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EDITORIAL

Cara leitora, caro leitor


Neste número, Cadernos de Pesquisa homenageia Basil Bernstein, soció-
logo inglês de contribuição inestimável para a análise dos processos sociais que
permeiam a educação escolar.
Para tanto, contamos com a preciosa colaboração da professora Lucíola
Licínio de C. P. Santos no preparo da seção Tema em Destaque, a quem muito
agradecemos. Em vias de fazer sua pesquisa de pós-doutorado na Universidade
de Londres, ela dedica parte do tempo de que dispõe a elaborar e a selecionar
textos que compõem a seção, a facilitar nosso contato com editores e a ofere-
cer-nos ainda a ajuda necessária à trabalhosa tarefa de traduzir e editar um autor
de tão grande importância e complexidade.
É com satisfação que, além de artigos que procuram situar Bernstein e sua
obra na reflexão contemporânea sobre educação, disponibilizamos, aos leitores
de língua portuguesa, um texto do próprio autor, ge ntilmente cedido à revista
pelos editores do livro em que apareceu originalmente na Inglaterra, em 1996.
Esta é a segunda vez que Cadernos de Pesquisa publica Bernstein. Em
1984, o número 49 da revista trouxe ao público o artigo “Classes e pedagogia:
visível e invisível”, um dos primeiros textos do autor que circulou traduzido no
Brasil e, certamente, um dos mais citados nos trabalhos acadêmicos realizados
entre nós naquela década. Anima-nos pois, supor que também será grande a
repercussão do texto atual, “A pedagogização do conhecimento: estudos sobre
recontextualização”, que aborda questões centrais da educação contemporânea
sob novo prisma.
Sem nos alongarmos sobre cada um dos artigos, queremos chamar a aten-
ção também para os outros temas abordados neste número.

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Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 2003 9
Vanilda Paiva, Vera Calheiros e Giselia Potengy, tendo como pano de fundo
as transformações ocorridas na estrutura produtiva e no mercado de trabalho,
tomam para estudo diferentes grupos de profissionais na cidade do Rio de Janeiro
e lançam luz sobre novas estratégias de formação, geradas em meio à fragmenta-
ção das qualificações presente no início do século XXI.
No momento em que são rediscutidas a importância e as implicações da
avaliação nas políticas educacionais, vale a pena inteirar-se do estudo e da reflexão
feitos por Alfredo Macedo Gomes em sua tese de doutorado. O artigo que dela
decorre aborda os exames nacionais de cursos, identificando-os como uma mo-
dalidade privilegiada de política de regulação estatal do ensino superior no Brasil,
na gestão Fernando Henrique Cardoso.
Depois de uma leva de textos que procuraram esquadrinhar criticamente
os pressupostos da recente reforma do ensino médio no país, começam a apare-
cer os primeiros estudos que contribuem para se entender melhor o processo de
sua implementação. Nessa linha de investigações, Nora Krawczyk, partindo dos
principais eixos da reforma e de seus focos mais críticos, procura discutir as
tensões geradas pela intencionalidade das medidas preconizadas, realidade que se
quer transformar e resultados que têm sido efetivamente produzidos em escolas
de três estados brasileiros.
Ainda sobre esse mesmo tema, Eleny Mitrulis faz a resenha de dois estu-
dos sobre o ensino médio, oferecendo importantes indicações de leituras acerca
do que há de melhor em matéria de pesquisa sobre o assunto. O primeiro traba-
lho reporta-se a investigação financiada pela Unesco, na qual se descortina um
panorama abrangente e representativo da reforma nos diferentes estados brasi-
leiros. O segundo, um estudo de caso que recebeu o apoio da Fapesp, perscruta
os processos subjetivados pelos quais os jovens se relacionam com a escola e
com o conhecimento. Em torno da mesma problemática, a abordagem macro e
micro se complementam, enriquecendo a compreensão do fenômeno.
Convém ressaltar também a atualidade dos demais artigos que inteiram
este número de Cadernos de Pesquisa. O processo de municipalização do ensi-
no fundamental no Estado de São Paulo, com seus avanços e limitações, o ensino
de matemática, o papel formador da literatura possibilitam uma visão diversificada
das questões da área.
Esperamos que usufruam de sua leitura.

As Editoras

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TEMA EM DESTAQUE

A CO N TRIBUIÇÃO DE BERN STEIN esclarecendo vários equívocos a que deram


PARA A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO margem. Para os que trabalham no campo do
currículo, é interessante compreender, por exem-
Os três artigos reunidos nesta seção fo- plo, as convergências que levaram ao apareci-
calizam a obra de Basil Bernstein. Como objeto mento da que se denominou “nova sociologia
de crítica, admiração e inspiração para pesqui- da educação”, bem como as suas divergências
sadores de diferentes áreas, seu trabalho re- internas. Brian, ao reproduzir o clima da épo-
presenta, inegavelmente, uma grande contri- ca, evidencia as disputas que perpassam o campo
buição para o campo educacional. Sem aderir acadêmico e as estratégias usadas por seus
aos “modismos” que garantem, muitas vezes, atores para superá-las, identificando as for-
um prestígio geralmente efêmero, o legado mas pelas quais Bernstein se fazia ouvir pela
de Bernstein coloca-se como uma obra clássi- voz de seus estudantes.
ca, que por muitos anos continuará fertilizan- Davies busca explorar as relações entre
do os estudos de diferentes aspectos da educa- o trabalho de Bernstein e de Durkheim, mos-
ção. trando como os conceitos do primeiro se ins-
O primeiro dos artigos, de minha auto- piram na obra deste último. Não deixa porém
ria, busca apresentar os principais conceitos e de apontar as outras influências que sofreu. À
idéias desenvolvidos pelo autor e as razões medida que faz essa análise, esclarece o pro-
que dificultaram a maior circulação de seu tra- cesso de construção de conceitos-chave utili-
balho no campo educacional. A partir da leitu- zados pelo autor, o que facilita a sua com-
ra de clássicos, como Durkheim, Weber e Marx, preensão. Esta parece ser a mais importante
de autores da Escola de Chicago, do estrutu- contribuição do artigo.
ralismo e do pós-estruturalismo, ele formu- Finalmente, encontra-se o artigo de
lou alguns conceitos e, por meio da pesquisa e Bernstein. Trata-se de um texto denso, pois
da reflexão, estabeleceu novas relações, nele o autor sintetiza várias idéias trabalhadas
redefinindo e criando novos conceitos em um mais extensa e intensamente em outros tex-
processo que evidencia o caráter artesanal do tos. Aqueles que leram o livro A estruturação
trabalho intelectual. do discurso pedagógico : classe, códigos e con-
Neste momento, em que a “epidemia” trole irão perceber que este artigo retoma
da avaliação, em termos de produtividade, so- idéias mais amplamente exploradas nessa obra,
brepõe a quantidade à qualidade, o trabalho trazendo novos elementos, que reconfiguram
de Bernstein mostra que não apenas o brilho os textos anteriores. Este artigo, intitulado ori-
de uma mente privilegiada, mas sobretudo a ginalmente “Pedagogizing knowledge: studies
persistência e o trabalho árduo tornam possí- in recontextualization”, aborda dois conceitos
vel uma produção acadêmica de peso e valor. muito discutidos hoje na literatura educacional
O segundo artigo é de autoria de Brian brasileira: competência e identidade.
Davies, ex-aluno e colega de Bernstein. Nele O objetivo do autor é demonstrar como
o autor busca primeiramente recuperar a atmos- diferentes discursos das ciências sociais, que
fera intelectual da época em que Bernstein ini- compartilham elementos comuns, permearam
cia e desenvolve seus trabalhos, explicitando e o campo educacional, criando diferentes mo-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


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dalidades de práticas pedagógicas. Partindo de nho, chamados genéricos, têm sua origem fora
seu trabalho sobre “Pedagogias visíveis e invi- do campo escolar e penetram fortemente a
síveis”, ele busca identificar, nas ciências so- área da educação vocacional ou técnica. Se-
ciais, os elementos comuns que propiciaram o gundo o autor, os genéricos buscam realizar
desenvolvimento das pedagogias invisíveis, um potencial transferível e flexível, em vez de
centradas no conceito de competência. um desempenho específico, cujo conceito está
Bernstein mostra como as pedagogias profundamente enraizado na idéia de treinabi-
baseadas na competência, apesar de compar- lidade.
tilharem certos elementos comuns, diferen- Apesar de localizar-se no campo das pe-
ciam-se pela centralidade que dão ao indiví- dagogias voltadas para o desempenho, tais
duo, ao grupo e/ou à mudança social. Da habilidades são chamadas competências, por
mesma forma, ele diferencia as pedagogias um mau entendimento, pelo fato de procura-
baseadas no desempenho. Em síntese, enquanto rem garantir o que é necessário ao desempe-
as pedagogias baseadas na competência enfa- nho de uma tarefa. Esta é uma questão impor-
tizam o potencial de cada criança ou grupo tante para clarificar o uso de competência na
social e suas possibilidades de compartilhar de- literatura educacional brasileira, em que o ter-
terminadas formas de conduta, as pedagogias mo tem sido associado a treinabilidade. Para
baseadas no desempenho valorizam o produ- Bernstein, trata-se de um equívoco causado
to da aprendizagem e as habilidades específi- pela proliferação de uma visão mercantil da
cas a serem desenvolvidas pela escola. Desse educação em que as habilidades para o merca-
modo, estas últimas valorizam a diferença, do de trabalho são “errada” ou “enganosa-
estratificando os alunos pelos resultados da mente” denominadas competências.
aprendizagem. Enquanto o conceito de com- Ao trabalhar com as diferentes modali-
petência está voltado para o fortalecimento dades de prática pedagógica, Bernstein discute
do poder (empowerment ) do aluno ou do gru- as condições que favorecem a predominância
po social, o conceito de desempenho baseia- de uma ou de outra, a partir do peso que tem
se na idéia de déficit. o campo de recontextualização pedagógica (in-
O autor distingue três modalidades de cluindo nele os pesquisadores e os profissio-
desempenho, tomando como fundamento sua nais da educação) e o campo de recontextuali-
base conceitual. As primeiras, denominadas sin- zação oficial (o Estado e suas agências) e da
gulares, abrangem os campos específicos de convergência ou divergência que esses cam-
conhecimento, de natureza mais vertical, e di- pos apresentam ao longo da história.
ferentes áreas, como a física, a química etc. Às Uma outra importante questão focaliza-
segundas, o autor dá o nome de regiões; elas da por Bernstein diz respeito ao conflito que se
correspondem a áreas que apresentam interfaces configura à medida que a administração esco-
dos diferentes singulares e estão relacionadas lar se orienta por valores empresariais e ins-
ao desenvolvimento de conhecimentos e de trumentais, enquanto a cultura do discurso pe-
práticas, visando à produção de tecnologias. dagógico apresenta valores mais humanísticos.
As regiões abrangem campos mais tradicio- No entanto, para o autor, esse conflito está
nais como a Medicina, Engenharia e Arquitetu- sendo superado pela ênfase no desempenho
ra e asseguram, cada vez mais, a constituição do estudante, que tende, inequivocamente, a
de novos campos acadêmicos como o jorna- deteriorar o valor intrínseco do conhecimento.
lismo, o esporte, a dança e o turismo, por Por último, o autor busca identificar, no
exemplo. Os terceiros modos de desempe- atual estágio do capitalismo, os processos de

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construção das identidades. Ele identifica três sições e resistências. O autor finaliza, apon-
tipos de identidades: as descentradas, as re- tando a construção de identidades privilegiadas
trospectivas e as prospectivas. Esses tipos se pela escola, seus conflitos com as outras mo-
diferenciam, tanto pelos recursos que utilizam – dalidades construídas fora do espaço escolar e
que vão desde as grandes narrativas religio- os desafios que isso coloca para a educação.
sas, até a questão da empregabilidade – quan-
to pelas múltiplas formas como conjugam tais
recursos. É nesse contexto que, segundo Lucíola Licínio de C. P. Santos
Bernstein, o processo de construção de identi- l.santos@sta03.ioe.ac.uk;
dades constitui-se por meio de aceitações, opo- luciola@fae.ufmg.br

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BERNSTEIN E O CAMPO EDUCACIONAL:
RELEVÂNCIA, INFLUÊNCIAS E
INCOMPREENSÕES
LUCÍOLA LICÍNIO DE C. P. SANTOS
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
l.santos@sta03.ioe.ac.uk; luciola@fae.ufmg.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é dar uma visão geral do trabalho de Bernstein e de sua importante
contribuição para a teoria e a pesquisa no campo da sociologia da educação. Busca-se
também explicar as razões de algumas incompreensões de seus conceitos e de sua orienta-
ção teórica. Para isso, o artigo está dividido em três partes. A primeira, procura mostrar
como o trabalho de Bernstein é analisado no interior do campo acadêmico. A segunda,
explora como o autor desenvolveu sua teoria, de acordo com a meta de avaliação que faz
de seu trabalho. A terceira, volta-se para a análise de sua obra, baseada na extensa
literatura educacional.
BERNSTEIN, BASIL – SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO – TEORIA DA EDUCAÇÃO

ABSTRACT

BERNSTEIN AND THE EDUCATIONAL FIELD: RELEVANCE, INFLUENCES AND


MISUNDERSTANDINGS. The objective of this paper is to provide a general view of Bernstein
work and his outstanding contribution to theory and research in the field of Sociology of
Education. It is also highlighted some misunderstandings of his concepts and theoretical
orientation. In this way the article is divided in three different sections. The first one tries to
show how Bernstein’s work is analysed in the academic field. The second part explores how
this author developed his theories according to his own perspective. The third part turns to the
analysis of his work, based on an extensive literature that has been produced about his
contributions to the field of education.
BERNSTEIN, BASIL – SOCIOLOGYOF EDUCATION – EDUCATIONAL THEORIES

Cadernos de Pesquisa, n. 120, p. 15-49, novembro/ 2003 15


Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003
Decidi fazer o doutorado em Londres por diversas razões. A razão mais
forte que me levou a escolher o, então, Departamento de Sociologia da Educação
do Instituto de Educação da Universidade de Londres, foi identificar que nele
trabalhava o professor Basil Bernstein. É que havia lido, há algum tempo, um artigo
de sua autoria, sobre “Códigos restritos e elaborados”, publicado em livro orga-
nizado pela professora Zaia Brandão, que me impressionou fortemente, pois
versava sobre as diferenças de linguagem entre as pessoas das camadas populares
e as provenientes das classes médias e suas relações com o sucesso e fracasso
escolar. Apesar de este artigo ter sido, posteriormente, muito criticado e, sobre-
tudo, porque naquele período predominavam no campo educacional brasileiro as
idéias de autores franceses, como Bourdieu e Passeron, Snyders, Baudelot e
Establet, e de autores americanos como Bowles e Gintis, neste cenário as idéias
de Bernstein me pareciam inovadoras e desafiantes.
Na primeira metade da década de 80, quando iniciei o doutorado no Insti-
tuto de Educação da Universidade de Londres, Basil Bernstein ocupava a cátedra
Karl Mannheim e era o intelectual de maior prestígio dentro e fora da instituição.
Dessa forma, logo no início do curso comecei a ler o volume 3 de Class, codes
and control (Classe, códigos e controle). O livro também me causou uma forte
impressão, aspecto este enfatizado por diferentes intelectuais que escrevem so-
bre o autor. Os conceito de classificação e estrutura ofereciam grande potencial
para entender melhor o campo do currículo, sua forma de organização, suas
disputas e a prática pedagógica, o que era um dos objetos centrais de meu interes-
se. Da mesma forma o texto, que está no capítulo 6 do livro, com o título de
“Class and pedagogies: visible and invisible” (Classe e pedagogias: visíveis e invisí-
veis) teve grande importância na minha compreensão sobre as práticas escolares.
Era um texto que punha por terra minha visão otimista sobre as pedagogias cha-
madas progressistas, alternativas ou inovadoras. O desafio de ver por um novo
ângulo algo bastante familiar, de poder pensar e de interpretar por uma nova
perspectiva alguns discursos bem enraizados na tradição pedagógica me estimula-
va intelectualmente.
A seguir, vi-me diante do desafio de ler uma primeira versão do “Discurso
pedagógico”, tarefa que, realmente, tomou-me muito tempo, pois considerei o
texto difícil e instigante. Era a primeira vez que lia um trabalho de discussão do proces-
so de produção do conhecimento escolar dentro de uma abordagem completa-
mente nova. O texto provocava-me certa inquietação porque era difícil aceitar que
o conhecimento escolar no seu processo de constituição fosse deslocado de seu

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campo de produção e, por meio de recontextualizações sucessivas, passasse a
ser relocado no interior da escola, afastando-se completamente, neste processo,
do conhecimento científico e mantendo com este, nas palavras do autor, uma
relação apenas virtual. No entanto, apesar das dificuldades que o texto apresenta-
va, pude perceber que estava diante de um autor que modificava minha visão
sobre a escola e o currículo.
Neste artigo, em primeiro lugar busco traçar um perfil do autor e de sua
obra, lançando mão das inúmeras publicações sobre seu trabalho e da influência
pessoal e intelectual que teve na trajetória de acadêmicos de diferentes países e
filiações teóricas. A seguir, busco apresentar as principais idéias do autor para,
finalmente, avaliar a importância de seu trabalho e suas contribuições para o cam-
po educacional. É claro que neste processo faço escolhas, realço determinados
aspectos e, assim, termino por recontextualizar a obra de Bernstein, a partir de
minha compreensão, de minha interpretação e de meu julgamento sobre o que
considero mais significativo em seu trabalho.
Quero, todavia, deixar claro que em cada leitura que faço de um texto de
Bernstein, entendo melhor um conceito que pensava ter apreendido. Isto ocorre
por dois motivos. Por um lado, o trabalho do autor, por ser muito denso, a cada
leitura, abre possibilidade de nos defrontarmos com um aspecto que nos havia
passado despercebido. Por outro lado, Bernstein é um autor fiel a si mesmo, cuja
obra consiste em um refinamento cada vez maior e mais elaborado, do ponto de
vista teórico, de conceitos com alto nível de abstração que vão se tornando cada
vez mais complexos. Na verdade, sua obra está centrada na relação entre lingua-
gem e educação, de forma explícita, quando escreveu trabalhos no campo da
sociolingüística e, de forma mais ampla e profunda, em trabalhos posteriores. A
partir do conceito de código, baseado nos códigos lingüísticos e estabelecendo
analogias entre este e os processos educacionais, constrói sua teoria sobre o
processo de constituição dos conhecimentos escolares. Este enraizamento na
lingüística continua presente em seus últimos trabalhos, como em um de seus
últimos artigos em que analisa os diferentes tipos de conhecimento e suas intra e
inter-relações, publicado no British Journal of Sociology of Education (1999), inti-
tulado “Conhecimento horizontal e vertical”.
Por último, gostaria de ressaltar que este artigo pode parecer possuir um
caráter laudatório. Contudo, quero esclarecer que considero que todas as teorias
ou conceitos teóricos podem ter falhas e estão e devem estar sujeitos à crítica. O
caso de Bernstein, neste sentido e neste momento, é um pouco diferente, por-

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que existem críticas procedentes quanto à precisão de determinados conceitos
elaborados pelo autor, discordâncias consistentes quanto a determinados aspec-
tos de sua abordagem teórica. Todavia, grande parte da crítica que é feita aos seus
trabalhos decorre de má interpretação, de incompree nsões sobre o que ele quis
dizer, o que até pode ser imputado a sua escrita densa e muitas vezes de difícil
leitura. Em razão disto, um dos objetivos deste trabalho é resgatar a relevância de
sua obra, prejudicada por incompreensões e críticas, em muitos casos, inadequa-
das e injustificadas.

BERNSTEIN SEGUNDO SEUSPARES

Com o afastamento de Bernstein da universidade, com o agravamento de


seus problemas de saúde e, finalmente, com sua morte, cresceu o interesse pelo
seu trabalho e uma série de publicações foi produzida. O Instituto de Educação de
Londres lançou um trabalho A Tribute to Basil Bernstein: 1924-2000 (Um tribu-
to a Basil: 1924-2000), em que colegas, colaboradores e acadêmicos de diferen-
tes países lhe prestam uma homenagem. Nesta obra, os autores expressam a
importância, em suas carreiras, de Bernstein, suas contribuições para o campo
educacional. Relatam também suas relações pessoais com este intelectual, em
que a amizade e o apoio se manifestavam ora por gestos generosos, ora por
frases e conversas cheias de ironia e até mesmo sarcasmo, ora por uma atitude
relaxada, em um chá ou almoço, em um restaurante ou em sua residência. Nas
suas conversas, além de temas acadêmicos, discutia sobre música, pintura, arte
em geral e, até mesmo culinária, o que mostra a grande versatilidade deste intelec-
tual, evidenciada na sua capacidade de transitar e de ter conhecimentos sobre os
mais variados temas e práticas do mundo contemporâneo.
Mas o que dizem amigos e intelectuais sobre Bernstein? Diferentemente de
nossa tradição, na qual, em uma homenagem a um morto, ninguém expõe suas
diferenças ou seus aspectos menos “nobres”, neste livro os autores apresentam
problemas que tiveram com o autor, discordâncias, mas também ajudas, contribui-
ções e gestos de amizade. Assim, tem-se um retrato de Bernstein, muito próximo
do que ele foi como pessoa e de sua importância para o campo educacional.
Basil Bernstein nasceu em 1924 e morreu em 2000, tendo iniciado sua
carreira acadêmica na Universidade de Londres na década de 60. Ocupou a cáte-
dra Karl Mannheim, foi chefe do Departamento de Sociologia da Educação e,
quando se aposentou, recebeu o título de professor emérito. Dentre seus traba-
lhos encontram-se artigos em diferentes periódicos ingleses e de diversos países,

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e destacam-se cinco livros, traduzidos em diferentes línguas. Os três primeiros,
sob o título de Classe, códigos e controle, foram publicados em três volumes, na
primeira metade da década de 1970. O primeiro deles, publicado em 1971, com
o subtítulo “Theoretical studies towards a sociology of language”(Estudos teóri-
cos da sociologia da linguagem). O segundo, com o subtítulo “Applied studies
towards a sociology of language” (Estudos aplicados à sociologia da linguagem),
foi publicado em 1973. O terceiro, publicado em 1975, é intitulado “Towards a
theory of educational transmissions” (Em direção a uma teoria das transmissões
educacionais). Em 1990, Bernstein publica The structuring of pedagogic discourse,
como o volume 4, de Classe, códigos e controle, que foi traduzido para o portu-
guês em 1996, com o título A estruturação do discurso pedagógico : classe,
códigos e controle. O último livro, Pedagogy, simbolic control and identity : theory,
research, critique (Pedagogia, controle simbólico e identidade: teoria, pesquisa,
crítica) foi publicado em 1996. Observe-se que Bernstein continuou a publicar até
praticamente o final da década de 90.
De acordo com Halsey (2001), emérito professor da cadeira de Sociolo-
gia de Oxford, Bernstein pode ser considerado o cientista social mais inventivo e
sério que saiu da London School of Economics depois da Segunda Guerra Mun-
dial. Da mesma maneira, Sadovnik considera que por quatro décadas seu trabalho
no campo da sociologia, apesar de gerar muitas controvérsias, teve um papel
central na formação de sociólogos e lingüistas. A importância do trabalho de
Bernstein fica bem expressa, quando na ocasião de sua morte, Sadovnik (2001)
afirmou que “o mundo da sociologia perdeu um gigante”.
Douglas, professora de antropologia do University College, da Universida-
de de Londres, diz que nos anos de 1960 teve um forte impacto diante da leitura
de um artigo de Bernstein, cujo título era “A socio -linguistic approach to social
learnig” (Uma abordagem sociolingüística da aprendizagem social). Em suas pala-
vras “eu me senti eletrificada”. Ela explica que, apesar de não ter entendido bem o
artigo, teve um forte sentimento, pois percebeu que realmente estava ali uma
pessoa definitivamente envolvida com os problemas culturais. Naquele tempo a
antropologia, segundo Douglas, já estava preocupada em buscar entender a cultu-
ra inglesa, mas fazia isso estudando culturas de outros grupos, vivendo em locais
distantes e diferentes desta sociedade. Para a autora, a preocupação central de
Bernstein era a transmissão da cultura e ela se expressa sobre isto afirmando:

Sua temática era na verdade a relação das palavras com as coisas, tradução,
interpretação/incompreensão, todas estas questões postas em uma grande

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perspectiva, a pré-seleção de significados. Era axiomático para os antropólo-
gos daqueles tempos que a compreensão sempre é filtrada por meio de uma
cortina de preconceitos e de vieses sociais. (2001, p.109)

Também para Cicourel (2001), professor de sociologia da Universidade


da Califórnia, Bernstein deu grande importância às interações sociais e tratou a
esfera cultural como objeto de análise com características próprias e não como
um mero apêndice da economia.
Ainda mostrando a relevância do trabalho de Bernstein, Douglas se volta
para a incompreensão das críticas levantadas ao seu trabalho sobre os códigos
restritos e elaborados, apontando que injustamente ele foi visto por alguns como
determinista. Ela rebate estas interpretações argumentando:

Sua teoria põe em relevo um círculo da interações dinâmicas entre os atos


discursivos permitidos, que regulam o que pode ser pensado e realizado, e o
comportamento permitido o que reage sobre o discurso e por sua vez o
transforma. (2001, p.112)

De acordo com Atkinson, professor da Universidade de Cardiff, a sociolo-


gia está sempre reinventando a roda, pela ausência de uma memória coletiva nesta
área. Para ele, muitas idéias que aparecem como novas se devem ao fato de as
pessoas não conhecerem a produção e as realizações do passado. Grande parte
das idéias que é acolhida com entusiasmo ao ser divulgada por conter abordagens
e conceitos novos, só conquista prestígio porque um grande segmento do mundo
acadêmico desconhece as teorias e a produção do passado. Segundo o autor “a
sociologia contemporânea recapitula o passado sob o disfarce do novo” (Power
et al., 2001, p.36). Considerando este aspecto, o autor ressalta que o trabalho de
Bernstein não pode ser vítima desta amnésia sociológica, uma vez que os temas
por ele trabalhados como linguagem, identidade, cultura são agora redescobertos
pelos cientistas sociais. Para Atkinson, Bernstein, que tinha um grande conheci-
mento dos clássicos e que se inspirou em trabalhos de sociólogos, antropólogos
e lingüistas, conseguiu produzir uma obra intelectual original e com identidade
própria, que não se confunde com as dos demais intelectuais. Para este autor,
Bernstein trabalhou, ao longo de sua carreira, sem abandonar suas preocupações
centrais, reelaborando e redefinindo suas idéias, buscando desenvolvê-las, crian-
do novas formas de abordá-las. Dessa maneira, “ele conquistou por si mesmo
uma biografia intelectual que se destaca das vulgaridades da moda” (2001, p.37).

