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O Papel dos Leigos na Igreja
Católica: a
Exortação Apostólica
‘Christifideles
Laici’ de 1987
(notas de conferência proferida em São Paulo, em 301103,
para universitários do Projeto Universidades RenovadasRCC).
João Sérgio Cury Lauand
Passados 20 anos do Vaticano II, o Romano Pontífice quis voltarse para
um tema que teve destaque no Concílio e dedicou o Sínodo dos Bispos de
1987 ao estudo de aspectos relativos aos fiéis leigos. O documento pós
sinodal, a exortação Christifideles Laici, apresenta temas dignos de estudo.
Dessa forma vaise preenchendo uma lacuna de séculos na definição das
atribuições dos leigos. Durante muito tempo, pouco ou nada se falou sobre
isso. A título de exemplo, em seu conhecido livro sobre a História da
Igreja, comentando os resultados do Concílio de Trento, DanielRops
afirma: "É de admirar que, entre tantas sessões, não tenha havido uma que
traçasse o retrato do verdadeiro cristão leigo...como se tinham traçado os
do bispo e do sacerdote".
Logo no início, a Exortação que estamos considerando, afirma: "Ao longo
dos seus trabalhos, o Sínodo fez constante referência ao Concílio Vaticano
II, cuja doutrina sobre o laicato, à distância de vinte anos, se revelou de
surpreendente atualidade e, por vezes, de alcance profético: essa doutrina é
capaz de iluminar e de guiar as respostas que hoje devem darse aos novos
problemas". (n.2).
O Sínodo deu muitas graças pela atuação do Espírito Santo e por tantas
iniciativas surgidas nesse período, que vão renovando a Igreja. Recordou
por outro lado dois perigos: por um lado a tentação de que os leigos
mostrem um interesse exclusivo pelos serviços e tarefas eclesiais, de forma
a chegarem freqüentemente a uma abdicação prática das suas
responsabilidades específicas no mundo profissional, social, econômico,
cultural e político; e a tentação de legitimar a indevida separação entre fé e
vida, entre a aceitação do Evangelho e a ação concreta nas mais variadas
realidades temporais e terrenas. Voltaremos a isto mais adiante.
O trabalho do Sínodo, em palavras do Papa, esteve voltado a indicar
caminhos para que a ‘teoria’sobre o laicato se converta em praxe na Igreja.
O documento indica algumas questões de particular relevância: "Entre
esses problemas contamse os que se referem aos ministérios e aos
serviços eclesiais confiados ou que deverão confiarse aos fiéis leigos, a
difusão e o crescimento de novos «movimentos» ao lado de outras formas
associativas de leigos, o lugar e a função da mulher tanto na Igreja como
na sociedade".
Ao final do Sínodo os participantes pediram ao Papa um documento
conclusivo sobre os fieis leigos, que foi a origem da Exortação.
Vocação e missão dos leigos
Vêse portanto um apelo em sentido inverso ao que gerou a vocação
religiosa. Este último, que continua válido, foi no sentido de que os
religiosos adotassem o contemptus mundi, o abandono das preocupações
do mundo, característico da sua vocação. Tratase portanto de duas
atitudes perfeitamente válidas – entrar de cheio no mundo ou afastarse
dele , cabendo a cada um saber a que Deus lhe pede pessoalmente. Dessa
forma fica respondida a pergunta sobre o local onde o leigo deve ser sal da
terra e luz do mundo: no lugar que ocupa no mundo. Dentro do capítulo
sobre a vocação e missão o Papa usa imagem muito bonita: são
trabalhadores da vinha, mas são também a própria vinha.
Quanto à vocação individual –questão que cedo ou tarde todos se colocam
há um número próprio (58), recomendando a escuta pronta e dócil da
Palavra de Deus e da Igreja, a oração filial e constante, a referência a uma
sábia e amorosa direção espiritual, a leitura feita na fé dos dons e dos
talentos recebidos, bem como das diversas situações sociais e históricas
em que nos encontramos.
Quem são os leigos?
A quem se dirige o texto? O Papa diz que vai tentar uma formulação
positiva. Implicitamente se reconhece que as anteriores eram algo
negativas, quase como os ‘coitados’ que não são padres nem freiras.
Recordase não somente que pertencem à Igreja mas que são a Igreja,
vides radicadas em Cristo, e outras imagens. Mas é sobretudo nos efeitos
do batismo que se deve encontrar sua essência: "só descobrindo a
misteriosa riqueza que Deus dá ao cristão no santo Batismo é possível
delinear a ‘figura’ do fiel leigo". Nesta altura o documento referese a toda
a força do batismo, com suas conseqüências: passar a ser filhos no Filho,
formar um só corpo com Cristo e ser Templos vivos e santos do Espírito.
Os fiéis participam –ainda que de forma diferente que a dos presbíteros
do sacerdócio de Cristo. Os leigos possuem – não perdem! a
secularidade. Um fiel leigo tem características, modos de vida, etc.,
diferentes dos que têm os religiosos. É diferente seu modo de viver as
virtudes. Sempre foi uma grande tentação, e um grande erro, identificar
esses modos, de maneira a propor aos leigos as mesmas formas de viver as
virtudes que se apresentam para os religiosos. Não pode ter as mesmas
características a pobreza de um franciscano e a de um pai de família.
