Dia 04 de Fevereiro
Atividades previstas:
Nesse Guia de Estudos vou propor uma reflexão no campo da história dos conceitos e
das idéias para tratar do tema do populismo na contemporaneidade.
Observem também o que ocorre nas relações entre conceitos e realidades. Supondo que
de um lado haja um estado de coisas e de outro um conceito desse estado de coisas,
quatro situações são possíveis: a realidade e o conceito permanecem estáveis ao longo
de um período de tempo; o conceito e a realidade se modificam simultaneamente de
modo harmônico; o conceito muda sem que haja uma mudança concomitante da
realidade; a realidade muda e o conceito permanece o mesmo.
O conceito “populista” define uma forma política que opera com uma concepção que
simplifica e radicaliza a sociedade. Estabelece uma relação direta e não mediada (por
partidos ou instituições políticas) entre um líder (que entende e sabe o que o país
precisa) e o “povo” considerado como uma totalidade, moralmente puro e plenamente
unido.
2. O conceito “populismo” não diz respeito nem a uma doutrina teórica nem a uma
tradição do pensamento, como ocorre, por exemplo, com o republicanismo, o
liberalismo ou o socialismo. Mas podemos identificar a origem de seus padrões em três
momentos muito distintos no tempo e no espaço.
Na Rússia não foi diferente. Os “narodnik” defendiam que a cultura russa rural
precisava ser preservada e, mais do que isso, deveria ser aprofundada. Defendiam a vida
camponesa no “mir” – a comuna – como uma forma de socialismo que precisava ser
protegida dos avanços capitalistas.
Vocês vão encontrar esse universo romântico nos livros do escritor Liev Tolstoi que fez
parte do movimento “narodnik”. O panorama da Rússia decadente está em “Anna
Karenina” (Companhia das Letras, 2017). Um fragmento desse panorama vocês podem
ler em “Os cossacos” (Amarilys, 2012).
O segundo momento de origem dos padrões do populismo surge no final do século XIX
e se estende até por volta de meados do século XX, no interior dos Estados Unidos.
Assume a forma de lideranças e ou/partidos independentes que defendem causas
ignoradas pelos dois partidos principais, Republicano e Democrata.
Numa ponta dessa dinâmica nós vamos encontrar a imposição de uma ideologia da
nacionalidade. O objetivo é matizar ou reescrever o passado histórico e sustentar o
exercício do poder em nome da unidade da nação.
Na outra ponta, nós vamos encontrar o populismo no governo. Isso incluiu a aplicação
direta de poder militar e policial por presidentes caudilhos que se propunham a unificar
o povo no líder e por meio dele. Observem: o caudilho prescinde da Constituição. A
figura populista clássica desse terceiro momento é Juan Perón, na Argentina, um ex-
oficial do Exercito que chegou ao poder, em 1943, após um golpe militar.
Para quem deseja se aprofundar ver: Maria Helena Capelato “Populismo latino-
americano em discussão”. In: Jorge Ferreira (org.) O populismo e sua história; debate e
crítica (Civilização Brasileira, 2001). Federico Finchelstein. “O surgimento do
populismo moderno na América Latina”. In:_. Do fascismo ao populismo na história
(Edições 70, 2019).
Também apresenta uma visão redentora da política. Seu discurso alimenta uma
nostalgia por uma sociedade ou um momento do passado que foi perdido. E precisa ser
resgatado ou recriado. É uma visão radicalmente simplificada e falsa. Um povo
renascido e liberto da complexidade e das divisões que engoliram o país. Apela aos
medos atuais e desperta emoções.
O populismo apresenta uma forma específica de discurso político. Vale muito à pena,
então, identificar os elementos constitutivos da linguagem do discurso populista. É uma
linguagem voltada para o confronto. Também é truculenta e vulgar. Oferece às pessoas
uma simplificação brutal da sociedade. Constrói igualmente uma imaginação moralista
da política: o povo plenamente unido e moralmente puro versus uma prática política
velha, corrupta e corrompida.
É uma linguagem que incita ao recurso da violência política para calar o adversário.
