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ANA MARIA DOIMO MOVIMENTO SOCIAL URBANO ,JGREJA E PARTICIPACAO FOPULAR Tese apresentada como exigéncia pa~ ra a obtengSo do grau de Mestre em Antropologia Soctal & Comissio Jul- gadora da Universidade Estadual de Campinas, sob a ortentagao do Prof. Carlos Rodrigues Brando. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMP «NAS UNICAMP BiBLIOT | ch 1983 n ENTRAL Pedico este tuabatho acs miLitantes dod Hovinentes Popueares e Acs meus $ihos Pablo ¢ Tiaga que sentivam a aconpanharan de parte a trajetiria da minha "pesquisa par thoépante”, unicame BIBLIOTECA CENTRAL AGRADECIMENTCS Ao jornalista J& Amado que, com a sua convicgao nos Hovimentos Populares, me deu a forga inicial neces~ sria para a concretizagao de um objetivo ha mito cultivado: ajudar na organi zag3o’ popular. A minha ex-aluna Alda Catia Lyrio - atualmente alune do Programa de Mestrado em Comunicagao Social daUSP- pela dedicagio com que desempenhou o trabalho de en- trevistar os participantes do Movimento de Transpor~ te Coletivo, Ao fotégrafo Gilde Loyola - chefe do laboratério fo- tografico do jornal A Gazeta - pela disposi¢goedes- pojamento com que se prontificou em reproduzir as fo- tografias pertinentes 3 este trabalho, ‘Ao Departamento de Ciéncias Sociais da UFES, pelo afastamento que me fol concedido dos encargos docen~ tes durante seis meses e & Sub-Reitoria de Pesquisa @ Pés-Graduagao pelo financiamento dos custos finals para a apresentagao desta dissertagao: Também devo gratidgo 3 Dona Virginia, 4 Genita e & Gilda, Foram elas que, en diversos momentos, assumi- ram o desgastante trabalho doméstico da minha casa, me liberando para a pesquisa de campo e a militancia, Finalmente quero agradecer ao meu emigo e professor Carlos Rodrigues Brando por ter prontamente me aco- Ihtdo cono sua orientanda, mesmo tendo em conta que © meu trabalho j3 se encontrava em Fase de redagio. Vv Suas idéias ponderadas e, sobretudo, sua _pecul tar simplicidade, foram decisivas para a conclusao desta dissertagao. INTRODUGAG NOTAS ==" INDICE ' 1 Objetivos ~~: 2 0 Interesse pelo Tema ~~ 3. A “Pesquisa do Participante” 4 Introdugdo a0 Tema ~~~ CAPTTULOS 1 MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - Une quest3o Controverti- - da- 1A Controvérsia ~ 1.1 Movimento Popular ~ 1.2 A Triangulaggo Sindicato/Fabrica/Ba ro. 1.3 No Movimento Popular, o Movimento Social Urbano - 2 Movimentos Urbanos na Conjuntura ~~ 2.1 0 Papel da Igreja --~ 3. A Quest3o da Participagao NOTAS 11 URBANIZACKO E MOVIMENTOS POPULARES NA GRANDE VITORIA ~ 1 Aspectos da Urbanizagao da Grande Vitdria ~ 1,1 Trabalhadores Expulsos do Campo Rumo & Conquista das Chaminés - 1.2 Aunento Populacional da Grande Vitéria 1.3. A Partictpagao do Estado - vi Ju W uv 13 15 23 25 29 34 3h 35 38 39 1.4 Vila Velha - Uma Cidade Dormitério == 2 Movimentos Populares na Grande Vitéria no Final da Década do 70 NOTAS =~ MM 0 HOVIMENTO DE TRANSPORTE COLETIVO' DE VILA VELHA ~-~- 1 0 Inicio - 1,1 A Pesquisa’ ~~ 2 A Ascensao do Movimento 2.1 0 Abaixo-Assinado ~~ 2.2 A Grande Assenbléia ~~ 2,3 0 Contato com o Poder Pablico --~~ 3. 0 Arrefecimento . --~ 3,1 0 Distanclamento das Bases ~~. 3.2 A Quebra do Monopélio Interno - A Conquista doMo- vimento 3.3 A Reagao da Empresa A Desmobilizagao e @ Desarticulagao do MTC 5 0 Processo de Avaliagdo ~~ IVA DINAMICA INTERNA DO NTC 1 As Bases =~ 2 A Identidade Fundada na Fé ~~: A Relagdo das Liderangas com as Bases S A Relago do MTC com Qutros Movimentos de Bairro - 5 Novas Taticas - 0. Descenso do MIC ~~ o A Relago do NTC com Outros Movimentos e Manifesta~ gées Populares ~~ vii Pagina 4 bh 50 52 52 53 56 56 57 64 66 66 68 70 7 73 78 79 82 33 7 102 log ANALISE CONCLUSIVA ~ } Virtualidade Polftico-Transformadora do MTC enquanto um Movimento Social: Urbano 2 As Relagdes do HTC come Igreja ~~ 3 Elementes que Deram Identidade aos Participantes do Tt NOTAS ~ BISLIOGRAFIA ~~ ANEXOS ~~ APENDICE = vit Pagina wm m 120 128 137 wd 146 176 INTRODUCKO 1 OBJETIVOS © objetivo geral desta dissertacdo 6 fazer o xegistro de um movimento social urbano, —— o Movimento de transporte Coletivo de Vila Velha’ (Mfc) —— ocorrido entre abril de 1978 a novembro de 1979. Trata-se de um estudo de caso que busca explicar a sua dinamica interna, em seu con- texto de ocorréncia, Neste sentido, o trabalho considera 9 processo de industrializago-urbanizagao da Grande Vitéria e os movimentos populares do final da década de 70, espe- cialmente aqueles de que sao parte setores da Igreja caté- lica. : oe Os objetivos especificos referem-se a:1) con~ sideragdo do MTC como um Movimento Social Urbano (MSU); 2) xeflexdo sobre as relagdes da Igreja com o MYC; 3) indica- go dos elementos que conferiram identidade e coesio aos participantes do MTC. 2 O INTERESSE PELO TEMA © mou interesse pelos movimentos populares, particularmente os de bairro, derivou basicamente de dnas situagdes: A primeira refere-se & opgdo pessoal tomada de estabelecer vinculos diretos com a organizagao popular que se efetivou, inicialmente, através do constante trabalho as- -2- sumido no MIC e, em parte, através da tentativade ajudar a criar, no municipio de Vila Velha, um jornal de bairros. A segunda, relativa ao compromisso académico, propriamente dito, surgiu quando da minha participagdo, aconvite de Jo~ 88 Alvaro Mois&s, no grupo Movimentos Sociais Urbanos pcr época do le Encontro da Associagao Nacional de Pés-Gradua~ g3o, realizado na USP no inicio