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conto crônica poema coelho de moraes
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Coleção BROCHURA / PDF / ESPIRAL
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COELHO DE MORAES
coelhodemoraes@terra.com.br
Cidade de Mococa
São Paulo
julho
2010
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conto crônica poema coelho de moraes
CÂNTICOS ESPIRITUAIS
Não(!), não é uma idéia nova. Vejamos os Salmos. Reconhecidamente peças literárias que se
pode acompanhar com saltério de plectro (sabe, aquele instrumento que se vende nas praças:
uma tabuinha com cordas tendo um papel com a música por baixo, sendo tocado com a pena
de algum frango desavisado "?", pois é! é ele), címbalos (pequenos pratos), aulos (simples
flautas, como as de bambu) e órgãos (que, possivelmente, eram tubos soprados por algum
tipo de vento, fole armado com pesos de pedra ou água ou no braço de algum escravo). O
fato é que já se cantava, se tocava e se bailava em música de devoção. Davi que o diga.
Exímio bailarino e sedutor. Urias que o diga.
O texto que aqui vai é inspirado em DHARMENDRA, ou Ernani Fornari, que, por bem montou
um livro com músicas para devoção, buscando facilitar sua execução de um lote delas, do
Oriente ao Ocidente. É muito satisfatório.
Abro esta conversa falando sobre o Mantra (Man - pensar, meditar, devanear, articular uma
forma mental, e Tra - instrumento, objeto para emissão de som). O Mantra é a palavra, ou o
texto sagrado retirado das escrituras védicas. E o que é o Veda? Pergunto e respondo: são
antigos textos sagrados dos hindus. São Shruti, ou seja, texto da revelação divina, escritos em
sânscrito, por volta de 1500 ou 2000 a.C., durante e após o período de invasão ariana à
Índia: Yajurveda - ritos de sacrifício; Samaveda - melodias e cânticos para sacrifício;
Atarvaveda - fórmulas e palavras mágicas; Rigveda - hinos de louvor a deuses da natureza,
principalmente Agni (o do fogo).
O idioma sânscrito, por causa da sua fonética, tem a capacidade de criar vibrações e favorecer
a emanação de energia de suas fontes. Daí que cantar adequadamente o seu mantra ou o
Mahtma Mantra (o Grande Mantra) conhecidíssimo como OM, o leitor estará energizando-se
de maneira ímpar. Experimente. Por isso comprova-se como verdadeiro o dito popular de que
"Quem canta os seus males espanta", porém em parte, já que nos tratos da energia é sabido
que energia não tem direção nem sofre a ação do maniqueísmo - energia Má ou Boa - energia
é energia e só. O uso dela é que pode se alterar. De qualquer maneira, diz o autor, a
entonação correta dos mantras nos coloca em sintonia com Deus.
Há mantras curtos, longos, secretos, populares.
Combina o mantra com três formas básicas: Bhajans - canções devocionais normalmente
lentas, de adoração acompanhada por harmônio, flauta, tampoura (um tipo de instrumento
de corda); Kirtans - canto geralmente acompanhado de dança vindo com karatalas (pratinhos
de mão) e mridangas (tumbadora com pele nas duas extremidades). O participante baterá
palmas e acompanhará o cantor; Japa - canto de repetição onde se repete o nome da
divindade ou um mantra completo.
Importante em todas essas situações é que o aspecto de devoção está sempre ligado ao fator
alegria, na ato de dançar e movimentar o corpo e respirar e ser saudável.
OM SARVE SHAM SWASTIR BHAVATU – leio:
OM SARVE CHAM SUASTIR BHAVATU (h aspirado ou r carioca, as sílabas com o mesmo peso
tônico).
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KETZACOATL
Cresce sobre nossa terra a serpente / toda de ouro e sol
E do chão se vai o pranto / a clamar por paz pra nossa gente
Passa pelo céu como um corisco aveludado
e rasgando vai a imensidão do azul
É um anjo emplumado / serafim com tanta asa /
Que escurece a nuvem da manhã
Ele é nosso rei senhor / Ele é Ketzacoatl
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POESIA ANACRÔNICA I
Dessa vez temos oportunidade de entrar em contato (não muito íntimo, acredite) com o poeta
fenício Abu-ben-Bim-bom. Além de divagar e devanear, ainda se deu ao luxo de querer o
lugar de Hamurabi, o do Código. Não tendo conseguido seu lugar ao sol do deserto, nem à
sombra do palácio, Abu-ben passou a escrever. Como esse pessoal que nasce pra lá da divisão
da Terra escreve da direita pra esquerda, o nosso tradutor teve certos problemas na colocação
de algumas palavras. Mas - para o que é -, serve.
Dão!
Beu cabelo dão!
Gomo farei bara beber a areia do deserto?!?!
Dão, dão!
Bor que lebaste Kabel, bara o oásis de Omar?
Kabel, o cabelo, é beu trâsborte,
Beu aconchego das horas tardias da doite.
Abu chora.
Abu quer Kabel.
Kabel me deixou para cantar no coro muslim.
Cabelo fii da mãe, esse!!
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LILITH
Eu sei
A lua vem manchar o teu saber
Brilhar no paraíso / Luzir onde é preciso
Rasgar a minha pele /
Expor tesouros tão vastos como o mar
Vou
O mundo me espera do outro lado
Um mundo repleto de paixões
Muito além do jardim
É hora de despedir
Adeus / a lua é negra
Cansei do nada igual
Faltou mais vida e sal
O portão já vai se abrir /
e aquele anjo está prestes sorrir
Vou
O mundo me espera do outro lado
Um mundo repleto de paixões
Muito além do jardim
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A palavra BOCETA é uma das mais ilustres palavras do vocabulário. Mas, só serve para quem
fala. Não serve para quem escreve. E quando a BOCETA se instala na altura do pescoço —
sabe-se lá por quais ginásticas — já começamos a nos referir a santos escapulários.
Há quem diga que a BOCETA é uma caixinha ovalada onde muitos insignes enfiavam o dedo
ou depositavam seu rapé.
Outros, mais afoitos, sugerem que é uma estrutura ovalada onde outros depositam outras
coisas, inhclusive o dedo. Kurulan, por exemplo, batedor etíope da minha colega Dra. Moth de
Costard, deposita ali o seu báculo, com precisão beduína.
Os cretenses, muito safados, dizem que a palavra deriva de BOQUETE que é um método
antigo de cura contra os males da mordedura ofídica. Os cretenses teriam inventado o método
quando Minos, pai adotivo do Minotauro, tendo ido visitar seu filho no labirinto, foi picado por
uma cobra. Pasífae, mulher de Minos, porém, já uma vez jantada por Zeus — teve uma
repentina idéia e mordeu a perna de Minos, com o intuito de arrancar a dor ou de piorá-la.
Porém, em vez de agradecimentos ouviu:
— Para com isso, mulher não foi aí! Foi aqui!
— Aqui, onde?
— Aqui. Nos entremeios da virilha.
Bem, Pasífae disse que já estava acostumada com aquelas coisas de picadurismo de insetos e
outros bichos, tascou-lhe uma dentada lá nos entremeios das virilhas minóicas.
Ao se levantar, Pasífae estava com a boca banhada em sangue; Argineu — que ninguém
nunca soube quem é — já estava rindo quando tomou uma traulitada tamanha, que perdeu o
rumo. E saiu da história sem ninguém nem saber por que entrou. Labirintus in vitro.
As moças de Creta começaram, então, a pintar a boca com um vermelho intenso — imitando
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Pasífae — para chamar atenção dos rapazes, como que demonstrando, que o que elas tinham
em cima era bem parecido com o que elas tinham, por debaixo dos panos, em baixo. Nos
entremeios das virilhas.
Como é sabido, em volta da boca temos músculos bucinadores. Portanto, bucinar, bucinare,
buçanha (já aí uma corruptela). De BUÇANHA para BOCETA é um pulo ou uma abertura de
pernas, já que estamos na Grécia em tempos de jogos Olímpicos.
O lema da bandeira paulista nos dá uma pista sobre essas desinências e magias do
vocabulários: "Non ducor. Duco". Ou seja : "Não sou conduzido. Conduzo". Exegetas expõem a
idéia de que a palavra BOCETA deriva também de expressões idiomáticas daqueles povos do
Pindo, já devidamente invadidos pelos latinos ladinos Romanos. Alguém poderá ter dito: "Non
bucor. Buco", ou seja. "Não sou abocanhado. Abocanho"; querendo dizer "Como com a boca,
Envolvo com lábio e degluto, Boqueta-se, enfim, BUCETA-SE. A palavra muda com o tempo e
lugar.
No entanto, isso parece mais uma coisa chula do que de exegetas.
A gente ri e pronto.
Muitos povos transformam o V em B e vice-versa ou bice-bersa. São modos de falar. Como os
latinos já se apropriavam das coisas dos outros, naquelépoca, há uma linha de estudos que
quer indicar a origem das palavras de nada mais e nada menos que de VOX, VOZ. Aquele som
que sai da boca. Certos povos, ainda não estudados devidamente, diriam BOX OU BOZ. Um
pequena voz: vozeta, vozetinha e vocês já sabem como fica o resultado disso. Um vozeirão,
então... mas, são itens a serem ainda comprovados por mentes mais científicas.
Bem, certo de que o tema foi palpitante, carente ainda de mais estudo e pesquisa, daremos
por encerrada nossa conversa de hoje.
Prometemos para o futuro uma análise importante sobre a palavra CULATRA.
Só.
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POESIA ANACRÔNICA II
Apresentamos a poeta Anninha. Doce, afável, de olhos azuis e uma tez aveludada, uma cútis
agradável de se tocar co’a fímbria dos dedos; nos surpreende quando extravasa as suas
potencialidades de artista e mostra o seu outro lado, ficando imediatamente de costas.
No nosso grupo é a mimosinha do papai Tunico e foi ela quem deu a idéia daquele cubo
enxadrezado, que é o símbolo da nossa equipe de literatos.
Ela sempre mantém os pés no chão ao recitar e quando saem seus versos é possível ver sua
úvula tremulante e vermelha, na expressão máxima da sua veia poética. É, decididamente,
uma poetisa venérea. Essa poesia é em homenagem a ela mesma e a todas as poetas manuais.
A POE(nhe)TA
Mãos más
Turbam
Pensamento
Mãos leves
Roçam lá
Roçam lábios... Roçam
Mãos más
Caras
Bocas
Baba-beijo
Salivoso... pensamento
Dança leve
Abro a porta
A saliva
A gosma leve
Leva-te ao meu suco
Suco meu
Aparta leve
Lábios meus... Invada
Mãos más
Turbam-se a si
No portar do glúteo
Louco aperto
Mexo leve
Manso ir e vir
Suplico
Gemer canto
Invasor teso
Invaginar... Aberta a mina
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BOMBA!!!
D. SEBASTIÃO RETORNA DE ALCÁCER-KIBIR
do correspondente Amenófis Pinto
África ( UPI ) – A notícia caiu como uma bomba em Porto Calle. O amado Don Sebastião, dado como
morto na batalha de Alcácer-Kebir, após centenas de anos, retorna mais jovial do que nunca,
reclamando tronos e vantagens.
Veio diretamente para a Colônia e hoje o encontramos às portas dos gabinetes governamentais
requisitando o poder que era seu de herança e de direito e de fato – tudo ao mesmo tempo –
mandando que um tal Fernando caia fora – imediatamente – do trono português.
As autoridades européias não querem facilitar a coisa para o fantasmagórico Rei e afirmam que lutarão
nas cortes de todo o mundo para a manutenção do status quo daquelas regiões.
D. Sebastião, logo ao chegar, tomara posse de terras em Brasília e na Bahia, determinando um Reino
Algarviano na faixa que liga as duas capitanias. Com ele vieram 2 638 soldados muito bem treinados e
mais 1200 mercenários africanos que se aliaram ao reaparecido monarca durante esses anos todos.
Para esse bando de gente burra que não sabe nada, D. Sebastião, também conhecido como "o
Desejado", foi o décimo sexto rei de Porto Calle, filho do príncipe D. João e sua Mulher D. Joana, o que
até hoje é motivo de debates e seminários, o fato dele ser filho de sua própria mulher e ao mesmo
tempo um homem traído. Isso fez com que ele se enfronhasse nas guerras.
Amenófis Pinto, Irmão de Akenathon Pinto, envia do Continente Africano notícias fresquinhas sobre o
mundo moderno, o de 500 anos atrás. Como ainda não mandou nenhuma fotografia sua para a
redação, não sabemos nem como ele é. Mas para não deixar você, leitor, sem nenhuma figura para
abstrair, fica valendo esta mandala. Sem trocadilhos, evite criticar esta matéria e mandá-la para o Cabo
das Tormentas ou, como é chamado nesta porção ocidental de terra, "onde o Judas perdeu as botas",
ou as meias (que é mais longe) ou, coisa que o valha.
