Você está na página 1de 30
POR UMA CONSTELACAO GEOGRAFICA DE CONCEITOS' Rogério Haesbaert Formar conceitos é uma maneira de viver, € nao de matar a vida: é uma maneira de viver em uma relativa mobilidade ¢ ndo uma tentativa de imobilizar a vida; é mostrar, entre esses mithares de seres vivos que informam seu meio e se informam a partir dele, uma inovagao que se poderd julgar como se queira, infima ou considerdvel: um tipo bem particular de informagao. (Foucault, 2000:363-364) apesar de datados, assinados e batizados, os conceitos tém sua maneira de nito morrer, ¢ todavia sao submetidos a exigéncias de renovagdo, de substituigao, de mutagdo, que dao & filosofia uma histéria e também uma geografia agitadas (..) (Deleuze ¢ Guattari, 1992:17) Nosso objetivo neste primeiro capitulo & discutir, ainda que de forma introdutéria, a relevancia dos conceitos ligados 4 andlise espacial e elaborar uma proposta preliminar de “constelagio de conceitos” em Geografia, inspirado, entre outros autores, nas proposigdes de Gilles Deleuze ¢ Felix Guattari, especialmente em seu livro “O Que é a filosofia?” (1992{1991]). Essa inspiragdo poderia ser questionada pelo fato de os autores se reportarem a construgdo de conceitos no ambito mais estrito da Filosofia. Eles chegam mesmo a propor que 0 que define a Filosofia & a construgao de conceitos: “a filosofia & a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (p. 10), “a filosofia, rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos” (p. 13). Se a Filosofia deve sua existéncia enquanto disciplina a criagao do conceito, sendo 0 fil6sofo um “conceito em poténcia” (p. 13), ¢ se a ciéncia nao tem como objeto conceitos, mas fungdes (“functivos”), como a Geografia, considerada uma “ciéncia ' Do livro:*Viver no limite: teritrio © multitransterritorialidade em tempos de in-seguranga ¢ contengdo” (Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2014). Este capitulo é uma versio revista e ampliada dos artigos "Espago como categoria sua constelagio de conceitos” e “Espago-terra-erritorio: © dilema coneeitual numa perspectiva latino-americana”, publicados, respectivamente, em Tonini et al. (org), “O ensino da Geografiae sua composigdes curriculares” (Porto Alegre, UFRGS, 2011) e Bethdnico, M. (ed.) “Provisdes: uma conferéncia visual [World of Matter)” (Belo Horizonte, Instituto Cidades Criativas, 2013), social” (por alguns gedgrafos, pelo menos, desde os anos 1930)*, poderia, também, criar conceitos? Em primeiro lugar, & muito discutivel, definir a Geografia, hoje, como simples cigncia social, tamanha a importincia (re)adquirida pelas relagdes sociedade-natureza no niicleo de suas problematicas € pelos proprios debates contemporineos sobre a definigdio de espago geogrifico que demandam a consideragio de sua dimensio natural Em segundo lugar, nao seremos, neste caso, tio figis a Deleuze e Guattari, admitiremos, como a grande maioria dos autores, que a ciéncia também vive de conceitos, embora conceitos de outra natureza (reconhecendo, como o fazem aqueles autores, que hi uma “diferenga de natureza” entre os objetos da Filosofia e os da cigneia), mas que ndo se resumem a uma “légica ordindria”, “tradicional” ou representacional do conceito (utilizando os termos de Patton, 2013[2000], em sua releitura de Deleuze) A propésito, vale a pena destacar que Deleuze ¢ Guattari ndo fazem distingao entre ciéncias exatas ¢ naturais ¢ ciéncias humanas e/ou sociais. Patton, por sua vez, a0 discutir Deleuze, faz uso de exemplificagdes de conceitos no campo das ciéncias sociais (cigneia politica, mais especificamente) para expor a posigio deleuzeana, Desse modo, consideramos plenamente justificavel falar aqui de conceitos em Geografia mesmo tomando como inspiragdo varias colocagdes feitas por Deleuze e Guattari para a drea mais especitfica da Filosofia, Nosso debate inicia pela problematizagdo do conceito ou, como preferem alguns, categoria central da Geografia, o espago, elaborando a seguir uma proposta introdutoria de “constelagtio” (como diriam Deleuze © Guattari) dentro da qual se situam os principais conceitos trabalhados pela Geografia (e que sera objeto de desdobramento no futuro). E importante destacar que nossa perspectiva seri construida especialmente a partir da realidade geogréfica em que estamos inseridos, isto é, das questdes levantadas no nosso contexto latino-americano (questdes essas que, especialmente no que se refere a0 conceito