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MANA 5(2):157-175, 1999

ENTREVISTA
NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM

Marilyn Strathern

Titular da cátedra William Wyse de An- daquele típico de tal tradição. Gostaría-
tropologia Social da Universidade de mos de saber como você tomou as deci-
Cambridge, mistress de Girton College sões teóricas responsáveis por essa di-
e ex-presidente da European Associa- ferença.
tion of Social Anthropologists, Marilyn
Strathern tem exercido uma influência Strathern
decisiva sobre os rumos contemporâ- Como você bem sabe, tais decisões nun-
neos de nossa disciplina. Seus aportes à ca são decisões teóricas… Elas são o re-
etnologia melanésia, aos estudos das sultado de uma série de fatores, e eu
relações de gênero, à teoria da troca e provavelmente só conseguiria falar de
do parentesco e à antropologia da mo- um ou dois deles. Mas suponho que is-
dernidade tardia fizeram escola e cria- so já quer dizer que eu concordo com
ram polêmica. Dona de um estilo analí- sua caracterização. Deve-se apenas ter
tico denso e original, em que as tradi- em mente que a antropologia, na Grã-
ções antropológicas britânica e ameri- Bretanha em todo caso, mudou, e não
cana se fundem em uma síntese crítica tenho tanta certeza de estar muito dis-
catalisada pelo contradiscurso feminis- tanciada dos colegas que trabalham
ta, Marilyn Strathern é, indiscutivel- atualmente em Cambridge.
mente, a principal responsável pela re- Não vou contar a história toda; dei-
novação, a partir dos anos 80, do pro- xem-me apenas evocar uma ou duas
grama teórico da antropologia britânica. coisas que me passaram pela cabeça
Marilyn Strathern esteve no Brasil enquanto você falava. A primeira é que
em setembro de 1998, a convite do Nú- entre 1960 e 1963, quando eu era aluna
cleo de Estudos de Gênero da Unicamp. de graduação em Cambridge, estáva-
Visitou também, então, o Museu Nacio- mos no momento culminante do debate
nal, ocasião em que concedeu esta en- contrapontístico entre Edmund Leach e
trevista a Eduardo Viveiros de Castro e Meyer Fortes. Tínhamos duas salas de
Carlos Fausto. aula, uma quase ao lado da outra, cha-
madas de Sala Norte e de Sala Sul – e
Viveiros de Castro era quase como se você pudesse ir a
Talvez pudéssemos começar por uma uma e ouvir Edmund, passar para a ou-
questão relativa a sua trajetória intelec- tra e ouvir Meyer. Não era exatamente
tual. Você se formou em um dos centros assim, pois a grade horária não era des-
clássicos da chamada “antropologia so- se jeito, mas tinha-se uma sensação
cial britânica”, a Universidade de Cam- muita viva do debate. Aquela era a épo-
bridge, mas minha impressão é que seu ca em que Meyer estava consolidando
trabalho tem um estilo muito diferente o seu Kinship and the Social Order; ele
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estava preparando suas Morgan Lectu- do. Entretanto, o primeiro livro que es-
res, e estava realmente implementando crevi era um livro tímido, ortodoxo, to-
seu próprio paradigma1. Ao mesmo talmente ortodoxo: Women in Between
tempo, Edmund tinha acabado de es- é um produto absoluto do pensamento
crever Pul Eliya2; ele estava, além disso, ortodoxo de Cambridge. Lendo-o, não
regurgitando Lévi-Strauss, de quem se divisa nenhum sinal do que viria de-
nos apresentou algumas das idéias, via pois. The Gender of the Gift, é claro,
seus próprios interesses na noção de ta- “desescreve” Women in Between, as-
bu e tudo o mais que vocês sabem. Ed- sim como After Nature “desescreve”
mund era ainda o responsável por um Kinship at the Core4.
fascinante seminário (para o terceiro O que foi realmente uma escolha
ano da graduação) sobre Malinowski; teórica deliberada, feita por Andrew e
tivemos um trimestre inteiro dedicado por mim mesma, foi termos ido para a
aos trabalhos de Malinowski, que foi Papua-Nova Guiné, em vez de ir para a
muito estimulante. África. Acho que a expectativa geral
Bem, tudo o que eu tenho vontade era que fôssemos para a África, pois
de dizer agora pode acabar soando des- Andrew era orientando de Jack Goody.
leal. Eu era muito fiel a Meyer, mas es- Mas naquela época estavam aparecen-
tava fascinada por Edmund… do as primeiras etnografias das Terras
Altas da Nova Guiné, as de Salisbury e
Viveiros de Castro de Marie Reay – e isso foi como um so-
Os estudantes estavam divididos em pro de ar fresco.
fortesianos e leachianos?
Viveiros de Castro
Strathern Nenhum de seus professores em Cam-
Não, institucionalmente era mais como bridge trabalhava na Nova Guiné?
um banquete em que se saboreava o
que se quisesse. Mas pessoalmente, Strathern
penso que era mais ou menos isso que Havia Reo Fortune, mas Reo há muito
acontecia, sim. Vocês provavelmente se afastara da antropologia. Ele se con-
sabem que o primeiro trabalho, por as- sumia em sua querela com Malinowski;
sim dizer, que eu e Andrew [Strathern] o único tema de que era capaz de falar
escrevemos foi publicado em um livro em suas aulas era o fato de que Mali-
organizado por Edmund3. nowski se havia enganado quanto ao
Bem, isto sobre a primeira coisa que número de esposas do chefe de Omara-
me ocorreu. A segunda é que eu me ca- kana...
sei quase imediatamente após terminar Decidimos, assim, ir para a Papua-
a graduação; casei-me naquele verão, Nova Guiné, e de início pensamos na
logo antes de ir para a Papua-Nova área dos Orokaiva, em Mount Laming-
Guiné. Assim, o primeiro trabalho de ton. Mas a coisa não deu certo, e acaba-
campo foi feito, na verdade, junto com mos não indo. Decidimo-nos, então, pe-
um companheiro e colega. Mantínha- las Terras Altas, de modo que ter ido
mos um diálogo contínuo, um debate… para Mount Hagen foi apenas uma
concordávamos e discordávamos. Per- questão de dar um passo para o lado,
gunto-me se isso não terá sido um dos por assim dizer. Vejam que estou ten-
fatores, o fato de o meu trabalho ter tando achar razões para ter havido pas-
sempre um debate como pano de fun- sos naturais…
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Bem, acho que vocês precisam sa- guma coisa. Na verdade, acho que a
ber um pouco de minha história pes- depressão e a dúvida que acompanham
soal. Nós, Andrew e eu, fizemos traba- qualquer trabalho são realmente criati-
lho de campo juntos. Então interrompe- vas, pois elas nos fazem escutar outras
mos o trabalho de campo e fomos para pessoas. Se você é demasiado confian-
Canberra, onde ficamos cinco meses; te, se tudo o que você consegue ver é
depois voltamos à Nova Guiné; depois você mesma, você termina sendo uma
retornamos à Inglaterra. Eu consegui barreira, fechada à comunicação. Por
um emprego no museu [em Cambrid- isso, ter estado aberta para esse outro
ge]; Andrew escreveu sua tese de dou- domínio significou que eu estava sem-
torado e obteve uma fellowship em Tri- pre jogando as certezas antropológicas
nity College. Então, em 1969, ele deci- contra as incertezas feministas ou vice-
diu ir para Canberra, para a ANU [Aus- versa. Isto se tornou realmente impor-
tralian National University], no gozo de tante para mim, porque os dois pólos da
uma fellowship; e, assim, entre 1969 e teoria antropológica e da etnografia, es-
1976 estávamos ou na Austrália ou em tes se consomem mutuamente, eles se
Papua-Nova Guiné. Como vocês sabem, entre-canibalizam. Por isso, um terceiro
ele se mudou para a Papua-Nova Gui- pólo…
né em 1972, assumindo a cátedra de an-
tropologia na UPNG [University of Pa- Viveiros de Castro
pua New Guinea], e passamos assim a Você experimentou a explosão feminis-
realmente viver na Papua-Nova Guiné. ta como um desafio teórico, como um
Creio que esse afastamento de Cam- desafio político, ou como ambos?
bridge foi, na verdade, muito importan-
te. Nesse período de ausência, começou Strathern
a antropologia feminista. Isto é real- Foi sobretudo um desafio teórico, por-
mente relevante, pois a antropologia fe- que a política não me surpreendia: eu
minista nos sintonizava com certos de- sempre considerara tudo o que se refe-
bates que não tomavam os paradigmas ria às mulheres como interessante e sig-
antropológicos como autoevidentes. Tais nificativo. Minha mãe foi uma feminista
debates exigiam uma fundamentação a antes do feminismo. Nos anos 50, ela
partir de um outro conjunto de ques- era professora de inglês, dava aulas de
tões. E assim comecei a ler. De fato, es- educação para adultos, ensinava sobre
crevi nessa época, lá por 1973, um livro as mulheres e a arte, as mulheres na
que nunca foi publicado, sobre homens história e assim por diante, de modo
e mulheres. que cresci tendo essas coisas por evi-
Foi isso que gerou aquele tipo de dentes. Quando o feminismo aconteceu,
triangulação que se vê em The Gender tomei-o igualmente como natural; ele
of the Gift. Como digo logo no começo parecia apenas se encaixar, digamos
do livro, há ali a teoria antropológica, assim, no que eu já estava fazendo. Mas
há a informação etnográfica, e há, en- ao mesmo tempo, do ponto de vista teó-
fim, a produção feminista. Não sei bem rico, ele claramente colocava uma quan-
como formular isso. Mas todos nós te- tidade de questões para a antropologia.
mos dúvidas quanto à utilidade de nos- Eu também conto sempre, é claro, a
so próprio trabalho, quanto ao público a história de como Annette Weiner, no
que ele se dirige; todos nos pergunta- seu livro Women of Value, Men of Re-
mos se o que estamos fazendo vale al- nown5, disse que não havia nada publi-
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cado a respeito de mulheres na Papua- coisa que tinha acontecido era o mar-
Nova Guiné, exceto o livro de Marilyn xismo. Aquilo me desorientou. De re-
Strathern – o que era uma pena, dizia pente, eu não sabia onde estava o foco
ela, pois M. Strathern escreveu de um de interesse. Este não era tanto o caso
ponto de vista masculino… E foi assim em Cambridge, pois na verdade não ha-
que comecei a ter que repensar. via ninguém no Departamento de An-
tropologia de Cambridge – e esta é uma
Fausto das coisas estranhas de sua história –
Você acha que ela tinha razão? que fosse um antropólogo marxista pra-
ticante. Mas o marxismo estava no Uni-
Strathern versity College, certamente, e na LSE
Não, claro que não. Mas levei de 1976, [London School of Economics], e em tu-
quando li a crítica, a 1981, quando dei a do que se pegasse e lesse; ele estava no
Malinowski Lecture6, para responder a ar, estava na sociologia e na ciência po-
ela. Levei cinco anos… lítica, e em outras áreas da universidade.
Enfim, qualquer sentimento de ter
Fausto feito um trabalho completo na Nova
Para digeri-la? Guiné foi totalmente solapado por esses
desenvolvimentos ocorridos na minha
Strathern ausência, mas que me diziam alguma
Não conseguia digeri-la; ela ficou atra- coisa, pareciam-me interessantes. Até
vessada na minha garganta… Enfim, certo ponto – e eu não reagi na hora, le-
àquela altura o feminismo tinha entra- vei alguns anos –, alguns aspectos de
do em meu horizonte, ele era certamen- The Gender of the Gift são o resultado
te um desafio teórico. Muito bem, voltei da convição de que certos tópicos que
à Inglaterra; e o que havia acontecido? estavam sendo desenvolvidos sob a ru-
Duas coisas. Primeiro, o estruturalismo brica da antropologia marxista deviam
tinha decolado para valer. Se você olhar entrar na minha paisagem geral da Me-
os trabalhos de Christine e Stephen lanésia. E, assim, foi uma questão de
Hugh-Jones, verá que eles são o produ- preencher minhas lacunas. (O que es-
to daquele estruturalismo integral que tou tentando mostrar são todos os pon-
se ensinava, então, em Cambridge7. tos em que lacunas e descontinuidades
apareceram em minha carreira, pois foi
Viveiros de Castro ali que precisei saltar…)
Ensinado principalmente por quem?
Leach? Viveiros de Castro
Você mencionou três eventos que ocor-
Strathern reram no final dos anos 60 e começo dos
Sim, por Leach. Quase exclusivamente, 70: o movimento feminista, o marxismo
eu diria. Muito bem. Quando retorna- e o estruturalismo. O feminismo lhe al-
mos à Inglaterra em 1976, Andrew foi cançou na Austrália; o marxismo e o es-
ocupar sua cátedra no UCL [University truturalismo, apenas quando você vol-
College London], mas ficamos morando tou a Cambridge?
em Cambridge, e me associei ao Girton
College, embora não tivesse um empre- Strathern
go naquele momento. O estruturalismo Sim, embora, no caso do estruturalismo,
tinha acontecido, dizia eu. A segunda as bases houvessem sido lançadas an-
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tes por Edmund, mas elas então não es- Viveiros de Castro
tavam completamente desenvolvidas. Voltando a sua narrativa…