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MILÊNIO
Reverendo Tiburtius
Minha gente, o novo milênio alcançou a cidade à toda. Atividade total. Muitas manifestações
religiosas e científicas alvoroçam o morador da cidade que mais cresce nesse nordeste de
Estado.
Será uma Cidade-Estado? Não! Isso é coisa do passado.
Agora é uma cidade abrigo de pássaros Beraldinos da cabeça branca, e, aquele outro pássaro
construtor de torres, o tal do João Sem-Terra.
Estamos no novo milênio e a cidade mostra toda a sua pujança e criatividade. Uma cidade
sem preconceitos. Numa tacada só elegeu uma única pessoa com todas as minorias juntas
embutidas nela. Só faltou ser negro, ou afro-algum lugar.
É o tal do "modernismo" que muita gente repele. Os velhos ficam alucinados com as novidades
e ficam mais velhos. Não conseguem dedilhar um ábaco nem a pau – coisa que qualquer
criança chinesa fazia a 4 000 anos atrás. Eis algumas:
Outra: O Papa tem novos filhos. Serão herdeiros do pontificado? Um desses filhos é mulher e
um outro é mulherzinha... tá valendo assim mesmo?
Descobriram ou inventaram ou roubaram uma nova música, éééééééé! Chama-se cantochão.
O pessoal da Península Ibérica, principalmente os que ficam virados para o mar – os de Porto
Calle - pensaram que era coisa de se cantar com a cara na terra ou algo parecido e já foram
torcendo o nariz para o modismo. Mas, não tem nada disso. É só u’a maneira nova de fazer a
cabeça do povo. Parece que o autor da nova composição se chama padre Martchelo.
Dizem que é o Benedeto Martchelo, o nome do gajo.
Na Cidade, é bem sabido, o novo milênio vem trazendo alucinações. O alcaide do Burgo ia
tentar o poder novamente, mas sua candidatura foi pro buraco (sem risos!!) e a oposição se
articulou em torno de uma tchurma nova. Eles carregam uma estrela vermelha e deram o que
falar. Gastaram pouco e ficaram lado a lado com o que gastou muito e teve o mesmo número
de escolhas. Mas quem ganhou mesmo foi uma equipe de contrabandistas de um outro
pássaro – em extinção, é bem verdade – um que tem nariz grande, amarelo e preto.
Ganharam e queremos ver levar.
Na Cidade há pouco teatro, há pouco grupo coral (mesmo porque essas coisas aparecerão só
daqui a quinhentos anos. Não vamos nos precipitar). Por outro lado, alguma coisa nova na
arte da tortura já está em ação: a fogueira, por exemplo. É uma invenção recente. Antes se
dedicavam ao palito entre as unhas (inspirados nos fenícios de um tal Malufio), e na costura
de vaginas rebeldes, para adúlteras e viúvas – alguns ainda usam enfiar o palito nas vaginas
— porém, o novo milênio trouxe a modernidade e agora eles usam fogueiras. Joana d’Arc
será a matrona da primeira fogueira.
Na Cidade, estamos no ano 1 000. Muita gente morreu por isso, pensando que o mundo fosse
acabar. De certo modo, para esses que morreram, o mundo acabou e não foram poucos. Na
Cidade eles não acreditam de jeito nenhum que o mundo seja redondo. Para eles, o planeta é
um cubo. Não sabem ainda, do uso de caravelas, mas parece que reconhecem logo de cara
um côco. Quem tinha deu e quem não tinha comeu, e assim foi.
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E, fiquei sabendo agorinha, uma notícia de matar o ganso: Don SEBASTIÃO RETORNA DE
ALCÁCER-KEBIR. O nosso correspondente Amenófis Pinto trará detalhes.
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VOZ DO INTERIOR
Há grupos artísticos – assim se denominam – no interior, na interland, fora do circuito da
capitais.
Os grupos se acham artísticos e se dizem culturais.
Misturam tudo isso ao ‘aprendizado’ advindo da televisão e começam a elucubrar o sonho
global.
Falta a formação. O básico da formação. Falta a leitura e a capacidade de saber ler. Falta
saber ler e pão isso entender o texto.
Um dia ator interpretava um texto e perguntei-lhe sobre o significado de uma palavra que ele
dissera. A resposta foi: É... procurei em vários dicionários e não encontrei. (pausa) Ia até te
perguntar.
Uau!
Uma palavra que não tem nos dicionários.
Nos vários dicionários que ele pesquisou. E que tendo pesquisado e nada achado, interpretou
assim mesmo.
Interpretou o que? A falta do significado?
E que dicionários são esses, exaustivamente procurados, que não possuem a palavra
‘imberbe’?
Acima foi o exemplo da maioria dos grupos interioranos. Há músicos que são (sic) ‘auto de
datas’; assim se chamam ‘auto de datas’, orgulhosos da situação. E é mais um exemplo do
equívoco geral.
Nenhum deles é humilde. São todos arautos da cultura ou da contracultura mas, enfim, são
lutadores anacrônicos de uma era rebelde que já foi, cujos frutos colhemos agora, e,
percebemos que os frutos estão sem sumo.
O equívoco finaliza quando o pretenso artista tem que entrar no mercado de trabalho e vai
direto para a loja, vender eletro-domésticos, pois têm de sobreviver, eu acho.
São desculpas, pois enquanto são jovens desdenham a busca da formação e praticam,
viciosamente, a construção do ator segundo a técnica d’A Malhação. É triste.
São rebeldes e exigem apoio do poder público, de quem se dizem inimigos. Chorosos clamam
“ninguém nos apóia”, como se dissessem “nós, gênios das artes, ninguém nos dá apoio,
temos a sabedoria das musas, ninguém nos apóia”, e copiosas lágrimas crocodilianas caem
sugestivamente.
Sábio aquele, interiorano, que desenvolve sua arte abrindo a mente para as várias tendências.
Sábio o que ouve e aprende, e apreende e testa para ver se é bom mesmo.
Sábio o que lê e se nutre da experiência alheia.
Pobres PaulosVilhenas sem QIs em todas as suas articulações. Pobres!
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MINICOITO
Nesse sincronismo de andar de Gradiva indica que o fetiche se mostra implacável. O senso do
sincronismo é um sinal do gênio, já disse um certo Jeremias, enquanto lambiscava dedos e
outros artelhos. No entanto, a Gradiva – aquela que avança, - e a Gradisca – aquela que
agrada ou dá – têm alguma coisa de similar em suas andanças pela face do abismo ou ruínas.
Foi com essa falta de atenção mundana que eu me apresentei à Gradiva tentando, no mesmo
momento, beijar-lhe a fímbria da roupa, com meta de alçar-lhe os pés saltitantes. A menina
passou a correr desabaladamente enquanto eu me via preso por uma dentada, em sua roupa.
Amante das artes da corrida de 100 metros Gradiva esfolou minha boca desejosa esfregando-
a na areia da pista assim como quem nada quer. Não foi por isso que deixei de desejar
aqueles pés ligeiros, parentes dos pés de Aquiles, se bem que os pés de Aquiles deixavam
muito a desejar...
A inteligência física, coisa que não me faz cabeça pois não me interessa o domínio da razão,
é uma forma de inteligência importante para acadêmicos e outros doentes, mas é irrelevante
como qualquer outra, para fetichistas de plantão, como eu.
Gradiva era deusa. Deusa da carreira. Corredora dos mais amplos e largos saltos. Suas pernas
atingiam amplitude de mulher lapidar. Mas, suas sandálias estavam sempre sujas. E isso é
coisa de gênio. Não somente em termos de saltos ornamentais como em salto sobre obstáculo,
mas também em termos humanos gerais de salto triplo. Ela, Gradiva, é matriz irreverente de
outras corredora sensuais de belo corpo e calças justas. Original da linguagem do atletismo
mais desenvolto; matriz de espasmos sexuais dos mais esportivos se bem que devendo tudo a
Onan. Se corresse como correm os atletas nos vasos cretenses!
Tirem a roupa de Gradiva e verão que não minto. Magnífica estátua surgida sob as mãos de
um Fídias olímpico. Observem seus saltos e piques de oitocentos metros que já estão em nível
sobre-humano de coordenação, e percebam que minha boca ainda está presa aos ilhoses de
couro de sua sapatilha bem moldada. Que pés. Que jarretes!
Tenho trabalhado para escapar do feitiço de Gradiva, trabalho com artistas que me expulsam
rapidamente de seus estúdios, pois quando chegam no final do dia há pés espalhados por
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toda parte. Pés de pano e palha, pés de mármore ou pedra e granito. Pés pintados nas
paredes no mais puro afresco... enfim, pés. Ao longo da minha carreira de podólatra fui
curador de variadas mostras de sucesso, mas, nunca me esqueci de Gradiva e sua capacidade
impar de saltar fora dos relevos em que se metia e calcar o tornozelo na nossa cara.
QUATRACRÓSTIOCOELEMENTAL
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POESIA ANACRONICA V
no decorrer de incidentes ínfimos
no terreno amoroso de uma contra-imagem
a boa imagem se altera e se inverte
Rasgou-se a imagem
quebrou-se o cristal da alma luzidia
por mim criada
Um ponto opaco sobre o espelho
desfascinado... sem dor / sem face... sem cor
Fico envergonhado
e permaneço no caminho do Bem
tomando conta de minha própria imagem
que se rasgou / esfacelada / sem face / selada a face
bruscamente rompida pelo ponto
Minha imagem se torna mesquinha
mas não se torna má
Reflito
O outro se alterou pela linguagem
e isso é freqüente
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NOTAS ROUBADAS
Sim, sim... tudo é roubado.
É evidente que se trata aqui de uma intencionalidade, que Rita me perdoe, a leve Apoena,
aquela que se deita, lânguida, entre fronhas e lençóis, vestida apenas de pele morena, às vezes
doce, às vezes salgada, às vezes coberta de uma seda negra, soerguendo um livro, também
negro... É inútil interrogar sobre a sinceridade do escritor voyeur.
Como manifestar a essência de Rita sem glorificá-la? O escritor, quando a vê, nota que ela se
esconde entre as flores e folhas, em um mimetismo que acelera sua perigosa manifestação
como doçura ou como um animal pelágico, darwiniano, na mesma cor que as água do mar.
Rita adormece. Deixou que seu lábios se mantivessem entreabertos e, como um novo Castro
Alves, o escritor percebe que balançam sobre seu corpo as tranças do cortinado, fazendo leve
sombra, sobre ela e o livro. Curioso, o escritor, aí, bem diferente do Alves, se aproxima e quer
sobrepor seus lábios contra os dela, mas, o que há pior do que notar que as pernas da moça
se entreabrem, também, num movimento furtivo e a doçura de suas intimidades se mostram
suaves. Cálidas.
O escritor se permite perguntar. “E agora. Que lábios beijarei?”
Ela está úmida e sorri, em meio ao sono. “Dormirá de verdade? Ou será poetisa fingidora, um
Pessoa mulher, fingindo o que sente, sentindo o que inventa sentir?” Poetisa apetitosa e o
anagrama bem cabe naquela situação.
Veremos mais adiante o quanto o tema do adormecimento é maléfico na vida do escritor. No
devaneio do escritor. Convém opor esse temor do dormir ao temor da sombra, do oculto, da
noite, e enquanto os lábios se tocam... a boca do escritor e os lábios molhados da vulva da
pequena... as pálpebras se fecham e os braços se recolhem como bem queriam os dois. É o
caráter invertido do escritor antigo e obcecado pelos sentidos e pelo prazer. Rita geme. A
morte seca a domina e ela se torce na cama. “Finge dormir?” Finge estorcer como se em
sonho estivesse alheia aos desejos do escritor faminto? A encarnação de Deus no homem se
renovando em cada uma de suas paixões.
O desejo pertence a todos os tempos.
O escritor pensa nisso, abre os olhos para o baixo ventre da moça e vê os seios morenos,
bicos salientes, agora, massageados pelas mãos da índia. “Ela dorme?” Ele sorri.
Ângulos salientes e reentrantes, simetricamente opostos e talvez inimigos... o escritor se
debruça sobre a cama e o livro sai para a lateral, despejando letras e imagens não lidas.
Ritinha geme e se abre. O escritor se percebe um gibelino, uma cor germânica no andar e no
falar; uma lealdade perdida entre paredes caiadas; e ela, Rita, a índia, a Apoena de cabelos
lisos, parece recender a razão e lei de desejos mais vorazes e mais densos, algo como um
guelfo. E esse par é um tema de valorização do ardor e da paixão imediata.
O escritor está desesperado e lento. Saliva inteiramente a entrada da gruta da mulher que se
ergue no ar, buscando degraus. Nessas horas tão plenas, tão prodigiosamente concentradas,
onde os minutos valem séculos, não importa se o escritor se encontra no século 21 e Ritinha
vive em 1920, somente a morte responderá à impaciência dos espíritos à pressa das coisas.