de territério, serdo explicitadas a partir do proximo capitulo). ‘Comecemos, entio, por uma breve discussao sobre o sentido de “categoria”. No senso comum, categoria significa simplesmente um conjunto de espécies do mesmo ? Ja em 1933 Walter Christaller afirmava, pelo menos na perspectiva econémica da Geografia por ele privilegiada: “sereditamos que a geografia dos assentamentos [geography of setlements —o tradutor para © inglés ressalta em nota que o termo alemio Siedlunesgeography implica estudar a ordem ou regularidade pela qual qualquer rea é ocupada/povoada) € uma diseiplina das ciéncias sociais" (Clustaler, 1966[1933]:397, grifos meus) género ~ isto é que compdem, assim, uma mesma “categoria”, ou seja, so espécies reunidas a partir de um determinado nivel de generalizagao. Filosoficamente, sabemos que a origem do debate se encontra em Aristételes, quando este define as diferentes classes de predicados do ser, que ele identifica como sendo: substincia, quantidade, qualidade, relagdo, lugar, tempo, situagdo, ago, paixdo e possessio ou hibito. Destas, & claro que nos interessam mais de perto “lugar”, “tempo” e “situagio”, pois adquirem uma clara conotagio histérica e geogritica. Em Aristoteles, espaco é identificado como lugar, ¢ este & considerado “o limite adjacente do corpo que 0 contém, considerando que este corpo nfo esteja em movimento” (Jammer, 1993:54), Como focalizaremos criticamente mais a frente, estabelece-se ai uma interpretagao problemitica de espago/lugar imersa no imével, no fixo, na auséneia de movimento, Ti na Idade Média “categoria” adquire a condigaio de “géneros supremos das coisas”, ou o mais elevado género de coisas do mundo. O Diciondrio Cambridge de Filosofia afirma que “mente” ou espirito e “matéria” em Descartes fazem parte desta categorizagao filoséfica mais ampla. Kant, por sua vez, definiré categorias como “conceitos do entendimento puro” ou “conceitos [na verdade, para sermos mais precisos, ‘intuigdes"] fundamentais a priori do conhecimento”, mediante os quais se torna possivel o conhecimento da realidade fenoménica’, Outro kantiano, 0 filésofo francés Renouvier, propor duas categorias fundamentais, tempo e espago, como “leis primeiras ¢ irredutiveis do conhecimento, leis fundamentais que Ihe determinam a forma e Ihe regem o movimento”. (Lalande, 1993:141-142) Ainda que em outras ocasides nossa definigio de categoria tenha sido mais ampla, podendo incluir formas distintas de abordar um conceito (quando, por exemplo, falamos de um conceito como “categoria de anilise” e “categoria da pritica’™), enfatizaremos neste capitulo a ideia mais estrita de categoria como uma espécie de conceito mais amplo ou geral ~ um pouco (descontado o viés idealista) como na posigdo antiana hi pouco aludida, Nesse sentido, em Geografia podemos propor “espaco” como categoria, nosso conceito mais geral, ¢ que se impde frente aos demais conceitos ~ regido, territério, lugar, paisagem... Estes comporiam assim a “constelagdo” ou “familia” (como preferia Milton Santos) geografica de conceitos * Na visto elissca kantiana,“1odos os conhesimentes, isto & todas as represenagbes conseientemente referidas a um objeto, io au innuigdes ou conceitos. A intigio & uma representagdo singular, 0 conceto, tuna representagao universal ou representagao rjltida”. (Kant, 2003, . 181, gifs do autor) * Tal come o fizemos em Haesbaet, 20108, no tatamento do conceito de rex Numa leitura metaforica bastante s . essa constelagio seria imples, mas did: composta por uma espécie de conjunto de planetas girando em torno de uma estrela, cuja luz seria 0 espago ~ cada astro-conceito 86 exis indo na medida em que compe 0 mesmo sistema (aberto), devendo seu movimento (“translagdo") e seu potencial de esclarecimento (sua “Iuz” ou capacidade de iluminagdo) a relagdo que mantém com a categoria central, 0 espago. Cada conceito, ele proprio, através de nova projegdo dessa luz, iluminaria também outras derivagdes conceituais ou elementos que girariam em fungao dele, seus “satélites” Espaco, bem sabemos, em sentido mais amplo, tem pelo menos duas grandes formas de abordagem: enquanto espago absoluto e enquanto espaco relative. No primeiro caso, absoluto significa “independente”, que ndo depende de outros, da existéncia de objetos ou, no seu extremo, independe da existéncia da propria materialidade, considerada finita frente ao cardter infinito do espago. Assim, numa visio idealista de espago