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As formas e a estrutura da educação foram sua matéria-prima e elas continuam
como temáticas relevantes no campo da análise sociológica e antropológica pois:

...a transformação de idéias em mercadorias, do campo intelectual em merca-


do, do artesanato intelectual em produtividade, a incorporação do conheci-
mento em desempenhos mensuráveis. Estes (temas) permanecem como uma
agenda contínua de pesquisa central para a imaginação sociológica. (2001, p.37)

Para Whitty (2001), que o sucedeu na cátedra Karl Mannheim e é hoje o


diretor do Instituto de Educação, Bernstein teve um papel de grande destaque na
instituição, pois influenciou toda uma geração. A própria decisão de Whitty de
trabalhar com a sociologia do currículo foi decorre nte do fato de ter sido seu
aluno. Para ele, Bernstein foi sempre uma fonte de inspiração que perpassou toda
a sua vida acadêmica.
Segundo Stephen Ball, que ocupa atualmente a cátedra Karl Mannheim, a
leitura do texto de Bernstein sobre “classificação e enquadramento” teve um
grande impacto em sua formação. Para este autor, a maneira como Bernstein
analisa as hierarquias no sistema educacional constitui-se em uma forma radical-
mente nova, com brilhantes insigths, o que para ele faz deste artigo o melhor
artigo escrito no campo da sociologia da educação (2001, p.41).
Young, considerado um dos líderes do movimento intitulado Nova Socio-
logia da Educação e aluno de Bernstein, afirma que duas das sugestões de Bernstein,
durante o curso de mestrado, influenciaram toda a sua vida profissional. Relata
que Bernstein mostrava, em suas aulas, como a sociologia da educação não se
constitui na aplicação de teorias sociológicas ao campo educacional. Para Bernstein,
o papel da sociologia da educação era explicitar as formas como as instituições
educacionais expressam características da sociedade da qual fazem parte. Consi-
derando um privilégio ter sido aluno e colega de Bernstein, Young afirma:

Eu me lembro de sua contínua habilidade de levantar importantes questões


educacionais, seu ceticismo sobre qualquer coisa que parecesse um modis-
mo intelectual e sua determinação em levar seriamente as idéias dos outros.
(2001, p.170)

Apple (2001), professor da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Es-


tados Unidos, afirma que a produção de Bernstein teve grande influência em seu
trabalho e no de seus estudantes. Apesar das constantes discussões e de algumas
discordâncias que se manifestavam em conversas pessoais e por correspondên-

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cia, Apple diz que o conhecimento do seu trabalho transformou-o, sendo isto a
coisa mais importante que um professor pode fazer.
Hasan (2001), emérito professor de lingüística na Universidade Macquarie,
da Austrália, afirma que Bernstein, tendo começado com um trabalho mais concreto
e local na década de 1950, com crianças que mostravam uma determinada forma
de comportamento, produziu uma teoria mais abstrata e ampla capaz de explicar
não apenas aquele tipo de comportamento, mas também suas potenciais variações.
Kudomi (Power et al., 2001), professor de sociologia da educação da
Universidade de Hitotsubashi, em Tóquio, traduziu com seu grupo de trabalho o
livro Pedagogia, controle simbólico e identidade para a língua japonesa. Para este
pesquisador, o legado de Bernstein para os intelectuais japoneses, sua teoria
pedagógica, tem um valor inigualável, do ponto de vista teórico e metodológico,
uma vez que se constituem em instrumental valioso para enfrentar os problemas
que a educação apresenta na atualidade.
Para Brannen (Power et al., 2001), professor do Instituto de Educação da
Universidade de Londres, Bernstein, que advogava o rigor da investigação social,
via com preocupação a mercantilização da pesquisa. Percebendo a crescente pressão
e demanda sobre a produção de pesquisadores e de estudantes-pesquisadores,
Bernstein problematizou as principais questões vivenciadas hoje no campo da
investigação. Por um lado, coloca a perspectiva da pesquisa entendida como uma
cultura, um artesanato em que os estudantes aprende m por imersão e sob a
direção de um professor experiente. Por outro lado, mostra o crescimento de
um outro tipo de pesquisa, produzida em razão da demanda e da produtividade,
em que a exigüidade do tempo elimina a inovação teórica e provoca o apareci-
mento de problemas de ordem metodológica.
Morais (2001), professora da Universidade de Lisboa, sua ex-aluna de dou-
torado que trabalha com o ensino de ciências, cuja pesquisa é várias vezes citada
pelo autor, afirma que o interesse pela sociologia tem crescido entre os acadêmi-
cos no campo do ensino de ciências, principalmente entre os adeptos de Vygotsky.

BERNSTEIN SEGUNDO BERNSTEIN


Educação e democracia

Como foi visto, os estudos de Bernstein estão escritos em uma linguagem


densa, com um alto nível de abstração. Resumi-los, portanto, se torna uma tarefa
complexa. Nesse sentido, esta seção do artigo busca apresentar alguns dos mais
destacados aspectos de sua teoria, apontando seus principais conceitos e as ba-

22 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ses sobre as quais foram construídos. O objetivo é realçar algumas de suas con-
tribuições para a compreensão dos processos educacionais1.
Esta parte do trabalho baseia-se no último livro publicado pelo autor (Bernstein,
1996a), no qual faz uma reflexão sobre o desenvolvimento de sua obra. Ele inicia
o livro (p.6-13) enfatizando a importância da educação para a construção de uma
sociedade democrática. Ele afirma que a educação, como a saúde, sendo bem
público, tem um papel central na produção e reprodução das injustiças sociais. Em
razão disso, para o autor, torna-se necessário examinar os vieses ou desvios
enraizados na própria estrutura do processo de ensino-aprendizagem dos siste-
mas de ensino e de seus pressupostos sociais. Bernstein mostra que a escola,
para cumprir seu papel, deverá garantir três direitos. O primeiro deles se refere ao
desenvolvimento pessoal, à formação dos sujeitos e opera no nível individual. O
segundo, que opera no nível social, diz respeito ao direito de ser incluído, que é
diferente de ser absorvido, pois inclui a idéia de autonomia. O terceiro, que opera
no nível político, é o direito à participação, que inclui a possibilidade de participar
na construção, manutenção ou mudança da ordem social.
No entanto, para ao autor, a escola em sentido metafórico é como um
espelho que reflete imagens positivas e negativas. A escola reflete imagens que
são “a projeção da hierarquia de valores, de valore s de classe” (1996a, p.7). Do
ponto de vista acústico, também a escola apresenta grandes diferenças na produ-
ção e na recepção de sons. Em seu interior, apenas algumas vozes são ouvidas ou
soam familiares, outras vozes são silenciadas e os sons ali produzidos não têm
significado para grande parte dos estudantes. As distorções presentes no sistema
escolar são, para o autor, decorrentes da forma como este sistema opera na
distribuição de conhecimento, de recursos, de acesso e nas condições necessá-
rias para que a aprendizagem ocorra. As desigualdades na distribuição destes
elementos afetam os direitos ao desenvolvimento pessoal, à inclusão e à partici-
pação. O autor acrescenta que “é altamente provável que os estudantes que não
recebem estes direitos na escola tenham origem em grupos sociais que não
recebem estes direitos na sociedade” (1996a, p.8).
Bernstein avança a discussão mostrando como a escola lida com as hierar-
quias externas a ela e com as questões de ordem social, justiça e conflito. A forma
como a escola desconecta as hierarquias de sucesso internas a ela das hierarquias

1. Para melhor compreensão do trabalho de Bernstein, ver a obra traduzida para o


português (Bernstein, 1996).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 23


provenientes das diferenças entre as classes sociais externas a ela pode ser explicada
pela elaboração de um discurso mitológico que incorpora interesses sociais e
políticos que permeiam a vida social. Este discurso é constituído por dois pares de
elementos que se combinam e se reforçam.

Um par celebra e tenta, aparentemente, produzir uma consciência nacional


comum, unida e integrada; o outro par trabalha junto para desconectar as
hierarquias interiores à escola de sua relação causal com as hierarquias sociais
externas à escola. (1996a, p.9)

Em primeiro lugar, estaria o mito da consciência nacional, construído pela


escola como algo distinto do mito de origem, sucesso e destino. A cultura escolar
inclui celebrações, rituais e discursos presentes em sua linguagem e no ensino de
disciplinas, como história e literatura, que são os instrumentos para a constituição
e preservação desse mito. O outro mito que se relaciona a este é o mito da
sociedade como um organismo em que todas as atividades têm funções impor-
tantes e equivalentes. Este mito implicitamente justifica e mantém as diferenças de
gênero, mas não de uma maneira aberta, uma vez que as relações de gênero são
mostradas como resultado de diferenças de ordem biológica.
O segundo par de mitos se relaciona com a maneira como a escola tenta
construir uma estratificação distinta da estratificação social. A escola estratifica os
alunos a partir do critério de idade que se apresenta como um critério não arbitrá-
rio, diferentemente das relações arbitrárias existe ntes nos grupos sociais como
classe, religião e etnia. A escola precisa legitimar suas hierarquias, relacionadas ao
desempenho escolar – fracasso e sucesso – a partir de outros critérios, diferen-
tes das hierarquias nas relações de poder existente s entre os grupos sociais.
Neste sentido, a escola justifica o fracasso, por meio de características inatas e do
déficit cultural das famílias das crianças. Ao lado deste mito, o autor apresenta o
mito dos grupos culturais com identidade e interesses comuns. No entanto, como
mostra o autor, apesar da melhoria nas oportunidade s educacionais em relação a
gênero, raça e classe, a classe social permanece como maior regulador na distri-
buição dos estudantes no que diz respeito ao sucesso e fracasso escolar. Finali-
zando, o autor afirma que “a cultura de classe age para transformar microdiferenças
em macrodesigualdades e estas desigualdades levantam questões cruciais para a
relação entre democracia e educação” (1996a, p.12).
Seria importante pois, para Bernstein, entender as características intrínse-
cas ao processo de estratificação dos sistemas educacionais, bem como que

24 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


grupos sociais estariam mais provavelmente incluídos nos diferentes segmentos
produzidos por este processo de estratificação. Em decorrência, elabora seus
estudos dando centralidade às questões relacionadas ao processo de comunica-
ção pedagógica que se constitui no mais importante meio de controle simbólico.
Seu objetivo é descrever as práticas organizacionais, discursivas e de transmissão
presentes nas agências pedagógicas e o processo por meio do qual a aprendiza-
gem se faz de forma seletiva.
Nessa introdução, Bernstein manifesta seu interesse de trabalhar com a
produção de uma teoria que explique como funciona o aparelho escolar, analisan-
do, como internamente, pela própria forma como é constituído, ele produz as
diferenças de desempenho. Já estava posto, na época em que iniciou seu trabalho,
que a escola reproduzia desigualdades sociais. O objetivo do autor, nesse caso, é
explicar como, na própria constituição do aparelho escolar, estas desigualdades se
inscrevem por meio de mecanismos intrínsecos à escola e a forma como esta se
organiza para socializar conhecimentos. Ao buscar criar uma teoria explicativa
desse processo, Bernstein reafirma sua preocupação com os direitos à educação.
Ao descrever os processos de comunicação pedagógica, ele mostra como
a escola trabalha e, dessa forma, explicita como as diferenças que ocorrem no
desempenho dos alunos não estão apenas relacionadas à estrutura social, mas
também com a própria forma como estas hierarquias se inscrevem ou são ele-
mentos constituintes do aparelho pedagógico. Sua teoria não contém uma pro-
posta de mudança ou alternativas para a transformação da educação. Contudo, ao
buscar desvendar elementos intrínsecos ao aparelho escolar, que condicionam a
produção e recepção diferenciada de mensagens ou de discursos, o autor abre
caminho para o entendimento mais profundo de como as desigualdades educa-
cionais são produzidas e justificadas.
A partir desse entendimento, abre-se a possibilidade de se repensar a edu-
cação. Isso significa compreendê-la realmente como direito social, que inclui o
aperfeiçoamento pessoal, a inclusão social e a participação política. Uma educação
para a cidadania, que só poderá ser alcançada com mudanças na estrutura verte-
bral da escola, naquilo que lhe é central, nas formas como o aparelho escolar
funciona na distribuição de conhecimentos de várias ordens. Em conseqüência
disso é que talvez as modas e medidas reformistas que invadem a escola em
todas as partes do globo sejam tão inócuas, porque atingem aspectos periféricos
da estrutura escolar, deixando intactos os elementos estruturais por meio dos
quais a escola produz o sucesso e o fracasso escolar.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 25


Relações de poder e controle social

Para Bernstein, as teorias da reprodução cultural, incluindo o trabalho de


Bourdieu, vêem a educação como um transportador de relações de poder exter-
nas à educação. Para tais teorias, as relações de poder existentes na sociedade,
no tocante a raça, gênero e classe, são transportadas para o interior da escola e
reproduzidas por esta. O que o autor argumenta é que não têm sido objeto de
análise a constituição e o funcionamento da estrutura que permite que tais rela-
ções sejam transportadas pelos sistemas de ensino e no seu interior. Para Bernstein,
é fundamental explicar como são transmitidos estes aspectos de dominação refe-
rentes à classe, patriarcalismo e etnia no interior do aparelho escolar. O que está
ausente, segundo Bernstein, das teorias da reprodução é uma análise interna da
estrutura do discurso pedagógico, ou seja, o que está faltando é uma teoria sobre
“a estrutura do discurso, a lógica do discurso, que fornece os meios pelos quais
as relações externas de poder possam ser transportadas por ele” (1996a, p.18).
A partir desta questão o autor mostra que sua preocupação é entender como os
textos educacionais são organizados e como são construídos, postos em circula-
ção, contextualizados, apreendidos e também como sofrem mudanças. Eviden-
ciando sua preocupação central, Bernstein interroga:

Sumarizando, como poder e controle são traduzidos e m princípios de comu-


nicação, e como estes princípios de comunicação diferencialmente regulam
formas de consciência no que se refere a sua produção e suas possibilidades
de mudança? (1996a, p.18)

Para responder a esta questão, o autor se volta para a análise do poder e do


controle social. Do ponto de vista teórico e do ponto de vista analítico, o autor
afirma que poder e controle são considerados elementos distintos, apesar de
estarem mutuamente inter-relacionados nos estudos empíricos. Por meio das
relações de poder, de acordo com sua perspectiva, estabelecem-se, legitimam-se
e reproduzem-se fronteiras entre diferentes categorias de grupos, como, por
exemplo, classe e gênero, assim como entre diferentes categorias de discursos e
de agentes. O poder está, portanto, relacionado ao espaço, delimitando frontei-
ras e colocando pessoas, discursos e objetos em diferentes posições. Por sua
vez, o controle estabelece formas de comunicação apropriadas para as diferentes
categorias, ou seja, o controle estabelece a comunicação legítima para cada grupo,
de acordo com as fronteiras estabelecidas pelas relações de poder, buscando
socializar as pessoas no interior destas relações. Neste sentido, “...o poder cons-

26 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


trói relações entre e o controle de relações dentro de dadas formas de intera-
ção” (1996a, p.19).
Com esses dois elementos, poder e controle, Bernstein construiu os ins-
trumentos para compreensão do processo de controle simbólico que regulam
diferentes modalidades do discurso pedagógico. O autor usa o conceito de clas-
sificação para analisar as relações entre as categorias, sejam elas sujeitos, discur-
sos ou práticas. A expressão classificação é geralmente usada para distinguir um
atributo ou um critério que constitui uma categoria. Bernstein enfatiza que está
usando a expressão classificação em um sentido diferente do usual, uma vez que
ela não se refere a um atributo, nem mesmo a uma categoria, mas às relações
entre as categorias.
Considerando, por exemplo, uma série de categorias de discursos escola-
res, como o discurso da física, da história, da geografia, o autor argumenta que o
espaço que cria a especialização destes discursos não é interno a eles, mas é um
espaço entre estes discursos e entre os outros que a escola veicula. As fronteiras
entre estes discursos são elementos essenciais na especialização de cada um
deles, pois se seu isolamento é quebrado, a categoria fica ameaçada de perder sua
identidade. Assim, o sentido de um discurso só pode ser entendido no interior
das relações com outras categorias do grupo. É o isolamento entre as categorias
do discurso que mantém os princípios relacionados à divisão social do trabalho.
Segundo Bernstein, “em outras palavras, é o silêncio que transporta a mensagem
de poder” (1996a, p.21).
O autor distingue ainda entre classificações fortes e fracas. Quando existe
um grande isolamento entre as categorias, pode-se dizer que a classificação é
forte. Quando uma classificação é forte, cada categoria tem uma única identidade
e voz, assim também como suas próprias regras de re lações internas. De forma
oposta, quando a classificação é fraca os discursos, as identidades e as vozes são
menos especializados. No entanto, tanto as classificações fortes como as fracas
transportam relações de poder. O princípio de classificação tem uma função ex-
terna que regula as relações entre os indivíduos e uma outra função que regula
relações no interior do indivíduo. A classificação cria ordem, contradições, clivagens
e dilemas que são reprimidos pelo isolamento. No indivíduo, o isolamento se
torna uma defesa psicológica e, na medida em que for suprimido, irá revelar as
contradições, os dilemas e as clivagens. Como exemplo de forte classificação, o
autor apresenta o isolamento que existia no período medieval entre as práticas
manuais e as práticas intelectuais. Para dar outro exemplo relacionado com a
reestruturação do conhecimento no século XX, Bernstein faz uma distinção en-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 27


tre discursos como “singular” e discursos como “regiões”. Como exemplo de
discursos singulares, há os discursos produzidos, sobretudo a partir do século
XIX, como a física, a química e a sociologia. Estes discursos são criados no
campo da produção do conhecimento e são discursos específicos, sobre um
determinado objeto, ou seja, são discursos sobre eles mesmos. Para o autor, nas
últimas décadas do século XX, intensifica-se uma recontextualização dos singula-
res, criando-se uma regionalização do conhecimento, de que são exemplos a
Arquitetura, a Engenharia e as Ciências da informação. A regionalização seria um
índice do grau de tecnologização do conhecimento, pois a regionalização repre-
senta uma interface do campo da produção de conhecimento e do campo da
prática (1996a, p.21-23).
Analisando a classificação do conhecimento no interior da escola, Bernstein
focaliza dois tipos de currículo. No primeiro tipo estão aqueles em que há uma
forte classificação, denominados “coleção”, em que as fronteiras entre as discipli-
nas são bem nítidas. O segundo tipo são os currículos em que a classificação é
fraca e são denominados “integrados”, sendo que nestes as fronteiras entre as
disciplinas são pouco nítidas. Nos currículos de forte classificação, o progresso
nas disciplinas se desenvolve gradativamente, partindo de um conhecimento local
e concreto, com o domínio de operações simples, até princípios gerais mais
abstratos que serão adquiridos em níveis mais avançados da trajetória dos estu-
dantes no processo de escolarização. Quando as crianças falham ou se evadem
da escola, elas provavelmente foram posicionadas dentro de um conhecimento
mais fatual e de operações mais simples. Somente aqueles que têm sucesso e
alcançam níveis mais elevados de escolarização tornam-se, geralmente, conscien-
tes dos mistérios do conhecimento, percebendo que o que prevalece no discur-
so de cada disciplina não é a ordem, mas a desordem, assim como a possibilidade
de pensar o impensável (1996a, p.25-26). O autor, ao discutir este aspecto,
indaga quais seriam as razões e os interesses que levam à organização dos conhe-
cimentos de forma isolada, com forte classificação, e quais seriam os interesses
que levam à integração de conhecimentos, colocando-os de forma mais relacio-
nada de modo que as fronteiras entre eles sejam pouco nítidas. Este aspecto será
mais desenvolvido quando for discutida a distinção entre diferentes pedagogias.
Voltando-se para a prática pedagógica, Bernstein passa a explicar as formas
de controle que regulam e legitimam a comunicação nas relações pedagógicas. Ele
usa o conceito de enquadramento para analisar as comunicações que são legiti-
madas na prática pedagógica. Enquadramento refere-se ao controle nas intera-

28 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ções comunicativas presentes na práticas pedagógicas, que podem ocorrer tanto
entre pais e filhos, professores e alunos, assim como entre médico e paciente,
dentre outras. É que, para Bernstein, o conceito de prática pedagógica é mais
amplo do que a prática que ocorre no interior das e scolas, pois abrange, por
exemplo, outras relações que envolvem processos de produção e reprodução
cultural, como as relações existentes entre médicos e pacientes, psiquiatras e
chamados doentes mentais, arquitetos e planejadores. Enquanto o princípio da
classificação está relacionado com o nosso posicionamento em um determinado
lugar, definindo por meio do reconhecimento desta posição a possibilidade de
voz e de silêncio, o princípio de estrutura se constitui em um meio para a aquisi-
ção da mensagem considerada legítima. “Assim, classificação estabelece vozes e
enquadramento estabelece a mensagem” (1996a, p.27). Enquadramento diz res-
peito à realização do discurso, uma vez que se relaciona com a forma pela qual os
significados são encadeados e se tornam públicos. Nesse sentido, enquadramen-
to se refere à natureza do controle sobre seleção e comunicação, à seqüência, ao
ritmo esperado para a aquisição e a base social na qual a transmissão ocorre.
Quando o enquadramento é forte, o transmissor tem um controle explíci-
to sobre a seleção, seqüência e ritmos da prática pedagógica. No caso de o
enquadramento ser fraco, o aprendiz tem um controle mais aparente no proces-
so de comunicação. Quando o enquadramento é forte, os alunos são rotulados
em termos de atenção, interesse, cuidado e esforço, enquanto no caso de um
fraco enquadramento, os aprendizes são vistos a partir de seu interesse em ser
criativos, interativos e autônomos (1996a, p.27-28). As regras de ordem social
que estão presentes no enquadramento são chamadas pelo autor de discurso
regulativo e as regras de ordem discursiva são denominadas discurso instrucional2.
Nos tipos de prática pedagógica denominados pedagogias visíveis, o enquadra-
mento é forte e as regras do discurso instrucional e do discurso regulativo são
explícitas. Já nas denominadas pedagogias invisíveis, em que o enquadramento é
fraco, as regras dos dois discursos são implícitas.
No contexto da relação ensino-aprendizagem, Bernstein mostra que a classi-
ficação, como foi visto, está relacionada às regras de reconhecimento, uma vez
que o indivíduo pode reconhecer a especificidade do contexto em que se encontra.
Os princípios de classificação são como uma chave para distinguir características do

2. Estes aspectos serão mais aprofundados quando for apresentada a análise do autor
sobre o discurso pedagógico.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 29


contexto, orientando o falante/estudante para compreender aquilo que é espera-
do dele e que comportamentos e discursos são considerados legítimos. O en-
quadramento está relacionado com as regras de realização. Diferentes formas de
enquadramento agem seletivamente sobre as regras de realização permitindo a
produção de textos diferentes. “A regra de realização é necessária para produzir o
texto legítimo” (1996a, p.32). Muitas crianças das camadas populares podem ter
domínio das regras de reconhecimento, ao perceberem as relações de poder nas
quais estão envolvidas e sua posição nestas relações. Contudo, podem não do-
minar as regras de realização, pois não conseguem produzir o que é considerado
texto legítimo. Dessa forma, são as regras de reconhecimento que permitem ao
estudante identificar que significados são relevantes e as regras de realização per-
mitem saber como utilizar esses significados para produzir o texto legítimo.