Viveiros de Castro Strathern


Desses três paradigmas, você diria que OK. Então, eu estava de volta a Cam-
o estruturalismo é o menos visível ou bridge em 1976. Deve ter sido por volta
explícito em sua obra? de 1978 que li The Invention of Culture,
e aquilo foi como uma porta se abrin-
Strathern do10. Não porque eu o entendesse…
(Pausa) Sim, certamente. Nunca pensei Acho que devo ter entendido uns dez
nesse assunto. Sim. por cento. Mas ali onde eu o entendia, e
especialmente ali onde ele se aplicava
Viveiros de Castro à etnografia com que eu estava familia-
Isto foi uma provocação minha, pois rizada, as intuições de Wagner eram
concordo com Alfred Gell8, quando este absolutamente espantosas. Os poucos
escreveu que seu trabalho manifesta momentos de compreensão que eu ti-
uma profunda inspiração estruturalista, nha eram totais. Obviamente, fiquei in-
ainda que você nunca tenha usado o trigada quanto ao modo como ele ha-
jargão da escola. Você dialoga direta- via chegado àquelas coisas; comecei a
mente com temas marxistas e feminis- tomar emprestado dele… A primeira
tas, enquanto o estruturalismo parece manifestação disso é, se não me enga-
ser uma fonte silenciosa. no, minha contribuição à coletânea Na-
ture, Culture and Gender, que é quan-
Strathern do começo a me referir explicitamente
Sim, pois ele me serve em meu traba- a ele11.
lho mais como uma técnica que como
uma teoria; ele é um conjunto de tru- Viveiros de Castro
ques mentais. Nunca fiz o que Jimmy Mas você conhecia seu trabalho ante-
Weiner9 fez, por exemplo, como se de- rior, não?
bruçar sobre o conteúdo de textos par-
ticulares e submetê-los à análise siste- Strathern
mática. Lancemos um véu piedoso so- Eu tinha lido The Course of Souw, mas
bre o lado linguístico de minha antro- não havia conseguido terminá-lo12. O
pologia… que é embaraçoso é que Wagner estava
escrevendo esse livro enquanto eu es-
Fausto crevia Women in Between, notem bem;
Você não acha que a ênfase nas rela- The Curse of Souw estava vinte anos à
ções em detrimento das substâncias é frente… Só bem mais tarde fui capaz de
um ponto central do estruturalismo? apreciá-lo, através da experiência mui-
to particular que foi ler The Invention of
Strathern Culture.
Sim, mas para mim isso é uma ferra-
menta implícita. É uma técnica irrefutá- Viveiros de Castro
vel de apreensão dos fenômenos que eu Mas como foi sua recepção às idéias de
nunca submeti ao tipo de crítica que ela Schneider? – pois afinal Wagner é um
exigiria, se a estivéssemos consideran- discípulo de Schneider. O que se pen-
do como uma teoria. sava em Cambridge da antropologia
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americana, e especialmente da variante interesse na questão da oposição natu-