Ela fala: “Escritor, o que é esse nosso romance?”
“Rita, é o que neste momento você tem no espírito, sem a preocupação com pátria, com
ciência...com religião”, ele responde.
“É um romance insípido... ah!... não é uma grande poesia, o que temos?”, ela pergunta.
“Nada disso. Não há amor sem a devastação do desejo sobre o corpo. Fora disso é abstração
e mesmo subversão... “
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“Perversão... perversão!”, ela grita, “Me ama, me destrói, me deseja!”, ela continua a gritar
enquanto seus cabelos negros são jogados para todos os lados e a roupa de seda – será
cetim? – desaparece não se sabe onde.
O escritor é um catador de ossos, restaurador da poeira humana e o escritor percebe que,
foder, é um enterro precipitado. Por isso ele evitava penetrar no corpo moreno. Mania da
época? Como gozar com essa mulher se o escritor só a conhece através de fotografias e
escritos e poesias?
Ela, agitada, diz entre lábios marcados e mordidos: “Quem é você?
“Sou vegetariano, domesticador de pássaros e procuro nas vidas uma história em espiral,
nada mais”. Ela não pode saber muito sobre o escritor pois a fantasia se desdobra em nada.
“Você me faz lembrar da glória e da falsa mistura da donzela com a necessidade de amar .
Provavelmente você não existe”.
“Há a idéia e há o pensamento. Onde caberá um, não existirá o outro”, e o escritor, após dizer
isso, desaparece.
Rita fecha as pernas molhadas, devagar, sorvendo últimos sopros de prazer, de tanto beijo e
mordidas e, senta-se no leito, procurando o livro. Olha para todos os lados e corre à janela.
Nada.
Decide retomar da obra que lia, no ponto em que parou e lá estava: “A humanidade não é um
homem que envelhece; é um homem que rejuvenesce, e que tem a infância à sua frente como
um paraíso... Sim, sim... tudo é roubado... É evidente que se trata aqui de uma
intencionalidade, que Rita me perdoe, a Apoena... aquela que se deita, lânguida, entre fronhas
e lençóis... vestida apenas de pele morena, às vezes doce, às vezes salgada... às vezes coberta
de uma seda negra...
É inútil interrogar sobre a sinceridade do escritor...
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ORFEU
Vou com a alma lavada / Uma oração / fome e paixão
Saio co’a palma virada ao céu / É a danação / sem coração
Corre um mar de fogo
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VÔO DE BICICLETA
Cada pessoa é uma humanidade. Uma história universal... uma força decidida voando
pelas estradas, se quiser...
Quando tomei de minha bicicleta eu percebi que armava uma revolução de sentidos,
para restaurar os ventos de meu prestígio, e todos os que saíram às ruas e me viram em
roupas coloridas e um capacete transparente. A corrida começava.
Lavar a mancha de lama de uma vida desprezível era pilotar com argúcia e
temperamento a minha bicicleta. Ao meu lado outros ciclistas se arrumavam, cavaleiros
andantes cervantinos? - e conversavam a valer, exibindo luvas de couro.
Esguichei uma golada boa de bom líquido e deixei meu sonho vagar pela pista
demarcada. Era uma corrida dura de suportar a todo filho daquela terra... pior do que
aquilo só a fome, câimbras e uma queda. Mas a leitura de páginas ardentes de técnicas
antigas e ensinamentos modernos me fizeram erguer a cabeça. Digestão, enriquecimento e
prudência e as pernas seriam móveis alavancas sorvendo os metros da estrada em busca
de um primeiro lugar.
Os juízes se aproximaram com instruções.
Fomos posicionados e os números tremularam nas camisetas pois um vento simples
nos alcançou, trazendo aromas insuspeitos de café.
Testemunhas desesperadas se estendiam pela pista, aos gritos, em torcidas familiares,
alguns consternados, se ofereciam para nos ajudar. Aí experimentamos um ardor de viver
e a enorme responsabilidade de atrelar nossos antepassados àquela corrida.
Um tiro.
Partimos.
*
Poucos somos nós, ciclistas que ingenuamente temos confiança em algumas idéias
simples: a meus olhos, principalmente, o progresso e a velocidade, voando pelas ruas me
inspiravam um perdão universal; a verdade e a justiça traçavam, juntas, um desenho
arbitrário sob o céu de ventos e sombras e nuvens; as leis da natureza eram cumprimento
obrigatório das normas para uma vitória ampla e discreta. As rodas da bicicleta deslizavam
vertiginosas e essas obras eram verdadeiros atos de fé.
O paradoxo que me detinha era o fato de não podermos, todos os corredores,
chegarmos juntos e felizes, vencendo a prova, pois não haveria prêmio maior do que
imensamente correr sobre bicicletas, deslizando sobre asfalto perfeito. Já me disseram que
isso é ter pouca consciência dos limites da razão. E a meu lado zuniam aparelhos
metalizados de inclemente fibra. Pingos de suor do ciclista deslizavam sobre os guidons,
mas, sumiam com as brisas violáceas. Pernas fortemente treinadas faziam reinar correntes
e engrenagens dentadas. A mudança de marcha me fez subir centímetros e alcançar
metros à frente.
Andar de bicicleta é um belo ato de fé.
Penso que muitas vezes eu me extraviava nas estradas. A mim valia mais o viajar do
que vencer a corrida. Uma curiosidade malsã de saber a quantas ia o vento no meu rosto?
Mesmo assim, a virtude de ser um ciclista nos conduziam, no entender de competidores
que éramos, às nossas verdades mais profundas. Mesmo que cada um fosse para um
lado. Mesmo que eu me perdesse sem pedalar e decifrar os enigmas dos aros metálicos de
minha SILVER pujante.
Correr e manter a cabeça erguida.
27
conto crônica poema coelho de moraes
A bicicleta era nossa vítima e morria ao sabor de longas jornadas. Muitas vezes com
suas partes em desalinho. Era natural que os valores dos técnicos fossem invertidos a cada
campeonato. Não estavam, tais males, do lado do ciclista desaparecido e com sua corrida?
A bicicleta encarnava a humanidade infeliz. Essas visões, certamente em parte infundadas,
ameaçavam impedir o ciclista de levar mais longe seu olhar. Mas, sua defesa de causa
dissimula um alcance profundo nos tempos e nas medidas de recordes.
A bicicleta em si, ou o binômio ciclista-cicleta daria, ao mundo que representava, mais
do que um caráter de revolta? Uma preocupação superior de assegurar o futuro, a
duração de uma corrida e a duração de uma vitória. Com isso víamos limites à nossa
liberdade de voar, liberdades de buscas que constituíam o sentido desse mundo de pistas
asfaltadas e turbulências de pontos de partidas e chegadas. Seja dito, sem querer rebaixar
nada, sem distinções de pódios ou mesmo de equipes (eu gostaria de sugerir, ao
contrário, um sentimento de força), a própria vida do ciclista corresponde a um equívoco.
Ele gostaria de ser um pássaro. A angústia, evidentemente, me guiava entre atletas atentos
– isso me extraviava novamente – pensando em escrever um livro ou uma história que
falasse do ciclismo.
Por mim passavam dez outros, em uma velocidade amarga e deslustrosa. Seriam
também escritores?
- Corre Michelet, corre! – gritou um deles, enquanto eu pedalava afobado para voltar
ao meu ponto.
Numa passagem árdua, entre curvas e florestas (que não cheguei a curtir como queria,
mas obtive de terceiros informações precisas) vi que meu trabalho e minha insegurança eram
fruto de um medo e uma falta de respeito com os outros atletas. Eu os desdenhei, confiando
plenamente nas funções da minha bicicleta. Faltou-me inspiração. Vi minha velocidade
despencar e percebi que a respiração encontrava outros ritmos, alheios ao ensaio, ao treino,
aos conselhos da equipe técnica.
Tento imaginar meu rosto, resfolegante, emaciado, nobre, as narinas frementes.
*
-Michelet é sem igual!! Viva! Corre! Força – e a torcida me animava.
Diziam os jornais que ninguém podia ser comparado a mim, em função da acuidade
visual, dramática, muitas vezes, com um elemento quase shakespeariano do acontecimento
vivido. Eu corro para esse espectador invisível, que passa sob a viseira de meu capacete
como um borrão, como um polichinelo risonho, sacudindo braços e dando vivas. Traço meu
caminho na história. E corro.
Os técnicos censuram meus erros, detalhes, posicionamento no selim, mas tiveram que
se curvar diante da minha força de visionário. E eu corri. E, sou realmente um ciclista, no
sentido em que pedalar é um feito majestoso, em que o homem centauro que doma sua
bicicleta, projete sentidos e quimeras e não, pura e simplesmente, uma ciência. Corro e vôo.
As asas não aparecem mas esbatem-se no rosto dos atletas que ficam para trás. O ritmo do
coração retorna aos gradis da introspecção. Sei muito bem reconhecer a grandeza e
suspeitar das intrigantes melopéias dos cantadores de vitória, mas eu lanço minha
personagem do momento – Michelet, o ciclista – numa ardorosa e rápida pincelada nos
cenários da estrada e transmito meu vôo para um pujante regozijar das almas, que na lateral
gritam meu nome. O proscênio da fatalidade, segundo Piscator, meu mestre e preparador
físico. Ele me vigia e eu me metamorfoseio no grande corredor, no grande domador do
cavalo metálico – na magrela dos tempos juvenis, no camelo dos tempos de aprendiz de
ciclista.
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conto crônica poema coelho de moraes
Os juizes se viram atarantados quando surgi na reta final, convulso, instigante, alegre,
cabeça inclinada para trás, rompendo o brilho do olhar gelado dos adversários e vencendo a
minha primeira corrida.
A multidão alvoroçada, gritava meu nome. Eu sorri.
Ornado da coroa de louros, levantei o troféu.
Nele se refletiu um perdido raio de sol.
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conto crônica poema coelho de moraes
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conto crônica poema coelho de moraes
CHUVA DE LIVROS
Bom.
Eu bem me lembro e foi assim.
Nimrod andava de um lado para o outro e preparava mais uma de suas artimanhas. O rei era
danado para inventar cousas. O fato é que o tempo fechou e uma chuva densa, preta, sidérea,
carregada de nuvens grávidas, intensa, desceu intempestiva sobre aquele povo que ainda
não tinha inventado o guarda-chuva.
Olhando o céu, assim como quem tira piolho da cabeça de macaco, Nimrod teve a idéia.
Construir uma imponente torre, que alcançasse o céu e fizesse parar aquela chuva tremenda.
Meu filho Jordão, dado a invenções e musicismos ao som da lira, disse que era mais fácil
inventar um guarda-chuva do que construir a tal da torre. Achei graça e pus, tais palavras, na
conta dos anseios do jovem imberbe que crescia rapidamente. E, choveu outra vez, para fúria
de Nimrod, que estreava suas novas galochas.
O fato é que, após as chuvas, o chão local ficava impregnado de substancia escura,
escorregadia. Diziam que era neve. Nimrod, furibundo, gritava: "Neve escura, cara-pálida!. E o
frio? Cadê o gelo?" e, o cara-pálida dava de ombros ocultando-se rapidamente do olhar
nocivo de Nimrod.
O rei, por sua vez, saiu atrás de patrocinadores e conseguiu, com Baal & Co., dinheiro
suficiente para alugar uns dois mil escravos e, usando a matéria prima local - palha e barro,
segundo estudado apurados de C.B.de Mille - iniciou o trabalho de ereção... ereção da torre,
bem entendido.
E chovia. Uma chuva estranha que à medida que a torre subia se tornava mais e mais grossa.
Até doía de tão pontuda. Cravejada de arestas. Ornada de arabescos friáveis.
Mas, a torre, se tornava imponente, a olhos vista, mesmo por que não havia outra maneira de
olhar a não ser com olhos.
A chuva era cada vez mais torrencial. Descia meio quadrada, volumétrica, retangúlica,
enciclopédica; quando batia na cabeça da vítima era desmaio na certa, e, dessa forma, ao
longo de trinta meses de construção, a torre se impunha no horizonte, enquanto os povos, já
desorientados, jaziam por terra. Ao sopé um chão de couro e barro, gelatina e ossos.
De escravos, porém, mais nenhum. Todos quedavam inconscientes nas estradas que seguiam
a encosta da torre.
Em pé apenas Nimrod e sua namorada, a Bebel.
Ele a levou para o alto daquela simbólica construção, passando por cima dos corpos dos
escravos e, de alguns representantes do povo, pré-putados, pós-putados e deputados para
batizar a construção em sua homenagem. A Torre de Bebel, seria conhecida nos quatro
costados do mundo.
Então a primeira gota da definitiva chuva caiu.