O dispositivo pedagógico

Bernstein argumenta que, por um lado, existe uma crescente compreen-


são das relações entre o sistema educacional e os sistemas políticos, econômicos
e culturais nacionais e internacionais. Por outro lado, afirma que a sala de aula tem
sido objeto de numerosos estudos. Entretanto, o autor mostra que existem
importantes questões que esses estudos deixam de levantar. O autor explica que
muitos deles voltaram-se para a discussão sobre o que é transmitido ou transpor-
tado para o interior da escola, sem discutir ou aprofundar aspectos relacionados
ao próprio processo de transmissão. Com seu trabalho, Bernstein quer preen-
cher esta lacuna sobre as práticas pedagógicas, procurando identificar os princí-
pios subjacentes à pedagogização do conhecimento, que tornam possível a co-
municação pedagógica. Segundo o autor, se existem trabalhos que analisam as
mensagens pedagógicas e suas bases institucionais e ideológicas, não há muitos
estudos sobre a gramática social, sem a qual não é possível a produção das
mensagens pedagógicas (1996a, p.38).
O autor inicia sua análise sobre o discurso pedagógico, mostrando que há
uma clara distinção entre o dispositivo transmissor e aquilo que é transmitido.
Partindo da conceituação do dispositivo lingüístico como um dispositivo de regras
formais que governam as várias combinações realizadas na fala e na escrita, o
autor indaga se o dispositivo lingüístico seria em si mesmo neutro. Baseando-se
em Halliday, afirma que as regras do dispositivo lingüístico não são ideologicamen-
te neutras, mas refletem ênfases nos significados potenciais criados pelos grupos
dominantes. O dispositivo da transmissão, o transportador, é constituído por

30 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


regras relativamente estáveis, enquanto o transmitido, a mensagem, se funda-
menta em regras contextuais. Fazendo uma analogia com o dispositivo lingüístico,
o autor introduz seu conceito de dispositivo pedagógico. Este dispositivo tem
regras internas que regulam a comunicação pedagógica e que integram este dispo-
sitivo. Dessa forma, a comunicação pedagógica age seletivamente em relação aos
significados potenciais. O autor identifica como significados potenciais, que fazem
parte do processo de comunicação pedagógica, os discursos potenciais que estão
disponíveis para ser pedagogizados. Apesar das diferenças, o dispositivo pedagó-
gico tem muitas similaridades com o dispositivo lingüístico, pois ele também torna
possível uma série de comunicações potenciais. No entanto, existe uma grande
diferença entre os dois, no que diz respeito a um aspecto: enquanto no disposi-
tivo pedagógico uma determinada forma de comunicação pode subverter as re-
gras do dispositivo, o mesmo não ocorre em relação ao dispositivo lingüístico
(Bernstein,1996a, p. 41-42).
De acordo com Bernstein, o dispositivo pedagógico fornece a gramática
intrínseca do discurso pedagógico. A gramática do discurso pedagógico é consti-
tuída por três tipos de regra: as regras distributivas, as recontextualizadoras e as
avaliativas.
Para explicar o que são regras distributivas, o autor argumenta que em
todas as sociedades existem duas formas de conhecimento, o esotérico e o
mundano, em outras palavras, o impensável e o pensável. As variações entre os
dois ocorrem de acordo com a cultura e no decorrer da história. O que é esotérico
em uma sociedade ou em um período do tempo pode vir a ser mundano em
outra época. O autor prossegue mostrando que, essencialmente, mas não ne-
cessariamente, nas sociedades modernas, o controle do pensável e do impensável
é realizado pelo sistemas educacionais. De forma simplificada, segundo Bernstein,
enquanto o pensável é trabalhado na educação básica, o impensável está, sobre-
tudo, circunscrito às agências de ensino superior. Assim, para o autor:

Sociologicamente falando, as regras distributivas criam um campo especializa-


do para a produção do discurso com regras especializadas de acesso e formas
de controle do poder também especializadas. (1996a, p. 46)

As regras de recontextualização é que criam o discurso pedagógico. Bernstein


define o discurso pedagógico “como uma regra que embute dois discursos: um
discurso de habilidades de vários tipos e suas relações mútuas e um discurso de
ordem social”. Geralmente, para o autor, no campo educacional se faz uma distin-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 31


ção entre habilidades e valores, uma vez que muitos pesquisadores trabalham
como se na educação habilidades e valores fossem coisas distintas. Contudo, na
visão de Bernstein, existe apenas um discurso, pois o discurso pedagógico não
pode ser identificado com aquilo que ele transmite, como a física, a matemática
etc. Afirma ainda que o discurso pedagógico não é um discurso, mas um princípio.
Um princípio por meio do qual outros discursos são apropriados e colocados em
uma relação especial uns com os outros, com o propósito de uma transmissão e
aquisição seletiva. É um princípio para deslocar, relocar e focalizar um discurso, de
acordo com seu próprio princípio. Desta forma, o discurso pedagógico se cons-
titui em um princípio de recontextualização, que, seletivamente, se apropria, reloca,
refocaliza e relaciona outros discursos, para constituir sua própria ordem (1996a,
p.46).
O princípio de recontextualização cria os campos recontextualizadores e
seus agentes. O autor distingue entre o campo da recontextualização oficial, cria-
do e dominado pelo Estado e seus agentes e o campo da recontextualização
pedagógica, constituído pelos educadores, departamentos de educação nas uni-
versidades, pelos periódicos especializados e pelas fundações de pesquisa. Para o
autor, o aspecto dominante do discurso pedagógico é o regulativo, de cunho
moral, capaz de modelar o caráter, as maneiras, as condutas e as posturas. Bernstein
afirma que é o discurso regulativo que produz a ordem do discurso instrucional,
pois não há discurso instrucional que não seja dominado pelo discurso regulativo.
Qualquer disciplina escolar é recontextualizada ao ser deslocada de seu campo de
produção. Há uma seleção de conteúdos, da seqüência e do ritmo em que serão
trabalhados na escola. O processo não é derivado da lógica existente no campo
da produção desses conhecimentos. O processo de ensino-aprendizagem é um
fato social e nele o discurso regulativo fornece as regras da ordem interna do
discurso instrucional. Logo as teorias da instrução fazem parte do discurso regulativo,
uma vez que em seu interior existe um modelo de aluno, de professor e de suas
relações (1996a, p.47).
Partindo dessas idéias, Bernstein mostra que o discurso pedagógico espe-
cializa o tempo, o texto e o espaço, colocando-os em uma relação especial.
Nesse sentido, o tempo é transformado em idade, o texto em conteúdo e o
espaço em contexto. No interior das relações da prática pedagógica, a idade
(muitas vezes pensada em termos de estágios) transforma-se em aprendizagem,
o conteúdo, em avaliação e o contexto, em transmissão.

32 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Discurso pedagógico e identidades

Segundo Bernstein, nos anos de 1960, houve uma certa convergência no


interior das ciências humanas e isso teve conseqüências para o campo pedagógi-
co. Vários autores, de diferentes áreas, passaram a usar o conceito de competên-
cia. Bernstein exemplifica tal processo, apontando as áreas e seus teóricos: com-
petência lingüística (Chomsky), competência cognitiva (Piaget), competência cultural
(Lévi-Strauss), competência prática (Garfinkle) e competência sociolingüística (Dell
Hymes). Seus trabalhos demonstram que as competências são criativas e tacita-
mente adquiridas em interações informais (1996a, p.54-55).
O campo pedagógico passa também a ser influenciado pelo conceito de
competência. Bernstein faz uma distinção entre competência e desempenho. O
conceito de competência, para o autor, está relacionado, no campo educacional,
a um significado emancipatório, associado à idéia de que não existe déficit cultural;
de que o sujeito é ativo na criação de significados e práticas sociais; de que a
aprendizagem é um processo interno, tácito e invisível e que não pode ser regu-
lado externamente. De forma diferente, o conceito de desempenho põe ênfase
no produto final, isto é, diz respeito a um texto específico que o estudante deveria
produzir e às habilidades necessárias para a realização desta produção. Para Bernstein,
as orientações e finalidades da educação variam tanto no modelo de desempenho
como no de competência (1996a, p.56-67).
Bernstein passa, então, a relacionar as duas modalidades de prática pedagó-
gica, ligadas ao conceito de competência e de desempenho, com o processo de
construção de identidades. Ele relaciona a idéia da estrutura do conhecimento
singular e regionalizado com dois tipos diferentes de práticas pedagógicas e de
construção de identidades. Da mesma forma, ele identifica três modelos de com-
petência e de construção de identidades, derivados de diferentes modalidades de
práticas pedagógicas que estabelecem formas diferenciadas nas relações entre
sujeito, conhecimento e sociedade.
Nesse processo, ele aponta o papel exercido na construção desses discur-
sos pelo campo de recontextualização oficial, dominado pelo Estado, e o campo
de recontextualização pedagógica, dominado pelos educadores. O autor mostra
como, na atualidade, o Estado, de forma centralizada, monitora o currículo, ao
mesmo tempo em que estimula a descentralização da administração escolar. Esta
descentralização, no entanto, tem-se tornado um fator importante na criação de
uma cultura empresarial competitiva no interior do sistema de ensino. Bernstein
analisa, em síntese, as estratégias adotadas em razão das exigências do mercado

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 33


e das novas formas de reorganização do capitalismo e suas relações com as
estratégias educacionais dos diferentes segmentos sociais de origem dos alunos,
ou seja, com as aspirações diferenciadas de educação dos diferentes grupos so-
ciais. Todas estas variáveis que interferem no campo educacional repercutem na
prática pedagógica, levando à formação de modelos híbridos e, conseqüentemen-
te, possibilitando uma grande diversidade de processos relacionados à constru-
ção de identidades sociais.
Finalmente, o autor observa como a própria diversidade e as oposições
intrínsecas a esse processo de formação de identidades terminam por criar base
para resistências. Nesse sentido, para Bernstein:

Tais diversidades podem ser menos um índice de fragmentação cultural, como


supõem os pós-modernistas, e mais um ressurgimento cultural geral de rituais
de interiorização em novas formas sociais. (1996a, p. 80)

Teoria e pesquisa

Bernstein diz que os três volumes de Class, codes and control representam
um primeiro estágio no desenvolvimento de sua teoria sobre o discurso pedagó-
gico e as modalidades de controle social. Seu trabalho teve origem nos anos 50,
partindo de problemas empíricos sobre a razão do sucesso escolar e de suas
relações com os processos de socialização. Segundo o autor, ele não estava
satisfeito com as teorias sobre o processo de socialização que o explicavam
como um “processo místico de internalização ‘de valores, papéis e disposições’ ”.
Naquele momento, ele se sentia atraído pelo interacionismo simbólico de Mead
e com os primeiros trabalhos da Escola de Chicago, em que a comunicação tinha
um papel central e em que as culturas marginalizadas eram estudadas por meio de
estudos detalhados de orientação etnográfica. Durkheim e Cassirer forneciam
uma perspectiva kantiana que, de formas diferentes, chamavam-lhe a atenção para
a base social das formas simbólicas. Marx despertou seu interesse ao relacionar a
questão de classe com formas de consciência e suas relações com a divisão social
do trabalho e as relações de produção. Com esses elementos, Bernstein afirma
que teve condições de pensar no impensável, ligando a análise de Durkheim
sobre solidariedade mecânica e orgânica com relações de poderes diferenciadas
(1996a, p.91).
O autor começa, então, a estudar como diferentes posições de poder
criam diferentes modalidades de comunicação, que são valorizadas também de

34 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


formas diferentes pela escola. Iniciando seu trabalho sobre modalidades de co-
municação e suas relações com a educação, em “códigos restritos e elaborados”,
a partir do final dos anos de 1970 e início dos 1980, ele constrói uma explicação
sobre o processo de estruturação do discurso pedagó gico.
Bernstein explica como, no decorrer de sua produção, teoria e pesquisa de
base empírica foram se inter-relacionando, de forma que ele pudesse desenvol-
ver um trabalho que se aprofundava e ia superando problemas com os quais se
defrontava no decorrer do processo. As pesquisas foram realizadas por estudan-
tes de doutorado e pós-doutorado e outros colaboradores. Por exemplo, Bernstein
esclarece que a formulação de conceitos para a descrição das modalidades de
códigos elaborados institucionalizados pelo sistema escolar nasceu da conceitua-
lização das modalidades de sistemas familiares e de seus princípios de controle.
Este foco, de acordo com o autor, foi definido pelas pesquisas realizadas por um
grupo a partir da segunda metade dos anos de 1960 até a segunda metade dos
anos de 1970. As investigações estavam voltadas para o estudo da origem dos
códigos sociais na família e suas manifestações/realizações sociolingüísticas em
crianças de 5 a 7 anos, buscando estabelecer relações com sua influência no
desempenho escolar, na escola primária, de crianças das camadas populares.
Apesar da formulação teórica dos tipos de famílias já estar pronta desde 1963, só
foi publicada no início da década de 1970, depois da realização de vários trabalhos
empíricos que buscavam descrever formas de controle .
Ainda nos anos de 1960, o autor diz que começa a analisar dois sistemas
que se inter-relacionam na escola. Um de natureza instrumental, relacionado com
a transmissão de competências ou habilidades específicas e outro, de ordem
expressiva, voltado para a transmissão de condutas, maneiras e para a formação
do caráter. Baseado nos conceitos de Durkheim sobre solidariedade mecânica e
orgânica, Bernstein trabalha com a idéia de que as escolas estavam mudando,
saindo da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica. Essas idéias são
utilizadas e exploradas em trabalhos empíricos. O autor, no entanto, percebia
limitações teóricas em seu trabalho. Os conceitos usados para analisar as moda-
lidades de códigos elaborados utilizados pela escola não estavam ainda conectados
com os conceitos formulados para explicar os códigos. Havia uma dificuldade de
transitar do nível macro para o nível micro, pois o s modelos de explicação do
sistema de transmissão que ocorre na escola não forneciam os princípios básicos
que explicassem formas de ensino-aprendizagem no nível micro da prática peda-
gógica. É nesse contexto que Bernstein afirma que, a partir de Durkheim, formula
o conceito de classificação e, a partir do interacionismo simbólico, ele chega ao

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 35


conceito de enquadramento, embora ele os defina de forma diferente daquela
que tais conceitos têm nas formulações teóricas em que se originaram (1996a,
p.91). Mais uma vez, por meio de pesquisa, Bernstein pode avaliar e perceber a
complexidade das relações existentes entre o código pedagógico da família, o
background cultural da família, o nível de desenvolvimento dos estudantes e a
modalidade do código elaborado utilizado na prática pedagógica assim como os
diferentes níveis de desempenho e conduta dos alunos em sala de aula.
Permanecia, no entanto, um problema: a separação entre habilidades de
natureza instrumental, o conhecimento dos conteúdos escolares e a aprendiza-
gem de formas de comportamento e atitudes de ordem expressiva. Por meio de
pesquisas realizadas em escolas, ele pode rever seu conceito de enquadramento.
Passou, desse modo, a definir enquadramento como controle presente em dois
discursos, sendo que um está embutido no outro: o discurso instrucional, voltado
para a transmissão de diferentes habilidades, e o discurso regulativo, por meio do
qual são transmitidas regras de ordem social. Foi também por meio de pesquisa
que o autor diz que pode ser evidenciada a relação entre as modalidades de prática
pedagógica em termos de sua classificação e enquadramento e a atuação das regras
de reconhecimento e de realização para a construção do texto considerado legíti-
mo pela escola. Nesse contexto, Bernstein explicita o seu conceito de código, cuja
definição mais aprimorada foi elaborada em 1981. Segundo o autor: “código é um
princípio, tacitamente adquirido, que seleciona e integra significados relevantes, a
forma de suas realizações e dos contextos que evoca” (1996a, p.110).
Segundo Bernstein, nos diferentes artigos que escreveu, desde a década de
1970 até o início dos anos de 1990, tinha como foco central a distinção entre
formas de prática pedagógica, em que se procurava verificar sua localização em
termos de classe social, e a ideologia subjacente a tais práticas. A partir do concei-
to de enquadramento, o autor busca distinguir entre as práticas em que as regras
hierárquicas e discursivas estavam implícitas e aquelas em que estas regras esta-
vam explícitas. Baseando-se nisso, o autor afirma ter sido possível identificar dois
princípios de prática pedagógica: as visíveis e as invisíveis. Uma prática pedagógica
é denominada visível, quando as relações hierárquicas entre estudantes e docen-
tes e as regras de organização, relacionadas com a seqüência e o ritmo do ensino-
aprendizagem são explícitas e conhecidas pelos estudantes. No caso das pedago-
gias invisíveis, as relações e regras são implícitas e não são conhecidas pelo aluno.
É que, neste último caso, a prática pedagógica, suas regras e critérios são deriva-
dos de teorias complexas sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente,

36 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


teorias da lingüística e da gestalt, em alguns casos, teorias psicanalíticas. O argu-
mento central sobre a instituição e a escolha das famílias por escolas onde predo-
minem um desses tipos de práticas constitui-se em um conflito de natureza ideo-
lógica, entre frações da classe média, sobre formas de controle. Para o autor, há
uma distinção entre os interesses de segmentos da classe média que trabalham
no campo da produção e os de segmentos que trabalham no campo do controle
simbólico. Essas diferenças na divisão do trabalho, no setor da produção e no
campo do controle simbólico, são complexas, muitas vezes se inter-relacionam e
terminam por oferecer as condições para o desenvolvimento de formas de práti-
ca pedagógica distintas que se dirigem à formação de tipos de consciência ou de
formas de conduta também distintas. O autor mostra que foram realizadas três
pesquisas de base empírica, cujo objetivo era trabalhar com o desenvolvimento
da teoria em nível macro. Nesse sentido, buscava-se uma articulação entre for-
mas de divisão do trabalho e sua conexão com o sistema escolar, em termos da
construção e instituição de práticas pedagógicas compatíveis com os interesses de
diferentes frações das classes médias (1996a, p.112-113).
Finalmente, o autor amplia sua teoria, “incluindo a construção do discurso
pedagógico como uma gramática subjacente ao campo de produção, recontex-
tualização e prática pedagógica” (1996a, p.118). Bernstein utiliza-se muito de
gráficos e diagramas, e seu modelo é sintetizado em um diagrama, no qual dispõe
os grupos sociais e suas relações com o poder, o conhecimento e a consciência
e suas conexões com o dispositivo pedagógico; a seguir, dispõe as regras: distributivas,
recontextualizadoras e de avaliação; ao lado destas estão os campos de produ-
ção, recontextualização e reprodução dos discursos, seguidos dos processo de
criação, transmissão e aquisição. O diagrama sinaliza com setas as origens e inter-
relações entre estes elementos (1996a, p.118)3. Com base nesse modelo fo-
ram realizadas algumas pesquisas sobre a estrutura e as relações que estão nele
representadas.
Finalizando as explicações que fornece sobre seu próprio processo de
produção, Bernstein afirma que partes de sua teoria sempre precederam a pes-

3. Um diagrama que representa um modelo só pode ser bem entendido quando é visualizado.
Contudo, estão sendo apenas citados os elementos que fazem parte do diagrama para
ajudar na compreensão dos conceitos utilizados na “construção do discurso pedagógi-
co como uma gramática subjacente ao campo da produção, recontextualização e
prática pedagógica” (1996a, p.118).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 37


quisa. Seus alunos de pós-graduação utilizaram-se das formulações teóricas pro-
duzidas pelo autor e estas formulações, por sua vez, geraram mais questões para
a teoria, exigindo maior refinamento. Foi este o processo de produção teórica,
por meio do qual Bernstein desenvolveu seu trabalho. Buscou, ao longo dele,
estabelecer uma relação entre os insights no campo da teoria e a pesquisa de base
empírica, sem a qual ele afirma que não poderia ter elaborado os princípios de
descrição. É importante salientar que, para Bernstein, a teoria deve fornecer uma
descrição explícita e não ambígua sobre os objetos que analisa.