schneideriana? reza/cultura no contexto da Nova Gui-
né. Houve assim um cruzamento.
Strathern Mas foi enfim, creio, com uma certa
Schneider era absolutamente execrado. sensação de estar fazendo pirraça que
Ele era desprezado; era o exemplo de segui Schneider – ou melhor, com uma
tudo o que havia de errado com a antro- sensação de liberdade. Vocês devem ter
pologia americana. Aquela era a época em mente que eu vivia uma situação
em que Jack Goody estava em plena as- completamente periférica, naquele mo-
censão; ele assumiu o manto, e também mento. Andrew tinha seu trabalho em
a detestação de Schneider; Schneider Londres, eu tinha filhos pequenos, vivia
era completamente trivializado13. Foi em Cambridge, não tinha emprego, era
uma certa pirraça de minha parte, su- um fellow informal [bye fellow] em Gir-
ponho, abraçar as idéias de Schneider ton, onde fazia um pouco de supervi-
naquele momento, pois foi então tam- são, mas sem receber nada16. Eu era
bém que eu estava elaborando os mate- institucionalmente marginal. Isto signi-
riais de Audrey Richards e fazendo o ficava que eu podia ser eu mesma, fa-
trabalho sobre Elmdon14. A crítica de zer o que queria realmente fazer. Foi
Annette Weiner tinha me abalado tanto assim que Schneider entrou na história,
que eu abandonara tudo que dizia res- e que ele foi uma influência importante
peito à Melanésia; não suportava pen- por um longo período.
sar sobre coisas melanésias, assim fui e
fiz o trabalho sobre Elmdon. A idéia de Viveiros de Castro
uma análise cultural me inspirava bas- Isto foi no final dos anos 70, correto?
tante. Agora já superei essa minha fase Você diria que Kinship at the Core era
culturalista, e estou de volta à análise um livro completamente culturalista,
social, mas naquela época a idéia de schneideriano? Depois houve aquela
uma análise cultural me era muito ins- década admirável em sua carreira, que
piradora. culminou com The Gender of the Gift.

Viveiros de Castro Strathern


Mas você chegou aos trabalhos de Não sei muito bem o que dizer sobre
Schneider sobre parentesco via sua lei- minhas relações com a antropologia
tura de Wagner ou porque você estava americana. Pergunto-me se o que se
embarcando no projeto de Elmdon? passou comigo não foi um pouco como,
penso, o que ocorre no Brasil, com vo-
Strathern cês lendo várias línguas, tomando coi-
Por causa do projeto de Elmdon. Eu bus- sas de fontes múltiplas, e talvez não se
cava algo na antropologia que pudesse sentindo muito metropolitanos? Não
usar. E não havia nada. Eu não podia sei. Quero chamar a atenção para o pa-
usar nada do que havia sido produzido pel desempenhado por um certo senti-
pelo pessoal de Cambridge, aquilo sim- mento de inadequação; porque se pen-
plesmente não me dizia nada, ao passo samos que, de alguma forma, não en-
que Schneider fazia todo sentido. O fa- tendemos bem as coisas, isso nos põe
to de Schneider ter tomado como seus constantemente em alerta. Suponho
símbolos nucleares as noções de “natu- que o que você chamou de década ad-
reza” e “direito”15 coincidia com meu mirável foi o período em que se colocou
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para mim uma quantidade de questões terra, e àquela altura estava ficando
que, subitamente percebi, eu necessita- claro que eu teria que me divorciar de
va compreender – questões que, se eu Andrew Strathern – o que acabei fazen-
tivesse tido algum treinamento em filo- do. Eu não tinha nenhum emprego na
sofia, não teria sequer ousado abordar. academia. Tornei-me fellow de Trinity
Acabei fazendo tudo sozinha, tudo foi College por um ano, e fui então convi-
feito em casa… E foi assim com a ques- dada a ser a chefe do Departamento de
tão das relações sujeito/objeto, e natu- Antropologia em Manchester. A segun-
reza/cultura, e que diabo são relações da versão de The Gender of the Gift foi
de produção – e assim por diante. Tudo escrita em Manchester. É importante
isso me parecia enormes obstáculos in- mencionar que, em 1986, Roy Wagner
telectuais que eu precisava enfrentar. veio passar um trimestre em Manches-
ter, como professor-visitante; ele foi
Fausto uma grande influência na fase final de
The Gender of the Gift foi um momento redação do livro.
crucial em sua carreira. Foi então que
você deixou de ocupar, como você esta- Viveiros de Castro
va dizendo, uma posição marginal no Como você começou seu trabalho sobre
mundo universitário? o parentesco euro-americano? Você nos
falou como The Gender of the Gift “de-
Strathern sescreveu” Women in Between. Como
Sim, mas isto aconteceu um pouco an- se deu a “desescritura” de Kinship at
tes. The Gender of the Gift foi direta- the Core que resultou em After Nature?
mente o resultado de um convite que
recebi de Berkeley para dar quatro con- Strathern
ferências. Aquele era o momento em Isto foi algo que, acho, já falei em Cam-
que eu queria juntar algumas questões pinas. Tudo começou com um telefone-
feministas a algumas questões antropo- ma de alguém (que depois se tornou
lógicas. A base do livro era o problema: uma colega) que dizia que iria haver
uma década de produção feminista fez um debate em King’s College (Londres)
alguma diferença no modo como as et- sobre doação de óvulos. O que estava
nografias são produzidas? As quatro em discussão era a doação de óvulos
conferências são o núcleo da primeira entre irmãs, algo que todo mundo con-
parte do livro: grupos de descendência, cebe como um ato de altruísmo. Mas
trabalho, produtividade. Nesses quatro aquela pessoa dizia que ela tinha vá-
capítulos críticos eu estava tentando in- rias inquietações sobre essa prática,
dicar o que havia de sistematicamente pois ela havia introduzido, na verdade,
errado com a narrativa e a análise etno- uma obrigação ali onde nunca tinha ha-
gráficas: meu diagnóstico, como vocês vido obrigação, e assim por diante. O
se recordam, foi que tudo derivava de que teria uma antropóloga a dizer so-
uma certa visão das relações de gênero bre a doação de óvulos entre irmãs?
que derivava, por sua vez, daquilo que Bem, esta antropóloga que lhes fala não
vim a chamar de “commodity thinking” tinha nada a dizer, e ela tampouco co-
[um modo de pensar marcado pela ca- nhecia qualquer antropóloga/o que ti-
tegoria da mercadoria]. vesse algo a dizer… Fiquei com aquilo
As conferências de Berkeley foram na cabeça, e comecei a pensar: o que
ministradas em 1984. Retornei à Ingla- vai ser de minha disciplina, se neste fi-
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nal do século XX, quando se pede a um tinha sido: levemos a sério o argumento
antropólogo para comentar as práticas feminista, segundo o qual ao se falar
contemporâneas de parentesco, não há em gênero, está-se falando de socieda-
ninguém capaz de dizer nada? E o as- de. Como seria, então, uma teoria social
sunto começou a me interessar. do gênero? Este é o tema da segunda
Isto foi em 1987. Por essa época, parte do livro. Penso que fiz, como você
exatamente dez anos depois de ler o li- disse, exatamente o mesmo em After
vro de Roy Wagner, li um livro de Mi- Nature. Levemos a sério a hipótese, su-
chelle Stanworth, intitulado Reproduc- ponhamos que o parentesco seja tão
tive Technologies, uma coletânea de central entre nós como é alhures – o que
ensaios de autoras feministas, mas que isso daria, o que isso faria ao conceito
não eram antropólogas – um dos pri- de parentesco? Foi aqui que tive de in-
meiros livros sobre o assunto17. Naquele troduzir meu modelo merográfico, pois
momento eu estava começando a pen- quando estamos diante de estruturas
sar nas Morgan Lectures. E, de repente, complexas – como ensinaram nossos
me pareceu que ali estava uma conexão colegas franceses – é preciso introduzir
entre meu trabalho, ou meu interesse fatores extraparentesco. E foi essa des-
nas questões relacionadas à natureza e coberta de que o parentesco era o pa-
cultura, biologia e sociedade, e esses rentesco e os fatores extraparentesco
debates contemporâneos. Eu havia que considero como uma espécie de pe-
achado um tema para as Morgan Lectu- quena inovação minha.
res, que foram a base de After Nature 18. Mas, ao contrário de The Gender of
the Gift, havia um aspecto polêmico em
Viveiros de Castro After Nature. Tendo sido hóspede em
O que foi realmente crucial, parece-me, Papua-Nova Guiné, eu achava que não
foi que as novas tecnologias reproduti- cabia polemizar com os materiais etno-
vas estimularam os antropólogos a le- gráficos. Em minha própria sociedade,
var o parentesco moderno a sério. Até por outro lado, eu me sentia livre para
então, a cantiga dominante era: “o pa- fazer o que bem entendesse.
rentesco não desempenha um papel
importante na sociedade contemporâ- Fausto
nea etc.” Schneider era uma voz bas- Você diria, então, que sua relação com
tante isolada em sua insistência sobre o os dados é distinta quando você traba-
parentesco como dimensão central da lha com a sociedade ocidental e quan-
cultura ocidental. Mas ele estava falan- do o faz com a Melanésia? Como isso
do de cultura, não de sociedade. Você afeta o trabalho antropológico?
fez “cultura” significar “sociedade”.
Como se deu esse deslocamento? Strathern
Sim. No caso de minha própria socieda-
Strathern de, eu podia tomar partido; eu podia
Exatamente, é isso mesmo. Voltarei a adotar uma visão parcial, pois podia es-
esta última questão. Deixe-me antes re- perar que os leitores completassem o
tomar algo de que você falou há pouco. quadro. Tudo que eu precisava era ser
Você me fez pensar que, efetivamente, explícita: vejam, esta é uma visão de
há um paralelo perfeito entre os proje- uma pessoa assim da classe média etc.
tos de After Nature e de The Gender of Em After Nature, eu me sentia livre
the Gift. Neste último, minha intenção dos constrangimentos. E havia uma in-
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tenção política por trás do livro. Na co- Então você disse: não, tudo isso poderia
letânea de Michelle Stanworth, o que se aplicar igualmente ao conceito de
ressaltava daqueles ensaios era o valor cultura. Por vezes, tem-se a impressão
central atribuído à noção de escolha. Is- de que você usa esses dois conceitos
to, parecia-me, colocava de imediato um contra o outro, mas se pusermos as
uma questão política, pois o governo duas críticas lado a lado, o que resulta?
Thatcher, naquele momento, estava in- O que seria, aliás, uma “culturalidade”
vestindo pesado na idéia da “escolha análoga à “socialidade”? … The Gen-
do consumidor”: dispensem-se as insti- der of the Gift é uma crítica ao conceito
tuições, recrie-se o indivíduo como al- de sociedade, dito inaplicável ao con-
guém que faz escolhas… Como tanta texto melanésio.
gente, eu estava muito irritada com is-
so. E assim formulei a questão: como Strathern
pode um chefe de governo dizer coisas Se quisermos entender o modo como os
do tipo “não existe essa coisa chamada melanésios pensam, sem dúvida ele é
sociedade”?19 O que conspirou para inaplicável.
produzir um governante que diz coisas
como esta? Só podia ser – nós todos. De Viveiros de Castro
alguma forma, estávamos todos contri- A crítica é feita em nome da cultura me-
buindo para essa afirmação. Onde, na lanésia?
cultura inglesa, eu podia achar um lu-
gar que me permitisse identificar as Strathern
idéias que levaram a uma afirmação co- Você está absolutamente correto. Meu
mo essa? Bem, o parentesco é algo tão ponto era esse: a sociedade não é um
distante da política ou do governo ingrediente dos universos conceituais
quanto se possa desejar. Se eu conse- daqueles povos.
guisse mostrar que, olhando para o pa-
rentesco inglês, se podem achar as Viveiros de Castro
idéias e temas que sustentam aquelas Mas a noção de cultura é um ingredien-
idéias de Thatcher, então eu teria mos- te desses universos?
trado como cultura é sociedade. Isto é,
eu teria mostrado como, em qualquer Strathern
domínio em particular, se vai encontrar Não, obviamente ele tampouco pode
o que está replicado alhures, em outros sê-lo. OK, parece que estou fugindo da
domínios – e se quisermos entender a questão. Mas para que servem esses
sociedade britânica, podemos fazê-lo termos? Eles não existem, não podemos
através do parentesco inglês. Esta foi nos sentar à volta de uma mesa e legis-
minha espécie de mistura. Mas o livro é lar sobre o que é natureza ou cultura,
tão difuso que não se adivinharia… ou até que ponto uma se dissolve na ou-
tra… A desconstrução, quando funcio-
Viveiros de Castro na bem, é móvel. Ela não fica parada
Naquele debate de 1988 sobre o con- em uma posição. Ela é um processo
ceito de sociedade20, alguém levantou o temporal, você abre as coisas e elas se
problema: muito bem, você está atacan- fecham novamente, você as abre de no-
do a sociedade em nome da cultura, de- vo, elas se fecham, e assim por diante.
molindo o conceito de sociedade, mas Por isso, não me embaraça nem um
deixando o conceito de cultura intacto. pouco ter descartado um conceito em
166 ENTREVISTA