de 1979, As discussdes ali travadas me abriram algumas pistas de investigagao, assim como: perspectivas de minimizar a solidio teérica encon- trada ew Vitdria. : Devo esclarecer que a realidade da Grande Vi~ téria e do Estado do Espirito Saito me era totalmente dez- conhecida até agosto de 1977, época em que termined a mai-~ oria do créditos do programa de mestrado em Antropologia Social na UNICAMP e parti para a docéncia na Universidade Federal do Espirito Santo, Isso, se de-um lado representcu um esfoygo para a minha interag&o numa situagdo nada fa- miliar, de outro lado significon uma condigdo favor4vel no tocante 4 pesquisa com movimentos populares, pois me deixou mais 4 vontade no trato com grupos e tendéncias de compor- tamento politico pré~existentesno local. A escolha do municipio de Vila Velha para lo- cal de trabalho/pesquisa nfo aconteceu por acaso. Na época, eu havia feito um projeto de pesquisa sobre o cotidiano dos trabalhadores da construg&o civil nos seus locais de mora- @ia e na participagSo do sindicato e 0 inicio da pesquisa indicou que a grande maioria das principais liderangas mo- ravam em Vila Velha. Por outro lado, uma pesquisa prelimi-~ nar realizada no Institute Jones dos Santos Neves — dérgZo =3- de planejamento do Estado —~ sobre o contexto de industri- alizagSo/urbanizacio da-Grande Vitéria, caracterizou Vila Velha como um municipio altamente carente de bens,servigos e equipamentos urbanos, e portanto propicio d emergéncia de movimentos urbanos. E, finalmente, porque j& era visivel a existéncia de organizagao nos bairros indo dé encontro ao interesse de se criar o jornal de bairros. 3. A *PESQUISA DO PARTICIPANTE" Comecel a participar do MTC em agosto de1978, quando cfereci o meu trabalho para ajudar na claboragio do boletim do movimento. Em fevereiro de 1979 mudei-me para un dos bairros de Vila Velha para ganhar maior mobilidade de participagéo e passei a auxiliar na organizagado de um dos setores do municipio. Ao MIC me nantive ativamente integra~ da at@ a sua total desarticulagic, em novembro de 79, logo antes da reforma partiddria. As expectativas e os preconceitos em relagZo aos intelectuais eram bem acentuados entre os condutores do movimento e a minha "aceitagao" relativa entre eles foi gra~ dativa, num crescente reconhecimento dos meus préstimos en~ quanto pessoa que cumpria passo a passo os compromissos as- sumidos, € ndo enquanto intelectual/pesquisadora. Alias, devo esclarecer que a minha participagdo no MTC nfo teve cono condigdo prévia a pesquisa, pois como j4 disse,ela es- tava, neste perfodo, centrada no cotidiano dos trabathado~ res da construgao civil. A id@ia de transformar a experi- €ncia no MTC em tese de mestrado surgiu posteriormente, o nde que sugere associar minha coleta de dados como yma modali- dade de Pesquisa Participante, Neste caso talvez fosse até melhor denominar de “pesquisa do participante" ,que foi jus~ tamente 9 que ocorreu, dado que no havia uma intengdo pre~ viamente articulada de pesquisa em torno da situagdo. © que entendo por pesquisa participante justamente aquilo que resulta da insergSo organica e par- ticipativa do intelectual/pesquisador na histéria concreta das classes populares, no sentido de registr&-La sob o pon- to de vista do dominado, Isto implica numa postura que evo- ca outras paixdes e ambigdes alén do diletantismo académi- co. O aterta feito por Gramsci, que inclusive j4 se tornon conhecido ultimamente, expressa claramente que o intelec- tual ndo pode saber sem compreender e sem estar apaixonado pelo objéto do saber. “Sem sentir as paixdes elementares do povo @ relacioni-las dialeticamente As leis da histéria,diz Gramsci, as relagdes do intelectual com o povo-nagiio s&o, ou se reduzem a relagSes puramente burocrAticas e formais" (Gramsci, 1978, p. 139). Numa pratica que busca romper o enclausurc~ mento e a aura elitista dos intelectuais, tem-se verifica- do nos Gltimos anos, através da pesquisa participante, un significativo aumento de conhecimentos produzidos do lado do dominade. Um conhecimento vivo, “onde afinal pesquisado- res e pesquisados sSo sujeitos de um mesmo trabalho comum, ain- da que com situagées e tarefas diferentes" (Brandao, 1981, p.11), A teoxizagao sobre a pesquisaparticipante @ um pouco controvertida, havendo aqueles que séa justificam mediante a plena participagio da comunidade na definigdo do “5= “problema de pesquisa", na coleta dos dados,sistematizagao e andlise dos mesmos*, Essa modalidade de pesquisa partici-. pante 6 marcada por duas caracteristicas: a) rompimento da dicotomia sujeito/objetd no processo de conhecimento; bi utilizagao, voluntaria ou nao, das etapas da pesquisa como tticas mobilizadoras e conscientizadoras. H& outro tipo de pesquisa participante onde a pesquisa ndo & condig&éo “sine qua non" para o desencadea~ mento de processos organizativos. & o caso do intelectual que, imbuido de intencionalidade politica, participa orga- nicamente da organizacdo popular enquanto pessoa e, aom mo tempo, durante o seu engajamento, reune dados e infor~ magdes jue poderfo dar margem a trabalhos elaborados por ele préprio e que tenham retorno, de alguma forma,ao grupo ou 4 comunidade*. A pesquisa participante @ muito dinamica e po~ de se dar em diferentes condigées, No entanto, em qualquer @as modalidades, acredito que haja trés principios basicos: 1) 0 pesquisador deve estar imbuldo de uma intencionalida~ de politica; 2) guardat certa distAncia critica face