Era um volumoso livro de culinária caldaica. Ele despencou e atingiu o bestunto da Bebel.
Ela não agüentou o tranco e caiu. Desmiolada, num primeiro momento. Desmaiada num
segundo, apesar de não Maio não ter sido inventado, ainda.
Aquela chuva estranha eram livros de todos os tamanhos e se espalhavam pelo orbe,
avançando sobre vilas e lugarejos longínquos.
Nimrod se escondeu debaixo do corpo da mulher e foi se esquivando o quanto pode, mas,
não demorou muito naquele balé no alto da torre: A coleção completa de uma enciclopédia
sumeriana atingiu sua moleira e ele emborcou naquela lama livresca.
O estado de animação suspensa durou exatamente um ano, ou seja, sete meses, já que aquele
povo não tinha um calendário moderno para se guiar. Então, todos acordaram do sono
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conto crônica poema coelho de moraes
livresco e passaram a relatar, para o amigo do lado, a experiência por eles vivida. Mas, o
faziam em vão.
Amigo não entendia amigo. Inimigo muito menos. Ninguém entendia coisa alguma.
Exasperados tomavam dos livros e procuravam o significado das palavras, suas e o
significado da dos outros. Alhures, muitos ainda jaziam em terra pois o livro, que lhes
abiscoitara a memória, ainda era feito daquelas argilas duras de Súmer e Goshen. Com direito
a galo e tudo mais. Pouca palha e muito barro, como sói dizer.
E foi assim que Nimrod viu-se em um local onde nada se poderia explicar ou entender, a não
ser que passasse a estudar, ler e reler aquela quantidade toda de livros. Buscar conhecimento
e entendimento com o material que descera dos céus. O novo maná.
Meu filho Jordão, com o qual só pude conversar novamente quando fez dezoito anos, por que
nada do que dizia me era compreensível, abriu um livro e encontrou uma história sobre a
invenção do guarda-chuva e partiu a ser cantor de ópera para os lados de uma Cashemira
ainda a ser inventada.
Bebel quase ficou paralítica em função da volumosidade da obra que lhe atingira a cabeça,
mas, a poder de muita flexão de pernas e um amplo relacionamento com os homens locais –
única linguagem que lhe era possível - suas habilidades foram preservadas e hoje ela trabalha
nas docas de Jaffa.
Nimrod, por sua vez, graças ao contínuo trabalho de captar livros e melhor compreender a
situação do mundo, construiu uma vasta biblioteca levada para Alexandria. Encarando
seriamente a importância daquela chuva de livros passou a entender que sua postura fora
errônea e lutou bravamente pela libertação dos escravos do mundo. Aqueles que sofreram a
ação da chuva tornaram-se imediatamente livres (livres-pensadores?), em pensamentos,
palavras e obras (pedreiros-livres?).
Eu escrevo livros, conto histórias e estórias, de todos os tempos. Tento mostrar que cada povo
diz uma coisa, e que muita coisa com o mesmo nome pode significar diferenças.
Os povos conhecem a mim como Cronos e sabem que lerei tudo o que a humanidade
produzir, para sempre.
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conto crônica poema coelho de moraes
caríssimo poeta
lembra que o sonho é de tênue tão fugaz e nada vale
o trabalho da formiga é ineficaz / demora / desculpa
colibri com a gotinha nunca apaga fogo algum
são desculpas engraçadas / sedentárias / bem burguesas
existe o diferente e assim perdura o mundo
o fraco chorará
só perdura em poema antigo
se há sociedade não pode haver igualdade
os poderes são de opressão
civilização construída e paga
altera o mundo num vez e nunca mais se volta ao primo esboço
acreditar em mundo novo – acreditar em mundo outro é conto de fadas velhuscas
sempre tem um lobo atrás da casa
caro poeta
se eu quiser um dia
o valor do dia-a-dia / o amor das coisas simples
eu não usava NET
não entrava em CHAT
Não ligava carro
Nem logava BLOG
não tinha namoricos virtuais
caro poeta
esquece o Parnaso
Bilac já dorme em outros berços
eu prefiro alguém que saiba do que faz
em vez do voluntário ineficaz / a formiga / o colibri
tá ligado?
Mas escreve assim mesmo / escreve qualquer coisa
Elogia a torto e a direito / o caderno fecha em maio
E a WEB nos espera
Um abraço
COELHO
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conto crônica poema coelho de moraes
JESUS EM APARECIDA
Mateus (21,12): Tendo Jesus entrado no templo, expulsou a todos os que ali vendiam e
compravam; também derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam
pombas. 13) E disse-lhes: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; vós,
porém, a transformais em covil de salteadores.
Marcos (11,15): E foram para Jerusalém. Entrando ele no templo passou a expulsar os que
ali vendiam e compravam; derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam
pombas. 16) Não permitia que alguém conduzisse qualquer utensílio pelo templo; 17)
também os ensinava e dizia: Não está escrito: A minha casa será chamada casa de oração
para todas as nações? Vós porém a tendes transformado em covil de salteadores. 18) E os
principais sacerdotes e escribas ouviram estas cousas e procuravam um modo de lhe tirar a
vida, pois o temiam, porque toda a multidão se maravilhava de sua doutrina.
Lucas (19,45): Depois, entrando no templo, expulsou os que ali vendiam, 46) dizendo-lhes:
Está escrito: A minha casa será casa de oração; mas vós a transformastes em covil de
salteadores.
João nada fala a respeito do episódio no Templo.
Coelho (capítulo e versículos ainda indeterminados, pois o Evangelho segundo Coelho ainda
está em processo de inspiração): A) Tendo Jesus chegado à Aparecida, lá nem perceberam
da sua presença pois todos os visitantes, também chamados peregrinos, preocupavam-se com
a sagrada compra de santinhos e amuletos e bentinhos e terços abençoados e escapulários e
imagens em cera, da mesminha forma que faziam os seguidores de Baal. Jesus viu que nada
aprenderam de seus ensinamentos e isso turvou seu semblante. B) Disse-lhes Jesus, em altos
brados: Está escrito. Isso aqui é um templo de orações, mas vocês o transformaram num
mercado. Parece um covil de ladrões. Quem são esses caras de saiote preto? Serão fariseus?
Quem deu permissão para vender bugigangas em meu templo? C) Alguns incautos riram a
valer e nisso Jesus saiu a chicotear a todos, tanto os padres, os bicheiros, os gatunos, os
banqueiros, os exploradores da cruz, os beatos, as beatas, os vendilhões do templo, os que
dizem plantar a civilização do amor, bem como os que vendiam pombas plásticas, como
lembrança de Aparecida e outras quinquilharias inúteis, pernas de cera, braços de madeira e
cabeças ocas. D) Nesse momento todos se atemorizaram e se perguntavam: Quem é este
doudo? Quem é o barbudo sujo e maltrapilho? Quem é este louco sacripanta? Assim diziam os
pagadores de promessas, os que negociavam com os santos, os traficantes de favores e seus
mediadores, representantes do céu em terra, donos de TVs Universais. E) Então a milícia
pública, a polícia, chegou, alertada pelos serviçais do templo, e, a poder de umas boas e
inesquecíveis cacetadas derrubaram Jesus, ao que o Rabi disse: Outra vez? Essa não! F) A
multidão apupou. Podia, novamente, comprar e vender, comercializara figura do crucificado,
expor os seus santinhos em paz! Jesus foi levado para a Delegacia de Polícia de Aparecida.
Exegetas de várias tendências religiosas ensinaram que a conversa foi assim direcionada:
Delegado: - Quem sois vós? (é claro que o delegado não disse assim, na segunda do plural,
mas nós, escribas contemporâneos temos que obedecer as regras do vernáculo e do bem
falar). Quem sois vós, seu bagunceiro?
Jesus: - Jeoshua bem Yussuf, bem Miriam
Delegado: - O que? É alguma brincadeira? Não entendi nada. Respeite a autoridade presente
– Jesus olhou em volta procurando alguém - Responda direito – tornou o delegado - Da
onde vem o senhor?
Jesus: - Você não vai acreditar.
Delegado: - Tente.
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conto crônica poema coelho de moraes
Jesus: Está bem. Eu avisei...é muito difícil de acreditar, mas, lá vai... Venho do céu. (Os
policiais começaram rir. Jesus observou essa questão e muito se turbou em seu semblante) Eu
não disse?
Delegado: - Não tem mais nada para inventar?
Jesus: - Nasci em Belém.
Delegado: (escrevendo em seu pergaminho) Ah! Agora sim... Belém... do... Pará. Deve estar
em São Paulo há muito tempo , pois não consigo perceber o sotaque.
Jesus: - Paulo está aqui também? Ué? Por que não me avisou. Eu não teria enfrentado
sozinho aquela multidão, sim, pois, e repito, a multidão estava ensandecida e Paulo é grande,
pesado e gosta de descer o braço de vez em quando... Eu nasci em Belém da Judéia....
O resto é fragmento ainda em tradução... difícil de compreender... o fato é que Jesus notou
que os policiais eram menos violentos que os policiais de Mel Gibson, e achou isso bom. Chega
de cacetada. Resolveram prendê-lo por destruir bens alheios, abriram um processo por
transitar sem documentos de identidade e por falta de decoro público.
O delegado ficou na dúvida se o repatriava ou o levava para o departamento de identificação.
O delegado já estava cheio de hippies bandalheiros.
O delegado lavou as mãos na pia.
Imediatamente carregaram Jesus para a cela. Lá o homem de Nazaré encontrou-se com a ralé
da cidade e disse: ‘Eis que me encontro onde devo realmente estar. Em meio a publicanos,
pecadores e dissolutos, para orar e pregar.’
Jesus levantou a voz de muitas águas e falou: ‘Filhinhos. Não temais, pois estou aqui. Sou o
caminho, a verdade e a luz.’
Ao que um dos presos bradou: - Ih! Lá vem outro evangélico.
Nesse momento uma pomba cinzenta adejou pelo vestíbulo.
Os presos a pegaram e a comeram ante o assombro de Jesus que disse:
- Pusta, mas o que que é isso, meu Deus! Onde fui amarrar o meu jumento?
- Se preocupa não, barbaça, - disse um dos encarcerados – que Deus é Pai!
E Jesus retrucou: - É! Tô vendo!
Pouca coisa mais se sabe dessa história.
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conto crônica poema coelho de moraes
DIÁRIO DE PIRATA
Dia Um, como se nascesse
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conto crônica poema coelho de moraes
dentro da lei
esquecidos dos piratas que vagavam na noite / largo de baías
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conto crônica poema coelho de moraes
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conto crônica poema coelho de moraes
“Eu não posso”, Martes retorquiu cuidadoso, “eu não posso. Já percebo que a mandrágora
está plantada em algum chão da campina, mas eu não posso.”
“Pode sim.”
**
Na manhã seguinte Abigail está diferente. Talvez grávida. Está diferente. Mãe naquela mesma
noite. É o sangue do meio-dia. Lembra Rama e Sita e a queda da montanha, ainda virgem e
solene. Naquele meio-dia há muito aroma e sombras, há sabores acres e a busca pelo vinho
medicamentoso. O Ramayana desdobrado em pétalas.
O fato é que Abigail transcende mirra e canela e parece haver dormitado sobre esses incensos
durante meses. Há tanto óleo de mirra que parece suficiente para três cadáveres.
Ela, já mãe enternecida, e Martes, se encaminham para o poente, numa caravana de
camelos ordinários, pensando na vida que se abre entre o odor insípido de lírios flutuantes e o
amaro rancoroso do aloé que a cada dez anos dará sua flor.
Lembra cuidadoso... a cada dez anos, não menos.
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conto crônica poema coelho de moraes
...morto
caiu de cara nas estrelas que lhe espetaram o olho esquerdo
neocósmica teoria
ah! Danado de especulador celestial
nem gregos nem troianos
a Terra não é o centro do universo!
É o Sol!
Ora / direis /ouvir solares
munido com triquetrum e baculus
sem lentes / solitário / avarento filósofo do céu
morreu matemático
como o mestre Millor /
como o Mestre Millor sofreu todas as operações
felizmente todas matemáticas...