Orientação teórica

Bernstein busca também explicar a metodologia na qual se fundamentaram


os projetos de pesquisa realizados a partir de suas elaborações teóricas. Ele ob-
serva que se tem indagado sobre o fato de seu trabalho fundamentar-se em
dicotomias, em que cada pólo, de certa forma, funciona como tipo ideal: elabora-
do/restrito, posicional/pessoal, aberto/fechado, visível/invisível, coleção/integra-
do, dentre outros. O autor concorda que trabalha com conceitos que se opõem,
mas não que se constituam tipos ideais, no sentido weberiano, como apontam
alguns de seus críticos. Para ele, um tipo ideal é construído com base em um
modelo que reúna um número de características abstraídas do fenômeno, de
modo a fornecer recursos para identificar a presença ou a ausência destas carac-
terísticas e um meio de analisar o fenômeno pelo conjunto de suas características.
No seu caso, estes conceitos são princípios que geram um grupo de relações,
nas quais qualquer forma em que eles se apresentem pode ser apenas uma das
formas reguladas por tais princípios. Nesse sentido , Bernstein enfatiza que as
dicotomias com as quais trabalha estão relacionadas com as fronteiras, ou seja,
sua preocupação é identificar a razão pela qual determinadas coisas são colocadas
juntas e outras separadas. A partir daí, é possivel interrogar: Quais são os interes-
ses que fazem com que sejam colocadas juntas? Q uais são os interesses que
fazem com que se mantenham separadas? Estas questões levantam o problema
das relações de poder e da forma como estas relações se estruturam, construin-
do fronteiras que possibilitam a manutenção e a circulação de poder em seu
interior (1996, p.126-127).
Reafirmando a influência de Durkheim em seu trabalho, Bernstein justifica
que o trabalho de Durkheim foi considerado conservador, funcionalista ou posi-
tivista, pela forma como foi recontextualizado, sobretudo nos Estados Unidos,
com base nos estudos de Parsons. Bernstein afirma que é, no entanto, a ligação

38 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


de Durkheim com o estruturalismo que fez com que vários autores classificas-
sem o trabalho dele próprio, Bernstein, como estruturalista. Entretanto, conside-
ra que essa identificação do seu trabalho não o excluiria de outras influências.
Se o autor, por um lado, busca definir a estrutura do sistema, por outro,
também está preocupado com as possibilidades de mudança, o que demonstra
que seu trabalho está influenciado por outras tendências diferentes do estrutura-
lismo. Para ele, no entanto, as interações relacionadas ao princípio de enquadra-
mento têm um potencial para mudar a classificação, ou seja, mudanças nas formas
de controle podem resultar em mudanças nas relações de poder. Como as for-
mas de controle se relacionam com as interações dos sujeitos, estes podem
mudar por negociações/resistências o tipo de enquadramento, o que pode vir a
alterar as relações de poder que estabelecem as fronteiras entre os grupos sociais
e entre as formas de conhecimento, por exemplo.
Finalmente, Bernstein realça que existem trabalhos que buscam estabele-
cer relações entre sua teoria e as teorizações produzidas por Foucault. Em sínte-
se, o autor quer salientar que seu trabalho é influenciado por diferentes fontes e,
conseqüentemente, não pode ser classificado em uma única tendência dentro do
campo sociológico. Esta singularidade é ressaltada em vários textos, de diferentes
autores, voltados para uma análise da produção de Bernstein.

ASGRANDESCONTRIBUIÇÕESDO AUTOR

Pôde-se ver que várias pesquisas e estudos foram realizados a partir de


conceitos teóricos e de modelos conceituais elaborados por Bernstein, mas,
além disso, muitos artigos e livros foram e têm sido publicados em torno da obra
do autor. Esta parte do artigo se fundamenta nestes trabalhos, sobretudo em três
importantes publicações sobre sua obra.
Em 1995, Alan Sadovnik organizou uma coletânea, intitulada Knowledge &
pedagogy : the sociology of Basil Bernstein (Conhecimento e pedagogia: a socio-
logia de Basil Bernstein), em que diferentes intelectuais de diversos países do
mundo escrevem artigos sobre e/ou baseados em Bernstein.
Aedição está organizada em seis partes e na primeira, em sessão introdutória,
o próprio editor, Sadovnik, faz uma apresentação crítica da produção de Bernstein,
ressaltando que a obra buscou apresentar uma visão geral do trabalho do autor,
analisando alguns de seus conceitos-chave, bem como examinar, com base na
sociologia, as controvérsias levantadas pelo seu trabalho. Da segunda até a quinta
parte, estão agrupados vários artigos de diferentes autores sobre diferentes as-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 39


pectos teóricos, práticos e de pesquisa relacionados às teorias e aos conceitos
desenvolvidos pelo teórico. Na última parte, Bernstein faz comentários sobre os
diferentes artigos, focalizando interpretações e usos e comenta também as críti-
cas postas em relevo nos escritos de diferentes autores.
Outra obra também de 1995, intitulada Discourse and reproduction : essays
in honor of Basil Bernstein (Discurso e reprodução: ensaios em honra de Basil
Bernstein), foi editada por Paul Atkinson, Brian Davies e Sara Delamont. Os edi-
tores afirmam, na introdução, que o livro não busca fazer uma exegese da produ-
ção de Bernstein nem uma revisão de seu trabalho. A despeito da grande contri-
buição do autor para a sociologia e de sua reputação internacional, os editores
consideram que o livro procura celebrar as contribuições de Bernstein, sem se
deter contudo apenas nos artigos sobre ele. A obra contém artigos de acadêmi-
cos experientes que expõem suas idéias, algumas relacionadas ao trabalho do
autor e outras, que constituem contribuições próprias desses autores para o
campo da sociologia da educação.
O periódico inglês intitulado British Journal of Sociology of Education, no
número 4, do volume 23, editado em dezembro de 2002, publicou uma edição
especial, intitulada “Basil Bernstein’s: theory of social class, educational codes and
social control” (A teoria de classe social, códigos educacionais e controle social de
Basil Bernstein). O editorial deste número destaca que foi pedido a cada um dos
colaboradores que explorasse de forma didática um aspecto particular do traba-
lho de Bernstein relevante para a sociologia da educação e para a pesquisa social.
Com base nessa literatura, o artigo passará a apresentar os principais as-
pectos focalizados por alguns trabalhos que podem contribuir para a compreen-
são tanto teórica quanto para aplicações de seus conceitos em diferentes áreas da
pesquisa sociológica.

Os trabalhos de Bernstein no campo da sociolingüística

Diferentes autores (Atkinson, 1995; Hasan, 2001)) analisam os primeiros


trabalhos de Bernstein no campo da sociolingüística, as críticas que produziram e
a explicação para incompreensões e interpretações pouco acuradas do trabalho
do autor. O fato de ter discutido as diferenças entre a linguagem das crianças das
camadas populares e das camadas médias, identificando dois tipos de códigos,
que ele chama de restritos e elaborados, fez com que se tornasse alvo de várias
críticas, sobretudo a partir dos trabalhos de Labov, passando esses primeiros
estudos de Bernstein a serem associados com teorias do déficit cultural. O pró-

40 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


prio termo restrito pode ter influenciado as interpretações desses trabalhos e
parece que a melhor explicação sobre as questões suscitadas foi realizada por
Halliday, como se constatará a seguir.
Segundo Halliday (1995), quando Bernstein lecionava no ensino básico,
no final dos anos de 1950, buscando entender o fracasso escolar das crianças de
camadas populares, ele começou a explicar a razão do problema em termos de
diferença nas formas de percepção. Enquanto as crianças das camadas populares
aprendem a ser sensíveis aos conteúdos e a perceber os fenômenos em termos
das fronteiras existentes entre eles, as crianças das camadas médias aprendem a
ser sensíveis à estrutura e a perceber os fenômenos em termos de suas mútuas
relações. Bernstein, logo no início de seus estudos, segundo Halliday, viu que tais
diferenças eram semióticas. Halliday mostra como, a partir daí, Bernstein estabe-
leceu uma diferença entre a linguagem formal e a linguagem pública. Por um lado,
a linguagem pública, dentre outras características, apresenta frases curtas, gramá-
tica simples, sentenças inacabadas, uso de conjunções, uso limitado de adjetivos
e advérbios, afirmações formuladas com questões implícitas, enfim, é uma lingua-
gem de significados implícitos. Halliday cita Bernstein, o qual afirma que uma
linguagem pública contém “sua própria estética, uma forma de expressão simples
e direta, emocionalmente vigorosa, substancial e poderosa, e uma gama de metá-
foras de considerável força e adequação” (Bernstein, 1971, p.54). Na linguagem
pública, está também mais presente a conexão ou as relações mais inclusivas. De
maneira diferente, os códigos formais ou elaborados são explícitos, apresentan-
do um alto grau de planejamento em que a atenção do ouvinte não é considerada
como certa. Dessa forma, os códigos elaborados constroem seus significados
por meio de princípios mais gerais, que são acessíveis apenas a certos grupos.
Segundo Halliday, Bernstein fez com que esta diferença parecesse paradoxa, usando
as expressões universalista e particularista4.
Halliday salienta o fato de Bernstein demonstrar que nas formas de apren-
der e usar um discurso, a criança aprende um código que regula suas ações
verbais e o que é necessário para atuar na estrutura social em que está inserida.

4. Sendo acessíveis apenas a certos grupos, tem-se a impressão que esses tipos de códigos
não deveriam receber a denominação de universalista. Contudo, Bernstein usa o termo
particularista para indicar um código que tem significados bem específicos e maior
acesso, enquanto o código universalista tem um significado mais geral e um acesso mais
limitado. Assim, o paradoxo é apenas aparente (Halliday, 1995, p.129-130).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 41


Citando literalmente Bernstein, Halliday mostra que para o autor “o discurso é o
processo pelo qual a criança vem a adquirir uma ide ntidade social específica”.
Halliday ainda ressalta que Bernstein deixava bem claro que um código não era
melhor que o outro, uma vez que cada um possui sua própria estética e possibi-
lidades.
Q uando Bernstein publicou seus estudos no campo da lingüística estava
tornando-se polêmico o conceito de déficit, o qual vinha embutido em determina-
das concepções. Desta forma, segundo Halliday, referindo-se ao conceito de
códigos elaborados e restritos:

Seu conceito de código restrito foi denunciado como se considerasse as


classes operárias como tendo inteligência inferior e toda uma mitologia foi
construída ao redor da questão do déficit versus diferença, na qual foi destina-
do a Bernstein o papel de bode expiatório. (p.133)

Em tom indignado, Halliday afirma que, convivendo com Bernstein, con-


versando com ele ou lendo seus trabalhos, a associação destes com a teoria do
déficit é tão bizarra que fica até difícil dar uma resposta a essa ordem de acusação.
Vai além, mencionando que Mary Douglas já havia tornado claro que era óbvia a
solidariedade de Bernstein para com as crianças das classes operárias. Halliday
argumenta que Bernstein mostrou os mecanismos pelos quais o acesso ao códi-
go elaborado estava associado à questão de classe social. Como nos Estados
Unidos, onde o problema de classe social está mascarado pela questão étnica,
existe um tabu sobre a discussão que envolve classes sociais. Assim, de acordo
com Halliday, ao abrir esta discussão, os ataques de que foi alvo se constituíram
basicamente em uma resposta de pânico.
Halliday afirma que Bernstein percebeu claramente que a linguagem não
reflete de forma passiva nem a construção conceitual da realidade material, nem
de um determinado modelo de relações sociais. Parte da idéia de que as formas
do discurso também não são neutras, são, ao contrário, partes integrantes da
dinâmica social com suas desigualdades e assimetrias de acesso ao poder e ao
conhecimento. Nesse sentido, segundo ainda o autor, “estas desigualdades de-
vem estar presentes nas atividades semióticas pelas quais poder e conhecimento
são construídos” (Halliday, 1995, p.138).
Finalizando, Halliday salienta a contribuição de Bernstein no campo da lin-
güística afirmando:

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...Bernstein constitui, como Bühler e Malinowski, uma das figuras principais,
que não pertencendo ao campo da linguística influenciou criticamente nossa
forma de pensar sobre a linguagem. [...] O s linguistas, atualmente, têm uma
visão mais rica dos processos de significação em decorrência do trabalho de
Bernstein. (p.141)

Tendências e orientações teóricas no trabalho de Bernstein

Diferentes autores atribuem a Bernstein as mais diferentes orientações


teóricas, assim como apontam influências de diferentes correntes na sua produ-
ção. A afirmação de que seu trabalho é original e representa uma síntese pessoal
de diferentes tradições mostra que realmente é difícil tentar enquadrar o trabalho
de Bernstein em determinada filiação ou corrente de pensamento no campo das
ciências sociais. Alguns autores tentam demonstrar, por exemplo, as afinidades
entre Bernstein e o estruturalismo, enquanto outros classificam sua produção
como inspirada em autores clássicos da sociologia, havendo ainda os que asso-
ciam alguns de seus trabalhos às correntes pós-estruturalistas.
Entre os que discutem a visão estruturalista nos trabalhos de Bernstein,
encontra-se Atkinson (1995). Este autor inicia um artigo dizendo que escrever
sobre o estruturalismo presente nos trabalhos de Be rnstein não é o mesmo que
dizer simplesmente que ele é um estruturalista5, uma vez que o trabalho de Bernstein
constitui uma síntese com origem em diferentes tradições teóricas6.
Indicando diferentes tendências dentro do estruturalismo, Atkinson afirma
que “é na noção de código, entretanto, que o estruturalismo de Bernstein está
formulado em sua maneira mais potente (e mal interpretada)”. O autor argumenta
que código para Bernstein é um princípio regulador ou um mecanismo subjacente
às manifestações de superfície do discurso, da percepção e da ordem do sentido,

5. Atkinson afirma que, com base em Saussure, o estruturalismo desenvolve-se conside-


rando a idéia de que a vida social poderia ser discutida e analisada de forma homóloga
à da linguagem. Neste sentido, a vida social não pode ser entendida a partir da
regularidade de suas manifestações superficiais, mas das estruturas subjacentes aos
sistemas de relações que tornam possível a compreensão dos fenômenos culturais.
6. Atkinson ressalta, ainda, que não tem intenção de dizer que o trabalho de Bernstein se
encerra dentro de uma sociologia determinista ou de uma estreita visão teórica, o que
poderia ser sugerido pelo fato de associá-lo ao estruturalismo sem maiores explica-
ções.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 43


isto é, para Bernstein o código regula a seleção e organização dos discursos.
Atkinson, fundamentando-se em afirmações de Bernstein7, mostra que nas análi-
ses deste último há uma distinção entre a estrutura invisível e mais profunda dos
códigos e de seus princípios gerativos e as estruturas visíveis e de superfície das
suas realizações na prática social (1995, p.92).
O utro autor que relaciona o trabalho de Bernstein ao estruturalismo é
Sadovnik (1995). Ele enfatiza que Bernstein nunca abandonou uma posição es-
truturalista inspirada em Durkheim, tendo também incorporado uma visão neomarxista
e categorias weberianas no conjunto de sua produção. Todavia, diz que é preciso
remover algumas idéias sobre o funcionalismo que são associadas ao estrutural-
funcionalismo, para se entender a sociologia de Bernstein. Sadovnik argumenta
que o trabalho mais recente de Bernstein converge para a tradição européia do
estruturalismo em razão de sua ênfase em sistemas classificatórios, manutenção
de fronteiras e uso do conceito de códigos. Para este autor, no entanto, a socio-
logia de Bernstein busca incorporar ao estruturalismo a teoria do conflito. Em
resumo, como outros autores, Sadovnik termina por afirmar:

Mais do que trabalhando a partir de uma teoria sociológica, ou tentando


sintetizar um número de teorias, Bernstein tem tentado desenvolver e refi-
nar um modelo que seja capaz de descrever as comple xas relações entre
diferentes aspectos da sociedade. (p.30)

A originalidade do trabalho de Bernstein se encontra na possibilidade de


conjugá-lo com diferentes tendências do pensamento social. As afinidades entre
algumas de suas idéias e as de Foucault têm sido realçadas por diferentes autores,
como afirma Tyler (1995). Como Foucault 8, Bernstein está interessado nas rela-

7. Atkinson cita especificamente uma afirmação de Bernstein, que funciona como tese
geral, com a qual responde a questão de como a distribuição de poder e princípios de
controle são transformados posicionando os sujeitos e criando a possibilidade de
mudança em tal posicionamento. Segundo Bernstein “as relações de classe geram,
distribuem, reproduzem e legitimam formas distintas de comunicação, que transmitem
códigos dominantes e dominados, e que os sujeitos são posicionados diferentemente
por estes códigos no processo de adquiri-los” (Bernstein, 1990, p.13).
8. Segundo Moore (2001), é irônico que os intelectuais franceses permaneçam incons-
cientes da influência do trabalho de Durkheim no campo intelectual, em que pensado-
res como Foucault mostram as marcas desta influência. A crítica de Dukheim ao
humanismo é que anuncia a morte do sujeito, apresentando-se como um dos cami-
nhos para que se desenvolvesse o niilismo de Nietzsche.

44 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ções entre poder, conhecimento e discurso, mas critica Foucault, afirmando que
no trabalho deste não há uma análise substantiva das relações entre agências,
sujeitos e das relações sociais por meio das quais poder, conhecimento e discur-
so agem como dispositivos reguladores (Bernstein, 1990, p.134). Baseando-se
em Diaz, Tyler afirma que, enquanto Bernstein trabalha no nível macro, buscando
compreender as relações entre o discurso pedagógico e as classes sociais, Foucault,
por meio de estudos de natureza microanalítica, busca detectar o poder regulador
do discurso. A similaridade entre ambos é que os dois estão preocupados em
demonstrar como hierarquias e diferenças são constituídas por meio de técnicas,
procedimentos e regras que classificam, normalizam e constroem os diferentes
grupos sociais.
Assim como alguns acadêmicos que baseiam seus trabalhos em análises de
teorias pós-estruturalistas, intelectuais que estudam a questão de gênero encon-
tram na produção de Bernstein idéias e conceitos para desenvolver seu trabalho.
Arnot, por exemplo, escreve um artigo em que expõe as influências dos estudos
de Bernstein acerca dos códigos educacionais sobre a teoria feminista. A autora
considera que os conceitos de classificação e enquadramento podem ser utiliza-
dos para explicar como a cultura escolar é marcada pelas relações de gênero
(1995, p.309). Da mesma maneira, Delamont (1995) afirma que apesar de
Bernstein não ter escrito sobre gênero especificame nte, seu trabalho contém
orientações teóricas e dados empíricos para os estudos e pesquisas voltadas para
a questão.
Por último, não se pode deixar de destacar que o trabalho de Bernstein
tem sido utilizado em cruzamento com o de outros autores, como, por exemplo,
Vygotsky (Morais, 2002; Daniels, 2001), além de servir como uma das referên-
cias importantes para os que trabalham com os proce ssos de escolarização das
elites e classes médias (Cookson, Persell, 1995; Power, Whitty, 2002) e, princi-
palmente, para os pesquisadores que se voltam para a investigação das interações
e práticas da sala de aula, incluindo desde a educação infantil até o ensino superior
(Jenks, 1995; Davies, 1995; Tyler, 1995; Moss, 2002).

CONCLUSÃO

É interessante observar como as fortes críticas ao trabalho de Bernstein


sobre códigos restritos e elaborados tiveram um papel definitivo na sua produção
intelectual. Ao invés de causarem inibição ou barreiras, atuaram como desafios
para que ele aprofundasse a produção dos conceitos, tornando-os mais precisos

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 45


e abrangentes, refinasse sua produção teórica, muitas vezes explicitando o implí-
cito. Foi a crítica que também o levou a explicar seu próprio processo de produ-
ção intelectual, mostrando suas conexões com a pesquisa de base empírica. Além
disso, em seus textos e intertextos, o autor está sempre dialogando e respon-
dendo às criticas potenciais ou já elaboradas ao seu trabalho. De forma explícita
há, além de afirmações feitas nos próprios estudos, uma seção em que responde
a cada uma das interpretações ou críticas de seu trabalho, em livros por ele
escritos ou por outros intelectuais comentando o seu trabalho (Bernstein, 1996;
Sadovnik, 1995).
Na minha vida acadêmica, tenho por diversas vezes usado conceitos e
idéias de Bernstein, uma vez que sua obra possibilita a incursão em vários campos
da prática pedagógica, que é um objeto central no meu trabalho como professora
e pesquisadora. Como diversos autores enfatizam, seus conceitos de classifica-
ção e enquadramento mostram-se como ferramentas importantes para entender
o campo do currículo, as disputas em torno das disciplinas, assim como as diver-
sas formas de construção da prática pedagógica, em função e como resultado dos
diferentes interesses das classes sociais. O texto sobre “Pedagogias visíveis e
invisíveis”, publicado em Cadernos de Pesquisa (Bernstein, 1984), é uma leitura
imprescindível para o entendimento de diferentes propostas pedagógicas, sobre-
tudo hoje, quando os sistemas educacionais passam por processos de mudança
de diferentes níveis.
Considero, no entanto, o texto sobre o discurso pedagógico o que mais
contribuiu para que eu compreendesse o processo de produção do conhecimen-
to escolar – sua construção e circulação. Nele, além da síntese de conceitos
previamente elaborados, Bernstein oferece uma análise profunda e consistente
sobre um campo pouco explorado. O processo de constituição dos saberes
escolares, a sua distinção das outras formas de conhecimento e seu processo de
produção introduzem um debate de fundamental importância para quem discute a
prática pedagógica em geral ou a que ocorre no inte rior de uma determinada
disciplina.
A originalidade, contemporaneidade e relevância dos problemas aborda-
dos por Bernstein constituem um legado inestimável para quem está preocupado
com a escola, sua organização, seus processos de trabalho, de socialização dos
conhecimentos e valores, suas relações com a comunidade na qual ela se insere.
Sem oferecer soluções para os problemas com os quais a educação se defronta,
Bernstein constrói conceitos e teorias que possibilitam iluminar a compreensão

46 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


da complexa teia de relações entre escola e sociedade. Se a compreensão de um
fenômeno por si mesma não produz mudanças é, no entanto, condição necessá-
ria para que estas ocorram.

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Recebido em: agosto 2003


Aprovado para publicação em: agosto 2003

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 49


BERNSTEIN, DURKHEIM E A SOCIOLOGIA
DA EDUCAÇÃO NA INGLATERRA
BRIAN DAVIES
University of Wales – Cardeff – Reino Unido
wbdavies@ntlworld.com

Tradução: Maria de Lourdes Soares e Vera Luiza Viso ckis Macedo

RESUMO

Neste texto o autor procura elucidar o modo pelo qual Basil Bernstein utilizou e enriqueceu
a contribuição de Durkheim para a análise de questões abordadas pela sociologia da
educação.
BERNSTEIN, BASIL – DURKHEIM, EMILE – SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO

ABSTRACT

BERNSTEIN, DURKHEIM, AND THE BRITSH SOCIOLO GY OF EDUCATION. The author


attempts to elucidate how Basil Bernstein used and enhanced Durkheim’s contribution to
the analysis of issues addressed by the sociology of education.
BERNSTEIN, BASIL – DURKHEIM, EMILE – SOCIOLO GY OF EDUCATION

Este texto foi publicado originalmente em inglês, em 1996, pela Ablex Publishing Corporation,
Norwood, New Jersey, às páginas 39 a 57 do livro Knowledge and pedagogy : the sociology
of Basil Bernstein, organizado por Alan R. Sadovnik, da Universidade de Adelphi.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 51-74, novembro/
2003 2003 51
Basil Bernstein ingressou no Instituto de Educação [da Universidade de
Londres] em janeiro de 1963, assumindo o cargo de conferencista sênior e
diretor do Departamento de Pesquisa em Sociologia. Em 1965, foi promovido a
professor-adjunto e, em 1967, nomeado catedrático da única cadeira especializa-
da em sociologia da educação na Grã-Bretanha. Ele era então o único durkheimiano
autodeclarado de alguma importância que trabalhava na área. A forma como utili-
zou Durkheim e levou sua análise ainda mais longe deve ficar clara no final deste
texto. Para fins desta exposição, tivemos a sorte de contar com um memorialista
escrupuloso 1. Essa sua característica não se deve tanto a um tipo de autopromoção,
mas reflete mais uma necessidade interior em vista da quase unânime hostilidade
e posicionamento ideológico contra o conjunto da sua obra desde o início – e dos
quais o seu trabalho em desenvolvimento não conseguiu escapar. Não se discute
aqui sua personalidade proeminente e agora solitária. Também se sabe que seu
trabalho complexo e ainda em evolução sobre a escolarização ainda não foi am-
plamente apreciado e compreendido. O fato de que essas coisas são uma mistura
rebuscada de seu próprio estilo, de seus pontos fracos e fortes, de seu tempo e
de que eram o único que havia para se investigar é uma proposição que merece
nosso interesse. Não existe praticamente nada que valha a pena ser dito sobre o

1. Class, code and control [Classe, códigos e controle], volume 1 (1971), que abrangeu o
trabalho publicado entre 1958 e aquele ano, tinha uma introdução de 20 páginas. O
volume 2 (1973), que reuniu os trabalhos de pesquisa do Departamento de Pesquisa
em Sociologia, tinha 10 páginas tratadas de forma mais convencional, com o objetivo
de integrar os ensaios de outros autores no contexto. O volume 3 (1975) continha
trabalhos que remontavam a 1966 e tinha 33 páginas abordando a contextualização;
enquanto o volume 4 (1990), que compreende os anos 80, contém 10 páginas cujas
metáforas mais indicativas são aquelas relacionadas com a arte. O Bernstein do volume
1 tem a ver com o seu mal-estar em reunir trabalhos como uma forma de registro
contínuo. “Cada trabalho é uma tentativa de chegar a um acordo com uma idéia
persistente que não me sai da cabeça, que eu não podia entender completamente e da
qual não conseguia escapar. Sempre tive o sentimento de que o único trabalho digno de
ser lido era o próximo a ser escrito. O s trabalhos anteriores tornavam-se uma fonte de
constrangimento, um pouco como pinturas que não obtinham o resultado esperado e
que acabavam se tornando realidade por conta da pró pria natureza” (1971, p.1). No
volume 4, ele se refere aos processos de exposição e crítica textuais, distinguindo os
referenciais seletivos, o contexto secundário (inclusive esquizofrenia), a determinação
em excesso, o pontilhismo e a relocação criativa, “que produz todo o texto imaginário”
(1990, p.9). O que ele chama de volume 5, atualmente em circulação como um texto
datilografado de 78 páginas, intitulado Code theory and research [Teoria e pesquisa dos
códigos], é um ensaio cujo foco específico é a trajetória percorrida por suas teorias até
a realização empírica. Minha atenção concentrou-se especialmente sobre este trabalho.