Panorama histórico
Este tema já foi abordado em muitos lugares e seria extenso tratar dele
agora. Baste dizer que logo a seguir aos primeiros cristãos foi aparecendo
na Igreja o chamado à vida religiosa, a princípio de forma espontânea,
condensada depois nas diferentes regras (constituições) aprovadas pela
Santa Sé.
Foi tomando diversas formas de acordo com a inspiração de Deus e as
necessidades dos tempos. Em séculos sucessivos – em processo que não
terminou foram aparecendo, no Ocidente, os beneditinos, os frades
mendicantes, os jesuítas, os clérigos regulares e tantos outros, sempre com
a característica do afastamento do mundo, maior ou menor. Não houve um
desenvolvimento paralelo de fórmulas para os leigos, até recentemente,
com o Vaticano II e seus precursores.
Necessidade da vida interior
Ação de Deus e do homem
Aqui se coloca uma questão prática interessante. Até que ponto devo atuar,
ou abandonar a iniciativa nas mãos de Deus. É o tema da graça. A graça
move os corações, mas, ordinariamente, alguém precisa falar. "Quem
enviarei?" pergunta Nosso Senhor pela boca do profeta pensando na
transmissão da sua doutrina.
Tratase de tema muito comentado, mas nem sempre as soluções
encontradas na realidade prática de cada um estão de acordo com a reta
teologia. Sabese que mais de uma vez os Papas intervieram impondo
silêncio aos dois lados, quando os ânimos ficavam exaltados. Sobre uma
dessas ocasiões, comenta DanielRops: "Vinte anos de discussões não
serão suficientes para esgotar os argumentos dos dois campos nem para
terminar num acordo".
Um resumo rápido da solução poderia ser que cada um de nós procure
fazer o que lhe corresponde –de verdade e deixar para o Senhor aquilo a
que não temos acesso. Remeto aqui a uma sugestiva observação do prof.
Jean Lauand falando precisamente a universitários católicos carismáticos
num ENUCC sobre a voz média.
"Não sou eu quem me navega, quem me navega é o
mar..."
(Cf. http://jean_lauand.tripod.com/page27.html)
"Não sou eu que me navega, quem me navega é o mar". Seria tentar a
Deus pedirlhe que resolva problemas que eu posso solucionar: iluminar
me para que eu não necessite estudar, limitarnos a rezar para que se
solucionem os problemas de econômicos e sociais do país, etc.
Lembrome, a propósito, de duas histórias que ouvi. Uma é a do homem
que cuidava sacrificadamente de seu jardim quando passou uma senhora e
candidamente comentou: "Que belo jardim! Que coisas bonitas Deus faz!".
Nosso amigo olhou bem para ela, enxugou o suor e disse: "A senhora
precisava ver como era isto quando Ele cuidava sozinho!".
A segunda é a do sacerdote que preparava só metade do seu sermão
dominical e dizia que deixava a outra metade para o Espírito Santo. Certo
domingo, quis conferir com o sacristão, como tinha saído sua prática. Este
lhe disse: "Padre, a sua parte como sempre muito boa; a do Espírito Santo
desta vez não foi aquelas coisas...!".
Parece que a conclusão é clara. Como já se disse, sem transpiração não há
muita inspiração. Para tirar boas notas é preciso estudar; para contratar um
funcionário, mais do que consultar a Bíblia (excelente coisa para outros
propósitos) será preferível comprovar seu currículo, fazer uma entrevista,
etc.
Interesse exclusivo pelas tarefas eclesiais
Esse seria o primeiro erro, a que já nos referimos acima. Com freqüência
ressurge a tentação de abandonar a procura de respostas para as
dificuldades do dia a dia, ou a de encontrar soluções ‘católicas’ para os
problemas.
É na seqüência desse texto da Gaudium et Spes que se situa uma sentença
muito citada e que cada vez mais se revela profundamente sábia: "a
criatura sem o seu Criador desaparece, não tem razão de ser". É, portanto,
mais um convite a não abandonar o mundo, a trabalhar com todos na
procura de soluções justas para os problemas. Deve ter sido em parte em
relação a isso que Cristo avisou que os filhos das trevas são mais espertos
que os filhos da luz. Um cristão está no mundo como em seu lugar próprio.
Aí deve aprender a conviver com todos, a sofrer as dores de todos, a
perseguir a resposta aos problemas que afetam seus semelhantes.
Separação entre fé e vida
Um cristão, como aliás toda pessoa, é chamado a manter a coerência entre
aquilo em que acredita e sua vida. Não é possível separar nem em sua
cabeça, nem em sua atuação as idéias da vida. O contrário seria vida dupla,
hipocrisia, incoerência.
Ouvi contar, há tempos, uma história que se não é verdadeira, bem que
poderia ser. Certo político, conhecido como católico, votou a favor de
determinado tema contrariamente à doutrina da Igreja. Ao ser criticado por
um bispo, protestou dizendo que votara como político e não como católico.
O bispo lhe respondeu: "Pode ficar tranqüilo, eu não o critiquei como
político e sim como católico!".
Não se pode distinguir onde acaba o político e onde começa o católico, e
isso vale para todas as ocupações e para todas as ocasiões. A fé e as
convicções não são peças de vestuário, acessórios, que se possam utilizar
ou não.
Estas foram algumas breves considerações sobre papel dos leigos na Igreja
Católica de acordo com a Exortação Apostólica ‘Christifideles Laici’, um
documento rico, claro, necessário.