Ah! A geografia das constelações...
confuso e sem sentido / membros perfeitos de corpos diversos
franqueinstain do céu
... antes de morrer...
testemunha da diária revolução diária do firmamento
na isolada contemplação do firmamento
... com ou sem nevoeiros...
não temia a vara do bispo ou do inquisidor
Receava os militantes da ignorância
prontos a incinerar cientistas ou vegetais
o que viesse primeiro
... morreu assim mesmo / pois ninguém vira semente
a ciência / água pura / se no chão / virava lama
em sua mão plantou-se um céu
ora / direis / olhar estrelas
morreu aos 70 com a cabeça cheia
a cabeça como céu estrelas
o estrago estava feito e o mundo perdeu seu centro
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conto crônica poema coelho de moraes
REENCONTROS
Minha mãe me enviara, numa tarde sol e chuva – casamento de viúva como diziam
nas terra Mogianas - para depositar dinheiro no banco. Ela fazia isso todo mês e este era um
dinheiro regrado e guardado no aperto. Era o dinheiro que minha mãe me dava para garantir
uma parte do futuro, como se assim fosse possível. O mal ou bem desses seres humanos
simples é que acreditam em contos de fadas da mesma forma como bebem água. Naquela
tarde eu tinha 12 anos e ao entrar no prédio da empresa sugadora de dinheiro alheio vi-me
numa agencia da cidade pequena conclamando a gritos como era pujante o tal do banco...
grande; piso de granito brilhante, escadas e murais de artistas brasileiros de importância.
Aquilo muito me impressionou e acabou provando que muito dinheiro alheio havia sido gasto
naquela casa onde se paga para guardarem seu dinheiro e ainda o usam. Beleza do
espetáculo – pois tudo é espetáculo - pela quantidade de vidros coloridos e painéis em
mosaico que se faziam de paredes.
Fui ao caixa, sujeito já cansado estava lá carimbando e cansado estava de tanto
carimbar papel e soube, depois, que quando inventarem algo melhor que o carimbo ele será
substituído por outro profissional, mais jovem e mais hábil na tecnologia do momento. Falei da
minha missão. O nome dele era Leonides. Leonides – igual o leão da fábula - choramingou
que não sabia usar computador. Era este seu argueiro enfiado na pata. Eu disse que tinha 12
anos, não sabia o que era um computador – uns monstros com enormes fitas giratórias que
enchiam, uma ala inteira do prédio, no departamento de compensação de cheques - e não
estava entendendo nada do que ele falava entre lágrimas.
Leonides era um sujeito de seus 30 e tantos anos, talvez, e, hoje penso que parecia,
mas não era, recém ingresso no banco, começando a vida profissional naquele momento,
parecia, obedecendo claramente os preceitos de RH: mostrar atenção seletiva com seus
clientes e boa vontade seletiva no trabalho. Quem tiver ara de rico deve ser atendido primeiro.
Ralé e velhos devem ficar na fila ao lado.
Apesar de chorão Leonides, com pronto atendimento, conversava comigo
perguntando se estudava, se tinha amigos, se gostava de música, se tocava algum
instrumento, e dizia tudo isso sem olhar para mim pois era texto e enredo decorado de seu
treinamento para atendimento de clientes. Segurava entre amarelo pálido e branco marfim,
muito sem graça nem brilho, um sorriso no rosto empedrado. A cortesia sólida e estabelecida
de acordo com o manual. Leonides facilitou meu depósito ao saber que minha mãe também
trabalhava no banco - coisas do corporativismo - e ainda saí de lá com folhetos das novidades
de investimentos e cartas de crédito para minha mãe ler e pensar em possibilidades e
alternativas de enriquecimento rápido. Senti-me muito importante carregando os tais papeis
coloridos.
E, assim foi. O tempo passou. Cresci, estudei música e teatro, o cabelo cresceu, a
barba também; havia mudado de cidade mas tudo era um truque para escapar do cerco da
policia ditatorial. Nem sei quantas vezes pintei meu cabelo. Mudava de endereço e talvez
estivesse ai um sintoma ou motivo de suspeição em tempos de terror. Fui parar no interior
paulista junto a vários amigos e montamos nosso aparelho em Casa Branca; através de
concursos em quartéis e cursos de guerrilha no exterior – digo curso, mas tratava-se de
evidente treinamento - ao longo de minha vida jovem, naquele novo dia especial eu estava às
vésperas de invadir o banco da cidade armado de metralhadora e muitos sacos para forrar de
dinheiro.
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conto crônica poema coelho de moraes
Então, em mais um dia de sol, daqueles que a gente pede para todos os santos que o
ar condicionado não falhe, entramos na agencia desguarnecida, aproximamo-nos dos caixas
e não é que o Leonides estava ali, carimbando mais papéis!
- Nossa!, brinquei, você ainda por aqui?.
Ele ficou branco, estranhou, pensou que fosse tomar um tiro e não soube responder.
- Qual é o seu nome?.
- Eu me chamo Leonides, - ele disse. - Quer que enfie tudo no saco?, - falou sem
muita reação no rosto. - É pra já! - Parecia que ele roubava o banco mais do que deveria
fazê-lo, com empenho e engenho ardente. Percebi um leve sorriso de orgulho nele.
- Se eu não fosse bancário eu seria guerrilheiro. - O restante do grupo invasor já se
preparava para escapar com muito malote entupido de dinheiro. A ação fora rápida.
Ante que respondesse a Leonides um senhor, que vinha logo atrás, falou,
aproximando-se:
- Bom dia... Sim! É para a minha neta. – e, passou documentos sobre meus ombros
para o caixa. Na verdade ele tencionava trabalhar com várias carteiras de investimento. A
menina neta lá dele olhava risonha e tentava passar a mão na metralhadora que eu carregava.
Leonides olhou para mim como se perguntasse não bastava.
- O senhor é...
- Não posso dizer.
- Claro... – deu de ombros meio galhofeiro – Codinome... nem um codinome?
- Tá... pode ser... Triúnviro. Meu codinome é Triúnviro... às vezes é Kaiser.
- Uau!... Megalomania...
O senhor atrás na fila, o velho, bateu no meu ombro e perguntou acidamente: - O
senhor vai demorar? Tenho que levar minha neta para o jardim... e já está tarde... pode ser?
Olhei para a baixotinha risonha ao meu lado.
- Sim... é minha neta. Estamos de férias na cidade e aproveitamos para um passeio.
- Nós também, - respondi, e puxei os malotes com dinheiro para meu lado. O grupo
escapulia e eu saia correndo atrás deles.
E, então, o ciclo se fechava. Não a coincidência pura e simples, mas, a existência da
sincronicidade que ficou ali patente, como diziam muitos estudiosos, nos levavam a rever e
convergir para momentos que sempre sonhamos como desejos de que voltassem. Leonides
contara um pouco das suas experiências no banco, da perda do sonhos, do mofo nos dedos,
da pele esverdeada e ainda me deu alguns conselhos, e lembrou-se de um garoto que
atendera. Éramos os mesmos mas ele não sabia, nem notou ou fingiu que não. A juventude,
por um instante, voltou e Leonides se tornou o choramingas de sempre. Professores e
bancários são sempre choramingas e do tipo estático, ou seja, sem tirar a bunda da cadeira.
Característica da carreira?
Numa tarde de sol como aquela, há anos nos víramos numa agencia de outro banco,
e travamos rápida conversa que me estimulou a fazer música, teatro e guerrilha. Leonides terá
mesmo me inspirado a tanto? Parece que parte de nossa confiança na empresa nos levou ao
reencontro. A minha certeza absoluta de que ali havia muito dinheiro alheio, guardado sob
seguro e que deveria passar de mão. No meu caso com a crença numa luta armada. A outra
parte, evidente, a nossa capacidade de trabalho e de especialização, que trouxe vida longa a
banqueiros e empresário ladrões. Aliás, não há empresário que não seja ladrão. Não existe
nenhuma possibilidade de alguém lucrar sem que outro perca. Chamam a isso de “negócios”
mas nada mais é do que roubo mesmo com diplomas de rôtaris e laions estampados na
parede. E, ainda, a confiança em futuros variados e sonhados, plantados para a colheita do
amanhã. Cada um com sua desculpa.
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conto crônica poema coelho de moraes
RÁ
Emergir o holofote do nada
em que na tarde submersos fomos
Transcender queria / aparecer
O sol transgredir / sabido / fronteiras
deu-lhe / instransponível / a morte
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conto crônica poema coelho de moraes
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conto crônica poema coelho de moraes
EDITORIAL
Todo grupo Universitário deve se
aventurar no novo, sempre, sob pena de MACHADO
cair na mesmice e na repetição do eterno
presente. O eterno retorno da burrice
materializada em sabedoria insípida.
Como produtos da geração Xuxa Mestre da literatura, respeitado em
emburreceu-se a camada jovem. Isso é todo o planeta – Woody Allen já fez
notório. referência à obra do Machado de Assis
Daí o motivo dessa publicação que visa em entrevista em 95 - no entanto,
ampliar o leque de leituras e de ainda falta leitura sobre a obra do
pensamentos da FATEC e seus mestre fluminense. É pouco lido, em
integrantes, incluindo comunidade. verdade, em verdade vos digo. E é
Mas, pensar às vezes dói. Muitas vezes sabido que bons debates surgem de
dói no corpo de quem pensa, pois, quem bons leitores.
não pensa resolve distribuir pancadas à Quem nada lê nada tem a dizer.
esquerda e à direta. O Machado, além disso, foi o fundador
Evitaremos tal situação. da Academia Brasileira de Letras, seu
Raras são as escolas, em Mococa, que primeiro presidente; era mulato,
mantêm livres periódicos livres e epiléptico, casou com a branca
permitem que os alunos, professores, Carolina, tinha tudo para se converter
servidores e comunidade se expressem em coisa alguma, no entanto é um dos
abertamente; claro que isso deve ser feito iluminadores das nossas cabeças
com a responsabilidade deles mesmos brasileiras.
pensadores e escritores. O CineFatec gravou a adaptação de
Nada de pseudônimo. Bruna Freire – UM OLHAR SOBRE
Quem escreve assina embaixo. CAPITU; gravou A CARTOMANTE e
Portanto, parte da crônica da cidade tem preparado textos do grande
passa pela FATEC, e, essa é sua voz Machado para saborear em imagens e
independente, esperando por mentes arte cênica.
livres. Ave, Machado.
Qual é a tua contribuição para a cidade em que vive, além do sofrimento de ver
tudo se destruir, além de cruzar os braços para a cultura?
É sabido que qualquer opinião ou ensinamento bem dado pode alterar as cabeças
e as mentes e, deixar o sofrimento nosso de cada dia com as religiões que se
aproveitam desse nicho de mercado.
Ser ou não Ser? pode ser trocado por Ter ou não Ter? esvaziando o Humano de
suas qualidades mais interessantes.
O celular que você tem é realmente útil ou você foi obrigado a comprar por causa
da propaganda? Será mero status ou micagens?
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conto crônica poema coelho de moraes
A ALMA una e autônoma proposta pelos discursos da alma é ridicularizada em nome de uma
organização das partes do corpo - transmutado agora em organismo - que se torna o suporte
da moral e do entendimento. A saúde concebida como a boa ordem entre as partes passa a
ser um saber especialista suportado pela idéia do normal e do patológico. O doente deve
relatar seus males nos exames a fim de corrigí-los.
Se a introspecção, entendida como auto-observação, era garantia da autonomia da alma nos
discursos anteriores, a sensação, entendida como fato psicológico mais verdadeiro, permitiu
aos discursos médicos conhecer a alma de outra forma inacessível a este saber. Os discursos
médicos forneceram uma nova inteligibilidade à noção filosófica de sensação transferindo-a de
uma função da alma para uma função do corpo. Esta operação desloca o estudo da
psicologia, "a alma se desvanece ao dar lugar aos discursos sobre o cérebro, os nervos, a
medula, ou seja, o organismo e seu funcionamento." É?
A ciência política é a teoria e prática da política e a descrição e análise dos sistemas políticos e
do comportamento político.
Abrange teoria e a filosofia políticas, os sistemas políticos, ideologia, teoria dos jogos,
economia política, geopolítica, geografia política, análise de políticas públicas, política
comparada, relações internacionais, análise de relações exteriores, política e direito
internacionais, estudos de administração pública e governo, processo legislativo, direito
público (como o direito constitucional) e outros.
Na qualidade de uma das ciências sociais, a ciência política usa métodos e técnicas que podem
envolver tanto fontes primárias (documentos históricos, registros oficiais) quanto secundárias
(artigos acadêmicos, pesquisas, análise estatística, estudos de caso e construção de modelos).
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conto crônica poema coelho de moraes
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conto crônica poema coelho de moraes
era maçã, mas amora, pois, é em mórula que se dá a multiplicação das a multiplicação das
células após a formação do zigoto e daí, a construção do embrião.
Dizem que o Gêneses se refere ao período intra-uterino – dando nova luz, ou dando à luz, um
novo conceito – e que dura uma semana para se desenvolver.
Logo, dizem, Moisés, que estudou no palácio do faraó, segundo B. De Mille, não só era
Biólogo, como costumava tirar água de pedra em suas horas vagas.