52 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Durkheim britânico, a não ser a título de comentário sobre o seu trabalho. Deve
ficar bastante claro que as considerações aqui apre sentadas são as de um aluno
profundamente interessado e igualmente engajado no processo, além de colega e
amigo, sendo portanto mais constituídas do que reguladas pelos termos de nosso
relacionamento de 30 anos.
Não pretendo desperdiçar espaço na tentativa de resumir ainda mais o que
ele disse, com extraordinária honestidade e precisão, sobre seus próprios ante-
cedentes e sobre sua carreira intelectual, ou procurar acrescentar algo aos co-
mentários admiráveis a esse respeito tecidos por Atkinson (1985) quando escre-
veu sobre o tema. Mas o que preciso confessar é que a experiência de ter tido
Bernstein como professor significou adquirir a percepção, em seu sentido mais
agudo, da importância do social e nada menos do que pela via da consideração do
Durkheim de The division of labour [Da divisão social do trabalho] até The
elementary forms [As formas elementares da vida religiosa]. A lição mais brilhan-
te de todas foi a de que Durkheim (e, ao contrário do que todo mundo imagina,
ele não era o único) não “tirava” os dados da teoria, mas a teoria dos dados. Meu
curso de mestrado, realizado entre 1963 e 1965, dado por Bernstein pratica-
mente sozinho, abordou de Goffman e Etzioni a Halsey, Floud e Martin, de Tonnies
a Parsons, mas todos eles foram colocados contra um pano de fundo luminoso
das relações entre estrutura social, identidade e língua. Do próprio Bernstein,
lemos apenas os seus primeiros trabalhos no British Journal of Sociology e seu
artigo sobre Halsey, Floud e Anderson, embora seu comportamento mais típico
fosse o de retirar-se e ler Cassirer. Ele era retice nte com respeito a seus escritos
sobre a questão da linguagem, aos quais outros autores, inclusive Lawton, costu-
mavam se referir com mais freqüência. O que a experiência ensinou, e continuou
a ensinar a duas gerações de alunos que o tiveram como professor, foi a insistên-
cia com que ele enfatizava a suprema importância da teoria e o fato de que uma
teoria que não especificasse (ou, ainda mais comumente, que não conseguisse
especificar) os termos e meios de reunir os pontos principais que constituíssem
uma investigação pública de suas próprias proposições, provavelmente estaria
mais para movimento social do que para ciência social. Seu menosprezo por
aqueles que confundiam juízo de valor com fato era constante, rivalizando apenas
na intensidade com que se recusou a considerar a distinção entre micro e macro
como um obstáculo à análise.
A recepção pública indicava que sua primeira teoria sociolingüística talvez
estivesse condenada desde o início, dada a sua complexidade em relação à dispo-
sição de ânimo da área. Sua aceitação precisa foi prejudicada pela falta de dissemi-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 53


nação de uma versão fiel à teoria e de dados que pudessem ser assimilados por
não especialistas2. A chamada “deficiência lingüística” observada entre as crianças
oriundas das classes trabalhadoras foi incorporada ao discurso sobre desenvolvi-
mento individual de professores, instrutores e formuladores de políticas públicas
para justificar a inevitabilidade do déficit cultural e não uma perspectiva de redefini-
ção institucional3. Os resultados mais óbvios foram uma claudicante versão britâ-
nica de intervencionismo representada por um pouco mais de dinheiro para pro-
fessores e escolas em contextos sociais “desfavorecidos”, além de um estímulo
para aqueles dedicados à estética da produção da fala entre a classe trabalhadora4.

2. Ver a narrativa lúcida de Atkinson (1985) e a pró pria opinião de Bernstein sobre sua
“responsabilidade por aquelas interpretações conflitantes” (1971, p.19).
3. Existiu toda uma geração de exegetas/seres atávicos bernsteinianos simplesmente ater-
radora. Mas mesmo quando se sabia que os alunos haviam sido ensinados de forma
correta, era surpreendente verificar a freqüência com que deturpavam o conteúdo de
sua obra em suas exposições. Acredito plenamente que isso só pode ser atribuído à
profundidade e à singularidade dos argumentos e à resistência que encontraram, isso
por si só concorrendo para comprovar a força da relação entre língua, estrutura e
identidade. Passadas várias décadas, a confusão criada pelos acadêmicos continua ainda
muito intensa. Harker e May (1993) citam, com evidente aprovação, a declaração de
Bourdieu “Para que o discurso pedagógico possa reproduzir o fetichismo da língua
legítima da forma como realmente ocorre na sociedade, basta seguir o exemplo de
Basil Bernstein, que descreve as propriedades do código elaborado sem relacionar esse
produto social com as condições sociais de sua produção e reprodução ou mesmo,
como seria de se esperar da Sociologia da Educação, com suas condições acadêmicas”
(p.174). Nesse contexto, é salutar mencionar a formulação de localização social (não
sua origem) das orientações dos códigos – “Q uanto mais simples a divisão social do
trabalho e quanto mais específica e local a relação entre o agente e a base material, mais
direta a relação entre os significados e uma base material específica e maior a probabi-
lidade de uma orientação restrita do código. Q uanto mais complexa a divisão social do
trabalho e quanto menos específica e local a relação entre um agente e a base material,
mais indireta a relação entre os significados e uma base material específica e maior a
probabilidade de uma orientação elaborada” (p.20) – mas a formulação apareceu ori-
ginalmente muito antes. Seriam as relações sociais mascaradas, transformadas em
fetiches por tal formulação? Não existe nenhuma referência à sua condição acadêmica na
assertiva que “A realização de códigos elaborados transmitidos pela família são eles
próprios regulados pela forma como são transmitidos na escola. Será que as pressupo-
sições de classe dos códigos elaborados vão ser encontradas na classificação e no
enquadramento do conhecimento educacional e na ideologia que expressam?”
4. É comum alguém se referir respectivamente às áre as educacionais prioritárias do
Relatório pós-Plowden (Departamento de Educação e Ciências, 1967) e, por exem-
plo, à discussão entre lingüistas e professores de inglês de Labov a Rosen e Stubbs (Ver
Atkinson, 1985, cap.6.)

54 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Uma elaboração mais lenta dos pontos de vista sobre a relação entre linguagem,
contexto, categoria e experiência, surgindo de fontes tão diversas como os códi-
gos de Bernstein, bem como de Britton e seus colaboradores freqüentemente
hostis, também afetou as práticas educacionais.
No início dos anos 70, a temperatura interna do próprio departamento de
Bernstein só podia ser descrita como tórrida. O começo da década também
representou o único período em que a Conferência Anual da Associação Britânica
de Sociologia (BSA, na sigla em inglês) escolheu a educação como tema principal.
Isso estava em total sintonia com a expansão positiva da formação de professo-
res e o espírito igualitário otimista do debate público sobre a “educação escolar
comum”. Bernstein teve muito a ver com a estruturação da agenda da conferên-
cia, cujo ponto culminante foi Sobre a classificação (que pode ser encontrada em
Bernstein, 1975; Brown, 1973; Young, 1971, entre outros trabalhos), apresen-
tada, de forma magistral, como palestra de encerramento. Em seguida, ele não
apenas conseguiu organizar um volume editado por Michael Young (1971), como
também foi o responsável pelo título. Knowledge and control [Conhecimento e
controle] não apenas se apropriou, com dois anos de antecipação, do volume de
trabalhos da conferência de Richard Brown (1973), como também conseguiu
obter uma contribuição extra de Pierre Bourdieu e um texto até certo ponto
versátil de Ioan Davies (1971). Este insistia, da forma mais explícita possível, na
importância que Bernstein atribuía à centralidade de Durkheim ao tratar do estudo
da sociologia educacional como cultura (p.286), sem dúvida a ducha de água mais
fria que alguém podia lançar sobre as intenções do seu editor. Conhecimento e
controle também representou o departamento com as dissertações de mestrado
de Keddie e Esland, tornando-se um ícone instantâneo do movimento por “novas
orientações”. A despeito da considerável diversidade – na verdade, apesar de
todas as contribuições de Bernstein, Bourdieu e ambos os Davieses terem sido
interpretadas de forma totalmente equivocada por esse tipo de rotulação e de que
Horton e Blum provavelmente não viam suas exposições como trabalhos criados
especialmente para a ocasião – a mensagem passada foi a da promíscua “subver-
são do absolutismo” de Young, a das evidências de Keddie sobre a falta de habili-
dade dos professores para despertar o bom senso da classe trabalhadora e a
promessa de Esland de que tudo era possível na esfera pedagógica. A sedução
emanada de tal combinação de promessas mostrou-se irresistível em uma profis-
são mais constituída de boas intenções do que propriamente fruto de leitura ou
de pesquisa. Os professores eram, assim, absolvidos das necessidades e da força
do sistema, perdão igualmente concedido aos instrutores em períodos de turbu-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 55


lência, que ficavam desse modo livres das agruras do ensaio empírico, dada a
conversão do processo de pesquisa a uma tecnologia guiada pela ação, baixo
custo, com propensão para o privatizado (os etnógrafos genuínos enfrentam
desde então muitas dificuldades para reconquistar o equilíbrio). Apesar da censura
às “novas orientações” feita por filósofos como Flew (1976) e sociólogos como
Bernbaum (1977)5, a convocação à ação da sociologia da educação inglesa nume-
ricamente maior estava mais próxima da pergunta final de Young: “Por que reluta-
mos em aceitar que os currículos acadêmicos e as formas de avaliação associadas
a eles sejam invenções sociológicas a serem explicadas da mesma forma que
outras invenções mecânicas e sociológicas dos homens?” (1971a, p.41). Tudo o
mais, até o final da década, poderia até mesmo se autodestruir no momento em
que deixasse o prelo. A tentativa de Karabel e Halsey (1977) de atualizar o leitor
de 1961 sobre a definição de campo escrita por Halsey e outros, teve como
resultado, se não um samizdat (publicação e distribuição clandestina ou ilegal de
textos proibidos ou censurados), pelo menos uma entrada no mercado no míni-
mo depreciada. Os autores terminam o longo ensaio crítico introdutório (Young
precisa ser um pouco mais empírico; Bernstein mostra tendências marxistas sus-
peitas, faria melhor se descobrisse Max Weber) com uma seção destinada apenas
a fazer os jovens de cabeça feita afirmar “Bem, eles fariam isso, não fariam?”,
oferecendo, assim, uma reavaliação da contribuição de Emile Durkheim, sem
sequer mencionar o fato de que Bernstein já havia feito isso antes deles6. Mais

5. A destruição das pretensões de Blum, Young e Esland realizada por Flew tem uma
característica particularmente arrasadora. Por exem plo, sobre a realidade e possibili-
dade de conhecimento de qualquer realidade independente, “Só é possível entender que
o comandante de um blindado dirija-o diretamente contra uma emboscada de armas
e minas pela explicação da relação, ou falta de relação entre o modo como se percebe
a situação e a situação real” (Flew, 1976, p.34). De um modo menos chauvinista, que
provém da classe de Bernbaum (1977), ele critica a “nova sociologia”, que viu surgir
do fracasso das políticas modificadas de acordo com a teoria dominante e da “inocên-
cia” da perspectiva voltada para a educação do período de Pós-Guerra, como algo
relativo ao milênio, romântico e perigosamente relativista, um “comprometimento”
circular com uma noção de engajamento social não pesquisada.
6. No que deve ser uma das mais terríveis gafes em toda essa área intelectual, eles
contradizem uma visão da “extraordinária sensibilidade a respeito da base social da
língua” de Bernstein com: “Todavia, o enraizamento do trabalho de Bernstein na vida
britânica suscita inevitavelmente uma questão embaraçosa: até que ponto suas formu-
lações gerais sobre o problema dos códigos lingüísticos e das classes sociais são
produtos das peculiaridades da sociedade britânica e até que ponto são universalmente
aplicáveis?” (Karabel, Halsey, 1977, p.63).

56 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


particularmente, eles o vêem fixado na obra Da Divisão do trabalho social, ao
contrário deles que descobriram o magnífico, mas esquecido L’evolution [A evo-
lução]. Ainda assim, Bernstein foi responsável pela recuperação dos direitos auto-
rais de Routledge, em poder da Universidade de Chicago desde a década de 40,
e, portanto, por sua tradução e publicação. Com razão, eles censuram Young por
não reconhecer que Durkheim já havia “demonstrado... como os principais pa-
drões de poder e controle penetram o processo de aprendizagem e a estrutura
da educação escolar” (Karabel, Halsey, 1977, p.72) e prescrevem um retorno ao
ritmo grandioso da história, esquecido durante 70 anos, na verdade deslegitimado
“na comunidade de sociológicos pesquisadores altamente especializados e
profissionalizados” (p.74), além de ignorado pelos “apóstolos britânicos de uma
‘nova’ sociologia da educação, ainda aguardando seu encontro com uma ‘aborda-
gem de conflitos’ ” (p.71). A última observação demonstra uma vez mais a falta de
cuidado com que faziam suas críticas, uma vez que os relativistas de 1971 já
haviam considerado o teor neomarxista mais do que suficiente, sendo isso mais
claramente testemunhado pela mudança de produção do grupo da Universidade
Aberta, com o propósito de zombar do liberalismo. Infelizmente, os trechos de
Karabel e Halsey tirados de A Evolução e indicados como a primeira reimpressão
de sua coleção, ficaram tão fora do debate em curso quanto a excelente análise de
Giddens (1972), que eles elogiam no prefácio de sua edição dos escritos de
Durkheim.
A busca de uma prática pedagógica racional nos meados dos anos 70 era
bem menos importante do que a cruzada por práticas liberatórias ou a caça aos
proprietários da gaiola de ferro. O próprio departamento de Bernstein foi trans-
formado em uma série de microclimas7. Ainda me surpreendo pela freqüência
com que encontro antigos alunos do curso de mestrado daquele período que,
por terem tido a liberdade de traçar seu próprio caminho e de escolher entre
vários campos de estudo, homogeneizaram suas próprias experiências na direção
de uma ou outra trajetória intelectual. Os ensinamentos de Bernstein – especial-
mente no nível de mestrado – tornaram-se mais especializados e voltados para
pequenos grupos. Dar aulas sobre seus escritos quase sempre despertava a
hostilidade do seu próprio departamento. Não é de surpreender que seu grupo
de alunos de pesquisa, sempre numeroso e ativo, se tornasse o principal porta-

7. O u células acolchoadas ao sabor das mudanças de humor da vida organizacional.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 57


voz de suas idéias. Ele chegou a orientar as teses de doutorado de mais de 30
estudantes durante o período em que esteve no Instituto. Seu método preferido
para obter engajamento público mais amplo quase sempre evitava o debate dire-
to. O “trabalho” em curso, revisado muitas vezes de forma árdua e freqüente-
mente distribuído alhures, sempre uma elaboração e extensão da teoria dos có-
digos e sempre uma resposta à crítica interpretada de modo que se adequasse à
pergunta, passou a tratar de questões neomarxistas com freqüência cada vez
maior nos anos 70. Para isso, usava o deslocamento sucessivo das condições
aparentes do sistema para a marginália, trazendo-as de volta depois de forma
seletiva; antes da impressão, ele costumava circular o trabalho primeiramente em
forma de manuscrito e, em seguida, compilar com comentários. Enquanto ou-
tros, bem menos renomados do que ele próprio, buscavam e obtinham cargos
de consultoria política junto aos governos, Bernstein cada vez mais se fixava na
necessidade de ter algo a dizer, com aval empírico, sobre a essência do processo
educacional, o que o levava à necessidade absoluta de entrar mais profundamente
na esfera da pedagogia. Isso se tornou cada vez mais inevitável em uma década
marcada pelo fracasso coletivo dos sociólogos da educação de formular algo mais
do que versões mais ou menos cruas da teoria reproducionista ou a pseudo-
emancipação da fenomenologia mal digerida.
Na década passada, a Grã-Bretanha teve o seu próprio periódico especia-
lizado em Sociologia da Educação, sempre sob a responsabilidade editorial de Len
Barton, que também tem tido um papel fundamental na sustentação da única
conferência anual voltada para a área. O British Journal of Sociology of Education
tem contado com o apoio do conselho editorial da grande maioria de “guardiões”
professorais e outros “promovidos” na área, com exceção de Bernstein após os
dois primeiros volumes. O periódico tornou-se internacionalmente conhecido.
Um levantamento completo do seu conteúdo revela poucas citações e um núme-
ro menor ainda de contribuições que não fazem mais do que mencionar Durkheim
ligeira e circunstancialmente. Nos últimos anos, alguns dos próprios alunos de
Bernstein publicaram na revista, embora ele mesmo não o tenha feito. O próprio
Bernstein menciona 15 artigos que empregam a cada vez mais complexa teoria
conceitual (por exemplo, Daniels, 1989; Domingos, 1989; Tyler, 1987). Na
Grã-Bretanha, o número de contextualistas movidos por princípios ideológicos
ultrapassa tranqüilamente o número de pesquisadores. Em anos ainda mais re-
centes, a dupla luta travada entre ser “relevante para as definições políticas” e ser
“o posicionamento perfeito” (ou ambos) produziu pouquíssimos resultados que

58 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


façam justiça à nobre ascendência durkheimiana ou bernsteiniana. Johnson (1991)
elogia o conceito de coerção educacional de Durkheim relativo ao contato direto
das crianças com o “espírito coletivo” como algo útil, adaptado ao nível de educa-
ção da comunidade. Furlong (1991) argumenta que a queda em desgraça da
questão do descontentamento do aluno surgiu precisamente por causa de seus
correlatos teóricos “deturpados” e dos quais preferiram se distanciar aqueles em
busca de “relevância das definições políticas” (p.294). Ele argumenta a favor de
uma linha reta existente na obra de Durkheim, que vai de Regras e suicídio, passa
pela teoria do desvio em geral, até os últimos 25 anos “...durante os quais a
ruptura e a vadiagem são vistas como respostas ‘racionais’ e ‘normais’ às circuns-
tâncias sociais com as quais os jovens têm de chegar a um acordo” (p.294). Ele
também argumenta a favor de uma continuidade essencial por todo esse período,
de Hargreaves, Lacey e Ball sobre as subculturas dos alunos, passando pela rotulação
dos professores (por exemplo, Sharp, Green), pela ruptura e vadiagem em fun-
ção da raça (por exemplo, o próprio Fuller), pela cultura das classes sociais mais
baixas (por exemplo, Willis), pelo gênero (por exemplo, McRobbie e Connell).
Na verdade, sua assertiva inclusiva é que “Apesar de diferenças teóricas importan-
tes... os sociólogos que trabalham nesta área são todos ‘crias’ de Durkheim”
(p.295), embora seu trabalho tenha tido pouco impacto nas definições políticas8.
Para Furlong, a falha reside no unidimensionalismo analítico. O caminho a ser
seguido passa por uma “sociologia da emoção” cujo foco é o “dano oculto”,
localizado estruturalmente de forma adequada. O progresso tem início quando
vemos que a “Estrutura educacional... é usada não apenas para impor determina-
dos tipos de comportamento, como também para construir os jovens de manei-
ras particulares segundo as quais, insistimos, eles passam a ver a si próprios”
(p.298). Existe certamente muito de Kant nessas questões teóricas desejosas de
apreender o problema do descontentamento antes e durante suas manifestações
grupais.
Antes de finalmente centrar a atenção no trabalho atual de Bernstein, va-
mos procurar avaliar o tema recorrente do impacto dessa alegada competição na

8. Pode-se argumentar, naturalmente, que o objetivo das abordagens e estudos é causar


impacto político a curto e longo prazo, de forma positiva e negativa. Nessa área,
nossa exuberante direita tem obtido muitas vantagens em defesa de uma política
educacional anticonvencional com base em fenômenos sociais desagradáveis aos quais
seus descendentes poderiam ter ficado expostos se as coisas tivessem avançado muito
mais ainda.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 59


relevância das definições políticas, necessário para que possamos assumir a culpa
pela falta de embasamento teórico de grande parte de nosso discurso. Tem havi-
do mais turbilhão do que propriamente competição, uma leitura mais relutante
dos imperativos do financiamento em uma agenda nacional altamente ideologiza-
da, típica da Era Thatcher e francamente hostil à sociologia. Existe também uma
insatisfação real e fabricada com o fracasso das abordagens teóricas e empíricas
no sentido de fornecer respostas para suas próprias questões. Aqui e nos Esta-
dos Unidos, elas foram em grande parte moldadas por uma estrutura de classes
sociais (e cada vez mais, de gênero e raça) fundamentada na oportunidade/educa-
bilidade, praticaram a autocensura desde os anos 70 seguindo Coleman e Jenks e
terminaram lançadas ao desespero pela sucessão de teorias reproducionistas que
apareceram em seguida (as de Bourdieu ficariam conhecidas tanto na Grã-Breta-
nha como na França). No âmbito desse debate obsessivo sobre igualitarismo,
atualmente movido em grande parte pelas agendas norte-americanas de avaliação
da eficiência das escolas, não é de surpreender que aqueles admiradores de
respostas tecnológicas tenham se transformado em reformadores da educação.
Isso remete de alguma forma a uma situação em que, tendo-se desistido de
perguntar “o que torna os estudantes capazes?” – ou talvez nunca tendo-se real-
mente colocado essa questão – passa-se a querer saber “o que os torna mais
capazes?” Isso conduz a uma situação em que sentimos a necessidade de denun-
ciar os fatores de classe, machismo, racismo, o Estado, seus especialistas em
educação relativamente autônomos, a cultura etc, por produzir estruturas institu-
cionais e formas de conhecimento que criam e processam o habitus, que assegu-
ra apenas a mobilidade necessária para arejar o sistema. O trabalho atém-se, sem
sutileza, aos efeitos inadequados do sistema e embora saiba que a pedagogia é a
única coisa que importa, ele não conseguiu desvendar seus segredos (Davies,
1992). Fullan (1982) e Chubb e Moe (1990) são os seus novos ícones. Esta-
mos cercados de receitas (privatizar escolas, contratar diretores que atuem como
líderes) sobre as nossas estruturas organizacionais e alguns dos correlatos peda-
gógicos de melhoria do desempenho escolar (programa centrado, clareza da
exposição, questionamento das “ordens superiores”), sem saber por que funcio-
nam ou até que ponto podem transcender o contexto de sua localização inicial,
muitas vezes nebulosa do ponto de vista metodológico.
Geoff Whitty, sucessor de Basil Bernstein na cadeira de sociologia da edu-
cação em Londres, que passou, discretamente e sem dificuldades, de primeiro
crítico em profundidade das novas orientações a analista neomarxista do currículo

60 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


e, em seguida, a pesquisador e teórico das políticas, oferece-nos um texto didá-
tico bastante sintomático em relação ao tema (Whitty, 1992). O autor começa
justapondo os breves relatos de Chubb e Moe (1990) de uma visão idealizada do
sistema educacional norte-americano com o modo como ele realmente funcio-
na – não planejado, tendencioso e culpado pelo centralismo ignorante. Esses as-
pectos representam as características positivas e negativas da educação moderna.
Ele contrasta visões conservadoras e socialistas sobre o indivíduo e a emancipação.