absoluto, © espago teria uma existéncia independente da matéria, servindo como referente a priori a partir do qual intervimos no mundo empirico. Geralmente os filosofos aos quais esta concepcao esta associada so Immanuel Kant Isaac Newton. Newton reconhecia a existéncia tanto do espago absoluto quanto do relative, mas este estava subordinado ao primeiro, considerado a realidade (“absoluta”) para além das aparéncias, estas relacionadas, assim, ao espago relative. Segundo Casey (1998), Newton considerava 0 espago absoluto como imével, contraposto a mobilidade, sem relagio com algo exterior (por ex., simples localizagio), no necessitando um sistema adicional de referéncia e inteligivel (por contraposigaio a “sensivel”). © espago relativo, que muitos associam & figura do filésofo Leibniz, implica valorizar a relagao entre os objetos, seu movimento, portanto. David Harvey sintetizou de forma muito didética essa disting versio do que . acrescentando ainda sua propt ele denominou de “espaco relacional”, um espaco considerado nao apenas enquanto relagio entre objetos mas também como relagdes contidas nos préprios objetos, inerentes a eles. Assim, diz ele: Se tomarmos 0 espaco como absoluto ele se torna uma coisa em si mesma, com uma existéncia independente da matéria, Ele possul entdo uma estrutura que podemos utilizar para classificar ow para individualizar fendmenos. A caracterizagdo de um expaco relativo propde que ele deve ser entendide como uma relagao entre objetos, a qual existe somente porque ox objetos existem e se relacionam. Hé outra acep¢do segundo a qual 0 espago pode ser tomado como relative, ¢ proponho chamé-lo espago relacional ~ espago tomado, & maneira de Leibniz, como estando contido em objetos, no sentido de que um objeto existe somente na medida em que contém e representa dentro de si proprio as relagdes com outros objetos. (Harvey, 1980:4-5, destaque do autor) Fica claro, entao, que 0 espago enquanto categoria pode assumir a condigao de espago absoluto, relativo e/ou relacional. O proprio Harvey (2012[2006)), mais recentemente, fez questio de afirmar que ndo se trata de excluir uma condigdo em relagdo a outra, mas de mostrar sua interagdo. Ele propde até mesmo um quadro-sintese abordando essas trés concepedes, aliadas as proposigdes de Henri Lefebvre de espago percebido (as “priticas espaciais”), concebido (as representagdes do espago — conhecimentos, signos, cédigos concebidos por cientistas, urbanistas, tecnoeratas) ¢ vivido (espagos de representagio, de “simbolismos complexos”, de usuarios, artistas, escritores), Um conceito, nunca & demais lembrar, nao é unicamente uma “representagio” do real, € menos ainda no sentido mais simples (empirista-positivista) de reconhecimento e fixagdo de significado, plena “revelagdo” de um real que ele conseguiria traduzir “em sua esséncia”. Um conceito nao seria também, no extremo oposto, unicamente uma idealidade que caberia impor sobre a realidade conereta, num idealismo de objetividade as avessas, onde a “verdade” estaria mais no campo conceitual ou dos “modelos” tebricos (como em algumas proposigies da Geografia neopositivista) do que no real efetivo, Embora reconhecendo seu carter abstrato, 0 conceito nao é nem simples reflexo ou espelho nem uma pura idealizagdo a priori € “correta”. Em outras palavras, 0 conceito, ao longo da histéria de sta filiagao teérico- filoséfica, se estende no interior de um amplo continuum que vai desde a posigdo estritamente empirista e/ou realista de alguns que o consideram como um retrato fiel da “realidade” e que, ao ser enunciado, parece carregar consigo 0 préprio “real” (0 que pode incluir também o “conereto pensado” de muitos materialistas), até, no outro extremo, a posigdo racionalista e/ou idealista em que 0 conceito nao passa de um produto do nosso pensamento, “verdade” instaurada agora unicamente no “espelho reflexivo” de nossa mente, e que nao tem outra fonte de elaboragao se no a construgio tedrica do investigador. Ai, em alguns casos, num vies mais estritamente metodologico, © conceito pode nao passar de um instrumental ou técnica, um “operacionalizador” que no tem outro compromisso se nao o de servir ao pesquisador enquanto instrumento de andlise. Na Geografia, posigdes como essas aparecem muito claramente, por exemplo, em relagdo a um de nossos conceitos centrais, 0 de regio (que sera retomado mais a frente). E bem conhecido o contraponto entre a visio de “um certo” Vidal de La Blache, mais empirista objetivo, cuja “regitio-personagem” aparecia inscrita na propria racionalista®, para quem “uma ‘regio’ morfologia da paisagem’, e um Hartshorne mai € uma frea de localizagtio especifiea, de certo modo distinta de outras Areas, estendendo-se até onde aleance essa distingdo. A natureza da distingdo & determinada pelo pesquisador que empregar o termo” (Hartshorne, 1978:138, grifo do autor) Hartshome foi depois “radicalizado” por posturas neopositivistas que viam a nalizagdo ¢ classificagdo regio como simples classe de area, numa analogia entre re; de espacos, totalmente variavel, portanto, conforme o critério adotado pelo pesquisador. Neste tiltimo caso, para além da alegada visio idealista objetiva, defendida por muitos, trata-se afinal de contas de uma posigao bastante subjetiva, pois restringe 0 valor do conceito ao proprio universo do sujeito pesquisador’. Conceito e problematica vivida Muitas vezes afirmamos que 0 conceito “reapresenta” — e, por isso, jd nasce com uma carga de novidade — ou, em outras palavras, justamente para torné-la compreensivel, “condensa” ou sintetiza uma realidade. Porém, ao mesmo tempo em que 5. Dizemos “um certo” Vidal de la Blache porque se trata de um autor que propds diversas conceituagdes de regio, ineluindo a propria “regido nodal” (sobre a multiplicidade de eoncepgdes de regido em Vidal ver Ozoul-Marignier e Robic, 2007[1995] e Haesbaert, 2012). em seus primeiros escritos que ytramos a regido auto-evidente, “algo vivo a que o geografo deve pretender reproduzit” e onde “a nnatureza nos adverte contra as divisdes attifciais” (Vidal de la Blache, 2012[1888]205). Mesmo entre autores considerados como tendo sido influenciados por La Blache jé aparece explicitamente a regito como “artificio Iogico”. Camille Vallaux, por exemplo, afirmava: “para que a sintese deseritiva das regides” pudesse alender a todas as nossas expectativas, seria necessrio que os “fatos da Geografiafisica humana” concordassem plenamente entre si. Como isto esta longe de ocorrer, pelo menos para muitas partes do globo “a sintese regional” nio & “nada mais do que um artifiio logico © um método de ensino” [un anttcefogique et un procédé d’enseignement”]. (Vallaux, 1929:164) Também aqui é importante lembrar que nao se trata de’ “um tinico” Hartshorne. Neste caso. nos referimos mais a0 Hartshorne do Perspectives on the Nature of Geography (editado em portugués como “Propesitos sobre a Natureza da Geografia”), de 1959, do que ao de The Narure of Geography, de 1939. © geégrafo Walter Chrstaller, por exemplo, afimmava: “ necessirio desenvalver os conceitos Imprescindiveis para posterior descriglo e andlise da realidade” (apud Mendoza et al, 1982:108-109), tendo a teoria “uma validade independente da reaidade, uma validade baseada em sua ligica e eoeréneia intema’, quase como se a realidade fosse 0 dominio do “equivoco” e nossas teorias ow modelos fossem a “verdade” ou, no seu extreme, até mesmo o (modelo) “justo” a ser buseado e implementado, confundindo assim o analitico e o normative, tenta expressar ou condensar um fenémeno, de alguma forma, ainda que implicita, justamente por nunca se confundir com um fenémeno ou problema, também ajuda a (re)erié-lo, a propé-lo sob novas bases. © conhecimento permitido pelo conceito ndo se opde a vida — como lembra Deleuze, pensar significa descobrir, inventar novas possibilidades de vida. Analisando a obra de G. Canguilhem, Foucault comenta que ele quer reencontrar “o que foi feito do conceito na vida”, isto & do conceito enquanto ele & um dos modos dessa informacao que todo vivente extrai de seu meio ¢ pela qual, inversamente, ele estrutura seu meio. O fato de o homem viver em um meio conceitualmente arquitetado ndo prova que ele se desviow da vida (por qualquer esquecimento ou que um drama historico 0 separou dela, mas somente que ele vive de uma certa maneira, que ele tem, com seu meio, uma tal relagdo que ele ndo tem sobre ele um ponto de vista fixo, que ele é mbvel sobre um territério indefinido ou muito amplamente definido, que ele tem que se deslocar para recolher informagies, que fem que mover as coisas, uma em relagdo ds outras, para torné-las ttels. Formar conceitos & uma maneira de viver, € ndo de matar a vida, € uma maneira de viver em uma relativa mobilidade ¢ ndo uma tentativa de imobilizar a vida, & mostrar, entre mithares de seres vivos que informam seu meio ¢ se