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Universidade de Brasília

Instituto de Artes – Departamento de Artes Cênicas


Disciplina: Teorias e Processos Criativos para a Cena
Professora: Roberta Matsumoto
Aluno: Rodrigo Ribeiro Bittes
Matrícula: 15/0147481

2ª AVALIAÇÃO – MÓDULO I, II e III


Questão I)
A ideia de teatro de Antonin Artaud rompe com a estética tradicional do
ocidente, sobretudo europeia, e estabelece novos paradigmas para a construção criativa
da cena. A partir de outras referências teatrais, sobretudo orientais, como o teatro de
Bali, Artaud defende um teatro que não mais se apoie unicamente na palavra escrita
como elemento de criação, por entende-la como uma forma rígida que não corresponde
às necessidades do teatro. Para Artaud, o teatro deve construir uma outra estética por
meio dos sentidos.
“Se a massa não vai às obras-primas literárias é porque essas obras-primas são
literárias, isto é, fixadas; e fixadas em formas que já não respondem às necessidades do
tempo. (...)
Se a massa se desacostumou de ir ao teatro, se acabamos por considerar o
teatro como uma arte inferior, um modo de distração vulgar, e por utilizá-lo como
exutório para nossos maus instintos, foi por tanto nos dizerem que isso era teatro, ou
seja, mentira e ilusão. Foi por nos habituarem desde há quatrocentos anos, desde a
Renascença, a um teatro puramente descritivo e narrativo, que narra a psicologia”
(ARTAUD, 2006, p. 85 e 86).
Artaud, portanto, faz uma dura crítica ao teatro dramático de caráter psicológico
– baseado no drama, sobretudo burguês – pois o entende como uma arte que conforma o
espectador no seu cotidiano, e que mantém a ordem estabelecida, além de apresentar
conflitos muito individuais que, em última análise, negam o caráter ontológico do
teatro, pois impedem a existência de um encontro que extrapole os limites do ser (para
além do ser).
“Compreende-se portanto que o teatro, na própria medida em que permanece
encerrado em sua linguagem, em que fica em correlação consigo mesmo, deve romper
com a atualidade; que seu objetivo não é resolver conflitos sociais ou psicológicos e
servir de campo de batalha para paixões morais, mas expressar objetivamente verdades
secretas, trazer à luz do dia através de gestos ativos a parte de verdade refugiada sob as
formas em seus encontros com o Devir” (Idem, p. 77).
É com essa perspectiva que surge a estética, ou melhor, a proposta estética, já
que ele próprio não conseguiu pô-la em prática, artoniana: um teatro que desconstrua os
psicologismos do drama burguês, inicialmente a partir de um uso diferenciado do
espaço, que se usa espacialmente da palavra (idem, p. 80), transformando-a e
deslocando os seus sentidos a todo momento. Dessa forma, a compreensão do
espectador perpassa todos os seus sentidos, e não apenas o racional e o audível.
Além disso, busca-se alcançar uma duplicidade entre o visível e o invisível, ou
seja, estabelecer um teatro que promova um encontro que ultrapassa as barreiras
individuais e que promove uma religação de seus atores e espectadores ao mundo, a um
sagrado não religioso. Tudo isso diz, em última análise, com a superação do “eu”, com a
quebra da individualidade e com a abertura da linguagem teatral para algo (que
chamarei por falta de palavra melhor) como a essência do humano: é o caráter
ontológico do teatro de Artaud, que não se bastará em formas ou gestos
tradicionalmente utilizados e esvaziados de sentidos, mas que lançará mão de inúmeros
recursos cênicos para alcançar o pathos, a descoberta do novo, a partir da mobilidade e
do imprevisto.
“Trata-se portanto, para o teatro, de criar uma metafísica da palavra, do gesto,
da expressão, com vistas e tirá-lo de sua estagnação psicológica e humana. Mas nada
disso adiantará se não houver por trás desse esforço uma espécie de tentação metafísica
real, uma apelo a certas ideias incomuns, cujo destino é exatamente o de não poderem
ser limitadas, nem mesmo formalmente esboçadas. Essas ideias, que se referem à
Criação, ao Devir, ao Caos, e que são todas de ordem cósmica, fornecem uma primeira
noção de um domínio do qual o teatro se desacostumou totalmente. Elas podem criar
uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os
Objetos” (Idem, p. 102).