Emile Durkheim (1956) apontou, em pressupostos provocadores e ampla-


mente disseminados sobre a educação, que, “longe de ter como seu único ou
principal objeto o indivíduo e seus interesses, (a educação) é, acima de tudo,
a maneira pela qual a sociedade recria perpetuamente as condições de sua
própria existência”. O principal papel da educação, o de posicionar os sujei-
tos humanos em relação à ordem social dominante, faz dela um importante
local de luta cultural e contestação. Alguns sociólogos exploraram seu papel
essencialmente conservador de reproduzir a cultura e a divisão social do
trabalho, enquanto outros lhe atribuíram uma das principais funções na construção
de uma nova ordem social, por meio de noções de progresso, perfectibilidade
e capacitação 9. (Whitty, 1992, p.269)

Whitty identifica hoje um amplo consenso entre os sociólogos de que, para


compreender a educação escolar, “é preciso explorar cuidadosamente suas espe-
cificidades e não enxergá-la como um mero acessório, ou transmissor, das su-
postas necessidades da economia”, apesar do discurso da política dominante
(p.304). É como engolir a seco para ter a certeza de que o pesadelo não se
tornou realidade. Etnógrafos e neo-reproducionistas uni-vos – vocês não têm
nada a ganhar, exceto uma base comum.
Será que eles conseguiriam reconhecer o valor de um modelo durkheimiano
ali, caso encontrassem algum? O relacionamento com Basil Bernstein sugere que
eles continuam a ver uma figura que, presumivelmente, só se preocupa com as
formas/meios pedagógicos, o que para eles denota uma falta de preocupação
com o significado. Talvez a precondição subjacente a esse julgamento seja uma
antiga irritação (ou para ser mais preciso, uma gro sseria) provocada pela crença

9. Isso simplesmente demarca o território – eu Whitty, você Durkheim – ou oferece justa-


posição/incorporação conceitual? “Analisando o essencialmente conservador” vis-a-vis
“designando... uma nova ordem social” lembra um pouco os bandidos e os mocinhos.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 61


de que ele não se importa com a classe. “Para ele, ‘o sistema de classes’ é uma
relação durkheimiana não antagonística, a expressão – uma vez mais – da ‘divisão
do trabalho’ estruturada, e não uma relação caracte rizada pela desigualdade e
coerção” (Torode, 1986, p.452). Tendo esclarecido que “não é pecado falar
sobre classes de crianças (de pessoas) destituídas de um modo de expressão”,
ele prossegue e põe tudo a perder ao usar a palavra “restrito” (Steedman, 1986,
p.458). Se esses tipos de boatos não tivessem se repetido com tanta freqüência,
poder-se-ia simplesmente deixar que seus perpetradore s continuassem a exibir
os indicadores de solidariedade mútua que desejassem. Mas esses rumores são,
na verdade, projeções imperdoáveis de uma visão tacanha ou insatisfação profis-
sional sobre uma obra que é tão complexa, radical e cuidadosa, embora sua
realização possa deixar a desejar. A própria visão de Bernstein de um clube que
não o perdoa por não fazer parte dele é indicada em seu pleito de que ele

...uniu aquilo que não se podia unir – a análise durkheimiana da solidariedade


mecânica e orgânica de funções ocupacionais homogêneas, não-especializadas
de um lado e funções especializadas interdependentes, de outro lado, em
relações de poder diferencial. Dessa forma, diferentes posições de poder e
especialização criaram diferentes modalidades de comunicação valorizadas
de forma diferente pela escola e com diferente eficácia no seu interior, em
razão dos valores, práticas e relações da escola co m suas diferentes comuni-
dades. (1992, p.1-2)

Em resumo, desde os meados da década de 50, o interesse de Bernstein


centrou-se no estudo de sistemas simbólicos que funcionam como transmisso-
res pedagógicos formais e informais. Originalmente, o conceito de código referia-
se a um princípio que regulava o processo de socialização em culturas com clas-
ses especializadas.
O s códigos traduziam-se em formas especializadas de comunicação de
diferentes modos de solidariedade social, originando-se nas relações de poder da
divisão do trabalho e na relação social de produção. Nesse trabalho inicial, era
possível ver códigos elaborados e códigos restritos como os processos durkheimianos
de controle que transmitiam as estruturas de poder de Marx. No desenvolvimen-
to da teoria, os códigos restritos ficaram para trás e Bernstein focalizou quase
somente os códigos elaborados.
A formulação original permitia uma conceituação dos tipos de famílias como
posicionais e pessoais, que exerciam diferentes formas de controle social e,
assim, transmitiam diferentes modos de elaboração e restrição.

62 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Na década de 70, isso foi substituído por conceitos mais sólidos que per-
mitiam que a teoria tanto distinguisse poder de controle, quanto mostrasse de
que maneira específica uma distribuição de poder e princípios de controle regula-
vam a estrutura dos discursos, formas de sua transmissão/aquisição e seus con-
textos organizadores. As distribuições de poder eram vistas em termos dos limi-
tes que legitimavam e mantinham, enquanto os princípios de controle eram vistos
como geradores de diferentes formas de comunicação que tanto transmitiam
relações de limites quanto serviam como possível origem de sua mudança. As
formas de distribuição de poder deram origem a formas de divisão do trabalho
em categorias (de agentes, discursos, práticas, contextos) e, assim, a princípios
classificatórios. As formas de controle resultaram em diferentes modos de comu-
nicação pedagógica, entre e dentro de conjuntos de transmissores-adquirentes.
Esses modos de comunicação foram conceituados como estrutura, que foi ana-
lisada em função da influência que exerce sobre a seleção, seqüência, ritmo e
critérios de transmissão. A classificação e o enquadramento podiam variar de
forma independente e produzir diferentes modalidade s de códigos elaborados
institucionalizados em educação. As diferentes modalidades eram vistas como
representações de diferentes posições ideológicas dentro da regulação da educa-
ção, pelo Estado, e representações de diferentes ideologias de controle patroci-
nadas por diferentes frações de classe. O desenvolvimento do conceito de códi-
go permitia a movimentação de macroestruturas para microcontextos, apontando
para arenas ideológicas de apropriação, patrocínio e criação, indicando a base
social da aquisição diferencial. O desenvolvimento do conceito de código preser-
vava tanto suas origens durkheimianas quanto sua função enquanto realização da
fração e relação de classes.
Depois de 1980, o enfoque de Bernstein passou da análise das modalida-
des de códigos como práticas pedagógicas especializadas (visíveis e invisíveis) para
a análise do discurso pedagógico em si. Bernstein argumentava que aquilo que
tornava possível a comunicação pedagógica, formal ou informal, não havia sido
submetido à análise sociológica desde a época de Durkheim. As raízes da análise
desenvolvida por Bernstein foram diretamente extraídas de sua leitura de A Evo-
lução. Existem também claros sinais da influência de Foucault, embora ela seja
muito menor do que a que Atkinson (1985) identifica.
Bernstein diferenciou aquilo que ele denomina dispositivo pedagógico, uma
condição de qualquer discurso pedagógico, das formas da realização do dispositi-
vo enquanto discurso, prática ou forma de comunicação pedagógica especializada.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 63


Essa distinção entre dispositivo e realização guarda alguma relação com a distinção
entre langue et parole exceto que, nos termos de Bernstein, o dispositivo, em-
bora relativamente estável, é ainda assim ideológico. Basicamente, o dispositivo
pedagógico é uma gramática composta de três regras hierarquicamente ordena-
das – distributiva, de recontextualização e de avaliação (criterial). As regras distributivas
regulam a distribuição de acesso aos locais públicos onde o impensável pode ser
pensado e onde o pensável só pode ser pensado. As regras de recontextualiza-
ção regulam o movimento ideológico dos campos da produção discursiva (inte-
lectual, de ofícios, expressiva) para criações especializadas, com sua própria or-
dem interna como discursos pedagógicos. As regras de avaliação regulam as práticas
pedagógicas específicas em contextos pedagógicos específicos. Nos termos de
Bernstein, o dispositivo pedagógico cria um regulador simbólico da consciência. A
questão de quem é o regulador de qual consciência é dada por seus modelos
elaborados das formas de realização do dispositivo.
Essa análise deixa bastante evidente que, andando passo a passo com Durkheim,
Bernstein localiza o dispositivo pedagógico, inicialmente um produto do sistema
religioso, como sendo o meio pelo qual esses sistemas criam as categorias de
pensamento, sentimento e comprometimento legítimos para com as relações
sociais de ordem e identidade e as formas pelas quais elas são transmitidas.
Assim, com a análise do discurso pedagógico, Bernstein retorna ao ponto do qual
acredita nunca ter se afastado, As Formas elementares da vida religiosa (1915) –
uma obra que, para seu próprio assombro, não é mencionada em seu Classe,
códigos e controle : a estruturação do discurso pedagógico, v.4 (1990).
Ao apresentar essa revisão detalhada da evolução do trabalho de Bernstein,
minha intenção era sugerir tanto seu envolvimento contínuo com Durkheim quanto
a incorporação de inegáveis características de idéias weberianas, interacionista-
simbólicas e neomarxistas. Neste volume, Bernstein examina de que forma seu
trabalho foi posicionado. “Trata-se da conexão de Durkheim com o estruturalis-
mo, particularmente as formas do estruturalismo originadas na lingüística [Saussure]
que tiveram, creio eu, a mais forte influência sobre a forma que a teorização
assumiu”. Ele continua dizendo: “Não tenho certeza se essa identificação com o
estruturalismo não exclui um pouco as outras influências”. Sem dúvida, Shilling
(1992) considera On pedagogic discourse [Sobre o discurso pedagógico] (Bernstein,
1986) como uma obra que antecipa a análise pós-estruturalista da educação.
Talvez seja menos uma questão de “fidelidade a uma abordagem e mais uma
dedicação a um problema” (Bernstein, 1972).

64 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Por fim, passarei para a discussão da pesquisa empírica baseada nos mode-
los de Bernstein, que ele reuniu em uma coleção provisoriamente denominada
volume 5. Nesse primeiro trabalho do volume 5 (1992), sobre o qual pretendo
me concentrar, Bernstein tenta detalhar a relação entre a sua “linguagem concei-
tual, princípios de descrição e pesquisa empírica” (p.9), principalmente o conjunto
considerável de novos trabalhos realizados por seus alunos. Seu interesse é,
principalmente, explicar os critérios internos que sua teoria e os modelos que ela
gera devem, após 35 anos de pesquisa, tentar satisfazer. Esses critérios focalizam
a necessidade de a teoria ser realizável entre os diversos níveis, aplicar-se ao
desenvolvimento de relações interagentes e estruturais capazes de distinguir em-
piricamente variação e mudança observadas em agências e campos, bem como a
forma sob a qual elas aparecem. Deve fornecer regras de reconhecimento e
descrição empíricos e “os contextos cruciais para sua análise e mudança... Em
outras palavras, a teoria precisa determinar aquilo que deve ser pesquisado, de
que forma deve ser pesquisado: como seus dados devem ser pesquisados e
descritos” (p.5) e deve ser capaz de descrever similaridades e diferenças. Essen-
cialmente, a teoria precisa explicar “como poder e controle se transformam em
princípios de comunicação que se tornaram (bem-sucedidos ou não) seus men-
sageiros ou transmissores” (p.6), inclusive sua construção, transmissão e aquisi-
ção sociais, bem como suas bases institucionais e de que forma se dão seus
desdobramentos. A própria pesquisa “foi uma jornada (muitas vezes bastante
acidentada) para dentro da consciência dos critério s enquanto reguladores do
esforço da pesquisa” (p.7). Externamente, conforme ele reconhece, a teoria é
denominada “estruturalista com fortes raízes durkhe imianas” e avaliada em ter-
mos da imagem do social que ela presumivelmente projeta. Ele deduz que uma
classificação tão direta assim pode não ser admissível.

...ambigüidade que repousa sobre o âmago do social... é realizada no concei-


to de código, que, ao mesmo tempo que transmite princípios de ordenamen-
to e suas respectivas práticas, necessariamente abre espaço para a possibili-
dade de sua mudança... o dispositivo pedagógico... cria uma arena de conflito
sobre sua propriedade e monopólio. (p.8)

O padrão da pesquisa tem sido o mesmo durante 35 anos. “A teoria, por


mais primitiva que seja, sempre precedeu a pesquisa” (p.9) e teve início com as
modalidades de controle dos sistemas familiares. Bernstein ilustra o movimento a
partir do primitivo, passando por princípios de descrição, para um modelo formal

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 65


em relação a seus estudos sobre família, realizados durante os anos 60 e 70. A
análise da escola, em termos de envolvimento do aluno, teve início no mesmo
período e serviu de base para o estudo de King sobre a escola (1964). Aspectos
instrumentais e expressivos do envolvimento do aluno foram vinculados a estru-
turas escolares estratificadas e diferenciadas. A leitura de Mary Douglas (1966)
levou Bernstein a identificá-las respectivamente com o englobando princípios mecânicos
e orgânicos de integração com critérios explícitos para a descrição de escolas
abertas e fechadas. Mais tarde, King explorou e considerou tais achados insufi-
cientes, embora as técnicas estatísticas das quais se utilizou não fossem totalmen-
te confiáveis10. Bernstein reconhece que, embora essas teorias iniciais fossem
muito limitadas, são importantes pois ilustram como a linguagem conceitual con-
segue gerar sólidos princípios de descrição. Do ponto de vista conceitual, era
necessário uma linguagem para escrever códigos pedagógicos, para distinguir en-
tre modalidades de códigos elaborados, no nível micro da prática. “De Durkheim,
adotei a classificação e dos primeiros interacionistas simbólicos, tomei o conceito
de estrutura, embora tenha-o definido de forma diferente” (p.13). Esses concei-
tos garantiram a continuidade do trabalho sociolingüístico centrado na família,
tendo este e o trabalho sobre a escola versado fundamentalmente sobre a divisão
social do trabalho e as formas de comunicação. O s códigos pedagógicos das
famílias e escolas a partir de agora já podiam ser relatados e pesquisados por
Neves (Morais, Fontinhas, Neves, 1991), que identificou, descreveu e avaliou os
resultados dos códigos elaborados de escolas e mostrou como é possível elabo-
rar códigos pedagógicos mais eficazes, que podem ser adquiridos por crianças de
diversas origens sociais. Morais, Fontinhas e Neves (1991) continuaram a fazer
isso. Elas criaram três práticas pedagógicas com variações da classificação interna
e externa e pontos fortes de enquadramento. Durante dois anos, um professor
adotou modelos detalhados para o ensino de ciência segundo essas práticas.
Esses modelos foram usados também como modalidades diferenciadoras em
quatro classes paralelas com antecedentes sociais/raciais variados, códigos peda-
gógicos de família conhecidos e sistemas piagetianos de classificação de raciocí-
nio, para crianças de 11 a 13 anos de idade.
“Código de família”, antecedentes, desenvolvimento do aluno e modalida-
de do código realizado na prática pedagógica passaram a ser então relacionados
com desempenho e conduta. O trabalho de Pedro (1981) esclareceu, por meio

10. Ele recomenda a discussão sobre este tema em Tyler (1988).

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de observação em sala de aula de escolas com alunos provenientes de diferentes
contextos sociais, os controles sobre dois discursos (instrucional e regulador)
incrustados no enquadramento: o primeiro transmitindo habilidades específicas e
sua relação; o segundo, as regras da ordem social e especificando como essas
regras poderiam ser relacionadas aos níveis da esco la, sala de aula e aluno, bem
como externamente.
A pesquisa empreendida por Daniels (1989) esclareceu o antigo mistério
dos regulamentos básicos da aquisição de código, necessários para se compreen-
der “como os códigos influenciam a consciência e como a ideologia é transmitida
pelo uso dos códigos” (p.28-29). As diferentes experiências de crianças no início
da vida escolar, à medida que vão tomando consciência do que se espera delas,
forneceram uma primeira idéia da assimilação/cumprimento de regras, processo
em que “o poder simbólico da família de classe média... se traduz na capacidade
de reconhecimento de regras pela criança,com seus resultados favoráveis”. O
princípio de classificação das regras de reconhecimento “é estabelecido por rela-
ções de poder e transmite relações de poder, de forma que as regras de reconhe-
cimento conferem poder relativo àquelas que não as têm” (p.30). Porém, as
regras de construção de texto também são necessárias. Trabalhos anteriores
haviam esclarecido “o reconhecimento contextual específico das regras de reali-
zação” do adquirente e o trabalho de Daniels pretendia uma vez mais extraí-las,
bem como as regras de reconhecimento, de escolas com diferentes sistemas de
classificação interna e externa e pontos fortes do enquadramento. Em cada esco-
la, crianças que tinham aulas de arte e ciências, eram solicitadas a falar sobre uma
série de figuras; em seguida, suas respostas eram mostradas a outras crianças e
professores a quem se perguntava se os comentários se referiam a arte ou ciên-
cia. Dessa forma, “possuir regras de reconhecimento , ou possuir regras de rea-
lização, ou ambas as coisas” pode estar relacionado “aos códigos da prática peda-
gógica de cada classe... Todas as crianças tinham as regras de reconhecimento para
poder diferenciar as afirmações científicas das afirmações artísticas” (p.34), su-
postamente adquiridas fora da escola, uma vez que as regras de realização depen-
dem da prática pedagógica. O s textos produzidos por crianças das classes mais
precariamente classificadas e estruturadas não puderam ser reconhecidos como
arte ou ciência por crianças de outras salas, ao passo que a prática forte produzia
textos que eram reconhecidos em outras escolas, apesar do fato de em nenhuma
delas os professores terem ensinado como produzir o s textos. Tanto o trabalho
de Daniels quanto o de Morais suscitaram questões básicas sobre como funda-

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mentalmente nós organizamos a experiência e como a prática pedagógica pode
ser planejada para influenciar as regras de realização e de reconhecimento 11.
Um trabalho sobre os “patrocinadores e moldadores do discurso pedagó-
gico” (p.59), em oposição ao exposto sobre transmissão (aquisição), foi acres-
centado à distinção Pedagogias visíveis/ invisíveis, em que “poder-se-ia dizer que
agentes de controle simbólico conseguiriam controlar os códigos discursivos, ao

11. O lugar das regras na teorização de Bernstein é a questão básica levantada na obra-
prima sobre reconhecimento equivocado de Harker e May (1993). O s autores para-
fraseiam Snook (1990), concordando com ele, ao dizer que, no final “Não existem
regras, sociais ou lingüísticas, que sejam separadas de um grupo de pessoas com
planos e projetos” (p.176). Eles estão com Bourdieu, a propósito do que diz este autor
sobre agentes que têm uma queda pelo jogo em um mundo em que as regras “reco-
nhecem que existe um interesse em tocar a linha que pode ser a base de estratégias
destinadas a regularizar a situação do agente, colocando-o na posição correta de
vencer o grupo em seu próprio jogo, ao apresentar seus (sic ) interesses no disfarce
irreconhecível dos valores aprovados pelo grupo” (p.176, citando Bourdieu, 1990,
p. 109). As regras/códigos de Bernstein, vinculados ao seu projeto essencialmente
estruturalista, são rígidos, resultantes de estudos profundos, e é de se duvidar que
tragam consigo as possibilidades de contradição, desafio e mudança. Eles desejam
separar o flexível Bourdieu do rígido Bernstein com base numa suposta leitura comple-
ta do primeiro, mas, evidentemente, à custa de uma falta de leitura similar do segun-
do. Portanto, é fundamental compreender de que forma Bernstein utiliza as regras e
em relação a que regulação e em que condições. Não é uma questão de substituir as
coisas da lógica pela lógica das coisas. As regras de Bernstein são os meios aparente-
mente usados pelos grupos para determinar o jogo pe dagógico. Q uando Bernstein
escreve que vai enfocar o mensageiro (sua lógica social ), isso não significa que o
mensageiro esteja desvinculado do social, mas, sim, que ele busca focalizar o papel
fundamental do social em moldar e estabilizar o jogo para mostrar para onde as forças
da mudança devem ser direcionadas para que o jogo passe a ser outro. Assim, diferen-
tes regras estabelecem diferentes jogos, satisfazendo e legitimando diferentes interes-
ses, e, por sua vez, são estabelecidos por ocupantes de diferentes posições: regras
diferentes, jogos diferentes, estratégias diferente s, tendências diferentes. A pedagogia é
um projeto no tempo e no espaço, realizado por meio de diferentes racionalidades. O
contexto em que esse projeto é realizado, a prática pedagógica de acordo com Bernstein,
é regulada de acordo com o local de controle sobre o jogo pelos participantes; isto é,
por meio do enquadramento. Diferentes enquadramentos estabelecem diferentes are-
nas de prática, atuam seletivamente sobre estratégias de tocar a linha e sentir a forma.
A visão do próprio Bernstein sobre a relação entre código e habitus enxerga o código
como o fornecedor do princípio da especialização pe dagógica do habitus, porém dife-
rente do conceito de habitusem um aspecto importante – “princípios tácitos da desordenação
daquela ordem” estão incrustados no processo de aquisição dos códigos.Talvez devês-
semos prestar mais atenção no significado de uma teoria, na forma como sua lingua-
gem opera e no seu efetivo poder de descrição, em vez de focalizarmos uma análise
que estraga sua identidade à procura de uma identidade própria. Precisamos realmente
abandonar a mágica da posição perfeita, a busca pelo Santo Gral epistemológico.