informam a partir dele, uma inovagdo que se poderd julgar como se queira, infima ou considerdvel: um tipo bem particular de informagao. (Foucault, 2000:363-364) Foucault enaltece Canguillem como 0 “filésofo do erro”, pois “no limite, a vida — dai seu cardter radical ~ é 0 que € capaz de erro”, 0 homem como “um vivente que nunea se encontra completamente adaptado”, “condenado a ‘errar’ ¢ a se ‘enganar”” Dai, entdo, admitindo “que 0 conceito é a resposta que a propria vida da a esse acaso, & preciso convir que 0 erro é a raiz do que constituiu o pensamento humano ¢ sua historia” (Foucault, 2000:364). Assim: A oposigdy do verdadeiro € do falso, os valores que sao atribuides a um ¢ a outro, os efeltos de poder que as diferentes sociedades ¢ instituigdes associam a essa partitha, tudo isso talvez seja apenas a resposta mais tardia a exsa possibilidade de erro intrinseca & vida, Se a hist6ria das ciéncias & descontinua, ow seja, se ela x6 pode ser analisada com uma série de “correcdes”, como uma nova distribuigdo que manca libera finalmente ¢ para sempre 0 momento terminal da verdade, é que ainda ali 0 “erro” constitui niio 0 esquecimento ou 0 atraso da realizagdo prometida, mas a dimensdo peculiar da vida dos homens ¢ indispensdvel ao tempo da espécie. (Foucault, 2000:365) Se o erro é essa “dimensio peculiar da vida dos homens”, a problematizagio é {0 importante quanto a busca de respostas ou solugdes, ji que estas podem constituir a propria recolocagao de um problema em novas bases. Antes do conceito, portanto, temos a vida € suas probleméticas. Montaigne (2001) jé alertava que antes de perguntar “como & que isso acontece” temos que nos indagar “mas [efetivamente] acontece?”. Cada conceito parte de uma questio particular e, ao problematizar o real, de certa forma desestabiliza conhecimentos herdados, diante da permanente transformagdo em que estamos mergulhados. Milton Santos diré que os conceitos so questdes postas a realidade. A propria questo entre verdadeiro e falso, segundo Deleuze (1999), deve ser colocada nilo apenas 8 solugtio como também ao problema: um “verdadeiro” problema, um problema bem colocado ja constitu, de algum modo, sua solugto. Ele denomina de “preconceito social” a colocagao de problemas prontos 4 espera que encontremos apenas sua solucao: © professor & quem ‘dé’ oy problemas, cabendo ao aluno a tarefa de descobrir-thes a solugdo. Deste modo, somos mantidos numa espécie de eseravidao. A verdadeira liberdade esté: em um poder de decisdo, de constimigao dos préprios problemas: esse poder, ‘semidivino’, implica tanto o esvaecimento de falsos problemas quanto 0 surgimento criador de verdadeiros. (Deleuze, 1999:9) Deleuze dira também, comentando Foucault, que “a verdade € inseparivel do proceso que a estabelece”, © 0 “verdadeiro sé se di ao saber através de ‘problematizagdes’ e que as probleméticas 6 se criam a partir de ‘priticas, priticas de ver e priticas de dizer’, com uma disjungo entre 0 ver eo falar, © visivel e 0 enunciavel, (Deleuze, 1988:72-73) (0 ge6grafo Claude Raffestin, nas “Notas Prévias” de seu “Por uma Geografia do Poder”, afirma que “teriamos desejado mais livros que questionassem do que livros que respondessem. E pelo questionamento e nao pelas respostas que se aleanga a medida do conhecimento”, (1993:8) Bergson, por sua vez, defendia que um problema bem colocado de algum modo ja estaria praticamente resolvido: “colocago solugio do problema esto quase se equivalendo: os verdadeiros grandes problemas sto colocados apenas quando resolvidos” (Bergson, apud Deleuze, 1999:9). Deleuze aqui lembra também de Marx, em sua célebre frase de que “a humanidade coloca tdo-s6 os problemas que é capaz de resolver”. E actescenta: a solugdio que conta, mas o problema tem sempre a solucdo que ele merece em fungdo da maneira pela qual é colocado, das condigdes sob ax quats & determinado como problema, dos meios e dos termos de que dispde para colocd-lo. Nesse sentido, a hist6ria dos homens, tanto do ponto de vista da teoria quanto da pritica, & a da constituigdo de problemas, (Deleuze, 1999:9) E claro que essa “constituigao de problemas” & geo-historicamente situada, pois cada momento da historia em cada espago geogrifico (re)coloca seus proprios problemas. Toda proposigio conceitual, portanto, profundamente mutivel, & sempre contextualizada geogrifica e historicamente através de sujeitos especificos que a mobilizam ¢ como que “Ihe dio vida". Como