Num comício em Cedar’s Rapid, Iowa, em 2017, Trump, por exemplo, convocou seus
apoiadores a “knock the crap out of them”, referindo-se às pessoas que interrompiam
seus discursos com protestos.
Para quem deseja se aprofundar ver: Bérengère Viennot. “A língua de Trump”. (Âyiné,
2020)
O discurso populista vai sustentar exatamente isso. A saída para a crise é uma Europa
capaz de virar às costas ao cosmopolitismo, às fronteiras abertas, à globalização e cuidar
de si própria. Pensem, por exemplo, em um argumento insistentemente utilizado na
votação a favor do Brexit, no Reino Unido. O argumento defendia a visão de que os
serviços públicos tinham sido ocupados majoritariamente por milhões de imigrantes da
Europa Oriental.
Essa seria a dimensão cultural, digamos assim, da crise democrática. Está concentrada
em temas como a ameaça à identidade e à inserção social apresentada pela migração. A
outra dimensão da crise democrática contemporânea é econômica e se concentra no
impacto provocado pela recessão e pelas políticas de austeridade.
Vale lembrar rapidamente a origem da crise econômica. Até 2006 a economia global
desfrutou de um momento de crescimento que incluiu desregulamentação dos bancos
para promover liquidez necessária para sustentar o investimento. Deu errado. A bolha
financeira estourou em 2008, inicialmente na Islândia, onde deu origem ao protesto da
“Revolução das panelas e das frigideiras”, e se espalhou recessão pelo mundo.
O que não impediu a eclosão posterior de movimentos com pauta específica. Por
exemplo, o movimento “Nuit debout”, na França, em 2017, protestando contra as novas
leis trabalhistas.
Mas são sintomas de uma crise que atinge a vida política. São indícios de saturação:
aumento das desigualdades, crescimento do desemprego estrutural, insatisfação e
ressentimento provocados pela frustração das expectativas. Reparem a análise de
Manuel Castell: “Ocorreu quando ninguém esperava. Em um mundo prisioneiro da crise
econômica, do cinismo político, do vazio cultural, da desesperança, simplesmente
ocorreu”. Está em “Redes de indignação e esperança; movimentos sociais na época da
internet” (Zahar, 2013).
Para quem quiser se aprofundar vale o ensaio curto de Castell, publicado em 2018:
“Ruptura; a crise da democracia liberal” (Zahar, 2018).
Essa multidão é o resultado de alguns cruzamentos que fazem sentido no seu conjunto:
esgarçamento das relações de confiança interpessoais, desigualdade, exclusão,
desemprego, empobrecimento. Por conta disso, a multidão é o lugar em que todos estão
sós – e cada um sente de modo ressentido e reativo que precisa cuidar de si mesmo. É a
sociedade do “indivíduo por contra própria”.
É nesse contexto que o ressentimento constrói sua base própria de afetos: rancor, raiva,
inveja. Essa base afetiva, de seu lado, termina por criar um forte sentimento de
identidade cultural entre pessoas flagradas na disposição de fazer valer seus interesses.
O ressentido se aferra à idéia de ser alguém que foi destituído de seu lugar e, por essa
razão, se identifica com o lugar da vítima. Isso traz conseqüências: eleva a voltagem do
radicalismo, faz aflorar a intolerância que nega qualquer divergência e elimina o
horizonte da igualdade.
Vejam como o populismo contemporâneo investe nesse caldo emocional: “Ponha a
França em ordem”, é o slogan da Frente Nacional, de Marine Le Pen, um partido de
extrema direita que incluiu entre suas propostas a retirada da zona do euro (e da União
Européia), a reafirmação da herança cristã francesa e redução do apoio estatal a
iniciativas multiculturais.
“Faça a América voltar a ser grande”, é o slogan de Trump. Soa como um compromisso
em chave dupla. Por um lado, promete restaurar a supremacia militar dos Estados
Unidos. Por outro, sublinha a decisão de restaurar a supremacia econômica norte-
americana contra a concorrência da China e do leste da Ásia. O slogan fala diretamente
às áreas fortemente afetadas pela recessão nos estados do Meio Oeste e no “Cinturão da
Ferrugem”, área de mineração de carvão e de indústrias metalomecânicas de baixa
produtividade e sem competitividade.