A estética e os questionamentos feitos por Artaud ressoarão por muitos anos no
teatro mundial, sobretudo no ocidental e influenciarão intensamente inúmeros outros
dramaturgos, encenadores e fazedores de teatro. Peter Brook e Ariane Mnouchkine
dialogam e concretizam, de maneira direta ou indireta, várias das propostas artonianas.
Peter Brook estabelece uma estética bastante específica a partir de um
entendimento claro a respeito do teatro: ele despe a cena de tudo o que for supérfluo e
constrói o conceito de um espaço vazio, ou seja, um espaço pronto para que os atores e
os espectadores construam, em conjunto, novos e insuspeitados sentidos para a cena.
“Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um homem
atravessa este espaço vazio enquanto outro o observa, e isso é suficiente para criar uma
ação cênica” (BROOK, 1993, p. 4).
Brook trabalha, portanto, com a essencialidade do teatro, ele busca a construção
de novas dimensões da arte teatral a partir da ampliação dos significados: o espaço
vazio pode ser qualquer espaço; um objeto vazio, ainda que cotidianamente tenha um
uso bastante específico (por exemplo, um sapato), pode se tornar qualquer objeto, ou
ainda, qualquer personagem; um ator que guarde um espaço vazio interno pode
construir todos esses significados e sentidos em conjunto com a plateia e pode, por
consequência, tornar-se, também, qualquer um. (Idem, p. 22). Tudo isso vai ao
encontro, embora por uma via diversa, ao que Artaud defendia no seu Teatro e o seu
Duplo. Ao buscar uma construção conjunta da cena, por meio da inclusão dos
espectadores, e ao deslocar os sentidos de todos os elementos presentes na cena, Brook
está, em última análise, concretizando a linguagem, transformando-a, evidenciando o
caráter ontológico do teatro.
“No espaço vazio podemos aceitar que uma garrafa seja o foguete que nos
levará ao encontro de uma pessoa real em Vênus. Depois, numa fração de segundo, tudo
pode mudar no tempo e no espaço. Basta que o ator pergunte: “Há quantos séculos
cheguei aqui?”, e daremos um gigantesco passo adiante. O ator pode estar em Vênus,
em seguida num supermercado, avançar e retroceder no tempo, voltar a ser o narrador,
partir de novo num foguete e assim por diante, em poucos segundos, apenas com a
ajuda de um mínimo de palavras. Se estivermos num espaço livre, tudo isso é possível.
Todas as convenções são concebíveis, mas dependem da ausência de formas rígidas”
(Idem, p. 23 e 24).
Com relação à linguagem, especificamente, Brook entende que, no teatro, deve
haver uma concentração da vida, o que requer um uso enxuto das palavras. Assim,
deve-se eliminar tudo o que não for “estritamente necessário e intensificar o que sobra”
(idem, p. 9). Daí porque, em suas montagens de grandes textos, como Hamlet, Peter
Brook passa por um processo intenso de reescrita da obra literária, para que ela se
atualize e esteja mais concentrada, de acordo com as necessidades do presente.
Destarte, um teatro com uma linguagem verbal enxuta, destituído de uma
parafernália cenográfica realista, concentrado no trabalho de criação e de incentivo à
imaginação, feito em conjunto pelos atores e pelo público, que bebe em inúmeros outros
teatros ao redor do mundo e que agrega atores de todas as partes do globo, é um teatro
capaz de extrapolar os limites da individualidade e de levantar questionamentos de
ordem metafísica. Os carpet shows de Peter Brook (espetáculos teatrais feitos
unicamente em cima de um tapete, e nos quais os atores entram em estado cênico
somente quando adentram os limites do tapete) exemplificam de maneira magistral a
potência e a capacidade criativa que o espaço vazio permite (idem, p. 24).
Ariane Mnouchkine, por outro lado, adota outras estratégias para atingir
resultados semelhantes – embora completamente opostos em termos de estética. Ela
nega o realismo, embora sustente que todo teatro deve se nutrir da realidade. O teatro é
sempre político. Com esses princípios em mente, o trabalho de Mnouchkine é o de
sempre atualizar as obras encenadas pelo Thèâtre du Soleil, fazendo com que os textos
montados, sejam obras shakespearianas, sejam comédias de Molière ou sejam obras de
criação coletiva do próprio Soleil, estejam sempre pertinentes ao tempo presente. “O
que acontece com os outros acontece conosco. E nós somos cidadãos do mundo”
(MNOUCHKINE, 2011, p. 155).