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conto crônica poema coelho de moraes
CIDADE
Sobre a mágica de rubras manhãs
eras nua:com rosto
e levavas na boca um dente de ouro
Escrevo no Inverno
Encontro vagas de espuma entre nossa distancia
Parece que de mim
um vazadouro libera
o resto de bondade esquecido
sempre esquecido entre artimanhas doces,
derramando sobre a pele antiga das praças centrais
aquilo que cobre teu regaço cansado de uso
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IMPOSTO ZERO
Sou a favor de que não se deve pagar impostos para administrações, comprovadamente,
incompetentes. Tem gente que acha que não. Se você não pagar os impostos, dizem elas,
trata-se de desonestidade, afinal, afirmam, todos pagam e você deve pagar. Sendo assim,
todos são infelizes, você deve ser também...
Mentira. Comerciante sonega mais que o quê e continua honesto, mas, isso é outro assunto
para outra pauta.
Imposto, a palavra já diz, é posto por quem tem as costas largas e pode defender com a
polícia ou promotores de plantão.
Um ato de pura civilidade e cidadania é escolher se deve ou não pagar impostos; eu acredito
nisso. Você vê buracos pelas ruas durante quatro, oito anos e se pergunta: Pra’que pagar
impostos se o buraco só cresce?
Você sabe que nas noites a lua e as estrelas são mais visíveis pois não há lâmpada nas ruas.
Postes nus. A poesia pode ser legal mas a insegurança é patente.
Sinecuristas e outros tipos de promotores interioranos, principalmente usuários a burrice
caipira, querem dar exemplos de dureza nesses casos. Gritam, entre suas gravatas e
colarinhos impecáveis que fazem e acontecem. Pura balela. Se quisessem manter e preservar
justiça seriam juízes de futebol, - que têm o beneplácito de errar na hora certa, - ou
desistiriam. É impossível acreditar em justiça em discurso de advogados. Ficção científica. E,
advogados são caros.
Vejam bem: O poste de luz que ilumina minha rua fui eu que pus e acendo a lâmpada de
dentro da minha casa. As lâmpadas eu compro. Os buracos, como já disse, ampliam-se a
olhos vistos no asfalto vagabundo do meu bairro. Os buracos não fui eu quem projetou.
Pagar imposto? Claro que não. Vapo, sô. Ato cidadão será o de escolher ou negociar
impostos. Ou então, descontar do imposto as melhorias que você mesmo fez em seu bairro,
mesmo quem somente fez em frente à sua casa.
Coisa lúcida, não? Para os não lúcidos fica o lugar comum.
Muganga, a Macondo da Mogiana, é até muito corajosa em enfrentar 8 anos de burrice
indômita. Correu muito risco, e mesmo assim, eu me dou o direito de não confiar nesta
geração. Cada buraco desses que vemos pela rua vale um cachê em prior e obra de arte.
Acredito até que os governantes de plantão retirem seus dez por cento de cachê, antes da
obra ficar pronta. Piece-of-art. Os buracos permanecem e, se somarmos todos teremos um
verdadeiro piscinão. Talvez esteja aí a estratégia do alcaide para o esvaziamento das
enchentes. Entupir a rua de buracos sem desentupir as bocas-de-lobo ou os riachos e rios e
ribeirinhas poéticas, esvaziando, assim, as futuras enchentes.
Eu mesmo prefiro Sandy e Junior a ter piscinões. Eu sou desses espertos, como o promotor
público, que prefere ver 200 pilas sair da cidade em vez de acabar com enchentes. Belo
aniversário. 5 de abril, dia de Sandy e Junior. 200 mangos milhares no lixo. E vamos nessa.
E a menina ainda cantou sobre pré-gravação, ou seja, (des)cantou.
Sim, a natureza é culpada – promotora, assim diremos - das chuvas, mas a pretoria é
responsável no caso de enchentes. O interessante é que os comerciantes das beiradas
preferem colocar um tampão nas portas de suas lojas em vez de reclamar com o alcaide
negligente... UAU! A coisa ficou mesmo de cabeça para baixo mesmo.
Eu sou a favor de emenda que mantenha o alcaide por mais 16 anos. Talvez a até nisso a
burrama da câmara errará nos cálculos.
Agradei a todos?
Assim eu fisso de conta que sou cego.
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O VEREADOR SONâMBULO
Muganga continua a vazar em besteirol. A Macondo da Mogiana traz agora “A saga de Lúcifer
Brós Marião”; daquelas de encher a boca de fel.
Durante onze anos foi vereador e se gaba, em propaganda, de nada ter feito pelo município.
Está escrito em seu papelucho de campanha. Sente-se na obrigação de prestar contas à
população somente 11 anos depois de eleito pela primeira vez.
Muito estranho.
Ainda por cima, - ou por baixo dos panos, - tem sonhos e desejos de ser Prefeito.
Por cima e por baixo. Será isso uma ameaça?
Diz ele que continua segurando na mão de Deus. O que é um perigo, pois, quanto maior a
altura maior o tombo. Mas, sabemos que Deus é bom, e Ele, pela boca de Joshua, sempre
disse: “Vinde a mim os pequeninos”. Realmente Lúcifer Brós Marião não é dos maiores. É
pequenino em corpo e alma. Dizendo-se seguidor de Jesus e sabendo, como todos, que Jesus
chamava para si os publicanos, as prostitutas e os criminosos e doente e leprosos, a resposta
está dada. Lá foi ele.
Há quem diga que Jesus também disse: “Vinde a mim os políticos, mas sentem-se num banco
mais afastado”. Os exegetas não confirmam esta versão, ou aversão.
Bem... sigamos a saga do pequeno Lúcifer Marião.
Diz ele ter bom relacionamento com o Executivo MuMicipal. Isso é mau, para um vereador,
que deveria ser o fiel escudeiro do povo. Para o povo é um mal.
Na sua biografia encontramos números: 709 requerimentos (paeis que pedem algo, o que não
quer dizer que consigam o tal algo); 506 indicações (o que demonstra a sua conduta de dedo
duro – Index Durus – Point Dexter); 362 Moções (que sabemos todos de nada servirem a não
ser para demonstrar servilismo. Se fossem Monções encheriam o Ribeirão do Meio de água
salobra); 46 Leis (quid quo pro?); 16 decretos Legislativos e 5 resoluções. No entanto uma
Lei que daria suporte aos artistas da cidade, já existente, sancionada pelo caudilho atual, o
velho Lúcifer não tocou e nem se mexeu no trono, para saber do que se tratava, pois não
podia correr o risco de alterar a suas “boas relações” com o Executivo MuMicipal.
“Boas Relações, hein?”
O Beato Insigne Legislador, conhecido como BIL, ainda propaga que devolveu dinheiro do
exercício anterior da sua Câmara ardente predileta, sendo que isso é uma obrigação natural e
que o dinheiro retorna automaticamente aos cofres MuMicipais.
Ele prega o que não faz.
A Câmara Escola já existia, talvez com outro nome e diz que foi ele, BIL, quem idealizou a tal
peripécia. BIL esteve presente na inauguração de uma coisa; ao lado do deputado Tal,
discursando na fundação de uma escola que era fundação, prestigia a Copa de futebol; batiza
elevadores; esconde Museus; enfim, ações nenhuma e ações ocas. Em situações como estas
encontraremos Lúcifer Brós Marião, aqui chamado de BIL ou Beato Insigne Legislador.
Completamente opaco em seus atos quotidianos termina a sua propaganda política para
prefeito com um: “VAMOS REFLETIR JUNTINHOS”. Sendo opaco não sei como refletirá.
Ele conta a história do pintor que pinta Jesus e Judas com o mesmo rosto. Parece que o
mesmo rosto serviu para as duas circunstancias distintas. Esta mensagem Lúcifer Brós Marião
nos dá de bandeja:
- “Cuidado comigo. Tenho duas caras que servem para qualquer coisa em qualquer situação”.
O dinheiro da campanha política antes do tempo que Lúcifer Brós Marião jogou na rua veio da
onde? Em que gráfica foi feito? Quem foi o jornalista responsável?
O pré-caudilho terá alguma resposta para isso?
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conto crônica poema coelho de moraes
20 ANOS NO PODER
TEXTO DO ANO 2003
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Estão dizendo quer há um jeito desonesto ou querem dizer que o governo atual é
desonesto?
Não entendi.
Mesmo assim, o modo petista de governar é o que se desenvolve em nível nacional. E
com as vitória nas exportações, na supersafra de grãos, na ampliação do aparelhamento das
instâncias de governo, a diminuição dos juros (SELIC e outros), as vitórias na política externa
(vide subsídios europeus), mega compras de inverno, superfaturamento no natal, nos fazem
pensar que a população pouco vai se lixar se os jornalistas estão censurados ou não. Os mais
velhos se lembrarão do Getúlio e dirão: Naquela época veio o Salário Mínimo quando se
comprava de tudo; naquela época teve Volta Redonda, apareceu a Petrobrás e outras Brases,
o Brasil ganhou a guerra e teve negócios com os Estados Unidos, então, para quê o povo vai
se preocupar se alguns cineastas, escritores, jornalistas, artistas, estão sob censura ou
orientação ou disciplina ou não?
E reaparecem os pais dos povos.
Esse é o caminho. É para aí que vamos. Vinte anos de poder. E, se as regras não estão
claras, o eleitor estude bem o que fará nas próximas eleições. Nada mais. Estude se souber ler
e escrever.
O PT local tem a obrigação de explicar como é que funciona o “JEITO HONESTO DE
GOVERNAR”. Quem foi o autor dessa pérola?
Em 2000 tivemos um plano de governo. Provavelmente o primeiro da história da
política de Mococa. Lembro que, por influencia do pensamento lento vigente na cidade, o
plano de governo não saia nunca pois os companheiros, atentos, faziam questão de não vir a
algumas reuniões, adiava-se a votação e o tempo passava, queriam votar e discutir e votar e
discutir e votar e discutir... tararáu-tararáu-tarará. E, ficaria assim mesmo, caso não
houvesse uma tomada de iniciativa, – que as pessoas confundem com ação ditatorial, - para
se por na rua o tal plano de governo, um esboço, é claro, baseado nos governos de algumas
prefeituras petistas daquele momento. Para lerdos a iniciativa era uma espécie de usurpação e
fazem questão de esquecer que, idéias, as pessoas têm individualmente. O que soma no
coletivo são as idéias de cada indivíduo. Uma puxa a outra. Agora, num local sem idéias...
Onde está o plano de governo da campanha atual?
Onde buscar os quadros para ocupar a prefeitura no caso de vitória. E no caso de
vitória, certamente a coligação aparelhará a Prefeitura com seu quadro; um quadro que já
governou Muganga e deixou um legado para ser esquecido.
Será, enfim, uma campanha para uma Prefeitura ou uma Pré-fritura?
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MOKA
Virgínia me falava da resolução dos contrários. Falava como podia pois minha língua se
enfiava em sua boca macia. E todos sabemos que essa resolução é a atração máxima de todos
os gnósticos. Eu nem queria mais saber desse pessoal. Místico, esotérico e loquaz.
- Me larga. É hora. Estamos já atrasados e você não me larga.
- - É a Kundalini.
- O quê? – ela perguntou, enquanto abaixava a túnica de linho marroquino.
- Nada nada. Vamos.
A noite prometia delícias, mas ela não me quis dar as mãos. Fiz de tudo para não irmos ao
templo. Eu mesmo tinha mais do que fazer.
O templo nos esperava. Lá o povo se alvoroçava para ver sacerdotisas semi-nuas e o ritual
mais atualizado. O povo. Besta colossal. Substancia-chave, substancia-vida em que se permitia
superar as contradições da natureza humana. Mas pensar naquilo não ficava bem com tanta
estrela para ouvir segredos. E no meu caso, o povo era chave enigmática para a liberdade.
- Como é que você pode ser assim. Ativo e contemplativo ao mesmo tempo – Virgínia
perguntou e me pareceu levemente zangada.
- É que sou poeta e filósofo. Tenho minha religião mas raciocino livremente.
- É difícil ser sábio e criança.
- Não, não é não. Basta manter acesa a chama do desejo. Sobre você, Virgínia. E umas
questões sobre liberdade e moral.
- A última ambição. Ser jovem e velho ao mesmo tempo. Você não passa de um
adolescente – ela riu, sem marca alguma que lembrasse atrasos e esperas.
O jardim do templo se abriu aos nossos olhos. Olhei para os arbustos circunvizinhos e tudo
me pareceu calmo. Estátuas colossais, várias fontes de água, árvores frondosas tremulavam
ao sabor do clarão das tochas.
- Venha. Vamos para os aposentos com rapidez – ela me disse.
Entramos passando por algumas pessoas curiosas que nos olhavam e rumamos para os
corredores do palacete procurando camareiros e auxiliares. De longe eu mergulhava nos
cabelos de Virgínia e lembrava de seus aromas. Uma dúvida me alcançava. Por certo nesse
momento eram banhados com mirra e óleos aromáticos recém chegados da Cachemira. O
povo, o filtro dos iluministas. O povo, a pedra filosofal dos hermetistas se aglomerava nos
degraus ocres que se faziam de arquibancadas. O povo, a vida reduzida a seu princípio. O
momento esperado tinha data marcada.