A re- alidade e 4 ag&o do grupo; 3) definir as questdes da pes- quisa a partir da pr&tica organizativa das classes popula- res, Embora nao desenvolva o conceito de pesquisa participante, Gilberto Velho oferece pistas muito importan- tes para uma pesquisa de natureza antropoligica desse teor. Diz ele que o antropdlogo tem que ter a habilidade de"por~ -se no lugar do outro" a fim de se conseguir ummergulho em profundidade na localidade pesquisada,onde "ha aliangas im- ~6- plicitas ou explicitas, cruzando fronteiras das classes so- ciais, apoiadas em cédiyos e em uma ordem moral de que par~ ticipam n segmentos de wma sociedade" (Velho, 1981, p. 85). © antropdlogo participante deve dar conta de registrar ari- queza do cotidiano sem cdir no conte da “visio mais corre- ta", Para isso é necessario, como salientou Gilberto Velho, manter uma postura de estranhamento Giante do que se passa em volta e diante de si mesmo, Nao se trata,absolutamente, de cair no engodo da postura da neutralidade no processo de conhecimento, mas sim de, reconhecendo-se a necessidade do envolvimento politico, precaver~ise para nao perder a apre- ensio da diversidade de interesses, universos simbdlicos, interpretagdes em jogo, etc. Nesse sentido, entendo que a postura do antropdlogo na pesquisa participante deve se par tar pela "tens&o permanente entre o risco de identificacéo total com o grupo e a necessidad de uma tomada de distén~ cia que permita o olhar critico" (L'dbservation Mikitante, 4/d,p.3i. © pericdo de pesquisa participante para efei~ to deste trabalho fol de aproximadamente um ano e meio.Me~ ses apés a total desarticulagado do MIC, foram realizadas 33 entrevistas abertas entre liderangas de bairroe agentes de pastoral, abrangendo vinte bairros. As entrevistas foram feitas sem o uso de gravador, por uma pessoa treinada que n&o havia participado do movimento, possibilitando, assim, uma reconstituigao avaliativa mais fluente, tecida pelos préprios participantes. Pesquisas com movimentos sociais de natureza politica que dependem do contate direto com os seus prota~ gonistas sempre apresentam algumas limitagdes relacionadas & desconfianga e/ou ao medo, No caso do MTC, que mantinha estreitos vinculos com 0 chamado "pessoal da igreja", ote- mor procedia da tensao resultante de uma exacerbada vigi- Jancia as "bases" © aos-contornos do movimento, Entzetanto, isso nao chegou a se constituir num entrave 4 minha parti- cipagdo, dada a natureza da minha postura: eficiente aoni- vel do encaminhamento e execugio de tarefas e discreta no plano opinativo, © clima de boa convivéncia se. expressou claramente mais tarde, por Spova das entrevistas, quando a resistéicia dos entrevistados em dar respostas ia atéomo- mento em que a pesquisadora revelava estar fazendo um tra~ balho para min. 4 INTRODUGKO AO TEMA . Estudos sobre a temitica”dos Movimentos Sc~ ciais Urbanos no sdo tarefas das mais simples —— princi- palmente para antropdlogos.—— pois esbarram na exigua bi- bliografia tedrica a respeito e no controvertido debate so- bre a sua virtualidade politica transformadora. Dificulda- des ainda maiores surgem quando se trata de estudar casos coneretos pois o contexto conjuntural e estrutural onde o- correm, assim como a dinfmica interna dos mesmos colocam em evidéncia elementos histéricos e especificos que influem nos seus rumos e contornos. © primeiro capitulo desta dis— sertagiio reflete algumas destas dificuldades & medida que contém os subsidios tedricos, alinhados para auxiliarem na posterior reflexdo e analise sobre a virtualidade politica do MTC enquante Movimento Social Urbano; as relagdes do MTC com a Igreja; os elementos que conferiram “identidade aos participantes. Ao adotar como pressuposto metodolégico basi- co a consideragao do MTC como parte de um processo histori- camente determinado, exponho, no segundo capitulo contex- to de industrializagSo/urbanizagdo da Grande Vitéria, as~ sim como uma répida caracterizaglio dos movimentos popula- xes do local ocorridos no final da década,de 70. No entan- to, se essa postura metodolégica nos abre para uma visio histérica e portanto da totalidade,nao esgota, em si, as possibilidades ‘de explicagdo de situagdes particularizadas. #6 justamente neste ponto, onde cada vez mais ganham tez- xeno e inportancia as pesquisas em torno de situagdes do coti~ @iano —- que até h& bem pouco'tempo se viu subsumido na an~ plitude dos conceitos sociolégicos (Classes Sociais, pro~ letariado, Estado, Ideologia, etc) —mno que reside a con- tribuigao fundamental do trabalho antropolégico em geral e do meu em particular. Assim, no terceiro capitulo fago uma espécie de etnografia do NTC, ou seja, uma descriglo deta~ hada e linear dos acontecimentos ocorridos entre abril de 1978 a novembro de 1979 e no quarte capitulo @ onde revelo a dindmica interna do MTC, ou seja, as caracteristicas das "bases" ¢ os elementos que lhes conferiram identidade eco~ esio; as relagdes das liderangas com as bases;a relacdo do MEC com outros movimentos sociais, etc. No quinto e fltimo capitulo desenvolvo a ani- lise conclusiva, onde procuro relacionar os dados e ag in~ formag3es apontadas,& luz dos pressupostos metadolégicos adotados © do controvertido debate teérico quemarca os es~ tudos sobre os MSUs. -10- 1 - Vila Velha & um munictpio contfguo a Vitaria —- capital do Es~ plrito Santo — que, juntamente com os municipios da Serra, Ca- ciacia e Viana, formam a. chamada Grande Vitéria. 