Diferentes estéticas serão exploradas por Ariane Mnouchkine de acordo com a
montagem feita pelo Soleil. Ora serão utilizadas máscaras e indumentárias robustas, ora
os atores se verão quase que despidos em cena, realizando movimentações mínimas. A
linguagem teatral de Mnouchkine, e mesmo o tempo de cena utilizado em seus
espetáculos é sempre fruto de uma escolha bastante consciente a respeito de quais
efeitos ela quer provocar em seus espectadores. Para isso, ela exige uma dedicação total
de seus atores, que, a exemplo do teatro oriental estudado por Brook e por Artaud,
devem ter total controle de seus movimentos: nada de supérfluo deve existir, nem uma
virada de olho pode ser destituída de sentido.
“A situação exige do ator que trabalhe o detalhe, o fato preciso. É aí, nas
pequenas atitudes precisas e verdadeiras, que a personagem vai adquirir sua força de
existência e que a emoção vai nascer. (...)
A narrativa acontece no palco na instantaneidade do momento, diante do
espectador, em colaboração com os outros atores, e o ator deve saber inscrever-se nessa
instantaneidade e estar presente. Para isso, é preciso que se concentre não no que vai
acontecer no palco ou no que aconteceu, mas no que acontece naquele instante.
Mnouchkine exige que o ator esteja inteiramente, absolutamente, no presente” (FÉRAL,
2010, p. 43 e 45).
Assim como Brook e Artaud, Mnouchkine busca um teatro que fuja das
tradições formais que limitam e reduzem o teatro a um fazer vazio, psicologizado, que
impede a realização de um encontro entre os atores e o público. Ela entende que o teatro
é uma arte coletiva e que cada parte contém o todo: é também um viés do caráter
ontológico do teatro. De toda forma, por mais distintas que sejam as estéticas
trabalhadas por Mnouchkine no comando do Soleil, a sua poética sempre trabalha com a
essência do humano.
Questão II)
O ensaio cênico realizado pelo meu grupo de trabalho (o GT 2) partiu de um
raciocínio semelhante ao desenvolvido na questão 01. Iniciamos os nossos trabalhos
refletindo a respeito de alguma linguagem teatral que pudesse ultrapassar o teatro
dramático e que dialogasse, ainda que num breve flerte, com o teatro performático e
com uma certa espacialidade da palavra ou com o deslocamento de sentidos proposto
por Artaud.
Assim, inicialmente concebemos uma cena em que uma das integrantes do grupo
(a Cacau) permaneceria esperando eternamente, sem que a plateia jamais soubesse qual
o seu propósito, enquanto que outros personagens surgiriam em cena, aos poucos, e
interagiriam com ela – ou não – provocando alterações em seu estado de espera.
Pensamos que poderíamos trabalhar a não literalidade do uso de objetos, com um
personagem que poderia distribuir panfletos (que seriam, na verdade, celulares), e que
outros personagens poderiam suscitar novas interações. Tudo isso nos pareceu
interessante, a princípio, porque esboçava um ensaio cênico despreocupado com um
drama pré-estabelecido, mas também nos pareceu um pouco seco, sem vida.
Desde o princípio tivemos a ideia de realizar um carpet show, à la Peter Brook.
Seria uma boa maneira para experimentarmos em nossos corpos alguns dos conceitos
centrais desse diretor: o espaço vazio interno e externo, os objetos vazios, a
concentração da ação. Restava saber: que ação será essa?
Foi então que surgiu a ideia de trabalharmos acontecimentos recentes. Crimes
recentes. Traumáticos. Coletivos. Todos nos sensibilizamos com as histórias narradas,
todos nós vivemos e morremos um pouco com os crimes que retratamos. Lembramos de
Ariane Mnouchkine quando ela nos diz que todo teatro é político, e que é preciso que
nós estejamos presentes, no aqui e no agora. Optamos, então, por abordarmos o estupro
coletivo ocorrido no Rio de Janeiro em maio e o massacre homofóbico na boate em
Orlando, no início de junho.