Sem a túnica recebi banhos de óleos, também, mas a meu lado outros homens recebiam
atenção diferenciada. Eunucos masturbavam aqueles senhores, lentamente, estimulando-lhes
desejos e facilitando o culto futuro.
- Nem todos podem atravessar a porta.
Imediatamente me virei e um daqueles homens arfantes chamou minha atenção.
- Como? Desculpe, mas eu pensava em outra coisa – estremeci.
- Desde Moisés, todos os magos que viram a Terra prometida, não podem atravessar a
porta.
- O quê?
- Moisés não teve permissão para entrar na Terra Prometida – ele falou.
- Provavelmente foi desta para melhor – ele me olhou com ar estranho e eu resolvi
completar – No bom sentido, é claro. Ele e Elias...
- É...talvez... talvez... É um dos nossos mais rasos problemas – disse com algum
interesse - Mas o povo tem uma resposta mais flagrante para isso – disse.
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conto crônica poema coelho de moraes
- Que eu saiba, sim. Estamos sempre à porta desse povo. Olhando para ele. Dando
exemplos. Enfeitando algumas de suas noites com dramas místicos importantes.
- É possível. Não acredito muito nisso. Mas é possível – ele como que segredava.
- Não acredita...?
- Não. Eu vim do povo. E posso dizer que o povo é meu pai. Há muito obstáculo para
essa..., como direi,... incorporação mágica... a tomada der consciência do povo.
- Mas você é um dos sacerdotes(!)... o oráculo...
- Sim, sou sacerdote... mas cá entre nós... tirando essa parte da preparação dos
eunucos... o bom mesmo é estar com essas mulheres, quando roubamos o corpo
das... castas divas... – ele riu para si mesmo - ... muito castas... Eu nasci povo e trago
o povo no coração e o povo quer comer as sacerdotisas... eu faço isso por eles...- riu
– meu sacrifício pessoal...
- Comer! – Eu me lembrei da inacessível língua de Virgínia antes de sairmos de casa. E
me lembrei das reuniões nas grutas.
- É. Essa cosmologia da redenção acaba em infortúnio, acredite. Tudo isso aqui não
passa de espetáculo para o povo gozar. Enquanto ritualizamos, entre aspas, as
sacerdotisas com nossos pênis, preste atenção como o povo, também entre aspas, se
masturba e trepa por todo lado..., o tal do povo. O universo triunfante do liso e do
quente, nada mais do que isso – ele me falou enquanto se limpava do óleo.
Um sinal de badalo ecoou pelos aposentos e eu estava atônito.
- Vamos. Pega a túnica.
Um farto aroma de café se esparrama pela nave. Todos bebiam o líquido escuro, bem
quente, distribuído à grande por torneiras douradas que saiam das paredes marmóreas. Por
efeito do líquido muitos gritavam e batiam contra o peito. Muita gente não tinha estofo para
beber aquele elixir de potência e vigor. Naquele tempo, durante as semanas que antecediam o
drama no templo era comum a venda de café pelas irmãs-sacerdotisas, às portas da cidade.
Naqueles tempos as crianças não saiam às ruas. A preparação para a semana da fertilidade
era a tônica da nossa cultura. O espírito brotava espontânea como ele realmente era. Nem
todos gostavam disso.
No entanto um leve amargor me tomou. Um sintoma diferente e novo me atingia. Meu
coração batia como se se precipitasse para explodir.
Enquanto cantavam o hino “O advento do Café” eu corri para uma espécie de sala
para receber chuvas, que dava para os aposentos das mulheres. Nem sei o que é que faria,
ainda, mas a hora chegava. Os corredores eram sinuosos e as tochas de pouco valiam. De sala
em sala eu tentava vê-las. Em uma os embrutecidos pelo tabaco se pegavam em tapas no
rosto. Noutra sala os idosos se banhavam em rapé – na verdade uma mistura de ópio e
gergelim – indefesos em relação ao ridículo. Mais além barris de vinho e raparigas
conturbavam o ambiente com gritos e danças. Alguns patrício vinham se deliciar entre coxas
jovens pagas a preço de turmalinas. O reino do café era o reino da destemperança.
De repente eu me via em uma sala e ao entrar estava ao lado de Virginia que achou
tudo aquilo muito estranho, mas sorriu.
- Ei, querido. Você perdeu alguma coisa? Ou se perdeu?
- Não quero perder você. Vamos embora daqui.
- O que foi? Está diferente. Nunca vi essa dobra em sua testa. Você exagerou no café?
Está mais sóbrio.
- Meu discernimento está mais amplo. Mas não quero perder você. A história vai mudar
seus caminhos.
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conto crônica poema coelho de moraes
- Tolice, meu querido. Tolice. Estamos prestes a aumentar a ampliar a consciência local
com a exposição do nosso drama.
- Esqueça isso.
- Nem me fale uma coisa dessas... é algum enigma?.
- Não há enigmas!! O que há é a praxis!! Tudo mentira! – as mulheres que nos
escutavam começaram a rir, mas eu continuei - O Café impôs a mim o álibi do sexo
pela excitação do espírito. Mas como só o aroma a mim chegou, tudo se torna mais
claro.
Tentei tomar a mão de Virgínia para sair, puxando-a para fora do templo. Ela não
queria. Fez força contrária e escapuliu com certa violência.
- Ouça como a turba urra – ela falava tranqüilamente - Eles nos esperam – o badalo
soou novamente e a gritaria ficou maior. Eu suava. Faltava-me a liberdade de
argumentar adequadamente. As mulheres retiravam suas roupas e passavam para
outro aposento, em direção à nave central do templo.
- Vem comigo, Virginia, fica comigo somente. A coisa vai esquentar por aqui. – mas ela
se limitou a passar o dorso da mão entre as suas próprias pernas e levantar, na minha
direção, dedos molhados, quase os esfregando no meu rosto
- Vai esquentar mesmo. Egoísta. Não vê que somos belas damas, hoje representando
meretrizes sagradas, a mais subida honra e você quer que eu vá com você. Ficar
somente com você?
- Sim. Mas não é só isso.
- Louco! Lá estaremos embebidas em café Árabe... o líquido, nem tão quente das bacias
douradas nos banhando – Virginia descalçou as sandálias – discursaremos sobre o
Serralho, o penteado à sultana que levamos para ser desfeito nas orgias – ela,
negligentemente, deixou cair uma das alças, escorregando sobre o ombro – Quem
sabe não falaremos sobre as Mil e Um Noites? Nós, as huris modernas, que daremos
seios fartos aos nossos irmãos sacerdotes e depois nos fartaremos com a platéia
enlouquecida. Você está é muito louco!!
Vi que meus esforços seriam vãos. O badalo novamente tocou e a última imagem que vi foi
Virginia se afastando, deixando resvalar para o chão a túnica de seda... suas ancas
ondeavam... ela transpirava...
Inexplicavelmente eu me encontrei em meio a uma luta aguerrida. Estava no centro da
nave, os sacerdotes e sacerdotisas copulavam, mas uma batalha se desenrolava nas
arquibancadas. Um grupo armado havia penetrado no templo. Pelo que sei eu estava do lado
deste grupo. Desfechei muitos murros e parti uma série de queixos. Eu sempre me exercitei
nas áreas Ginásticas da cidade e estava fortalecido, portanto era muito fácil, mesmo com as
mãos atadas, fazer tombar umas quatro pessoas. Os revoltosos não eram maioria numérica
mas a vontade de vencer passava por cima desse detalhe. Os guardas do templo, armados de
lanças, eram quebrados ao meio. Os casais ritualísticos foram cortados com largas facas.
Rebeldes, com marretas, destruíam altares e ídolos, derrubavam os vasos e turíbulos das aras,
pisoteavam as oferendas. A batalha. Os rebeldes entravam no templo, de surpresa, e venciam
a contenda, pondo, por fim, fogo nas dependências. Todos partiram, em silêncio, da mesma
forma que chegaram E eu com eles.
Não soube mais de Virgínia. Batedores disseram que algumas irmãs-sacerdotisas
sobreviventes, desfiguradas umas, queimadas outras, trôpegas enfim, se prostituíam pelos
lados das terras do leste. Os reis gnósticos, percebendo que os rebeldes se fortaleciam a cada
momento, inventaram de transportar as mudas de café para as Antilhas. Principalmente as
mudas que vinham da Índia, mais baratas e mais populares. O responsável por esse traslado
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conto crônica poema coelho de moraes
de mudas de plantas cafeeiras foi o cavaleiro de Clieux, hipócrita religioso, que conseguiu
transformar a Martinica em exportadora do ouro negro, chegando a 10 milhões de libras de
café por ano. Clieux se tornou Rei da Martinica.
Um ano depois os rebeldes retornaram ao templo mas já não existia o ritual e nem mais se
ouvia falar naquelas histórias de putas e eunucos e banhos cafeeiros. Muitos diziam que Café
era coisa de Iluministas e Enciclopedistas. Os rebeldes haviam vencido. E naquele momento eu
era um de seus líderes. Trofônio, o oráculo, não mais se deu à mostra e as pitonisas vendiam
borras de café jurando que era muito bom para afastar formigas de plantas tenras,
protegendo os jardins, suas flores e seus frutos.
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conto crônica poema coelho de moraes
O NAVIO FANTASMA
resumo da ópera de Richard Wagner
PRIMEIRO ATO:
O capitão norueguês DALAND devido à uma intensa tempestade ancora em uma baía
protegida, não muito distante de seu porto de origem. Ele e a tripulação vão para baixo
descansar enquanto esperam um tempo melhor, deixando o timoneiro sozinho em alerta. Ele
canta para manter-se desperto mas logo dorme. Um misterioso navio de mastro negro ancora
ao lado. A fantasmagórica tripulação enrola suas velas vermelhas. O capitão desembarca. O
capitão é o lendário HOLANDÊS VOADOR, condenado a navegar eternamente. Pode parar a
cada sete anos à procura de uma mulher fiel que possa redimi-lo. Na verdade ele anseia pela
morte definitiva e esquecimento. DALAND acorda e saúda o capitão. O capitão sinistro fala de
seu destino e pede hospitalidade em troca de uma riqueza. Quando o HOLANDÊS sabe que o
outro tem uma filha – SENTA - pergunta se ela poderia ser sua esposa. DALAND se entusiasma
com um possível rico genro.
Mas surge o vento e eles partem. O HOLANDÊS seguirá depois, após o descanso.
SEGUNDO ATO:
Fiandeiras sob a supervisão de MARY. SENTA está olhando a foto do HOLANDÊS VOADOR
que está na parede. As moças debocham dela e previnem de que ERIK, o noivo caçador,
sentirá ciúmes. SENTA não liga e pede para que MARY, que se recusa, cantar a balada do
HOLANDÊS, que sempre a comove. Então ela mesma canta, e até que as fiandeiras tomam
parte da canção cantando o refrão, emocionadas. No final SENTA, ardorosa, declara que quer
ser a redentora do HOLANDÊS - isso choca as moças. ERIK chega e dá notícias da chegada
de DALAND e repreende SENTA pela obsessão com a história do HOLANDÊS. Ele sabe que o
prático DALAND nunca aceitará um genro pobre como ele, mas pede que ela retribua pelo
menos o amor que ele – ERIK - tem por ela. ERIK conta o sonho que vê a ela e o tal
navegador desaparecendo no mar.
Para SENTA é presságio. DALAND chega com o HOLANDÊS. Conta de suas riquezas e
explicita a beleza da filha. A sós com a mulher, o HOLANDÊS canta-lhe os sofrimentos e
acredita que eles tenham chegado ao fim. SENTA se decide casar com o HOLANDÊS.
TERCEIRO ATO:
Os marinheiro de DALAND comemoram o regresso. O outro navio está ao lado. Como
ninguém sai de lá, todos dizem se tratar de um navio fantasma. De repente o navio holandês
se movimenta, adernando como se numa tempestade. Surge um canto selvagem e
fantasmagórico. Os outros fogem levando tudo ao silêncio. SENTA sai da casa e ERIK a
censura pela decisão, e que ela já lhe havia jurado sua fidelidade. O HOLANDÊS ouve a
conversa e resolve fugir para poupar SENTA, pois se ela faltasse com o compromisso seria
punida eternamente, como ele. SENTA quer seguir o estranho. Como o navio sinistro já está
ao mar, SENTA se lança ao mar, jurando fidelidade. Aí, nesse ponto, o NAVIO FANTASMA
afunda. No horizonte o HOLANDÊS VOADOR e SENTA aparecem transfigurados em seu amor.
