bolso do casaco. Lembro-me de tremer/ um
pouco. Até aí, tudo bem. Pior,/ foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:/ quem
procura o seu amor debaixo de água,/ acaba constipado./ Na altura, ri-me: pensei que
falavas do filme./ Sou tão estúpido.” (SILVA, 2005: 14)
178 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal
É uma perspectiva que interessa ponderar, tanto mais que essa “co-
pathia” também está presente na obra do segundo poeta que pretendo trazer
para este texto: o oitocentista, intemporal, Cesário Verde. Embora muito
contido emocionalmente, Cesário aliava à plasticidade e à nitidez das suas
imagens o envolvimento subjectivo. E se usou como ninguém os instru-
mentos analíticos que a linguagem lhe facultava para ser descritivo, nítido
e exacto, a exactidão que foi a sua nunca se tornou descarnada, estrita.
Leitor de Baudelaire até naquelas entrelinhas em que o autor de As flores
do mal já intuía o que depois foi a sensibilidade ao mesmo tempo voraz,
fascinada e desistente da poesia urbana das metrópoles do século XX e
mesmo do século XXI, Cesário sabia que a paixão do real envolve tanto a
visão quanto o visionarismo; sabia que “ver” nos acrescenta às coisas na
mesma proporção em que delas nos acrescentamos. Por isso, o seu ambici-
onado realismo nunca teve a ingenuidade de se pretender neutro, ou trans-
180 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal
Pelos livros de Manuel de Freitas vão passando, erguidas da lama [...] essas
pungentes figuras de deserdados, sombras de velhos e viúvas, mendigos,
mal-amadas, prostitutas, traficantes de droga ou alcoólicos, numa profana
procissão de almas sem brilho nem fortuna, habitantes de um mundo meta-
forizado como inferno ou como Hades. (SILVA, 2010: 159-160)
5 Cf. ainda os poemas “Por causa de um grafitti”, de Os infernos artificiais (2001), “Li-
ceu Sá da Bandeira, 1988”, de BWV 244 (2001) e “Coche Real”, de Blues For Mary
Jane (2004).
182 POESIA CONTEMPORÂNEA E TRADIÇÃO: Brasil – Portugal
dos termos barthesianos. Como diz Goodman, o realismo não depende nem
da semelhança, nem da imitação, nem da maior quantidade de informação;
depende da inculcação, ou seja, do reconhecimento. O que acontece é que
certas obras provocam um efeito de realismo em determinados públicos
leitores, que nelas reconhecem determinado sistema de representação e/ou
reconhecem um mundo tido por habitual.
No caso da poesia, podemos perceber que um poema só é considerado
realista se, e quando, o leitor também o puder ser, por via de pelo menos
um dos dois processos de reconhecimento acima referidos. O realismo, ou
mais precisamente o efeito de realismo, pressupõe uma relação comunica-
cional, e é no contexto dessa relação que deve ser situado o reconhecimento
de formas e/ou mundos habituais. O que não significa que esse reconheci-
mento não possa conviver com o estranhamento; ou que o efeito de realis-
mo não possa surgir articulado com o visionarismo e a transfiguração.
Qualquer dos autores aqui referidos nos mostra rapidamente que entre rea-
lismo e transfiguração, entre entranhamento e estranhamento, há uma com-
plementaridade essencial.
Cesário Verde é absolutamente surpreendente nesse tipo de articulações,
ou sobreposições. “E eu que medito um livro que exacerbe/ quisera que o
real e a análise mo dessem”, diz em “O sentimento dum ocidental” (2001:
128). Mas a questão está no que significa, para Cesário, a palavra “análise”,
pois o seu descritivismo é permanentemente relacionado com efeitos de
memória involuntária, com associações e reacções assumidamente
subjectivas. Senão vejamos este excerto do mesmo poema:
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
(VERDE, 2001: 128)
7 Nunca é demais lembrar que devemos a Óscar Lopes a demonstração de que Cesário
Verde esconde algumas das suas metáforas sob a aparência de símile (cf. LOPES, 1987:
467).
ENTRE A REALIDADE E A REALIDADE (Cesário Verde, José Miguel Silva, Manuel de Freitas) 187
Referências bibliográficas
BONIFÁCIO, João. “Realista não, político sim”. Público – “Ípsilon”. Lisboa, 22-23,
11 de fev, 2011.
CESARINY, Mário. Pena capital (1957, 1982 rev.). 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim,
1999.
CRUZ, Gastão. Os poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
FREITAS, Manuel de. Blues for Mary Jane. Lisboa: & etc, 2004.
. A flor dos terramotos. Lisboa: Averno, 2005.
. A última porta. Selecção e prefácio de José Miguel Silva. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2010.
. A nova poesia portuguesa. Lisboa: Poesia Incompleta, 2010a.
FRIAS, Joana Matos. “Os sais e as cinzas: dialéctica da anestesia na obra de José
Miguel Silva”. Elyra, n. 1, p. 49-66, 2013. Disponível em: <http://www.elyra.
org/index.php/elyra/article/view/11> Acesso em: 12 de Março de 2016.
GOODMAN, Nelson. Langages de l’Art. Apresentação e tradução de Jacques
Morizot. Nîmes: Editions Jacqueline Chambon, 1990 (1. ed. Languages of Art,
1968).
GUERREIRO, António. Quase nada [recensão de Walkmen e Terra sem coroa]. Ex-
presso – “Actual”, p. 50, 2 de fev., 2008.
LARKIN, Philip. The Whitsun Weddings [1964], Collected Poems. Edição e intro-
dução de Anthony Thwaite. London e Boston: Faber and Faber, 1990.
LOPES, Adília. Dobra. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014.
LOPES, Óscar. Entre Fialho e Nemésio II. Lisboa: IN-CM, 1987.
MARTELO, Rosa Maria. O cinema da poesia. Lisboa: Documenta, 2012.
SILVA, José Miguel. Movimentos no escuro. Lisboa: Relógio d’Água, 2005.
. Erros individuais. Lisboa: Relógio D’Água, 2010.
. Serém, 24 de março. Lisboa: Averno, 2011.
. “Grande circo de Montekarl”. In: INÁCIO, Ana Paula et. al. Ladrador. Lis-
boa: Averno, 2012.
. “Põe os olhos na água”. Cão Celeste, n. 8: 25-26, 2016.
SILVA, José Miguel; FREITAS, Manuel de. Walkmen. Lisboa: & etc, 2007.
VERDE, Cesário. Boletim do centenário, Porto, n. 2, Empresa do Jornal de Via-
gens, 27, maio, 1880.
. Poesia completa – 1855-1886. Fixação de texto e nota introdutória de
Joel Serrão. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.