2 ~ Nessa perspectiva, Francisco Grossi define pesquisa participante como “um modo de pesquisa social mediante 0 qual se busca a ple- na participagdo da comunidade na analise de sua prépria realida~ de como objetivo de promover a transformagdo social para o be~ neficio dos participantes da pesquisa, Estes so os oprimtdos, marc Inalizados e explorados. Esta atividade , portanto, uma ti- vidade educativa de pesquisa e ago social" (Grossi, 1987), Den- tro disse, Guy Le Boterf om seu evtigo "La Investigacion part cipativa como processo de Educaciiin Critica Lineamentos Hetodo- légicos", entende que hi tr&s momentos no processo de investiga~ rs um processo permanente de estudo, de reflexio e de transformag3o diagndstico, andlise critica e agdo, S80 "trés momentos de da realtdade, que se nutrem mutuanente', (Boterg, 1981, p. 10). 3 = No que toca a esse tipo de postura de pesquisa participante,con~ vam observar que "quanto mais préximo o pesquisador se sentir da @ncia cotidiana do grupo, sera mais facil para ele o processo de Insergao, de coleta de dados, da identidade dos problemas-che ve e, também, seu didlogo com a comunidade" [L’Obseavation MiLi- tante, p. 2). CAPITULO! MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS - Uma quest3o controvertida 1 A CONTROVERSIA 1,1 Movimente Popular 6 movimento do Transporte Coletivo, ocorrido em Vila Velha —~- objeto de refiexio neste trabalho — um dentxe os infimeros Movimentos Populares ocorridos no ce~ nario das lutas sociais do Brasil] no final da década de 70. © que seria o movimento, popular? Luiz E, Wanderley diz qué eles témorigem nas contradigdes sociais que afetam as classes popularesem seu conjunto e resultam em movimentos sociais especificos, de~ pendendo da forma como cada parcela destas classes cofre o peso das contradigdes. Fazem parte do movimento popular: o movimento operario, os movimentos urbanes, o movimento de mulheres, de negros, de Indios, ete. & importante assinalar que "neste conjunto, o movimento operfrio tem uma fungic he~ gemdnica, cuja atuagdo e lideranga contudo depende de con- digdes coneretas a serem conquistadas © que ndo sao dadas a_priori" * (Wanderley, 1980, p. 27). No final da década de 70 o movimento popular tomou grande impulsc. Os trabalhadores da Ford entraram em greve geral durante uma semana; dez mil pararan na Volks; “12+ quase 70 mil operarios entreram em greve no ABC paulista, A oposigdo metalirgica ém S.Paulo se movimentava para as eleicdes do sindicato, que se encontrava’ ha dez anos nas nos de Goaquim Andrade; os bancArios de todo o pais se re~ uniram em congresso e decidiram fazer um abaixo-assinado de~ nunciando a falsificagio dos indices, para os reajustes sala- riais de 73/74, Em Contagem ~ MG - os metalirgicos fizeram assembiéias para lutar pela reposic&o salarial. Bm Vitéria ao ES motoristas e trocadores de Snibus paralisaramas ati- vidades e os trabalhadores da ccnustrug&o civil entraram en greve durante mais de 10 dias. Significativo,também, 0 fa~ to de que a palavra de ordem "pela autonomia e liberdade sindical", aos poucos, tomava corpo. Mas no era no meiu especificamente operario que cresciam os movimentos de resisténcia ao arrocho sala~ rial e as péssimas condigdes de vida. Infmeros jornais de bairros® circulavam expressando o vigor de novas formas de organizagio das classes populares. Neles eram registrados movimentos reivindicatérios de varios tipos, localizados ¢ organizados nos locais de moradia da classe trabalhadgra: associagées de moradores, comissdes de ruas,assembléias nos bairros, mutirdes, invasdes de terrenos. Essas eramas for~ mas mais comuns de organizag&o encontradas que, através de faixas, cartazes, passeatas, abaixo-assinados, audiéncias com autoridades, expressavam varios tipos de veivindicagdes: limpeza e canalizagiio de valas, transporte coletivo,ilumi- nagdo péblica, construgio de escolas, reqularizagdo de ter— renos, Agua, esgoto, seguranga, creches, postos médicos, ete. Como se observa, sdo reivindicagSes baseadas nos pro- “13+ blemas imediatos que afetam a vida no dia~a~dia, das popu- lagSes de perigeria, mas nem por isso deixaram de ter sua importaéncia politica, pois, se de um ladoajudarama forgar e a acelerar o proceaso de abertura politica,por outro la~ do criaram suas préprias ‘condigdes de articulaggo a nivel nacional ganhando dimensées de um verdadeiro movimento so- cial. 1.2 A Sriangulacdo Sindicato/P&brica/Bairro Bm fevereiro de 1950 reuniram-se em Joao Mon~ levade, a convite do Sindicato dos Metaliirgicos,alguns di- xigentes sindicais e representantes de outros . movimentos populares de varios Estados brasileiros, com a finalidade nZo sé de se fazer uma analise da conjuntura e da atuagao politica, mas também de definir ulguns-principios nortea— dores da agio sindical, dentre os quais se delineava a ne- cessidade de “incentivar a articulagio entre as lutas do movimento sindical. e as lutas do movimento popular (bairro, terra, etc) na cidade e no campo" (Doc. de Monlevade, p. 3). Um ano mais tarde, novo encontro foi realizado dentro do mes~ no espirito: construir um espago sem ser confundide com uma organizagdo ou partido, nem ura corrente ov tendéncia do movimento sindical e popular, no quai os movimentos pudes- sem se encontrar, trocar experiéncias © acertax pontes co- muns de lutas, sem prejuizo de sua autonomia e especifici- dade. Neste encontro, ocorrido em Taboo da Serra ~SP~,que contqu com a participagac de cinquenta representantes de