um contexto para, em seguida, usá-lo Fausto


em outro. Você perguntou: o que seria Você estava dizendo que não se sente
uma “culturalidade”? O problema com desconfortável ao usar um conceito
a noção de cultura, tal como a vejo, não aqui e outro ali, ou em sentidos diferen-
é que ela precise de uma desconstrução tes, porque, afinal, isto seria uma espé-
interna, mas que ela foi excessivamente cie de estratégia retórica. Você é bas-
usada: ela sofre de gigantismo, de ex- tante explícita quanto a isso de ficções
cesso. Ela é usada a todo propósito: a discursivas e estratégias retóricas em
cultura do estacionamento, a cultura do The Gender of the Gift. Mas quais são
gravador… Assim, uma de suas carac- os limites desse tipo de retórica? Pois,
terísticas é a ubiqüidade, o fato de que tanto quanto compreendo o seu traba-
ela pode aparecer em qualquer contex- lho, não se pode dizer que você seja
to. Bem, eu aproveitaria disso tudo algo pós-modernista no sentido de estar di-
que poderíamos chamar de replicação: zendo que tudo são representações de
o que faz um conjunto de configurações representações, e assim por diante. Afi-
distinto de um outro é justamente que nal, você está sempre usando as estra-
certas conjunções, certas relações entre tégias retóricas para avançar argumen-
formas reaparecem, de modo a tornar tos substantivos sobre sociedade, gêne-
familiares domínios diferentes. Assim, ro, socialidade…
por exemplo, a noção de que as rela-
ções mercantis são sempre distintas das Strathern
relações não-mercantis é algo que se Há dois testes. Um é o teste óbvio de
pode encontrar no direito, ou na vida ressonância com os dados etnográficos;
familiar, ou nos desenhos de crianças… ora, isto é, em si, uma ficção, pois os da-
Eu diria que o análogo da noção gene- dos etnográficos são eles próprios pro-
ralizada de socialidade, quando se está duzidos, e obviamente o são de modo
falando de cultura, seria essa noção de tal que respondam às perguntas que se
replicação, e a questão seria quando se vão fazer a eles; assim, isto é, até certo
chega ao limite da replicação: quando ponto, uma câmara de eco. Eis por que,
as coisas deixam de ser replicáveis, e este é o segundo teste, estou sempre
quando deixam de reaparecer, então atenta ao que outras pessoas disseram,
você está em outra… de modo que há uma referência cons-
tante a outros – não a outros grandes
Viveiros de Castro pensadores ou teóricos, mas a outras
Essa é uma idéia que tem um papel pessoas que estão tentando utilizar
central em seu Reproducing the Futu- idéias similares. Por isso, a polêmica é
re21, e que você também chamou, em sempre muito importante em meu tra-
The Gender of the Gift, de “formas que balho, e o que faço com isso é ver como
se propagam”… as idéias são digeridas por outras pes-
soas. Estou sempre envolvida em co-
Strathern mentários, envolvida com o que Chris
(Rindo) Você conhece bem meu traba- Gregory diz, ou Annette Weiner, ou De-
lho. Acho que devo lhe dar um presen- borah Battaglia, ou James Carrier: pos-
te. Se eu fosse um nativo de Mount Ha- so estar contra ou a favor, isso é irrele-
gen, mataria um porco para você… vante. O ponto é que tudo que faço ou
fiz foi, por assim dizer, uma transforma-
ção ou deslocamento do que alguém já
NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM 167