indicam Deleuze ¢ Guattari na citagdo com que abrimos este capitulo, 0s conceitos devem ser constantemente reavaliados, transformados e, quando utilizados, demarcada claramente sua “patemnidade”, reconhecendo-se ndo apenas o(s) autor(es) que o formulou(aram) mas também o contexto geo-histético dentro do qual ou para o qual foram elaborados. Os autores se reportam a propria Grécia ¢ referem-se a uma geo-historia nos moldes braudelianos para compreender um fenémeno como o nascimento da Filosofia. Assim, propdem: A filosofia é uma geo-filosofia, exatamente como a historia € uma geo-historia, do pomto de vista de Braudel. (p. 125) (..) Se a filosofia aparece na Grécia, é em fungdo de uma contingéncia mais do que de uma necessidade, de um ambiente ou de um meio ‘mais do que de uma origem, (..) de uma geografia mais do que de uma historiografia (J, Deleuze e Guattari, 1992:126). Para Patton, por sua vez, ox conceitoy tém uma historia, que pode incluir sua hist6ria como componentes de outros conceitos € suas relagdes com problemas particulares. Os conceitos sempre sao criados em relagdo com problemas especificos “Um conceito carece de significado na medida em que nao esté conectado com outros conceitos € nao esté vinculado a um problema que resolve ou ajuda a resolver” (Deleuze ¢ Guattari). A hist6ria dos concettos inclui, portanto, as variagdes que sofrem em sua migragao de wm problema a outro. (Patton, 2013:26) Algumas problematicas constituem 0 “foco” central do conceito, que sempre evidencia determinadas questdes ou relagdes, deixando outras em segundo plano, reconhecendo sua presenca mas deixando-as como que fora de foco. Por exemplo, enquanto “espago” coloca seu foco no cariter de coexisténcia e coetaneidade dos fendmenos (sem, obviamente, reduzir-se a ele), “territério” discute a problemética do poder em sua relagdo indissociavel com a producdo do espaco. Conceitos geogréficos como espago e territério revelam um pouco esse ir-e-vir dos problemas a que se referem e sua diferenciagdo ao longo da historia. As obras de Casey (1998), pelo viés filoséfico, em relagao ao espago (que ele geralmente denomina “lugar”, demonstrando, também aqui, que 0 mais importante nao é a palavra que sintetiza um conceito, mas seu contetido tebrico-filoséfico) e de Elden (2013), pelo viés geogrifico, em relagdo ao territério, constituem exemplos de abordagens histérico- conceituais onde, ainda que nem sempre de maneira explicita, fica evidente que & a problemitica em relagdo a espago ¢ territério que transforma suas concepgdes a0 longo do tempo, Se Elden, por exemplo, ao final de seu livro propde territério como uma “tecnologia politica”, & também porque questdes contemporineas de certa forma impoem essa leitura — ela permite explorar melhor questdes como a propria crise (e reformulagio) das tecnologias estatais de controle da sociedade pelo espaco. Além de uma revelagao do ja dado, do j4 produzido, 0 conceito também indica um caminho, uma conextio (ou uma série de conexdes), um devir. No sentido deleuzeano o conceito & também um “transformador” (Holland, 1996), na medida em que pode interferir na realidade a que pretende dar conta, operando nao sé como produto mas também como produtor. Como afirma Gallo (2003) um conceito minca é a coisa mesma (esse horizonte sempre buscado ¢ jamais aleangado pela fenomenologia, de adequagdo imediatizada da consciéncia com 0 mundo-ai). (..) Todo conceito é, pois, sempre, um acontecimento, um dizer 0 acontecimento, portanto, se nao diz a coisa ow a esséncia, mas 0 evento, 0 conceit & sempre devir (p. 41) (..) € um operador, algo que faz acomecer, que produa... 0 conceito & justamente aquilo que nos poe a pensar. Se 0 conceito & produto, ele é também produor: prodwor de novos pensamentos, produtor de novos conceltos ¢, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida em que é 0 conceito que recorta 0 acontecimento, que [de alguma maneira] o torna possivel. (p. 43) Em abordagem anterior, destacamos: Ao contrario da ciéncia, que busca expecificar ¢ estabilizar dominios especificos do real, ox conceitos na filosofia intervém em probleméticas para desestabilizar criando novas conexies néo sé com outros conceitos como com 0 préprio contexto historico-geogréfico. Trata-se, pois, de saber mais como 0 conceito ‘funciona’ ow 0 que se pode ‘fazer’ com ele do que propriamente explicar seu significado, Assim, os conceltos ‘nito possuem um contetido