“Para viver no presente, uma experiência teatral tem que acompanhar a
pulsação de seu tempo, tal como um grande desenhista de moda, que nunca fica
procurando cegamente a originalidade, mas combinando misteriosamente sua
criatividade com a superfície mutável da vida. A arte do teatro tem que ter uma faceta
cotidiana – histórias, situações, e temas que devem ser reconhecíveis, pois o ser humano
se interessa, acima de tudo, pela vida que ele conhece” (BROOK, 1993, P. 79).
Foi aí que decidimos dar um novo uso à palavra. Não nos utilizamos do texto
como um elemento superior ao teatro, mas sim, como um elemento integrante da
apresentação, que, de maneira espacial, compunha a cena. Durante todo o ensaio cênico,
somente quatro frases são ditas: “se eu pudesse, eu tiraria um por um de cima de você,
mana”; “mãe, eu te amo”; “mãe, tem um homem aqui”; “mãe, eu vou morrer”. Todos os
outros recursos orais (os números que permanecem em crescente contagem até o ápice
no número cinquenta; a blablação do início com a venda das capinhas de celular) só têm
sentido em conjunto com a cena, e na medida em que o seu uso se dá espacialmente.
Fora de cena, todo o texto oral perde o seu sentido.
“Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva
para expressar aquilo que habitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo,
excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física, é dividi-
la e distribuí-la ativamente no espaço (...)” (ARTAUD, 2006, p. 46).
Além disso, nos preocupamos com a construção do espaço vazio de Peter Brook.
Era necessário que o carpet show fosse uma experiência vivida por todos os integrantes
do grupo. Dessa forma, cada ator tinha uma tarefa clara a ser executada, a todo
momento, e era necessário que as ações fossem limpas, enxutas, que a vida fosse
concentrada nos poucos minutos da nossa apresentação. Para isso, nos preocupamos
com a criação do espaço vazio interno, com a completa disponibilidade dos atores para
a criação da atmosfera cênica em conjunto com o público: os poucos elementos cênicos
utilizados tinham como função alargar as possibilidades de construção de sentidos por
parte do próprio público, que poderia ilustrar e ver os crimes hediondos narrados
acontecendo na sua frente, ainda que a ação em si tivesse sido somente esboçada.
“A qualidade reside no detalhe. A presença do ator, aquilo que dá qualidade ao seu ato
de escutar ou de olhar, é uma coisa misteriosa, mas não indecifrável. Não é algo que
esteja inteiramente acima de suas capacidades conscientes e voluntárias. Ele pode
descobrir essa presença num certo silêncio de seu íntimo” (BROOK, 1993, p. 63).
Utilizamos a máscara na construção do final do nosso ensaio cênico. Na porção
final da contagem (do número 34 ao 50), a única pessoa que contava era a que usava a
máscara, além de ser ela, também, a única que conseguia “ver” o massacre, e que se
movia em câmera lenta, enquanto os demais permaneciam na festa, encontrando os seus
amigos, divertindo-se. A máscara nos abre uma nova perspectiva de cena, uma nova
realidade, uma nova visão. E, sendo utilizada por todos, um após o outro, fornece a ideia
de que todos podem passar pela mesma experiência, de que todos podem ver as mesmas
atrocidades. “A máscara não é uma maquiagem. Não é um objeto entre outros. Tudo
está a serviço dela. Ela imediatamente os denuncia, caso a utilizem mal. São vocês que
devem ceder à máscara, ela jamais cederá. Então, é preciso estimá-la, amá-la” (FÉRAL,
2010, 61).
Por fim, tentamos abordar a essencialidade do humano no nosso ensaio cênico.
Tentamos relembrar a essência do humano e o caráter além do individual, ontológico do
teatro. Tentamos frisar que todas as experiências vividas e representadas ali, a partir
daquele encontro entre atores e público, ultrapassam os limites daqueles indivíduos
específicos que estavam vivendo aquela experiência cênica. Esse é um ato político.

Referência bibliográfica:
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
BROOK, Peter. A Porta Aberta. Tradução Antonio Mercado – Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
FÉRAL, Josette. Encontros com Ariane Mnouchkine: Erguendo um monumento ao
efêmero. São Paulo: Editora SENAC São Paulo; SESCSP, 2010.
MNOUCHKINE, Ariane; PASCAUD, Fabienne. A Arte do Presente. Rio de Janeiro:
Editora Cobogó, 2011.

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