moviwentos populares de quase todos os Estados da federa- -14- gao —— do campo e da cidade, de fabricas e de bairros — foi reforgada a necessidade de interligagéo de movimento sindical e operfrio com outras organizagdes populares. Fo- ram as seguintes as conclusées alcangadas neste sentido: val ») ce) Dentyo do principio de que o movi~ mento sindical nfo deve isolar-se dos outros movimentos populares,mas con- siderar~se parte deles, existe a ne- necessidade urgente de rompermos com preconceitos, tanto do movimento sin- dical come dos demais movimentos po- pulares, difundidos pela ideologia dominante @ que nada contribuem para a efetivagao dessa interligagao; Exercitar a: solidariedade na coope- ragio mfitua com os sindicatos, i= primindo e divulgando o material e a pratica das organizagdes populares. Utilizar a imprensa sindical para ai~ vulgar as lutas que est&o sendo tra- vadas nos bairros, ad mesmo tempo em que, nos seus érgaos de divulgacdo sw organizagées populares fagam chegar até os bairros as lutas sindicais do momento, permitindo, dessa forma,que os trabalhadores que moram no bairro com as suas familias participen das lutas das categorias; As bandeiras dos movimentos popula- res gue visam a melhoria das condi- gdes de vida da populagdo (saiide-ha- bitag&o, educagéo, transporte, etc) também devem ser apoiadas pelos’sin- -15- Gicatos. 4)... Em resumo, que os sindicatos e os outros movimentos populares discutam permanentemente entre si todas as bandeiras comuns e formas de solida- riedade" (Coc. de S80 Bernardo, p, 4-5). Come se observa, a busca de articulag&o en- tre o movimento operério e sindical com os demais movimen- tos populares == j4 enunciada como Triangulagio Ssindica~ to/Babrica/Bairro —— nfo se resume a uma questio mera - mente conceitual e académica, mas @ parte integrante domc- vimento concreto e histérico da luta de classes. 1.3 No Movimento Popular, o Movimento Social Urbano Os Movimentos urbanos, como parte do Movimen~ to Popular (MP), particularmente no que toca a sua virtua~* lidade politica transformadora, sdo, ainda, alvo de anali- ses controvertidas e importantes de serem assinaladas, An~ tes, porém, convém indicarmos a natureza de tais movimen~ tos. “Trata-se de movimentos que emergem da sociedade civil, de composigao heterogénea,cujos contefidos basicos situam— ~se na esfera ao consumo. Suas priticas desenvolven-se,fur damentalmente, ao nivel de reivindicagdes ao poder piblico, por melhores condigées de vida no meio urbano, Sao movimen~ tos tipicos do processo urbano industrial" (Cohn, 1982, p.12)% © ponto nevr&lgico das controvérsias foi cla~ ramente levantado por Anténio Ivo de Carvalhoemseu proje- -16- to de pesquisa intitulado "Movimento de Bairro e Politica’, Diz ele que o carater policlassista desses movimentos e o fato de se Gesenvolverem 4 margem da produg&o,tém sido ele- mentos usados para sustentar a tese de ‘que esses movimen- tos sao reformistas, ou seja, de qie sSo incapazes de ul~ trapassar o imediato das reivindicagdes urbanas. Essa tese estaria fundamentada na seguinte ordem de questdes: 1) as contradigdes urbanas sio de carter conjuntural e, portar~ to solfveis nos marcos do sistema capitalista; 2) os movi- mentos nao teriam forga suficienre para, em circunstancies mais favoraveis em termos da melhoria urbana,resistir 4 ab- sorgéo politica pela classe dominante, na figura de um Es- tado "neutro e regulador" (Carvalto, 1978, p. 3). Bssa tese € confirmada por Carlos Nelson Fer- veira dos Santos a partir do estudo de caso de trés movi~ mentos trbanos ocorridos no Rio de Jangiro na primeira me~ tade da década de 70 — Bras de Pina, Morro Azul, Catumbi. Segundo ele, os MSUs s6 podem resultar em uma reintegragdo, © chega mesmo a ser enfatico ao afirmar que depositar nos MSUs “muitas esperangas de mudanga social equivale a acre- ditar em milagres" (Santos, 1982, p. 240), Emsew exercicio te~ érico de an@lise, o autor rechagou a utilizag&o de concei- tos amplos (Estado, Capitalismo monopolista, conjuntura, etc), objetivando imprimir ao seu trabalho um carater an- tropolégico que “iluminasse certas dreas mal definidas nas abordagens sociolégicas ¢ politicas mais correntes” (Iden, p.20), Baseando-se no modelo construido por Turner ° drama social ele conclui que a categoria morador é mui-~ to fluida, indefinida e impreciga, para, em oposigiio ao Es- -17- tado, desencadear um processe de “transfermagdo estratural do sistema urbano“ tal como acredita Castells'o Zstado por sua vez, finaliza o autor, "ndo existe enquanto ser impes- soal que se confronta com o morador também impessoal... As relagdes sdo personificadas e marcadas por 'hierarquizagio e miltiplas classificagdes' que ultrapassam a simples de- terminagio econémica dos padrées de vida" (Idem, p. 202), E assim, Santos descatacteriza a concepgdo de que esses dois polos--— morador e Estado —— encontram-se realmente em oposicé: na agdo reivindicativa e¢ organizativa de modo a in- fluir substancialmente no poder do Estado. E ain@a, refor~ gando o pressuposto de que os conflitos xesultantes das contradigoes urbanas sao soliveis nos marcos do sistema ca~ pitalista, o autor, estabelecendo um paralelo entre “clas— ses" e "noradores"; argumenta que "classe @ umconceito li~ gado A produgZo cujas fronteiras, apesar de: se apresenta~ rem ds vezes nebulosas, podem, pelo menos, ser balizadas... No caso dos moradores, também podem existir situagdes equ lizadoras, sd que s4o momentdneas, As