68 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


passo que os agentes da produção (circulação e troca) dominariam os códigos da
produção”, com a localização de campo regulando “formas de consciência e ideo-
logia dentro da classe média”(p.40-41). Jenkins analisou o conteúdo de A Nova
Era, periódico do movimento, fundamental para a disseminação da educação gra-
dual renovada, identificando autores a partir do campo de controle simbólico
como um todo, defendendo uniformemente a “invisibilidade”. Holland (1981)
havia estudado anteriormente a percepção de adolescentes sobre as divisões
doméstica e industrial do trabalho, mostrando que pais simbólicos criam adoles-
centes com classificações doméstico-econômicas mais fracas do que os pais “eco-
nômicos”, embora meninas “econômicas” fossem relativamente fracas.
Na área final da construção do discurso pedagógico, foram distinguidos
três campos, cada um deles com seus agentes especializados, às vezes competi-
tivos: produção (construção de novo conhecimento), recontextualização (onde o
novo conhecimento é apropriado e transformado, des e relocalizado) e reprodu-
ção (prática pedagógica nas escolas), com intervenção cada vez maior do Estado
em cada um deles, durante os últimos 25 anos. Ao estudar a educação primária na
Colômbia, Diaz (1984) realizou o trabalho empírico que esclareceu a natureza
do dispositivo pedagógico, seus discursos e práticas (a transmissão e o que é
transmitido). O dispositivo não é simplesmente discurso-enquanto-mensagem,
mas, sim, uma forma simbólica de controle. Tem regras sobre o que é pensável,
o o quê e o como do discurso, o conhecimento oficial; que grupos devem ter
acesso a ele e que grupos devem ter acesso ao novo conhecimento, o impensável;
e os critérios da prática, transmissão e aquisição (regras de recontextualização,
distributivas e de avaliação, respectivamente). Existe “sempre uma luta entre os
grupos sociais pela propriedade do dispositivo. O s ‘donos’ do dispositivo pos-
suem o meio de perpetuar seu poder através de meios discursivos e estabelecer,
ou tentar estabelecer, suas próprias representações ideológicas”(p.48). Um novo
conhecimento pode ser gerado no campo da produção ou em outros campos
especializados e ser convertido em discurso pedagógico, tanto pelo Estado quan-
to por professores, escritores e editores, sempre que o aspecto instrucional for
dominado pelo aspecto regulador. As relações entre Estado e recontextualizado-
res pedagógicos podem muito bem ser antagonistas. Cox Donoso (1986) foi o
primeiro aluno de Bernstein a usar este modelo e, principalmente, a destacar as
questões das relações entre os campos da produção e do controle simbólico, em
sua complexa análise da educação pública no Chile, focalizando os projetos peda-
gógicos da Democracia Cristã e do Partido da Unidade Popular – PUP –, de

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 69


Allende. De forma bastante simplificada, as raízes do Partido Comunista na pro-
dução e não no controle simbólico, em oposição à determinação do Partido
Socialista, dentro do PUP, de abrandar a classificação do sistema educacional, sem
dúvida contribuiu para colocar a Igreja em oposição fundamental e desencadear a
crise que provocou a queda de Allende. Ainda no Chile, o uso que Swope (1992)
fez do modelo no contexto de grupos comunitários informais, voluntários e vin-
culados à Igreja é interessante pela falta de um campo de recontextualização, para
a criação de textos teológicos a serem usados nesses grupos. Como conseqüên-
cia, os membros elaboraram seu próprio discurso, o que fez com que os objeti-
vos traçados pela igreja católica oficial para aqueles grupos não fossem necessaria-
mente atingidos.
Bernstein (1992) está corretamente determinado a demonstrar, com al-
guns detalhes, de que forma seu trabalho conceitual e o trabalho empírico em-
preendido por ele mesmo, seus pesquisadores e alunos (atualmente colegas)
sempre coexistiram em estreito contato. A noção de que suas teorias são incapa-
zes de, ou têm evitado, um encontro empírico, apenas reflete a opinião daqueles
que não conseguem sustentar idéias que se autoproclamam sustentáveis. Bernstein
não se sente à vontade com o rótulo de estruturalista a ele conferido por Atkinson
e outros e, explicitamente, comemora sua adoção da natureza do discurso de
Foucault e do sujeito imaginário de Althusser. Ele pode ser ele mesmo e conside-
rar o projeto como seu. Q uem mais na sociologia moderna tentou ir além dos
segundos que constituem o momento da sala de aula para estruturas de poder
institucional e daí para o societário, de uma forma que não só insiste na consistên-
cia conceitual, como também pensa que não vale a pena tê-la a menos que produ-
za modelos e marcadores empíricos? Vivemos em uma era da sociologia que foi
mais ou menos seduzida pela noção de que deveríamos ser capazes de dizer tudo
(mesmo que seja nada) que precisa ser dito em poucas palavras ou teoremas. A
seriedade de Bernstein repousa na sua negação dessa noção e na insistência da
falta de significado da teoria sem evidências empíricas e dados sem ordenamento
conceitual. A sociologia da educação no Reino Unido faria bem em assumir essa
injunção como sua.

As tradutoras deste texto são membros da Cooperativa de


Profissionais em Tradução – Unitrad (unitrad@ unitrad.com.br)

70 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


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Recebido em: maio 2003


Aprovado para publicação em: maio 2003

74 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


A PEDAGOGIZAÇÃO DO CONHECIMENTO:
ESTUDOS SOBRE RECONTEXTUALIZAÇÃO
BASIL BERNSTEIN *
Instituto de Educação da Universidade de Londres

Tradução: Maria de Lourdes Soares e Vera Luiza Visockis Macedo

RESUMO

Este artigo busca demonstrar como o conceito de competência – que surgiu em dife-
rentes campos das ciências sociais – entrou na área da educação, em estreita relação
com o aparecimento das pedagogias invisíveis. Contrapondo-se a ele, definiu-se o
conceito de desempenho, articulado agora com as pedagogias visíveis. Analisam-se as
diferenças existentes na utilização desses conceitos, decorrentes do fato de que dife-
rentes fundamentos os alicerçam. Mostra-se, também, a relação entre as diversas for-
mas de desempenho e competência nos contextos educacionais mais amplos (que
abrangem processos escolares e não-escolares) e a construção de identidades, indican-
do como este último processo, tido como dinâmico, é perpassado por resistências e
oposições. Por último, procura-se identificar, na fase atual do capitalismo, o processo de
construção de identidades privilegiado pela educação escolar, bem como seus conflitos
com outros processos análogos que se dão fora da escola. A presença desses conflitos
abre, no entanto, a possibilidade de uma reavaliação crítica das instituições escolares e
dos princípios e dos aspectos focalizados em seus discursos.
PEDAGOGIAS– COMPETÊNCIAS– EDUCAÇÃO – EDUCAÇÃO NÃO FORMAL

Este texto foi traduzido da edição em inglês, intitulada Pedagogy, symbolic control and identity :
theory, research, critique, publicada por Taylor & Francis, Londres, em 1996, às páginas 54 a
81, com a permissão da Thomson Publishing Services (UK).
* Falecido em 2000 (N.da E.).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 75-110, novembro/
2003 2003 75
ABSTRACT

PEDAGOGIZING KNOWLEDGE: STUDIESIN RECONTEXTUALIZING. This paper aims to


demonstrate how the concept of competence, which emerges in different social sciences
fields, got into the area of Education. In fact, while the notion of competence is related to
the so-called invisible pedagogies, the one of performance – defined in opposition to it – is
connected to visible pedagogies. It is also examined how both concepts assume various
modalities in face of the central differences that underlie their fundamental bases. It is yet
established a link between how these notions were employed in wider educational relations
(which encompass school and non-school processes) and the process of identities’ construction,
indicating this last one is not only dynamic but also per passed by resistances and oppositions.
Last, there is an attempt to identify, in the actual moment of capitalism, which is the
process of identity construction that is privileged by school education, pointing out how it
conflicts with other analogous processes that take place elsewhere. These problems, however,
permit a critical reappraisal of school institutions, as well as of the principles and aspects
focused on their discourses.
PEDAGOGY– SKILLS– EDUCATION – NON-FORMAL EDUCATION

Títulos merecem ser estudados por eles mesmos, não como meras for-
mas estéticas, mas também como significadores das relações de poder no campo
intelectual. Assim, é bem provável que, na década de 1950, o título deste trabalho
fosse “Conhecimento e socialização: o caso da educação”, com acentuadas impli-
cações estruturais e funcionais. Nos anos 70, um título mais adequado talvez
fosse “Conhecimento e reprodução cultural”, com uma ressonância althusseriana.
Porém, na década de 80, talvez tivéssemos algo como “A construção pedagógica
do sujeito: uma tecnologia”, escolha nitidamente foucaultiana. Hoje, na década de
90, a escolha certamente recairia em “Conhecimentos e subjetividades: uma nar-
rativa pós-moderna”. Meu título, devo confessar, parece situar-se num meio-
termo – talvez uma tentativa de transmitir as ambigüidades epistemológicas con-
temporâneas.

CONHECIMENTO, LOCALIZAÇÃO E AUTORES

Na década de 60, eu diria que ocorreu uma convergência considerável no


campo das ciências sociais e psicológicas, uma convergência que talvez tenha
sido única no que diz respeito à série de disciplinas díspares envolvidas. Essa
convergência incluía disciplinas com epistemologias, métodos de pesquisa e princípios
de descrição radicalmente opostos e merece ser estudada à parte pela sociologia
do conhecimento. O trabalho inicia-se com a análise de uma convergência con-

76 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ceitual dentro dos campos sociopsicológico e lingüístico no início da década de
1990 e prossegue analisando as conseqüências da recontextualização desse
conceito nos campos de recontextualização pedagógica. De dois modelos peda-
gógicos fundamentais surgem uma tipologia complexa de modos pedagógicos e
as identidades que esses modos projetam. A institucionalização desses modos e
sua mudança são investigadas, comparando-se as identidades projetadas pelo
sistema educacional e a formação das novas identidades do que se chama capita-
lismo de transição.
No entanto, a origem dessa convergência não é o objeto deste trabalho,
mas, sim, sua conseqüência pedagogizadora. Nossa análise da lógica social desse
conhecimento pode ser útil para o estudo de suas origens. O conceito de conhe-
cimento que tenho em mente passou por todas as principais ciências sociais de
uma forma ou de outra, trata-se do conceito de compe tência. Na década de
1960 e início da década de 1970, este conceito pode ser encontrado nas áreas
indicadas a seguir, podendo até mesmo ser que o conceito esteja oculto no
modelo dos jogos de linguagem de Wittgenstein.

Lingüística: competência lingüística (Chomsky)


Psicologia: competência cognitiva (Piaget)
Antropologia social: competência cultural (Lévi-Strauss)
Sociologia: competência dos membros (Garfinkle)
(realizações práticas)
Sociolingüística: competência comunicativa (Dell Hymes)

O conceito refere-se aos procedimentos para fazer parte do mundo e


construí-lo. As competências são intrinsecamente criativas e se adquirem tacita-
mente por meio de interações informais. São realizações práticas. A aquisição
desses procedimentos está além da esfera das relações de poder e de seus
posicionamentos diferenciais e desiguais, ainda que a forma que essas realizações
possam assumir não esteja claramente fora das relações de poder. Nessa pers-
pectiva, os procedimentos que constituem uma determinada competência po-
dem ser considerados como sociais: a negociação da ordem social como prática,
estruturação cognitiva, aquisição da linguagem e novas elaborações culturais com
base nas que já existiam. Esses procedimentos não foram legados por qualquer
cultura e, nesse sentido, não pertencem a nenhuma especificamente. Eles podem
repousar sobre uma base biológica, como é o caso em Chomsky, Piaget e Lévi-
Strauss, porém definitivamente não em Garfinkle. No entanto, essa base biológi-
ca não origina atributos fixos e imutáveis, ao contrário, aponta para variedade e

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 77


possibilidades: um biologismo “progressivista”*. Embora não seja especificamente
vinculada ao conceito de competência, tentarei demonstrar mais adiante que essa
base traz consigo um possível antagonismo para comunicação, especificado por
meio de procedimentos explícitos e formais e sua base institucional; uma tendên-
cia a adotar o populismo (Jones, Moore, 1995).

COMPETÊNCIA E SUA LÓGICA SOCIAL

Q uero agora examinar aquilo que poderia ser chamado de lógica social
desse conceito. Por lógica social refiro-me ao modelo implícito do social, o da
comunicação, da interação e do sujeito inerente ao conceito. Eu diria que uma
análise da lógica social de competência revela:

1. anúncio de uma democracia universal de aquisição. Todos os sujeitos


são intrinsecamente competentes e todos possuem procedimentos em
comum. Não existem déficits;
2. que o sujeito é ativo e criativo na construção de um mundo válido de
significados e prática. Aqui há diferenças, porém não déficits. Tomemos
a criatividade na produção da linguagem (Chomsky), a criatividade no
processo de acomodação (Piaget), a bricolagem em Lévi-Strauss, as
realizações práticas de um membro (Garfinkle);
3. ênfase no sujeito capaz de se auto-regular, o que é um desenvolvimento
positivo. A instrução formal não promove outro avanço ou expansão
além desse. O s socializadores oficiais são suspeitos, pois a aquisição
desses procedimentos constitui um ato tácito, invisível, não sujeito à
regulação pública;
4. visão crítica, cética, das relações hierárquicas. Isto é continuação do
ponto (3), pois, de acordo com algumas teorias, a função dos socializadores
não deve ir além da facilitação, acomodação e controle do contexto. As
teorias sobre competência têm um tom emancipatório. Sem dúvida, em
Chomsky e Piaget, a criatividade situa-se fora da cultura. É inerente ao
trabalho mental;

* Progressivismo é expressão da língua inglesa que designa as pedagogias ativas, orienta-


ção que se identifica com a Escola Nova (N. da E.).

78 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


5. mudança da perspectiva temporal para o tempo pre sente. O tempo
apropriado procede do ponto de realização da competência, uma vez
que é esse ponto que revela o passado e prenuncia o futuro.

O bviamente, essas cinco características da lógica social não se aplicam


igualmente a todos os usos do conceito, porém a maioria se aplica. Além disso,
a ênfase sobre uma característica pode ser maior em um uso do que em outro.
Resumindo, em termos gerais, de acordo com as teorias da competência,
existe uma democracia inerente de procedimentos, uma criatividade inerente e
uma auto-regulação virtuosa e inerente. E, se não forem inerentes, os procedi-
mentos advêm do exterior e contribuem para a prática social, com um potencial
criativo.
No entanto, esse idealismo da competência, a celebração do que somos
em comparação com aquilo que nos tornamos, tem seu preço; isto é, o preço de
separar o indivíduo da análise da distribuição de poder dos princípios de controle
que, seletivamente, especializam modos de aquisição e realizações. Assim, o
anúncio da competência desloca-se dessas especializações seletivas e, portanto,
desloca-se das macroimperfeições do microcontexto.
Não é difícil, contudo, ver a repercussão do conceito de competência nas
ideologias liberais, progressivistas e até mesmo radicais do final da década de
1960, bem como de seus patrocinadores, principalmente aqueles que domina-
vam a educação. E é nisso que agora quero me concentrar.
É óbvio que, ao elaborar essas teorias, os teóricos da competência tinham
pouca ou nenhuma preocupação com a educação. Seus textos criavam posições
e se dirigiam, geralmente de forma antagônica, a outros textos do campo intelec-
tual, naquilo que chamamos de campo da produção do discurso. Esses textos
extraíram sua importância da relação com outros textos, por exemplo, Chomsky
e os gramáticos dos constituintes imediatos, Piaget e o behaviorismo, Garfinkle e
o funcionalismo estrutural, Lévi-Strauss e suas estruturas inconscientes contra as
particularidades dos grupos e indivíduos. Embora se ja verdade que Chomsky,
Piaget e Lévi-Strauss operavam com variedades de estruturalismo, certamente
esse não é o caso de Garfinkle e da etnometodologia; tampouco é o caso da
competência comunicativa na sociolingüística de Dell Hymes. O conceito de com-
petência tem, portanto, raízes epistemológicas diferentes, até mesmo opostas. O
que provavelmente havia de comum entre todos os teóricos era uma postura
antipositivista. O que está em questão é como um conceito que surgiu no campo

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 79


intelectual, e cujos autores tinham pouca ou nenhuma relação com a educação,
passou a desempenhar um papel tão central na teoria e prática da educação.
Apontei para a convergência, dentro do campo da produção do discurso
intelectual, das disciplinas das ciências sociais e psicológicas para o conceito de
competência e extraí aquilo que entendo ser a lógica social que subjaz ao concei-
to. Indiquei que essa lógica social era particularmente interessante para os ocu-
pantes de uma posição especializada no campo de recontextualização pedagógica.
De fato, a lógica social interessava aos membros dominantes do campo oficial de
recontextualização (Plowden Report, 1969). No final da década de 1960, a lógi-
ca social da competência predominava tanto no campo de recontextualização
pedagógica quanto no campo oficial de recontextualização pedagógica, o que era
uma convergência incomum1.
Percebe-se nitidamente que nem todas as disciplinas pedagógicas foram
influenciadas pelo mesmo conceito de competência. Piaget foi mais importante
para a psicologia educacional e para a educação primária2; Chomsky, mais relevan-
te para a psicologia e para a linguagem; etnometodologia e competência comuni-

1. Um campo pedagógico de recontextualização é composto de posições (opostas e com-


plementares), construindo uma arena de conflito e luta por controle. Qualquer posição
pode ser examinada em três níveis analiticamente distintos: autor, ator e identidade. O
autor refere-se ao discurso autorizado, os atores re ferem-se aos patrocinadores e as
identidades são o resultado de especializações pedagógicas. Uma posição no campo é
uma especialização do discurso, especialização de atores patrocinadores e uma identida-
de especializada, que assume um significado a partir de posições opostas e complemen-
tares. Desse ponto de vista, os campos oficiais de recontextualização são arenas para a
construção, distribuição, reprodução e mudança de identidades pedagógicas. As identida-
des pedagógicas têm uma base social e uma carreira. A base social representa os princí-
pios de ordem social e os desejos institucionalizados pelo Estado em seu sistema educa-
cional. A carreira é moral, instruída e localizada. Uma identidade pedagógica, então, é a
fixação de uma carreira em uma base social. As perguntas passam a ser: de quem é a base
social, que carreiras e para quem?
2. Ressalte-se observar que no final dos anos 80 e mais ainda nos anos 90, verificou-se,
como já observamos, uma redução do predomínio de Piaget no campo de recontex-
tualização pedagógica – CRP – depois da mudança oficial para modos de desempenho.
Entretanto, na mesma época apareceu no CRP um novo autor cercado de antigos pa-
trocinadores: Vygotsky e o vigotskysmo ou pós-vigotskysmo. O vigotskysmo pode
ser visto como salvação da posição liberal/progressivista e permitiu a retenção de pa-
trocinadores piagetianos anteriores na nova cultura de desempenho. (Observe-se a mu-
dança feita por Bruner de Piaget para Vygotsky.) O vigotskysmo (isto é, a recontextua-
lização de Vygotsky pelos norte-americanos; Wertsch, 1985, 1985a, possibilitou a introdução
de uma base social para as teorias de desenvolvimento pelo papel da linguagem, salien-
tando a atividade do aprendiz na relação pedagógica. Foi, assim, dada a ênfase à

80 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


cativa para a sociologia da educação britânica; a competência comunicativa de
Labov e Chomsky para os estudos de linguagem. Na verdade, no último caso,
Halliday foi convocado e sua teoria, recontextualizada para fornecer um conceito
de competência contextual ou competência genérica.

MODELOSPEDAGÓGICOS: COMPETÊNCIA E DESEMPENHO

Quero agora mostrar como a “competência” recontextualizada criou uma


prática pedagógica específica, basicamente na pré-escola e na escola primária. Para
isso, vou criar dois modelos comparativos de prática e contexto pedagógicos.
Compararei um modelo de competência com um modelo de desempenho (ver
Quadro 1). Resumidamente, um modelo de desempenho de prática e contexto
pedagógicos coloca a ênfase na produção do adquirente, um texto específico que
o adquirente deve elaborar, e nas habilidades especializadas e necessárias para a
produção desse texto ou produto específico.

QUADRO 1
CON HECIMEN TO RECON TEX TUALIZADO

Mo de lo s de co mpe tê ncia Mo de lo s de de se mpe nho


1. Categorias:
espaço
tempo fracamente classificado fortemente classificado
discurso
2. O rientação da avaliação presenças ausências
3. Controle implícito explícito
4. Texto pedagógico adquirente desempenho
5. Autonomia elevada baixa/elevada
6. Economia custo elevado baixo custo

Discutirei esses modelos com referência às características que ambos têm


em comum:

instrução, em vez de se acentuar a importância da maturação, ênfase aos conteúdos


pedagógicos em um contexto no qual o “pedagogizado” é um parceiro ativo e no qual a
aprendizagem aparece como resultado dessa relação. Vygotsky poderia ser integrado a
Bakhtin para formar, mais uma vez, uma base de “empoderamento” (Daniels, 1994) da
posição liberal/progressivista que sobreviveu, na nova cultura de desempenho, em razão
da adoção do vigotskysmo.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 81


1. categorias de tempo, espaço e discurso;
2. orientação pedagógica para avaliação;
3. controle pedagógico;
4. texto pedagógico;
5. autonomia pedagógica;
6. economia pedagógica.

1. Discurso
Modelos de competência
O discurso pedagógico emerge na forma de projetos, temas, diversidade de
experiências, uma base de grupo em que os adquirentes aparentemente têm con-
trole significador sobre a seleção, seqüência e ritmo. As regras de reconhecimento
e elaboração de textos legítimos estão implícitas. A ênfase recai na concretização
de competências que os adquirentes já têm (ou considera-se que tenham). A
estratificação desloca as diferenças entre os adquirentes: a classificação é fraca.

Modelos de desempenho
O discurso pedagógico aqui provém da especialização dos sujeitos, habilida-
des, procedimentos que são nitidamente marcados com respeito à forma e fun-
ção. As regras de reconhecimento e elaboração de textos legítimos são explícitas.
Os adquirentes têm relativamente menos controle sobre a seleção, seqüência e
ritmo. São atribuídas notas aos textos dos adquirentes (desempenhos) e a estratificação
desloca as diferenças entre os adquirentes. As classificações são fortes.

Espaço
Modelos de competência
Existem poucos espaços pedagógicos especialmente definidos, embora os
locais facilitadores (por exemplo, um tanque de areia) possam ser claramente
determinados. Os adquirentes têm controle considerável sobre a construção de
espaços como locais pedagógicos e a circulação é facilitada pela falta de limites
regulatórios que restrinjam o acesso e a movimentação. A classificação é fraca.

Modelos de desempenho
O espaço e as práticas pedagógicas específicas são nitidamente marcadas e
explicitamente reguladas. Os interstícios para que os adquirentes construam seu

82 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


próprio espaço pedagógico são restritos. Os limites regulatórios que restringem
o acesso e distribuem os movimentos são explícitos e bem demarcados. A clas-
sificação é forte.

Tempo
Modelos de competência
Esses modelos selecionam o tempo presente como a modalidade tempo-
ral. O tempo não é explícita ou minuciosamente pontuado como marcador de
diferentes atividades: como conseqüência, a pontuação do tempo não constrói
um futuro. Por isso, o tempo presente é enfatizado. Além disso, o seqüenciamento
fraco e implícito das diferentes atividades (sem uma sucessão aparente) combina-
se com o ritmo fraco para enfatizar o tempo presente. Visto que a ênfase recai
naquilo que cada adquirente está revelando em um momento particular (que só o
professor sabe) e que isto é o significador daquilo que o professor deveria tornar
disponível, então a dimensão do tempo da prática pedagógica é o tempo presente
da perspectiva do adquirente.

2. Avaliação
Modelos de competência
Aqui, a ênfase é dada naquilo que está presente no produto do adquirente.
Tomemos como exemplo uma classe na qual um adquirente desenhou uma
imagem. Provavelmente o professor dirá “Que desenho encantador, fale-me so-
bre ele”. O s critérios de avaliação do discurso instrucional provavelmente são
implícitos e difusos. No entanto, os critérios do discurso regulador (critérios de
conduta, atitudes e relação) provavelmente são mais explícitos. Ver a seguir “con-
trole” para posterior análise.