pensou. O que estou realmente dizendo seram tal questão de tal modo, mas que
é que pertenço a uma comunidade de há outras coisas a se pensar, e portanto,
antropólogos que compartilham um mudemos a forma pela qual eles estão
certo número de pressuposições, e que pensando. Mas como se trata de um
não faço mais que acrescentar uma tor- procedimento consciente de minha par-
ção ao que já foi pensado por outrem. te, não atribuo a ele nenhum estatuto
Esta é uma coisa bem khuniana… Você absoluto ou essencializado. Meus argu-
me entende? mentos são sempre em benefício do ar-
gumento.
Fausto
Sim, eu estava tentando entender o pa- Viveiros de Castro
pel que a retórica desempenha em seu Marilyn, gostaria que você falasse mais
trabalho. Parece-me algo muito cons- do conceito de forma, que desempenha
ciente e elaborado. um papel, a meu ver, muito importante
em seu trabalho. Na presente conjuntu-
Strathern ra teórica, obcecada por temas proces-
Temo que, em parte – e isso não me dei- suais, você é uma das poucas vozes fa-
xa tão bem assim –, é uma questão de lando a favor da noção de forma e não
eu ser irresponsável; não reivindico res- da noção de processo.
ponsabilidade total pelo que estou fa-
zendo, eximo-me, digo que o que estou Strathern
fazendo é retórica. Isto é fugir. Goody já É verdade. Comecemos por dizer que
me acusou de fugir, e tinha absoluta ra- há toda uma série de conceitos que não
zão. Mas ninguém gosta de admitir es- tolero. Isto não significa – para voltar-
se tipo de coisa. Por outro lado, essa in- mos à questão da contradição e das es-
sistência na retórica talvez seja a con- tratégias retóricas – que eu não os te-
trapartida do papel que a noção de es- nha utilizado alguma vez; mas assim
tética desempenha em The Gender of em abstrato, realmente não os posso to-
the Gift: a idéia de que as coisas que vi- lerar. Tudo isso começou lá atrás, com
vem na cultura – ou na vida – vivem John Barnes22; começou com aquela
porque elas têm uma forma particular, idéia de que se você não tem grupos de
e elas persuadem porque tomam uma descendência nitidamente recortados,
forma particular. E eu realmente penso então, de alguma forma, você está dian-
que a forma que as coisas tomam é mui- te de uma realidade fluida. Havia toda
to importante; penso que importa muito uma linguagem de fluidez e ambigüi-
saber, por exemplo, se começamos pe- dade que eu não conseguia aturar, pois
las relações ou se começamos pelas me parecia, simplesmente, que o que os
substâncias, e assim por diante. etnógrafos estavam fazendo não era
Se eu fosse um outro tipo de pessoa, descrevendo situações fluidas observá-
estaria lhe dizendo que tenho uma teo- veis – eles estavam, sim, sendo impreci-
ria e que os elementos desta teoria são sos e descuidados com sua linguagem.
A, B e C; e que A significa isto, e B isso, Assim, quando alguém começa a dizer:
e C aquilo; e que não estou tratando do bem, as coisas são muito mais ambíguas
que disseram X, Y e Z; e que é de tal etc., procuro logo saber se ele ou ela
base teórica que parto etc. Mas esse realmente quer dizer ambíguo, se ele/a
não é meu modo de operar. O que estou entende que há diferentes modos de ser
dizendo, em vez disso, é que X e Y pu- das coisas, ou se ele/a está apenas sen-
168 ENTREVISTA

do vago/a e impreciso/a, e neste caso ao conceito de reificação. Isto me veio a


trata-se de um fracasso descritivo. Isso partir dos tipos de juízo feitos pelas pes-
é uma coisa que me irrita a mais não soas na Nova Guiné, quando se trata de
poder. saber se as coisas existem ou não: este
Depois, a fluidez e a ambigüidade indivíduo está com saúde? Este clã é
deram lugar à noção de fragmentação – forte? O que aquele sujeito está pen-
outra coisa que não tolero. Quando as sando? A questão é: qual a evidência de
pessoas dizem que o mundo é fragmen- que dispomos para saber que certas
tado, todo esse jargão atual sobre… Vo- coisas aconteceram? Bem, a evidência
cês sabem, aquele tipo de coisa de que de que certas coisas aconteceram é que
[James] Clifford gosta. Isso me irrita certas coisas aparecem agora, e para
porque aqueles que usam a noção de que as coisas possam aparecer, elas têm
fragmentação supõem uma noção de que assumir uma forma particular. Esta
inteireza ou totalidade que permanece é a sua evidência, estas são suas coisas.
não analisada. Isso tudo é meramente É aquela questão sobre [Lisette] Jo-
uma forma de evitar ter que fazer as co- sephides: se a produção das coisas, em
nexões. uma economia capitalista, oculta as re-
Pois bem, o “processo” é algo que lações sociais, então o que a produção
pertence a essa família de termos que de relações sociais oculta em uma eco-
acho irritantes, quando são usados sim- nomia do dom?24 O que ela oculta é a
plesmente como uma maneira de se es- forma simbólica, a reificação das coisas.
capar de outros modos de descrever. E entendo “coisas” não em um sentido
Esta foi uma das razões pelas quais, em substancialista, mas em sentido estéti-
minha palestra de hoje23, preferi falar, co, isto é, falo de como as coisas são re-
algo desajeitadamente, em duas traje- conhecidas – e assim uso o termo “for-
tórias, em fazer duas coisas ao mesmo ma”: falo do aparecer das coisas, de
tempo; isso me parece mais interessan- suas qualidades e atributos que se dão
te e frutífero que entrar na onda geert- a ver. É sobre isso que o povo de Hagen
ziana dos “gêneros embaralhados”, na não teoriza; eles não têm uma explica-
história do patinhar em águas rasas etc. ção sobre como as coisas têm formas,
Eu simplesmente não aprecio tal impre- pois o assumir uma forma é precisa-
cisão. E me parece que dizer que as coi- mente a evidência das coisas. E a evi-
sas são processuais e coisa e tal é algo dência precisa ser não negociável, ou
que pertence a essa família. não funciona como evidência. Assim, is-
Forma… Forma, suspeito, é uma cai- to não é um tópico do discurso. Em tro-
xa-preta. Você talvez não concorde co- ca, para nós este é um tópico constante;
migo, mas para que as narrativas e des- todas as nossas taxonomias e sistemas
crições possam funcionar, deve haver de classificação tratam da especificação
coisas que permaneçam não explica- da natureza das coisas. Mas na Nova
das. Deve haver uma espécie de depó- Guiné isso não se faz, pois ali as coisas
sito, como uma cova no chão, onde vo- são a evidência de que pessoas agiram.
cê põe certas coisas que não estão em
foco, quando você escreve. Mas se não Fausto
quero desembrulhar a noção de forma, Aqui vale a pena lembrar que o concei-
se quero mantê-la como uma caixa-pre- to de “socialidade”, usado por você,
ta, há certamente um sentido forte em tem sido empregado na etnologia ama-
que uso esta noção, e que é em relação zônica, mas em dois sentidos um tanto
NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM 169