relagdes sAo conjun~ turais e ndo estruturais" (Idem, p. 204), ® Maria da Gléria Cohn e liz H, Wanderley nao encaram os MSUs dessa maneira, Ambos defender que esses mo~ vimentos, surgidos a partir de problemas locais eespecizi- cos, ao se desenvolverem expandindo suas reivindicagdes pa~ xa niveis mais amplos, tendem a formar uma consciéncia da situagdo e das necessidades comuns dos grupos envolvidos, podendo se politizar,para o que dependem de fatores inter— nos e externos dos movimentos’.Os fatores internos referem- “se ao comportamento das liderangas, a sua relagdo com as ~18- bases e aquilo que se coloca no interior do préprio movi- mento em termos de perspectivas de superagao — ou nao — da estrutura de dominagao de classes. Os fatores externos referem-se 4 conjuntura politico-social vigente. A manifestagdo dos MSUs nado data de longo ter po e as pesquisas e andlises desse tipo de fendmeno datam de menor tempo ainda’. No Brasil, sintomaticamente,esses es- tudos comegaram a surgir no final da década de 70°, Sinto~ maticamente porque, em primeiro iugar, foi justamente nes~ te periodo que os MSUs marcaram presenga pela quantidade e pela qualidade; e em segundo lugar porque rompeu-se o pre- conceite académico de que esses movimentos teriam um caré- ter meramente reformista, clientelista, chegando, quando muito, a efeitos modernizadores Ja sociedade 4 medida que cumpririam tao somente o papel de orientar o Estado na me- lhor distribuig&o dos servigos e equipamentos urbanos,Den- tro desta perspectiva, 0 Estado se portaria como um orga- nismo acima das classes, aliviador das tensdes, regulador dos conflitos e, portanto, obscurecedor das contradigées © interesse despertado pelo estudo desses mo- vimentos no Brasil foi estimulado — e tem tido sempre co- mo referencial teérico — por alguns autores estrangeiros, pioneiros em pesquisas na area, Jordi Borja, talvez o pio~ neirissimo,” postula a emergéneia dos MSUs na existéncia das contradigées urbanas a partir da andlise das contradi-— gdes do capitalisme-sociedade dividida em classes antagd- nicas. Entretanto, @epois de construir uma tipologia dos MSUs na Espanha", ele ressalta o seu carater de coesko so- cial em detrimento do conflito social. Para ele, os movi~ -19- mentos reivindicatérios urbanos sio as agdes coletivas da populagdo voltadas a usufruir da cidade, ou seja, habita~ gdes e servigos. Sdo agdes destinadas a evitar a degradagao de suas condigdes de vida para cbter a adequagdo destas 4s novas necessidades ou perseguir uma maior nivel de equipa~ mentos. Essas agées .d&o. lugar « efeitos urbanos ... poli- ticos e especificos w.°. Nao se pode simplesmente classificar a | cou- cepgao deBorja como a-histérica, como fez Silvio Caccia Ba- va?, sex ressalvar que as pesquisas empiricas emesmo a mi- litancia em torno dos MSUs, pela sua propria natureza, di- ficilmente deixam entrever, nos préprios limites dos movi- mentos, possibilidades muito prowissoras no que toca a pro- cessos mais profundos de transforwagao, Pesquisadores e mi- litantes sdo, 4s vezes,tomados por um.desestimulante sen- timento indicativo de que esses wovimentos “ndo levamana- da", No entanto, apesar das inimeras dificuldades edos su- cessivos entraves —— que, se ndo equacionados devidamente, podem induzir a conclusdes de coloragéo integrativa — al- guns pesquisadores e os militantes tém preferido contar com teédricos que realimentam as perspectivas transformadoras dos MSUs. Preocupado com a natureza da luta de classes no capitalismo na sua fase monopolista, Castells. volta-se para a analise dos processos de urbanizagio, vendo neles o surgimento de novas contradigdes inspiradoras de novas for~ mas de conflitos: os movimentos sociais urbanos definidos como “um sistema de praticas que resulta da articulagao de uma conjuntura definida, a uw tempo,pela insergao dos agen- =20- tes —— suportes na estrutura urbana e na estrutura soci- al —~ e de natureza tal, que seu desenvolvimento tenda ob- jetivamente para a transformagdo estrutural do sistema ur- ano ou para uma modificagdo substancial da correlagao de forcas ua luta de classes, ou seja, em Gltima instancia, no poder do Estado”. A virtualidade polttica transformadora dos MSUs enfatizada por Castells é ponderada por ele mesmo quan~ do a considera como um instrumento formal de analise e ori- enta para que o avango tedrico s2 faga a partir de manifes- tagSes historicamente determinadas 4 luz de cada conjuntu- ra politica’, BE, assim procedends, seus estudos também re~ velam a existéacia ofetiva de aliangas de classes e de cc~ optagao de movimentos pelo Estado”, mas concluiqueo cami- nho a ser percorrido 8 o de buscar o rompimento da hegeno- nia das classes dominantes a partir de estratégias funde- das na concepgao de que as contradigdes urbanas sdo.uma ex- press& direta da légica do capitalismo —— acentuadas nas formagdes sociais dependentes —— colocando, por conseguin- te, o morader em oposig&o ao Estado. Enguante Castells indica que a base social policlassista dos MSUs (assalariados em geral, operfrios e parcelas do chamado 'setor informai'), unificada "indisso- luvelmente pela crise urbana, torna esses inoviwentos estra- tegicamente fundamentais para uma transformagdo Cas rela~ gées sociais, pois generaliza as fontes de oposico 4 clas~ se dominante™, Lojkine busca estabelecer aproximagdes ted- ricas entre as contradigées urbanas —— vendo~as da Stica da produgio ¢ niio de consumo —-- com os novimentos de base -21- operaria. Para ele, as lutas urbenas isoladas representam nanifestagdes de fraco alcance politico se nfo partirem do seio mesmo da classe operéria atwavés da sua reelidade sin- dical e politica’. 