Aliás, cabe anotar. A crescente tensão entre China e EUA no campo econômico e
político também exprime uma dimensão do slogan. A China desafia a supremacia norte-
americana e Trump alimenta a sensação de inevitabilidade da guerra – conflitos
comerciais, ataques cibernéticos, crise da Coreia, qualquer coisa parece poder funcionar
como o gatilho.
Para quem deseja se aprofundar ver, por exemplo, o livro de Graham Allison: “A
caminho da guerra; os Estados unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de
Tucídides?” (Intrínseca, 2020)
Na verdade, a crise mostra o percurso da globalização em sintonia com o movimento de
inovação tecnológica e da profunda alteração dos padrões e sociais. Em particular, a
recessão atingiu antigas áreas industriais e manufatureiras. Por exemplo, no “Cinturão
da Ferrugem’; mas, atingiu igualmente e de modo agudo o norte da Inglaterra, o
nordeste da França e a parte oriental da Alemanha.
Um marco possível para o inicio desse avanço pode ser observado em 2016. Começa
possivelmente na eleição de Rodrigo Duterte como presidente das Filipinas, em maio de
2016. Em seguida, o referendo Brexit do Reino Unido, em junho de 2016. E, é claro, a
eleição de Trump, em novembro de 2016. A partir daí, a “onda populista” tornou-se um
fenômeno global e a ameaça à democracia é generalizada.
Alguns analistas vislumbram sinais de refluxo da onda populista. Por exemplo: a vitória
da centro-direita sobre a direita ultranacionalista na França. A derrota do PP na Espanha
seguida da vitória e do governo liderado pelo PSOE. A eliminação da representação
parlamentar do partido de extrema direita “Laikos Syndesmos Chrysi Avgi” (Aurora
Dourada), nas eleições para o Parlamento grego, em julho de 2018. A derrota de
Erdogan, na eleição em março de 2019 para a prefeitura de Istambul, na Turquia. O
resultado aquém do esperado dos ultranacionalistas, nas eleições para o Parlamento
europeu, de maio de 2019 e na Áustria, em setembro de 2019. E a retomada social
democrática na Islândia, Finlândia, Suécia e Dinamarca. Mas vale considerar. São
apenas sinais de refluxo: indicam uma fragmentação política e apontam para possíveis
realinhamentos partidários futuros.
Alguns autores, por sua vez, tendem a se concentrar no outro lado da equação política.
Nessa visão o populismo assumiria um aspecto distinto. Ele poderia ser uma estratégia
política e ter um papel a desempenhar na mobilização das pessoas em torno de um
projeto para renovar e expandir a democracia.
Nessa vertente, uma forte liderança unificadora poderia evitar, em partes do mundo em
desenvolvimento, a desagregação da democracia como efeito do risco de desintegração
social. O populismo também teria potencial para gerar formas de políticas capazes de
incluir pessoas cujas necessidades são, com freqüência, ignoradas.
Para Ernesto Laclau, em “A razão populista” (Três Estrelas, 2013) o populismo é uma
forma de construção do discurso político. Carrega uma dimensão de autonomia que se
refere à mobilização espontânea a partir de uma pluralidade de demandas sociais. E
carrega também uma dimensão de hegemonia que se refere à sua condição de
transformar o Estado e ampliar a esfera pública.
Contudo, se entendido como uma forma política na contemporaneidade, não tem saída:
o populismo tem uma concepção instrumental da democracia. O líder populista vê a
democracia como um meio para chegar ao poder, mas não a aceita quando oferece
meios legítimos para limitar legalmente suas demandas. O populismo corrói de dentro
para fora as instituições democráticas e as unidades vitais da máquina pública e, com
isso, provoca retrocesso democrático.
Mas é uma forma transitória. A questão final é essa. O populismo pode ser uma forma
política passageira que se alimenta da crise democrática. Mas pode também se tornar
mais difundido e alcançar longevidade. E pode, ainda, desembocar em regimes
autoritários de novo tipo, intolerantes e com ingredientes potencialmente totalitários.