diferentes, um mais fenomenológico, Goody me ensinou anos atrás – tenho


em que socialidade é algo como uma quase certeza de que foi ele –, fazer a
certa experiência das relações sociais, e guerra, por exemplo, é estabelecer uma
outro mais estruturalista, que trabalha relação tão relacional quanto fazer a
com uma noção mais formal de sociali- paz. Isso me ficou na cabeça, e é uma
dade. regra que sempre me acompanhou des-
de então.
Viveiros de Castro Estamos aqui tratando com um ima-
Seria importante se você pudesse dizer ginário muito persuasivo no pensamen-
algo sobre que relações você vê – se vê to euro-americano, que não vi ainda
alguma – entre sua noção de socialida- descrito por ninguém. Deixem-me dar
de e as dimensões morais da vida so- um exemplo. Em inglês, eu poderia di-
cial. No contexto da etnologia amazôni- zer que Eduardo tem uma uma verda-
ca, a “socialidade” tem sido freqüente- deira personalidade [a real personality].
mente correlacionada a uma certa con- Estou, neste caso, usando “personalida-
cepção de moralidade. de” em dois sentidos: no sentido de que
todos temos personalidade, mas tam-
Strathern bém no sentido de que Eduardo tem
Estas questões de forma e de socialida- uma personalidade forte. Bem, isto ocor-
de, na verdade, vão juntas. Sim, eu di- re o tempo todo em nossa linguagem. O
ria que eu sou formalista, no que con- caso de “relação” é exatamente esse.
cerne às relações. Uma das razões por Eu posso dizer que nós dois temos uma
que eu gosto da palavra “socialidade” relação: e eu tanto quero dizer isto em
é precisamente o fato de ela não ser a um sentido axiomático – pois estando
palavra “sociabilidade”. “Sociabilida- em um contexto social, temos obvia-
de”, em inglês, significa uma experiên- mente uma relação no sentido formal –,
cia de comunidade, de empatia. Eu dis- quanto quero dizer que temos uma re-
se há pouco que não gostava das pala- lação em um sentido intensamente so-
vras “fragmentação”, “fluidez”, “pro- cializante, sentimental – há sempre es-
cesso”. Bem, eis aqui outro conjunto de se valor moral por trás do conceito. E
coisas que me agastam (estou-me sain- eu detesto a sentimentalização das re-
do uma pessoa bem intolerante!): não lações, a redução, por exemplo, da re-
suporto a sentimentalização da noção ciprocidade ao altruísmo, um erro que
de relacionalidade. Esta repulsa é, em Tim Ingold, dentre outros, faz. Não
parte, uma reação feminina e feminista, agüento isso, a redução da socialidade
pois não esqueçam que as mulheres são à sociabilidade. Estes termos se tornam
estereotipicamente relegadas ao pólo imbuídos de conotações positivas – ou
sentimental da vida social. Toda vez negativas, quando se trata de guerra,
que discuto o conceito de relação, as ou de conflito. Todos esses problemas
pessoas imediatamente se dizem: é cla- se encontram no estrutural-funcionalis-
ro, ela é mulher, tem que valorizar as mo, tudo isso sai da idéia de que a so-
relações, e assim por diante. Essas pes- ciedade é algo inerentemente solidário.
soas estão lendo a noção de relação a É aí que Fortes, naturalmente, põe sua
partir de um imaginário derivado, creio, moralidade. Essa idéia de que é uma
do universo do parentesco, segundo o boa coisa ter relações sociais, a idéia de
qual os relacionamentos são algo ine- que conflitos e guerras, de alguma for-
rentemente estimável. Ora, como Jack ma, fragmentam algo…
170 ENTREVISTA

Foi aqui, sem dúvida, que Lévi- em Amazônia e Melanésia25. Quais suas
Strauss deu sua maior contribuição. Se impressões sobre as possibilidades da
você olhar o debate entre Radcliffe- comparação e sobre a natureza das coi-
Brown e Lévi-Strauss, a diferença fica sas comparadas?
bem clara. Tomemos, por exemplo, o
uso do termo “aliança”. Quando Rad- Strathern
cliffe-Brown fala de aliança – como nos O simpósio foi muito produtivo. Ste-
artigos sobre relações jocosas –, ele tem phen Hugh-Jones, por exemplo, está
em mente uma relação que pode ser decidido a escrever o Gender of the Gift
positiva ou negativa entre duas entida- amazônico. Penso que todo mundo saiu
des, mas que carrega sempre uma força muito estimulado, mas não do modo co-
coesiva, como se houvesse duas entida- mo as diretrizes do simpósio faziam
des que se conjugam. Este, é claro, é o crer: a expectativa era que nos sentás-
elemento primitivo do parentesco euro- semos e comparássemos sistematica-
americano – talvez eu devesse chamá- mente a Melanésia e a Amazônia item
lo apenas de parentesco inglês de clas- por item… Constatamos com alguma
se média – que Schneider captou: a su- surpresa que estávamos interessados
posição de que há pessoas, e elas têm nas etnografias uns dos outros; sobre
relações. E, naturalmente, o que Lévi- uma grande quantidade de pontos, os
Strauss diz é: não, o que se tem são rela- amazonistas e melanesianistas estáva-
ções, e entidades que são o produto das mos realmente conversando uns com os
relações. Quando ele usa o termo “alian- outros. A diferença mais interessante,
ça”, ele está se referindo a uma posição creio – este era, até certo ponto, o objeti-
formal de encadeamento de relações, vo do simpósio –, estava nos papéis dos
não àquilo que Radcliffe-Brown tinha dispositivos de gênero em cada região,
em mente, solidariedade e coisas desse na visibilidade da divisão de gênero.
tipo. Esta é uma diferença maior entre O que extraí de mais geral do sim-
as perspectivas britânica e francesa. pósio, creio, foi que o instrumento de
Como vocês podem ver, esse debate motivação criador de fronteiras, o con-
entre Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss traste relevante subjacente às noções
não era apenas um debate. É aqui que de reprodução – e falo em reprodução
acho útil tomarmos emprestado o termo no sentido da continuidade fértil e pro-
“cultura”, pois estamos tratando de criativa das relações entre pais e filhos,
questões culturais pressupostas no mo- no processo de geração etc. – gira, no
do como se administram as relações, no caso da Melanésia, em torno da dife-
imaginário cultural inglês e em tudo o rença entre masculino e feminino, en-
mais: a idéia de que as relações, de al- quanto na Amazônia confrontamo-nos
gum modo, conectam, e de que conec- com a figura dos inimigos, eventual-
tar é uma atividade positiva – eis aí al- mente humanos, mas também com não-
go que persiste, algo de que é quase humanos: espíritos, animais e todo o
impossível nos livrarmos. Se alguém resto. Em seu artigo, aliás, você fala (no
puder me dizer como nos livrarmos des- contexto da reprodução e da geração)
sa idéia, eu agradeceria… da necessidade amazônica de se ir até o
exterior da sociedade e capturar o exó-
Fausto tico, que é familiarizado e então, natu-
Você esteve no simpósio sobre gênero e ralmente, re-estranhado de modo a ser
comparação que reuniu especialistas morto e absorvido, e assim por diante26.
NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM 171