2 MOVIMENTOS URBANOS NA CONJUNTURA A preocupagSo com a virtualidade politica transformadora dos MSUs tem sido uma constante derivada da debilidade organizativa des mesmos ¢ da sua pouca capacid:- de de pressio frente ao Estado. No Brasil, a tradigao des- ses movimentos até a década de 70, pelo menos naquilo que j& foi alvo de estudos, demonstrs bem isso. A trajetOria das Sociedades de Amigos de Bairro em Sd Paulo 6 um exem- plo caracteristico. Surgidas a partirdac Sociedades de Amigos da Cidade (SACs), em 1934, por iniciativa de profis~ sionais liberais e de figuras da chamada “aristocracia pau- listana", cumpriram o papel de “orientar o crescimento, j4 ent&o intenso e pougo controlado de So Paulo"{Singer, 1980, p. 85-86). A partir da Segunda Guerra foram intensificadas se gundo os interesses populistas e "funcionavam como elos de ligagZo entre a populagdo e o poder piiblico, que tinha pos- sibilidades de atender, pelo menos em parte, §s reivindica~ gées assim apresentadas. Tratava-se, no fundo,de trocar as obras e os servigos, financiados pelo erfrio pablico, pelo voto dos beneficiarios" (Idem, p. 87).Observe-se que neste pe~ riodo, dado o grau de desenvolvimento das forgas produti- vas, 0 Estado podia levar adiante a ideologia desenvolvi- mentista travando uma politica de troca de favores, permi~ =22- tida, dentre outras coisas, pela disponibilidade de capi- tais principalmente no mercado externo. Era uma conjuntura que possibilitava, embora moderadamente, uma distribui- gio da renda capaz dé incorporar as massas, ainda que den- tro de vertos limites”, Depois de 1964, comarepressao que se -abateu junto a todas as formas de organizagao popular, e com a perda da capacidade, por parte do Estado, de acio~ nar esquemas de legitimacao através de barganhas —~ ja que agora 0 avango das forgas produtivas monopdlistas exigia gue os recursos piblicog ficassen quase que exclusivamente A mercé da sua reprodug&o ampliaia —- houve um significa tivo descenso desses movimentos. Na década de 70, particularmente depois ¢e 1974, quando o-chamado "milagre econédmico" vai chegando ao fim e as contradigdes urbanas se avolumam face 4 politi~ ca econémica centralizada e-adversa & teprodugSo ampliada da forga de trabalho, comegam a surgir, com certa intensi- @ade, ao lado do ressurgimento do movimento operdrio e de outras formas de manifestagSo da sociedade civil, os movi-~ mentos urbanos..A incapacidade do Estado em agir de forma populista, conjugada com a emergéncia de liderangas compro metidas com um trabalho de base e criticas emrelagie & po- litiea clientelistica, populista e personalista —= tao prépria do periodo 45 a 64 —~— foram fatores que concorre~ ram para uma nova configuragao dos MSUs, caracterizando-se agora como elementos, de pressio ao Estado e colocando~se a condig’o de autonomia e indepsndéncia em relagao a ele =23- 2.1 . O Papel da Igreja Caldeira Brant chana a atengdo para o papel “central e direto" que teve a Igreja "no plano das organi- zagdes por local de moradia" e Pavlo Singer atribui essa no va fase dos movimentos poptlares de bairro "A criagao de nc~ vas modalidades de organizagdo diretamente inspiradas pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja catélica,com a participagao eventual de outras Igrejas ou grupos ideolo- gicamente motivados" (Singer, 1980, p. 89)” O papel das CEBs”& sempre realcado por Pau- lo Singer como a mola propulsora dos movimentos sociais deste periodo e Caldeira Brant chama a atengdo para a sua *notdvel autonomia tanto em relagdo aos partidos politicos tradicionais como em relagio aos grupos clandestinos de es- querda" (Brant, 1980, p. 25), Esse pensamento & partilhado tam- bém por Ivo Lesbaupin & medida que atribui ao Movimento Po- pular maior autonomia face a propostas pré-fabricadas e fa~ ce ao Girigismo de cipula™, ruiz Gonzaga de Souza Lima sis~ tematiza as suas principais caracteristicas: a) demo~ cracia interna; b) antiautoritarismo; c) redugdo maxima das possibilidades de manipulagdo, recuperag&o dos valores cul- turais do povo, responsabilidade assumida pelas bases e seu papel de protagonista dos movimentos, antidogmatismo, plu- ralismo ¢ autonomia. Quem, neste periodo, acompanhou de perto os movimentos sociais, sabe perfeitamente o qudo intenso foi © papel da Igreja. Entretanto, muito pouco se pesquisou ou escreveu ainda sobre o significado da sua atuaggo, motivo -24- pelo qual se vive, por enquanto, um clima de perplexidade diante de um comportamento tio “progressista" de certos se- tores organicamente vinculados a tal instituigdo secular que sempre se adaptou e sobreviveu em diferentes contextos histéricos e conjunturas politicas*, £ @ dessa perplexida-— de que surgem as polémicas, pois hd também quem veja nessa atuagdo uma intengZo deliberada de se legitimar enquanto instituig&o, Silvio Caccia Bava, analisando a experiancia organizativa do "Movimento do Onibus" ocorrido na perife~ ria de S&0 Paulo na primeira metade da década de 70, ater- ta para a expansdo das CEBs como um significativo resulta do da ivfluéncia da Igreja nos movimentos populares. Diz ainda claramente que a Igreja catélica traz "em si uma di~ namica gue reproduz a dominago politica de classe naauilo que define seu trago mais profundo: impedir