independent, auténomo, a nao ser o que eles adquirem através do uso mum contexto’ (Holland, 1996:240). (Haesbaert, 2004:1 10- 1) Todo conceito, em sintese, sem se confundir com ela, possui também uma natureza politica — como todo campo do saber, ele est mergulhado em relagdes de poder, num sentido foucaultiano. Nas palavras de Patton, concordando com Nietszche: criagdo de conceitos novos & uma atividade eminentemente politica. Seu fim ndo deveria ser meramente 0 reconhecimento de estados de coisas existentes ou a justificagdo de opinides ¢ formas de vida existentes, mas a absoluta desterritorializagao do presente no pensamento, (Patton, 2013:26) Mesmo no concordando com um cariter “absoluto” da desterritorializagao (ainda quando ela & concebida como se dando exclusivamente “no pensamento”), & claro que os conceitos nao apenas evidenciam um determinado real-historico, desvendando — ¢ reapresentando — algo ja produzido (0 fazer-se do presente olhando para o passado, para o ja feito). Eles também envolvem a atividade criadora e reproblematizadora (0 presente mirando 0 futuro), possibilitam “produzir realidade”, reinventando o real ao proporem sobre ele ~ e com ele ~ novas questoes. Ainda que reconhegamos trés modalidades de categorias ou conceitos — analiticas, da pritica e normativas, estamos cientes, também, da sua indissociabilidade. Enquanto uma categoria analitica é sobretudo, um instrumento no proceso de investigagdo do pesquisador — ou um conceito no seu sentido mais difundido, a categoria da pritica é um “conceito” ~ ou nogdo ~ do senso comum, utilizado nas priticas cotidianas do discurso ordindrio, e a categoria normativa tem como objetivo primeiro indicar um caminho, tem um cariter mais propositivo que analitico, como nos conceitos de regido ¢ territério utilizados pelo Estado enquanto agente planejador. E claro que o pesquisador ou o intelectual ndo pode prescindir do conhecimento de suas categorias de andlise enquanto utilizadas (¢ re iadas) também nas agdes do senso comum, assim como o planejador nfo pode desconhecer a forga das concepgdes analiticas propostas pelos investigadores, nem a (re)leitura feita pelos proprios habitantes que serdo objeto de sua ag2o interventora. Embora cada contexto mantenha sua especificidade (porque a natureza dos problemas © os objetivos geralmente sto distintos), seu entrecruzamento & sempre, também, necessirio ¢ mutuamente enriquecedor. Finalmente, deve-se questionar a légica tradicional que propde que s6 existem conceitos quando ha distingao, separagdo, “entidades ideais que servem para identificar classes regulares”, uma “l6gica da disjungio exclusiva” em que “as coisas eaem ou ndo sob elas” (Patton, 2013:31)*. Os conceitos niio sé néio podem ser tratados isoladamente como nunca constituem unidades homogéneas, sempre sio miltiplos, tanto no sentido interno, com seus elementos, suas sobreposigdes € sua flexibilidade em torn de uma A esse respeito, Patton cita Nietzsche em “Sobre verdade © mentira em sentido extramoral”: “Uma palavra se converte em um conceito na medida em que tem de conformar-se com inumeriveis casos mais ‘ur menos similares. Uma fotha & sempre diferente de outra, de modo que o conceito folha™ se forma descartando arbitrariamenteessasdiferenas indviduaise esquecendo os aspeetos distntivos” (Nietzsche, spud Patton, 2013:31). Ao contri, diz Patton (inspirado também em Derrida), 0s eonecitos implica tanto repeticdo do mesmo (“mesmidade horizontal”) quanto alteragio deste mesmo (“diferenga vertical”) ra “singularidade do fato”, Fm sintese, “os eonceitos implicam ao mesmo tempo repetigio do mesmo © realizagao ou exemplificagio do mesmo em diferentes casos particulates”, (Patton, 2013:32) problemitica ou foco central, quanto no sentido extemo, na relago com outros conceitos dentro de uma constelagao ou sistema mais amplo — permanecendo sempre abertos, portanto, a novas conexdes potencialmente realizéveis. Uma constelagio de conceitos Como afirmam Deleuze ¢ Guattari (1992:31), “... nfio ha conceito simples. (..) Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros conceitos, nao somente em sua historia, mas em seu devir ou suas conexdes presentes” — em sua geografia, poderiamos acrescentar. Assim, 0 conceito nao nega todo um complex conjunto de outros conceitos que jogam seu foco sobre outras probleméticas e dimensdes € que, no conjunto, formam uma complexa familia de conceitos, dentro da correspondéneia a. um determinado campo de pensamento filoséfico. Podemos entao definir, no interior da Geografia, uma constelagio ou sistema de conceitos que, sob pano de fundo da categoria espago, se ordenam e se reordenam constantemente a partir das problematis que enfrentamos e das bases teérico-filoséficas que acionamos para melhor defini-las enfrents -las — sempre cientes de que a percepgio clara da problematica é © ponto de partida fundamental. Na dimensio analitico-racionalista do grande “sistema de conceitos” proposto por Milton Santos ~ ou, em seus proprios termos, da familia de “categorias analiticas” (Santos, 1996) — temos, primeiro, a nogdo-mestre, 0 espago geogriifico, definido a prinefpio como um “conjunto de fixos e de fluxos” ou de “configuragdo territorial” ¢ “relagdes sociais” (p. 50-51) ¢ depois como um “conjunto indissocidvel de sistemas de objetos ¢ sistemas de agdes” (1996:19). Internamente, esta nogdo comporta categorias analiticas (aqui, “conceitos” em sentido estrito), como “paisagem”, “configuragao territorial”, “divisio territorial do trabalho”, “rugosidades” etc. Em relagio a “questo dos recortes espaciais” & que ele ird falar de regifo, lugar, redes ¢ escalas. Para o autor, categoria e conceito sto tratados como sindnimos, pois o que inicialmente ele considera como sendo “categorias analiticas internas” logo depois so tratadas como “conceitos constitutivos © operacionais, proprios a realidade do espaco geogrifico” (Santos, 1996:19). Como para Milton Santos os conceitos devem sempre “fazer sistema” e, de modo mais pretensioso, construir (uma) teoria, é evidente que nunca poderemos tomar um de seus conceitos — paisagem, por exemplo ~ de modo isolado. Seria m perigoso, inclusive, “avaliar” um conceito como paisagem em sua obra sem considers- Jo dentro de toda a familia (que implica certa hierarquia) de conceitos e as relagdes de filiagdo a que esté subordinado. Ao mesmo tempo em que se tornam heterogéneos por suas relagdes intemas — tanto no interior do proprio conceito (pelos distintos elementos que o constituem) quanto na relagio com outros conceitos do mesmo sistema (ou constelago) — os conceitos convivem com a multiplicidade de nogdes para além do universo de sua disciplina ¢ de seu objeto”. Como exemplo, em nosso caso, propomos um esbogo de sistema ou constelago de conceitos, sempre com um grau de abertura para a construgio de novas conexdes conceituais, produzido a partir das preocupagdes bisicas da Geogratia e centrado no conceito de espago. Espago entendido como produgdo social na interface entre aquilo que 0 filésofo Henri Lefebvre reconhece como o percebido, 0 vivido € 0 concebido — um espago das representagdes, um espago da vivéncia © um conjunto de representagdes do espago. Acrescentariamos, ainda, para maior coeréncia € explicitagdo de nossa abordagem geogrifica, que essas perspectivas espaciais dizem respeito sempre, também, ao espago enquanto base natural das (re)produgdes sociais. Para uma representagdo grifica simples dessa constelagdo propomos manter um jogo circular de conceitos em tomo do espago (e da regido ou dos processos de regionalizagdo), reproduzindo a metafora, ja aqui comentada, do “sistema” de planetas em tomo de uma “estrela”, como ilustrado na figura 1. Um detalhamento maior da “constelagiio” aparece no esquema que aparece logo aps a figura, e que sera comentado na sequéncia No centro da constelagio aparecem os conceitos ou categorias mestras espago- tempo e, no caso especifico da Geografia, 0 espago em sta condigio de espago geogrifico, aquele focalizado sobre a dimensdo espacial da sociedade, que inclui, evidentemente, a indissociabilidade entre 0 social ¢ 0 natural. Espago geogrifico aparece ligado a categoria “espaco(-tempo)”, no sentido filoséfico mais amplo, posicionando-se assim ao lado de outros espagos — ou melhor, de outras abordagens ou ® Assim, em relagdo a Geografia, numa leitura mais realista, afiema Santos: “.. as categorias de analise, {ormando sistema, devem esposar 0 conteido existencial, ito é, devem refleti a prOpria ontologia do espaco, a partir de estruturas intemas a ele. A coeréncia externa se di por intermédio das estruturas exteriores consideradas abrangentes e que definem a sociedade e o planeta, tomados como nogSes comuns 8 toda a Histria e a todas as dseiplinas sociais e sem as quais o entendimento das categorias analiticas interna seria impossivel”.(1996:19)

Você também pode gostar