A fecundidade do contraste Amazônia/ suposição, como isto se conecta às críti-


Melanésia, para colocarmos as coisas cas que você recebeu, e às respostas
de modo simplificado, está em que pu- que você já deu a elas?
demos perceber, no simpósio, que os
melanésios não separam o mundo hu- Strathern
mano do não-humano, mas fazem divi- Com efeito, tenho tido um problema re-
sões entre diferentes tipos de huma- corrente com os leitores e críticos: dom
nos, e que a diferença de gênero é cru- versus mercadoria, nós versus eles, e
cial nesse processo. Ela cria uma dife- assim por diante. A primeira coisa que
rença entre parentes paternos e mater- é preciso ter em mente é que “nós” e
nos que, como posso agora formular – “eles” não é “masculino” e “feminino”;
tomando emprestado o interesse do em outras palavras, se eu estivesse
Eduardo pela ontologia –, significa que abordando as coisas de uma perspecti-
o modo pelo qual uma pessoa se rela- va feminista, eu teria querido criar uma
ciona com seus parentes paternos a co- divisão entre masculino e feminino, e
loca em um estado ontológico diferente dizer que se olham certas coisas de um
do que ela se encontra ao se relacionar ponto de vista masculinista, outras de
com seus parentes maternos; trata-se um ponto de vista feminista – mas o que
de dois mundos distintos dentro dos eu disse em meu livro, e este era um co-
quais as pessoas operam. mentário antropológico, é que na ver-
dade a divisória entre melanésios e eu-
Viveiros de Castro ro-americanos é bem maior. Assim, esta
Bem, aqui gostaria que (já que você não divisória é uma resposta à outra. Mas,
pode me dar um porco) você me desse naturalmente, só se resolve um proble-
um argumento… Muito de seu esforço ma criando outro. E o problema que me
teórico tem sido o de desmontar certas ficou nas mãos é que parecia que eu es-
oposições maiores, como indivíduo/so- tava endossando um essencialismo.
ciedade, ou natureza/cultura. Por outro Você vai ao ponto quando diz que a
lado, muita gente leu The Gender of the diferença é nos modos de pensar; eu
Gift como se este livro tivesse erigido iria um pouco mais longe, e diria que é
um grande divisor entre “nós” e “eles”. nos modos de descrever. Acho que, tal-
Enfim, os clichês críticos atualmente em vez – por estranho que pareça –, a re-
vigor: a denúncia do “ocidentalismo”, a flexão que me vi recentemente obriga-
recusa da dicotomia dom/mercadoria… da a fazer sobre os processos de avalia-
Você respondeu a essas críticas diver- ção das universidades me despertou
sas vezes, dizendo, por exemplo, que o para isso; refiro-me ao que disse on-
contraste dom/mercadoria era princi- tem, sobre o fato de que as avaliações
palmente uma maneira heurística e re- se fazem por meio de descrições e de
tórica de formular o problema descriti- autodescrições27. Os comentários que
vo. Tudo bem, mas tenho a impressão você fez sobre a obsessão da antropo-
de que você acredita que os melané- logia com questões epistemológicas
sios, como direi, têm algo de muito dis- também me foram muito úteis28. Acho
tintivo, que seus modos de pensar são que você me ajudou a ver a distintivi-
bastante diferentes dos nossos (e recor- dade de nossos modos de produção de
do aqui nossa discussão de há pouco so- conhecimento, que, naturalmente, se
bre “sociedade” e “cultura” no contex- apóiam de modo fundamental em prá-
to melanésio). Se estou certo em minha ticas de descrição. Sempre pensei, in-
172 ENTREVISTA

tuitivamente, sobre o modo como vive- o fazemos através dessas autodescri-


mos, com ambigüidades, contradições, ções. É essencial dar-se conta disso.
sendo capazes de fazer várias coisas ao Posso fazer agora uma pergunta a
mesmo tempo – tudo isso é tão diferen- vocês? Onde, a seu ver, estaria uma ba-
te do que exigimos das descrições… É se futura para a antropologia crítica?
como a diferença entre andar de bici-
cleta e descrever como se anda de bici- Viveiros de Castro
cleta: um livro que descrevesse como Tradicionalmente, a antropologia usou
montamos em uma bicicleta e nos man- os selvagens para dar lições de moral
temos lá seria interminável. É nas prá- aos ocidentais: para nos fazer sentir, ora
ticas de descrição que essas diferenças orgulhosos, ora culpados de não sermos
emergem, e, portanto, eu não hesito em (mais) selvagens. Mas era só isso. Até
sustentar que nós produzimos descri- pouco tempo atrás, os antropólogos que
ções de nós mesmos que são diferentes trabalhavam com as chamadas socieda-
daquelas que os melanésios produzem des primitivas e os especialistas nas
de si mesmos. Isto nada tem a ver com chamadas sociedades complexas não ti-
compreensão, ou com estruturas cogni- nham lá muita coisa a dizer uns aos ou-
tivas; não se trata de saber se eu posso tros. É esta barreira que começou a ruir,
entender um melanésio, se posso inte- e que precisa ruir. Penso que o futuro
ragir com ele, comportar-me adequa- está na idéia de Latour de uma antro-
damente etc. Estas coisas não são pro- pologia simétrica, e que é algo que vo-
blemáticas. O problema começa quan- cê também está fazendo, em seus traba-
do começamos a produzir descrições do lhos sobre o parentesco euro-americano.
mundo.
Strathern
Viveiros de Castro Sim. Há uma tremenda intolerância na
Não se trata, portanto, de uma questão Grã-Bretanha, hoje em dia, a tudo que
de universalismo versus relativismo, cheire a uma condição exótica ou dis-
correto? Porque já li críticos sugerindo tante que não possa ser reduzida aos
que você nega a existência de uma na- efeitos do colonialismo, à história euro-
tureza comum a “nós” e a “eles”. péia, à expansão do Ocidente, esse tipo
de coisa. Esta é, aliás, minha diferença
Strathern com Nick Thomas. Embora aprecie mui-
O que estou dizendo é que a diferença to o seu livro sobre a troca na Oceania29,
que existe está no fato de que os modos não sou simpática à necessidade, ali
pelos quais os melanésios descrevem, manifesta, de se legitimar o interesse por
dão conta da natureza humana, são ra- essas coisas mostrando que elas resul-
dicalmente diferentes dos nossos – e o tam da expansão européia no Pacífico.
ponto é que só temos acesso a descri-
ções e explicações, só podemos traba- Viveiros de Castro
lhar com isso. Não há meio de eludir es- Isto me parece uma espécie de narcisis-
sa diferença. Então, não se pode dizer: mo masoquista...
muito bem, agora entendi, é só uma
questão de descrições diferentes, então Strathern
passemos aos pontos em comum entre É verdade, e é isto que me faz, em con-
nós e eles… pois a partir do momento trapartida, exagerar as diferenças. Você
em que entramos em comunicação, nós perguntou no começo desta entrevista
NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM 173

sobre decisões teóricas: eis aqui uma diferenças, simplesmente porque isto
decisão teórica. E uma decisão teórica nos obriga a parar para pensar.
de que me tornei consciente no contex-
to do estudo das novas tecnologias re- Viveiros de Castro
produtivas, porque, nesse caso, há mui- Para terminar, Marilyn, fale-nos um
ta gente que diz: vejam, não há nada de pouco sobre seu interesse pelo tema
novo nessas coisas, sempre fizemos is- dos direitos de propriedade intelectual
so, apenas as técnicas mudaram. E há e sobre a linguagem dos “direitos”. Es-
gente que diz, ao contrário: oh, meu tou provavelmente seguindo uma pista
Deus, o mundo vai acabar, é um cata- errada, mas me parece que um modo
clisma… Bem, tomei a decisão teórica de correlacionar seu interesse recente
de pertencer a este segundo partido. sobre os direitos de propriedade inte-
Primeiro, porque acho que ele é mais lectual e seu trabalho anterior sobre a
interessante, é mais estimulante, dá troca, seria ver a noção de “direito” co-
mais o que pensar. Segundo, e mais se- mo o correlato relacional da mercado-
riamente, por motivos políticos, pois a ria. A mercadoria está para a coisa co-
primeira reação – que não há nada de mo o direito para a relação; o direito se-
novo nas novas tecnologias, que sem- ria a Relação, o único tipo de relação
pre estivemos a fazer isso – deriva de que você pode ter no mundo da merca-
uma ética profundamente conservado- doria; na verdade só haveria um direito,
ra, que na verdade encoraja as práticas o direito de propriedade… Quando che-
mais radicais, já que as legitima me- gamos à questão dos direitos de pro-
diante o argumento de que se pode fa- priedade intelectual, aplicados a mun-
zer qualquer coisa, pois não se estará dos indígenas organizados pela lógica
fazendo nada de novo. A segunda rea- do dom… Qual seria o equivalente des-
ção, aquela que diz: oh, meu Deus, o ta categoria do direito em uma econo-
mundo está acabando – ela é obvia- mia do dom?
mente absurda nesses termos, mas ao
mesmo tempo ela está dizendo: espe- Strathern
rem um minuto, paremos para pensar, o Vou usar estas formulações, elas me pa-
que estamos fazendo? É esta reação de recem muito úteis… OK, a noção de di-
dar uma parada para pensar e dizer: o reito é o correlato da mercadoria, então,
que está acontecendo aqui? – é esta que o que estaríamos procurando no dom?
prefiro. Bem, parece-me haver uma O correlato substantivo ou coisiforme
analogia direta entre aquela primeira do dom? Ou estaríamos tomando o dom
reação às tecnologias reprodutivas e a em termos da lógica da mercadoria, isto
atitude antropológica em face dos po- é, como uma coisa? Bem, preciso pen-
vos não-ocidentais que diz: vejam, tudo sar a respeito, mas por ora: a noção de
deve ser interpretado em termos da his- “direito”, própria do mundo da merca-
tória da colonização e da história euro- doria, pressupõe uma posição singular,
americana, só se podem compreender isto é, a definição de uma singularida-
os povos da Nova Guiné como trabalha- de; não importa se estamos tratando de
dores da plantation ou seja lá o que for, uma ou de várias pessoas. Estamos
caso contrário, você estaria simples- diante de um estado de singularidade.
mente exotizando-os. Eu pertenço, aqui A noção de dom, por outro lado, tem
também, ao outro partido, aquele que que se referir ao resultado de uma rela-
escolheu exagerar deliberadamente as ção, de uma diferença; não pode ser
174 ENTREVISTA