que as massas tomem en suas préprias mios o poder de decidir sobre. seus rumos e de construir os seus préprios instrumentos de agac. No que ha de funtamental, continua o autor,"essa dindmica de dominagdo se expressa concretamente ma tentativa (nem sempre consciente por parte dos seus representantes) de ab sorver c movimento pela base para dentro de sas estrutu- ras, transformi-lo em sua base, dele retirando as condigdes para que: pense, decida é aja de uma forma auténoma, inde- pendente" (Caccia Bava, 1981, p. 81). Como se observa, essas colocagédes sao total- mente opostas dquelas enunciadas nos parSgrafos imediata~ mente anteriores, constituindo uma polémica que, nada mais nada menos, nos coloca diante de um desafio quando temos pela frente um movimento social para analisar ——- ¢ no qual -25- a Igreja desempenhou um papel fundamental, 3 A QUESTKO DA PARTICIPACKO A adaptacio gradativa e aparentemente silen- ciosa de amplas parcelas da populagdo 4 pobreza 6 wma coi- sa impressionante. "Muitos acreditam-se impotentes para mu- da-la ¢, em vez de assumir essa falta de forga, confessar seu medo e tratar de supera-lo, preferem tomar uma atitude fatalista e manifestam receio dos militantes que pretendem tird-los dessa inatividade; de outro lado, apesar da calma aparentc,. hd um inconformismo profundo, que As vezes & di~ ficil perceber sob a capa do fatalismo., Até onde possam ix na agdo,.depende da repressao e da pergisténcia do medo" (Chauf, 1980, p, 17) grifos meus, os “Vivo contente com a minha pobreza e se .esta~ mos assin @ porque Deus qué". “Os pobres tém mesmo € que trabalhar para os ricos porque se todo mundo fosse rico no ia ter emprego para os pobres e se todo mundo fosse pobre entdo todo mundo ia morrer de fome". Esses fatalisnos sido de dona Eulalia, moradora de um bairro de Vila Velha cons~ truido sobre o mangue, onde o aterro é@ feito gradativamea- te pelos préprios moradores, As casas,de tipo palafita,sdo ligadas entre si por pequenas e estreitas passarelas sus- pensas. Dona Eulalia, com nove filhos, dizia ter tido sor- te ao encontrar aguele lugar, beirando o valao —— “onde passa galinha morta, cachorro podre e toda a porcariada do Hospital Evang4lico” —~ para morar. Seu marido é aposenta- @o por-problemas de nervos e ela towa Diapezan, 0 filho =26- mais velho tapbém sofre dos nervos e os outros "nao quise- ram estudar, mas gracas a Deus nenhum 6 bandido ou margi- nal", A situagio de dona Bulalia eo que ela di se, representa tao sémente aquil: que milhares de pessoas vivem e dizem sobre as suasvidas. Un dizer conformista e fatalista .. que, certamente, deve encobrir un inconfermis~ mo. "Inconformismo profunde"? 0 ye Marilena Chaul quis di- zer com esse "profundo" nao ficou claro, mas percebo, na pratica, que nao & tao profundo . ponto de, mesmo em momen- tos de xepressdo mais branda e portanto, de menor medo,mo~ tivar a participagado social e politica. £ claro que nao se pode deixar de considerar a existéncia da repressio (exercida sob diferentes formas) e do medo, mas 6 certo também que h& apatia-—~ sem aspas — quase que generalizada, tornande a questdo da motivagio 4 participagao um desafio aos integrantes do movimento popu- lar. Como aliviar o peso da heranga populista paternalista enraizada na consciéncia popular? Como despertar um senso de aglo coletiva em meio ao reforgo diario da ideologia in- dividualista e de ascensdo social? Como retirar as pessoas, cansadas depois da jornada de trabalho, da frente de uma televisio, se isso 6 o que constitui o seu lazer? De que forma solicitar o exiguo tempo iivre das pessoas para par- ticiparem de inickativas organizativas? Enfim, como motivar 0 povo 4 participagic so- cial e politica organizada face a um emaranhado de situa~ gSes que © encaminham neo sentido inverso? Essa preocupagdo ndo é minha, em especifico, mas sempre suzge nos Encontros -27- de Movimentos Populares- A primeira vista essas questdes podem parecer irrelevantes. Nas ndo o sao, pois.a par de toda a . discus~ sao dos fundamentos estruturais e conjunturais dos movimen- tos sociais, eles precisdm, antes de tudo, existir. Ea sua existéncia depende de algum tipo de intervengao que abra ca minho dentre as forgas contrarias e que desenvolva lagos de solidariedade, metas e valores cowuns ¢ um campo de comu~ nicagdo e interagio (Cardoso de Oliveira, 1976). Que se forme uma rede de relagdes na qual e atraviis da qual as pessoas se identifiquem entre si, Mas a par‘:icipag&o politico - social exige mais do que isso porque ela implica na bescade um vir a ser diferente e, enquanto tal, requer a.compreensdo cri- tica da sociedade. Existem identidadesque se fundam em contefidos eminentementes politicos, como os partidos e organizagdes politicas. Mas existem identidades formadas a partir de ov- tros elementos cuiturais que podem vir a ter expresso no campo politico. Considerando todos esses fatores, me pergun- to: o que & que, efetivamente, funcionoy para motivar a participagio de uma “base” relativamente expressiva,duran~ te cerca de us ano e meio, no Movimento de Transporte Co~ Jetivo? 0 que 6 que conferia identidade aos participantes? Comoe essa identidade era manipvlada oportunamente para,ora "preservar 9 grupo", ora abrir & participagao? Respostas para essas questdes, a partir do estudo de caso de um determinado movimento social ocorrido no final da década de 70, podem ajudar no aprofundamento da

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