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A PROPULSÃO HUMANA
Tempos de décadas de idas e vindas
Anos e décadas em rede em canoa em batel
pé na estrada Kerouac já tomei do meu chapéu
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INTROITO
Eu, Outro Coelho, percorri o sagrado Caminho de Milagres e tenho credenciais que me fazem
soberano na escrita dessas cartas.
A única coisa que me pesa é a idade e alguns malucos que moram na minha cidade. Fora isso
e a bengala do velho Coelhim, vivo contente por ser um dos poucos que percorreu o
verdadeiro caminho de MILAGRES.
MILAGRES é difícil de ser encontrada.
Fica próxima a São Benedito das Areias e Monte Santo de Minas, perto do condado da
Guardinha, localidades por si sós sagradas e cobertas de milagreiros e benzedores.
Pessoas sublimes nasceram lá, mas com essa idade só me lembro dos meus parentes, mesmo.
Gente da mais alta estirpe.
Para mostrar como percorrer esse caminho eu escolhi o método das epístolas. Cartas para o
futuro, como diria o Heitor.
Contra todos os inimigos que me vieram a aparecer, obstáculos humanos e físicos da
natureza, pude contar com amigos do mais alto grau. Vocês saberão de tudo e espero que se
sacrifiquem para manter acesa a chama do Caminho de MILAGRES, espalhando a Boa Nova
por toda a Terra, ou pelo menos, pela vizinhança da nossa terrível cidade de Muganga.
Eu, Outro Coelho, declaro que tudo o que vai aqui escrito é verdade.
Vamos às cartas.
EPÍSTOLA 1
Às vésperas de completar 293 anos de idade resolvi expor ao mundo o místico e secreto
caminho sagrado para MILAGRES, a cidade do derradeiro adeus. Por isso escrevo estas
epístolas.
Estávamos entrando no século 21. Importantes mudanças se faziam no mundo e no país e eu
considerava a possibilidade de que o céu se abrisse para mostrar suas verdades.
Caiu-me sobre as mãos a história do LOUCO DE MILAGRES, do escritor Jutas Jesail, das terras
do Aquilão. Contado daquela forma parecia algo inverossímil, o que me estimulou a buscar
ajuda em templos e sábios locais. Fiquei decepcionado. As cidades vizinhas viviam sob
brumas, mesmo aquelas com nome de santo.
Conversando com Jutas e outros pensadores pareceu definitivo que fundássemos uma Igreja
própria. Killar Manuris, um rumeno-grego de cabelos lisos, antes de partir para a Suécia,
acreditava na possibilidade de uma passagem mística na região. Jutas, sempre céptico,
informava no seu jeito reticente que tinha visto lobisomem lá pelos lados de MILAGRES. Não
tinha certeza, mas, uma coisa peluda passou por cima dele quando catava pedras rombudas
na estrada. Eu disse que podia ser gambá e todos riram. Em todo caso marcamos para uma
quinta feira a fundação da Igreja. Cada um traria amigas e amigos interessados na fundação.
Principalmente amigas.
Foi assim que teve início a próspera e emergente Igreja do Triângulo de Quatro Pontas. A sua
meta: abrir o caminho místico na região, principalmente, o Caminho Sagrado para
MILAGRES.
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EPÍSTOLA 2
A quinta-feira veio com muita chuva.
Estávamos na sala ritual - para criar clima denominamos a sala de PAULO, O MAGRO - e
dessa forma iniciamos o nosso trabalho cerimonial.
Era a primeira sessão. Lá estavam Dejanira Felício, amparando roupas de peregrinos que
pretendiam correr sem direção alguma; Jutas Jesail, carregando um aipo; Zinar Citrus, chefe
de cerimonial, responsável pelo aroma de sândalos e alecrim do local; Killar Manuris, com
uma dúzia de gigabaites pendurados no pescoço; Russa Mertô, sacerdotisa dançarina,
efetuando complicados passos de ir e vir; Yussuf de Babel, cantarolando, desafinadamente, o
hino magno da nossa obra mística; a curiosa Wuilla Tuilla, guerreira do Jardim do Éden e
representante de hécates e lâmias; Ziurni Szina, desenrolando uma série de pergaminhos
proibidos na cidade; Kuíka Nenorei, observadora e conselheira para uma das pontas do
triângulo (a externa); Urraco Nuñes, sumo sacerdote tolteca, da região de Rivero Nero,
caminhando ao lado de uma ameba, por ele mesmo, domesticada; Cecilia Bacci Espectral
Azul, trazendo todo o seu conhecimento de Wicca; Guilherme Giordano, também conhecido
como Guilherme d´Orange ou Guillaume de Mauchaut, dependendo da época; e eu, é claro,
Outro Coelho, que prontamente, lhes escreve.
Como havia muita neblina causada pelo incenso de mirra eu nem sei mais quem estava por lá,
mas tinha uma penca de gente.
Foi necessário citar a todos os magníficos daquele momento pois o registro deve ficar
completo, antes que eu perca a memória.
Implantávamos ali o germe da Suprema Igreja do Triângulo de Quatro Pontas.
Dali sairia o escolhido. Aquele que se tornaria o peregrino para a grande caminhada.
Dali sairia também o coletor de dízimos.
Os cargos foram disputados a tapa.
EPÍSTOLA 3
Naquela noite chuvosa os escorpiões foram dormir mais cedo.
Um pouco antes de se iniciar o ritual chegou Zézinho, descendente direto de Jesus, por parte
de mãe, carregando algumas caixas, pregos, ataduras e atamoles. Estava completo o grupo
sacerdotal da Sagrada Igreja do Triângulo de Quatro Pontas, mais conhecida como SIT-QP-
lotes preferenciais, na bolsa de valores.
Não posso falar do ritual completo por dois motivos: um deles e mais importante é de que não
me lembro mais como era. O segundo, que me parece óbvio, os componentes da Ordem do
Triângulo poderiam não gostar, mesmo que eu não me lembre mais como se fazia. No
entanto, não está aí o de mais importante, nesse negócio. Os rituais são similares. E, no caso,
secretos, como já disse.
A sacerdotisa bailarina dançou umas quadrilhas para abrir e limpar espaço. Não era à toa que
ela estava munida de uma vassoura. Muito incenso foi queimado; algumas pessoas se
retiraram por serem asmáticas, perdendo aquele acontecimento único na face da terra.
Zézinho, também conhecido como o Zé de Campo Estrela, disse que o Caminho para Milagres
seria aclamado da mesma forma que o “outro” Coelho, também chamado de Paulo – o Magro
- havia feito com o caminho da Espanha, devidamente coberto, esquadrinhado e
documentado pelo peregrino Peres, o de olhos bovinos.
Mas eu, o ainda OUTRO COELHO, observei que a energia rolava naquele templo e naquele
tempo.
De repente, uma Sarabanda haendeliana irrompeu, lenta e gradual, em ritmo de três, como se
espera de uma verdadeira Sarabanda, e a sacerdotisa bailarina, erguendo a mão deixou que
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conto crônica poema coelho de moraes
EPÍSTOLA 4
Enquanto os demais chefes da Igreja se estapeavam atrás de um altar, nos fundos da
construção, para ver quem seria O Sagrado Coletor de Dízimos, eu, peregrino eleito, me
dispunha a iniciar imediatamente os preparativos para a jornada.
Importante frisar que, diferente de outros caminho sagrados, caminhos já domesticados com
plaquetas, pousadas, bilhetinhos e observadores e fiscais, O Caminho Sagrado para Milagres
estava para ser desvendado.
Aí cabia o inusitado do feito, pois inúmeros pensadores, mestres e místicos teorizavam na
existência desse caminho e coube a mim, Outro Coelho, a missão de encontrá-lo e desenhá-lo
em mapa.
Um trabalho cheio de perigos e efetivas ações dos poderes psíquicos terrestres e invisíveis, ou
seja, eu precisaria de muita concentração, sacrifício e fleuma para buscar nas raízes
atmosféricas, terrenas e aquáticas, por que não nas fogaríficas, também, a decifração daquele
enigma.
Fui para um spa, onde recuperaria forças e receberia cursos de sobrevivência aplicados pelos
mais iminentes sábios andarilhos já conhecidos! e, alguns desconhecidos também.
A data para a partida estava marcada para o dia de Santos Reis.
Houve muita festa, quermesse, vendilhões de todos os templos estavam presentes e a Igreja do
Sagrado Triângulo de Quatro Pontas aproveitou para levar o seu. Chefes, pastores, padres,
bispos, irmãos, fratres, estavam presentes com seus seguidores e bandas de música. A Igreja
Católica S/A, a Evangélicos Unidos, a Trade Espíritas Alinhados Protoplasmic, a recentemente
formada Liga Árabe Judaica para assuntos de religião também enviou seu representante e, é
claro, a Ateus Incorporation não ficou de fora. Irmandades variadas, instituições de assistência
dos mais diversos naipes liderados pela major 90%MEU, e uma quantidade grande de
pequenas empresas do ramo da fazedura, benzedura e pilhagem religiosa. Incluindo os
Bizantinos de Orelhas Pontudas.
Sentimos apenas a presença espiritual do patrono do templo, Paulo, O Magro, pois estava em
santa missão de contar recursos advindos da venda de seu último livro traduzido para o
cartaginês. O nosso patrono não só vendia bastante livro para o planeta todo como também já
começava a exportar para tempos antigos também. A primeira investida foi em Cartago, no
tempo de Aníbal Barca. Demais(!) o nosso patrono. Ele era Multi_Pluri.
Mas, após um vento ensurdecedor, apareceu no átrio do templo uma pessoa que não havia
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conto crônica poema coelho de moraes
sido convidada para nossa festa. Um fogo gelado irrompeu e uma mulher com chifre e
báculo, de rosto esverdeado, pálido e maquiagem impecável, apareceu subitamente, lançando
chispas para todo lado.
Medo geral. Um frio na espinha. Barbas de molho.
EPÍSTOLA 5
A mulher olhou-me desafiadoramente e disse:
- Eu apareci nesta festa sem ser convidada, para testar seus poderes.
- Estou vendo que você é uma aparecida - disse eu, sem me deixar intimidar. Nisso ela
balançou seus cabelos listrados.
- Eu tenho poderes maiores que os seus. Não adianta gritar pois o Chefe Supremo está do
meu lado, dentro de mim, fora de mim... somos uno.
- Sei... sei... - disse eu, inteligentemente - mas, metade do que você faz é o óbvio e a outra
metade é o ululante. Não adianta falar mais que a boca, nem conversar com o vento. O que
você é, é isso mesmo, e não passará disso, aparecendo ou desaparecendo... - ela me olhou
com um ar de quem não entendeu coisa alguma, que era o seu ar natural e vociferou:
- Você quer estar em meu lugar... você quer sentar na minha mesa... você pensar que é maior
do que eu... confessa que você já comeu meus canelones!!
- O Chefe Supremo, logo no começo dos seus (des)trabalhos me convidou para fazer parte de
sua corja... mas eu percebi a furada e nem aceitei... afinal, eu sou Outro Coelho e sou do
Bem... - enquanto ela soltava chispas por todos os seus quatro lábios e três olhos eu conclui -
... aí ele chamou qualquer um por que não tinha mais opção...
Um raio verde brilhou. A aparecida desapareceu em meio à fumaça, muito pó, balouços e
gritos...um rodar de baiana à mineira. Sem ritmo e muito barulho.
Os membros da Igreja aplaudiram e aclamaram: "Eis o nosso real representante. Vida longa.
Viva! Viva! Vamos preparar a jornada".
Eu saí com alguns amigos e começamos a nos preocupar com o que eu deveria levar para a
jornada de descobertas, sofrimento, abnegação e demarcação da trilha sagrada que levaria
para a cidade, sagrada, de Milagres.
O desconhecido me esperava.
Parece que o Chefe Supremo também.
EPÍSTOLA 6
Esses 293 anos pesam demais.
Já nem me lembro de detalhes talvez mais importantes do que a história em si. Mas o fato é
que na cripta sagrada da Sagrada Igreja do Triângulo de Quatro Pontas eu me vi coberto de
glórias e não sei de onde vinha uma trilha sonora composta especialmente para o momento.
Acho que era o pessoal do Quinteto Armorial que tocava algures ou alhures... para mim... Ave,
Suassuna.
Eu e amigos fomos para casa procurar todo o material necessário para a busca da Trilha, mas
não a sonora. A Trilha para a Cidade Sagrada.
Sabíamos que ela - a Cidade - ficava para lá de Arceburgo, além de Monte Santo, enfurnada
em um quadrilátero mágico onde tudo pode acontecer, se é que tudo já não aconteceu e não
há mais a se fazer por lá. Mas, antes disso precisávamos pensar no cajado, nos sapiquás, nos
embornais, no manto contra intempéries e nas orações contra bichos do mato, bichos das
pedras e bichos dos pés. E se a aparecida aparição reaparece da mesma forma que
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ALTERNATIVAMENTE
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