uma singularidade. Assim, o que se que ele está levando o pensamento eu-
procura deve ser algo extraído de um ro-americano até áreas bastante refra-
idioma procriativo, talvez de um idioma tárias às linguagens disponíveis. Os
performativo, algo como “efeito” – mas teóricos dos direitos de propriedade in-
acho que isso não funcionaria. Na ver- telectual estão no limite de suas possi-
dade, sinto-me atraída pelo tema dos bilidades conceituais. Estamos aqui no
direitos de propriedade intelectual por- limite de uma certa linguagem.

Transcrição de David Rodgers


Tradução de Eduardo Viveiros de Castro

Notas

1 O livro de Fortes, Kinship and the Social Stephen.1979. The Palm and the Pleiades:
Order: The Legacy of Lewis Henry Morgan Initiation and Cosmology in Northwest Ama-
(London: Routledge, 1969), resultou das Mor- zon, ambos publicados pela Cambridge Uni-
gan Lectures que ele deu na Universidade de versity Press.
Rochester em 1963. 8 GELL, Alfred. 1995. “Strathernograms:
2 LEACH, Edmund R.1961. Pul Eliya, a Vil- Or, the Semiotics of Mixed Metaphors”, arti-
lage in Ceylon: A Study in Land Tenure and go inédito.
Kinship. Cambridge: Cambridge University. 9 Antropólogo que trabalhou com M.
3 STRATHERN, Andrew e STRATHERN, Strathern em Manchester, hoje na Universi-
Marilyn. 1968. “Marsupials and Magic: A dade de Adelaide, Austrália.
Study of Spell Symbolism among the 10 WAGNER, Roy. 1975. The Invention of
Mbowamb”. In: E. Leach (org.), Dialectic in Culture. Englewood Cliffs: Prentice-Hall.
Practical Religion. Cambridge: Cambridge 11 STRATHERN, Marilyn. 1981. “No Nature,
University Press. No Culture: The Hagen Case”. In: C. Mac-
4 Women in Between: Female Roles in a Cormack e M. Strathern (orgs.), Nature, Cul-
Male World foi publicado em 1972 (Seminar ture and Gender. Cambridge: Cambridge
[Academic] Press); Kinship at the Core: An University Press.
Anthropology of Elmdon, a Village in North- 12 WAGNER, Roy. 1967. The Curse of Souw.
west Essex in the Nineteen-sixties é de 1981 Chicago: Chicago University Press.
(Cambridge: Cambridge University Press); 13 Goody sucedeu Fortes como William
The Gender of the Gift: Problems with Women Wyse Professor of Social Anthropology (e di-
and Problems with Society in Melanesia é de retor do Departamento de Antropologia So-
1988 (Berkeley/Los Angeles: University of Cal- cial) em 1972. M. Strathern assumiu esta
ifornia Press); e After Nature: English Kinship mesma cátedra em 1993, sucedendo a Ernest
in the Late Twentieth Century foi publicado em Gellner, que sucedera Goody.
1992 (Cambridge: Cambridge University Press). 14 M. Strathern está-se referindo à pes-
5 WEINER, Annete. 1976. Women of Val- quisa coordenada por Audrey Richards em
ue, Men of Renown: New Perspectives in Tro- Elmdon, vilarejo próximo de Cambridge, so-
briand Exchange. Austin: University of Texas bre a qual versa o livro Kinship at the Core.
Press. As condições da pesquisa são descritas por
6 STRATHERN, Marilyn. 1981. “Culture in A. Richards no prólogo a esse livro.
a Netbag: The Manufacture of a Subdisci- 15 “Nature” e “law”; ver Schneider, David.
pline in Anthropology”. Man, 16:665–688. 1968. American Kinship: A Cultural Account.
7 HUGH-JONES, Christine.1979. From the Englewood Cliffs: Prentice-Hall.
Milk River: Spatial and Temporal Processes 16 Em um college de Cambridge ou Oxford,
in Northwest Amazonia e Hugh-Jones, os membros-alunos são supervisionados em
NO LIMITE DE UMA CERTA LINGUAGEM 175

seus estudos universitários por fellows da 23 “Scale, Complexity, and the Imagina-
mesma instituição. Pouco tempo depois de tion: A Puzzle from Papua New Guinea”,
ter sido bye fellow, M. Strathern tornou-se 22/9/98.
fellow oficial de Girton. Em 1998, ela se tor- 24 M. Strathern refere-se à discussão que
nou mistress de seu college. trava em The Gender of the Gift com L.
17 STANWORTH, M. (org.). 1987. Repro- Josephides.
ductive Technologies: Gender, Motherhood 25 “Amazonia and Melanesia: Gender and
and Medicine. Oxford: Polity Press. Anthropological Comparison”, simpósio
18 As quatro Morgan Lectures em que Af- Wenner-Gren coordenado por Thomas Gre-
ter Nature se baseia foram ministradas em gor e Donald Tuzin (Mijas, Espanha, setem-
1987. bro de 1996).
19 M. Strathern se refere à célebre decla- 26 FAUSTO, Carlos. “Of Enemies and Pets:
ração de Margaret Thatcher: “Não há essa Warfare and Shamanism in Amazonia”.
coisa chamada sociedade; só há indivíduos, e American Ethnologist (no prelo).
suas famílias”. 27 M. Strahern evoca sua palestra no Mu-
20 “The Concept of Society is Theoretically seu Nacional, proferida na véspera da entre-
Obsolete”. In: T. Ingold (org.), Key Debates vista. Ver seu artigo “A Avaliação no Sistema
in Anthropology. London: Routledge, 1996. Universitário Britânico”. Novos Estudos,
Trata-se de um debate entre M. Strathern, J. 53:15-32, 1999.
Peel, C. Toren e J. Spencer, 28 M. Strathern refere-se às conferências de
21 STRATHERN, Marilyn. 1992. Reproduc- Viveiros de Castro em Cambridge (fevereiro/
ing the Future: Anthropology, Kinship, and março de 1998).
the New Reproductive Technologies. Lon- 29 THOMAS, Nicolas. 1991. Entangled Ob-
don: Routledge. jects: Exchange, Material Culture and Colo-
22 Ver Barnes, J. A. 1962.“African Models nialism in the Pacific. Cambridge/Mass.:
in the New Guinea Highlands”. Man, 2:5-9. Harvard University Press.

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