Modelos de desempenho
A ênfase aqui está naquilo que está faltando no produto. Vamos considerar
uma classe na qual o adquirente terminou de pintar uma casa. Provavelmente o
professor dirá “Q ue casa graciosa, mas onde está a chaminé?” O u, se o aluno
desenhou uma pessoa, o comentário pode ser “Muito bem, mas seu homem só
tem três dedos!” Se a ênfase estiver naquilo que está ausente no produto do
adquirente, então os critérios serão explícitos e específicos, e o adquirente toma-
rá consciência de como reconhecer e realizar um texto legítimo.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 83


3. Controle
Modelos de competência
Uma vez que o espaço, o tempo e o discurso não originam enquadramentos
e classificações explícitos, essas variáveis não podem constituir nem transmitir
ordens. A falta de enquadramentos e classificações explícitos torna a possibilidade
e o uso do controle posicional uma estratégia de baixa prioridade. Além disso,
esse controle influi sobre o conceito do transmissor, como facilitador e do adquirente,
como auto-regulador. O controle, então, tende a ser inerente às formas persona-
lizadas (que variam de aluno para aluno), que são realizadas em formas de comu-
nicação com enfoque nas intenções, disposições, relações e reflexibilidade do
adquirente. Isso não significa que os modos posicional e imperativo de controle
não ocorrerão, mas, sim, que se trata de modos menos privilegiados.

Modelos de desempenho
O espaço, o tempo e o discurso originam classificações e enquadramentos
explícitos que, embora possam abrir espaços para disputas, constituem e trans-
mitem ordens. Esses enquadramentos e classificações são recursos do controle
posicional que, por sua vez, legitimam os enquadramentos e as classificações. O
próprio modo do discurso instrucional encerra os adquirentes em uma regulação
disciplinadora que confere alta visibilidade a qualquer desvio. A economia dos
modelos de desempenho, determinada por regras explícitas, faz do recurso a
modos de controle pessoal uma opção menos atraente, uma vez que esses
modos muitas vezes impõem comunicação prolongada em base individual. Devo
esclarecer que os adquirentes desenvolvem estratégias para subverter as ordens
tanto no modo de competência como no modo de desempenho, porém as
estratégias tendem a ser mais específicas.

4. Texto pedagógico
Modelos de competência
Aqui o texto não é tanto o produto de um adquirente, pois esse produto
indica algo mais além dele próprio. Revela o desenvolvimento da competência do
adquirente, de modo cognitivo-afetivo ou social, e esses são os enfoques. O
professor opera com uma teoria de leitura do produto que o adquirente lhe
oferece (ou não). Essa teoria de leitura marca a atuação profissional do professor
e constitui recontextualização das ciências sociais e psicológicas, as quais legiti-
mam esse modo pedagógico. Conseqüentemente, o significado dos signos de
um adquirente não está ao alcance do adquirente, apenas do professor.

84 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Modelos de desempenho
Aqui o texto pedagógico é essencialmente o texto que o adquirente pro-
duz, isto é, o texto pedagógico é o desempenho do adquirente. Esse desempe-
nho é expresso por meio de notas. A atuação profissional do professor consiste
em uma prática pedagógica explícita e no sistema de atribuição de notas, que
origina um possível trabalho de correção com uma teoria diagnóstica correspon-
dente, prática e distribuição de responsabilidades. Declarei anteriormente que os
modelos de desempenho relativos à competência enfatizam o futuro. Contudo,
com referência à produção do texto pedagógico, pode-se dizer que os modelos
de desempenho expressam o passado. A prática pedagógica que produz o texto
posiciona o adquirente, invisivelmente, no passado e em seus rituais que produzi-
ram o discurso instrucional. Dessa maneira, nos modelos de desempenho, o
futuro torna-se visível mesmo se o que o construiu foi um passado invisível para
o adquirente. No caso dos modelos de competência, o futuro é que é invisível
para o adquirente (visível apenas para o professor) e o presente é continuamente
visível.

5. Autonomia
Modelos de competência
Esses modelos requerem um campo e um nível de autonomia relativamen-
te amplos, embora os professores de qualquer instituição de ensino provavel-
mente tenham autonomia reduzida para sua prática pedagógica, uma vez que esse
modo requer práticas homogêneas. Embora a construção de um contexto e
prática específicos tenham aspectos em comum, qualquer contexto e prática par-
ticular também dependerão das características particulares dos adquirentes e seus
contextos. Como resultado, cada instituição requer um grau de autonomia para
que isso seja concretizado. Os recursos pedagógicos exigidos pelos modelos de
competência tendem a ser menos predeterminados na forma de livros didáticos
ou rotinas de ensino. Os recursos geralmente são elaborados pelos professores
e, para isso, é preciso ter autonomia. Em relação aos modelos de desempenho,
os modelos de competência não são tão suscetíveis a um exame minucioso e a
uma responsabilização por parte do público, uma vez que é mais difícil avaliar
objetivamente seus produtos. Por fim, os modelos de competência não foram
feitos para futuros especializados e são, portanto, menos dependentes e menos
regulados.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 85


Modelos de desempenho
É mais difícil discutir autonomia com respeito aos modelos de desempe-
nho, uma vez que existem diferenças fundamentais em suas modalidades. Resu-
midamente, é possível distinguir entre os futuros do desempenho que se referem
somente a desempenhos que eu chamarei, preliminarmente, de modalidades
introvertidas (introverted modalities ) e os futuros do desempenho que sejam
dependentes de algum tipo de regulação externa, que eu chamarei inicialmente de
modalidades extrovertidas (extroverted modalities). No caso das modalidades
introvertidas, o futuro refere-se à exploração de um discurso especializado em si
mesmo como atividade autônoma. No caso das modalidades extrovertidas, o
futuro tende a depender de algum tipo de regulação externa, por exemplo, a
economia ou os mercados locais.
No caso das modalidades introvertidas, enquanto o discurso especializado
constrói – isso lhe é autorizado – autonomia, qualquer prática pedagógica particu-
lar e o desempenho do adquirente subordinam-se à regulação externa do currícu-
lo, no que tange à seleção, seqüência, ritmo e critério de transmissão. Pode ser
que, em virtude da forte classificação do discurso, espaço e tempo, a prática
individual de ensino (ao contrário do que acontece nos modelos de competência)
varie dentro dos limites dos desempenhos esperados dos adquirentes.
No caso das modalidades extrovertidas, a autonomia é nitidamente menor
em virtude da regulação externa dos futuros do desempenho. No entanto, aqui é
possível, sob determinadas condições administrativas, que as instituições (ou unidades
organizacionais dentro das instituições) desfrutem de autonomia quanto à manei-
ra como distribuem seus recursos financeiros e discursivos para otimizar seu
nicho de mercado.

6. Economia

Modelos de competência
Os custos de transmissão desses modelos tendem a ser mais elevados do
que os custos dos modelos de desempenho. Os custos incorridos na formação
de professores tendem a ser altos em virtude da base teórica dos modelos de
competência. A seleção de alunos tende a ser mais rígida, uma vez que as qualifi-
cações necessárias sejam talvez mais restritas e tácitas do que no caso dos profes-
sores dos modelos de desempenho. Além disso, existem custos invisíveis refe-
rentes a aspectos necessários para que o modelo de competência seja bem-sucedido
em seus próprios termos. Os custos invisíveis referem-se ao tempo dispendido

86 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


em cada tarefa. Geralmente, o professor tem que elaborar os recursos pedagógi-
cos; a avaliação requer tempo para estabelecer o perfil do adquirente; e, na discus-
são de projetos em grupos, é necessário incluir a participação dos pais; fornecer
feedback sobre o desenvolvimento do adquirente (ou a falta de) é um outro
fator que implica custo. Dentro da instituição, é necessário haver uma ampla
interação entre os professores para fins de planejamento e monitoramento da
prática, uma vez que a estrutura é mais elaborada do que recebida. Só raramente
esses custos invisíveis são explicitamente reconhecidos e incluídos nos orçamen-
tos, porém fazem parte dos compromissos individuais do professor. Essa falta de
reconhecimento pode tornar a prática pedagógica ineficiente em virtude das exi-
gências da prática ou, caso essas exigências estejam preenchidas, a falta de reco-
nhecimento pode originar ineficiência em virtude do cansaço dos professores.

Modelos de desempenho
Os custos de transmissão desses modelos são relativamente menores do
que os custos dos modelos de competência. No caso dos modelos de desempe-
nho, a formação requer uma base teórica muito menos elaborada, de forma que
essa base não exige tanta provisão de pessoal. O caráter explícito da transmissão
faz com que esses modos sejam menos dependentes dos atributos pessoais do
professor, o que significa um número maior de profissionais disponíveis. A res-
ponsabilização é facilitada pela “objetividade” do desempenho e, assim, os resul-
tados podem ser mensurados e otimizados. O s modelos de desempenho po-
dem muito bem recorrer a pacotes e algoritmos para reduzir os custos de formação,
aumentando assim o número de professores disponíveis. Geralmente, os mode-
los de desempenho são mais suscetíveis ao controle externo e seus aspectos
econômicos. Por fim, o planejamento e o monitoramento não geram custos
invisíveis como acontece com os modelos de competência, devido às estruturas
explícitas da transmissão e do seu progresso.
Nenhum dos pontos acima substitui a importância do comprometimento,
motivação e atributos pessoais do professor, porém essas qualidades operam
dentro de modelos particulares.

MODELOS E SEUS MODOS

Eu indiquei que existem modelos de competência e modelos de desempe-


nho, porém até agora forneci somente o modelo geral de cada modalidade. Será

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 87


útil insistir um pouco mais nas diferenças entre esses dois modelos gerais antes
de analisar suas variações.
No caso de modelos de competência, existe um enfoque em procedi-
mentos comuns compartilhados dentro de um grupo. Nos casos por nós analisa-
dos, trata-se de grupos de crianças, mas esses proce dimentos comuns podem
muito bem ser compartilhados com outras categorias, por exemplo, comunida-
des étnicas, grupos de classe social. Dessa perspectiva, os modelos de compe-
tência são prognosticados em relações fundamentais do tipo “similares a”. As
diferenças entre adquirentes não são sujeitas à estratificação, porém podem ser
vistas como contribuições complementares à realização de um potencial em co-
mum. Com base nisso, é possível distinguir três modos distintos de modelos de
competência. Todos os três têm em comum um misto de emancipação e oposi-
ção, mas em graus diferentes e com enfoques diferentes. Farei a distinção entre
esses modos em termos da localização das relações “similares a”.
No primeiro modo (primeiro em termos históricos), as relações “simila-
res a” localizam-se dentro do indivíduo e referem-se aos procedimentos que
todos os indivíduos têm em comum. Esse modo se opunha ao que se considera-
va como formas de autoridade repressiva (geralmente na figura do homem) na
família e na escola, assim como na indústria, e era emancipatório com respeito ao
novo conceito da criança a ser realizado por práticas e controles pedagógicos
apropriados. Esse modo, que legitimava uma nova ciência sobre o desenvolvi-
mento infantil, a profissionalização dos responsáveis pelos cuidados infantis e
carreiras profissionais para mulheres, tinha implicações para os fortes modos
patriarcais da autoridade familiar. Essencial e resumidamente, o enfoque desse
modo era sobre o potencial intra-indivíduos, que poderia ser revelado por meio
da prática e de contextos pedagógicos apropriados. O modo poderia ser chama-
do de liberal/progressivista. Foi desenvolvido, patrocinado e institucionalizado por
aquela fração da nova classe média em ascensão, localizada no campo do controle
simbólico (Bernstein, 1975, 1977, 1990; Jenkins, 1990).
O segundo modo localiza relações “similares a” não dentro do indivíduo,
mas dentro de uma cultura local (de classe, étnica, regional). A referência aqui é
quanto à validade das competências comunicativas intrínsecas a uma cultura local,
geralmente dominada. Esse segundo modo pressupõe uma oposição entre a
prática pedagógica oficial predominante e as práticas e contextos pedagógicos
locais. O segundo modo pressupõe um silenciamento do último pelo primeiro.
Os patrocinadores desse modo mostram, ou tentam mostrar, que um grupo de
competências – científicas, matemáticas, lingüísticas, cognitivas, médicas – é gera-

88 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


do por práticas comunicativas locais, porém estas são ignoradas, não percebidas
ou reprimidas por membros dos campos pedagógicos oficiais. Chamarei esse
modo de populista.
O terceiro modo provém do segundo, pelo fato de localizar a competência
dentro de um grupo ou classe dominada, porém, ao contrário do primeiro, esse
modo não enfoca competências inerentes. Tampouco enfoca procedimentos
intra-indivíduos como faz o primeiro modo. O terceiro modo enfoca as oportu-
nidades interclasses/grupos, materiais e simbólicas, para atenuar seu posiciona-
mento objetivo e dominante. A prática e os contextos pedagógicos criados por
esse modo pressupõem um potencial emancipatório comum a todos os mem-
bros do grupo. Isso pode ser posto em prática por meio de uma investigação,
pelos próprios membros do grupo, daquilo que os torna necessariamente impo-
tentes em circunstâncias de renovação pedagógica. A isso chamarei modo radical
(Paulo Freire é um bom exemplo de criador desse modo). Esse modo é encon-
trado com mais freqüência na educação informal de adultos.
Em termos gerais, todos os três modos de competência enfocam relações
“similares a”, embora essas relações tenham diferentes localizações. Todos os
três enfatizam a diferença e não o déficit. Todos os três se opõem a procedimen-
tos de estratificação, anunciam uma criatividade–emancipação em comum. Todos
os três operam com formas de uma pedagogia invisível (Bernstein, 1975, 1977,
1990). No entanto, dentro do campo de recontextualização pedagógica, esses
modos ocupam posições opostas. O terceiro modo, o modo radical, está ausen-
te do campo oficial de recontextualização – CO R – e sua presença como uma
posição no campo de recontextualização pedagógica – CRP – depende da auto-
nomia desse campo.
Da mesma forma que os diferentes modos de competência podem ser
caracterizados, os diferentes modos de desempenho também podem ser carac-
terizados. Os modos de desempenho diferem uns dos outros de acordo com o
modo de especialização de seus textos. Os modos de desempenho baseiam-se
em diferentes princípios de construção do texto, em diferentes bases de conhe-
cimento e diferentes organizações sociais. Enquanto os modos de competência
baseiam-se em diferentes localizações das relações “similares a”, os modos de
desempenho baseiam-se em relações “diferentes de”. O s modos de competên-
cia geralmente regulam o início da vida escolar dos adquirentes ou seções de
recuperação. Os modos de desempenho são empiricamente normais em todos
os níveis da educação oficial. Dessa perspectiva, os modos de competência po-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 89


dem ser vistos como interrupções ou resistências a essa normalidade ou podem
ser apropriados pela educação oficial para finalidades específicas e locais.
Farei a distinção dos três modos de desempenho de acordo com sua base
de conhecimento, enfoque e organização social.

Singulares

Singulares são estruturas do conhecimento cujos criadores apropriaram


um espaço para dar a si próprios um nome exclusivo, um discurso especializado
separado com seu próprio campo intelectual de textos, práticas, regras de entra-
da, exames, licenças para exercer, outorga de certificações e punições (física,
química, história, economia, psicologia etc.). De modo geral, as disciplinas singu-
lares são narcisistas, orientadas para seu próprio desenvolvimento, protegidas
por limites e hierarquias fortes.

Regiões

As regiões são construídas por meio da recontextualização das disciplinas


singulares em unidades maiores, que operam tanto no campo intelectual das
disciplinas como no campo da prática externa. As regiões são interfaces das disci-
plinas singulares e as tecnologias que elas tornam possíveis. Portanto, engenharia,
medicina, arquitetura são regiões. Regiões contemporâneas seriam ciência cogni-
tiva, administração, análises de negócios, comunicações e mídia. A regionalização
na educação superior tem avançado a passos largos nas novas universidades,
como pode ser comprovado por uma rápida passada de olhos nos prospectos de
cursos oferecidos por essas instituições. Que disciplinas passam a fazer parte de
uma região dependerá do princípio da recontextualização e sua base social. Dessa
forma, as disciplinas singulares que entram na medicina expandiram-se para incluir
a sociologia da medicina. Aregionalização enquanto procedimento discursivo ameaça
as culturas pedagógicas dominadas pelas disciplinas singulares e gera questões
sobre a legitimidade dessas culturas, por exemplo, jornalismo, dança, esporte,
turismo, como estudos universitários. No entanto, as mudanças na reprodução
de disciplinas tradicionais singulares como base do curso para a forma modular
facilitam a regionalização. A regionalização necessariamente enfraquece tanto a
base discursiva autônoma quanto a base política das disciplinas tradicionais singu-
lares e, assim, facilita as mudanças nas estruturas organizacionais das instituições
em direção a um maior controle administrativo central. As regiões têm, talvez,
autonomia sobre seus conteúdos de forma que respondam melhor, a ser mais

90 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


afetadas, pelo mercado que faz uso de seus produtos. A crescente regionalização
do conhecimento é, então, um bom indicador de sua tecnologização, de centra-
lização do controle administrativo e dos conteúdos pedagógicos recontextualizados
de acordo com a regulação externa. Aumentar a regionalização necessária implica
o enfraquecimento da força da classificação dos discursos e de suas identidades
narcisistas e, assim, uma mudança de orientação de identidade em direção a uma
maior dependência externa: uma mudança de identidades introjetadas para identi-
dades projetadas (ver discussão mais adiante).
É interessante notar que a organização do discurso no nível da escola é
firmemente baseada em disciplinas singulares, apesar dos movimentos em dire-
ção à regionalização na educação superior. De fato, a tentativa de introduzir temas
que “cortem o caminho” das disciplinas singulares conforme determinado pela
Education Reform Act 1988 (Lei da Reforma Educacional de 1988) foi ineficiente
(Whitty, Rowe, Aggleton, 1994). Talvez o equivalente da regionalização na educa-
ção superior seja a mudança para habilidades genéricas no nível da escola básica.

Genérico

Esse modo de desempenho é recente e se distingue de outros modos


pelos seguintes aspectos:

1. Localização da recontextualização : os modos genéricos são elabora-


dos e distribuídos fora, e de forma independente, dos campos da re-
contextualização pedagógica. Esses modos originaram-se no Manpower
Services Commission – MSC (1977; 1981) (Comissão dos Serviços
de Mão-de-Obra) e da Training Agency – TA (1989) (Agência de Treina-
mento), sob a égide do Departamento de Emprego. Como apontam
Moore e Hickox (1995), os programas foram desenvolvidos a partir de
um trabalho anterior da MSC/TAcom elementos componentes do emprego
em associação com a Youth Training Scheme – YTS (Esquema de Trei-
namento da Juventude). Esses programas desenvolveram-se de acordo
com uma metodologia especial de “competências” empregada no uso
da análise funcional (Jones, Moore, 1995) pelo National Council for
Vocational Qualifications (Conselho Nacional de Qualificações Vocacionais),
em seus programas-padrão (ver também Hyland, 1994; Eraut, 1994).
2. Enfoque : os modos genéricos são basicamente dirigidos para expe-
riências extra-escolares, trabalho e “vida”.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 91


3.Localização : os modos genéricos são predominantemente, porém não
exclusivamente, encontrados em Further Education – FE [cursos técni-
cos e profissionalizantes]. Jones e Moore (1995) afirmam que:

O impacto da competência [leia-se desempenhos genéricos] sobre o


setor FE, no qual a influência é mais marcante, envolveu uma reestru-
turação importante da cultura profissional, práticas de trabalho, estilo
de administração de faculdade e condições de serviço que subverte-
ram tanto a educação liberal quanto a tradição das profissões técnicas.

4. Reconhecimento inadequado : os modos genéricos são produzidos por


uma análise funcional das características subjacentes necessárias para a
execução de uma habilidade, tarefa, prática ou mesmo uma área de
trabalho. Essas características subjacentes e aparentemente necessárias
são conhecidas como “competências”. Como Jones e Moore (1995)
analisam de maneira convincente, essas características subjacentes e tá-
citas, identificadas como “competências”, ressonâncias apropriadas de
um modelo de oposição, silenciam a base cultural das habilidades, tare-
fas, práticas e áreas de trabalho, originando um incipiente conceito de
capacitação (ver também Whitty, 1991).

MODELOS, OPOSIÇÕESE IDENTIDADES

Agora já posso elaborar o potencial discursivo do campo de recontextuali-


zação que caracteriza o contexto contemporâneo. Atualmente, o tipo de discurso
apropriado depende mais e mais da ideologia dominante no campo oficial de
recontextualização (COR) e da relativa autonomia do campo de recontextualiza-
ção pedagógica (CRP). Essas questões serão discutidas na próxima seção, na qual
examinaremos a mudança inicial dos modos de desempenho para os modos de
competência, bem como a mudança reversa, dos modos de competência para os
modos de desempenho. Aqui, quero examinar as oposições e a construção de
identidades inerentes aos diferentes modelos e modos.
As divisões dentro, e a oposição entre, os modelos de competência e
desempenho criaram três modos de competência: liberal/progressivista, populista
e radical, e três modos de desempenho: disciplinas singulares (o modo especia-
lista), regional e genérico. Os modos de competência são considerados terapêuticos
(porém “capacitadores” por seus patrocinadores), embora os objetivos de cada
modo sejam diferentes, ao passo que os modos de desempenho, pelo menos os

92 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


regionalizados e os genéricos, servem a finalidades econômicas e são considera-
dos instrumentais.
É possível constatar que modos diferentes de ambos os modelos signifi-
cam posições opostas nos campos da recontextualização. No caso dos modelos
de competência, o modo liberal/progressivista e o modo populista são opostos,
pois o último acusa o primeiro de retirar o adquire nte de seu contexto local
cultural. O modo radical se opõe a ambos os modelos, uma vez que eles deixam
de posicionar o discurso pedagógico na contenda política e também de utilizar
esse discurso como meio de mudar a consciência política. No caso dos modos
de desempenho, existe um potencial (que muitas vezes se concretiza) de oposi-
ção entre os modos especialista (disciplinas singulares) e as novas regiões. Estas
são consideradas como categorias mistas suspeitas e que competem pelos par-
cos recursos existentes.
Todos os modos de competência, apesar das oposições, têm em comum
a preocupação com o desenvolvimento (liberal/progressivista), o reconhecimen-
to (populista) e a mudança (radical) da consciência. O s modos de competência
são terapêuticos e diretamente conectados ao controle simbólico. Os modos de
desempenho e principalmente sua mudança estão mais diretamente ligados à
economia, embora tenham nitidamente funções de controle simbólico. No en-
tanto, o quadro é mais complexo para esses modos, como veremos agora.
A evolução de uma série de disciplinas singulares, estruturas de conheci-
mento especializado da divisão do trabalho discursivo, é basicamente um fenô-
meno do século XIX. O desenvolvimento da língua inglesa estava ligado ao de-
senvolvimento do nacionalismo e da posição internacional da Grã-Bretanha ao
final do século XIX. O desenvolvimento da Universidade de Londres, com suas
estruturas de conhecimento especializado em instituições especializadas (escolas
e institutos), estava ligado à administração do império. O desenvolvimento das
ciências sociais e econômicas estava ligado às novas tecnologias do mercado e à
administração de subjetividades.
Os clássicos proporcionaram acesso privilegiado aos níveis administrativos
do serviço civil. As ciências especializadas forneceram a base para as tecnologias
materiais. No entanto, apesar desses vínculos externos, as disciplinas singulares
são como uma moeda de duas faces, de forma que é possível ver somente uma
face por vez. A face sagrada separa-as, legitima sua diversidade e cria identidades
exclusivas sem outras referências além da sua vocação. A face profana aponta
para seus vínculos externos e as lutas internas pelo poder. Do ponto de vista
organizacional e político, as disciplinas singulares elaboram a manutenção de limi-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 93


tes nítidos. Desse ponto de vista, as disciplinas singulares desenvolvem uma nítida
autovedação autônoma e identidades narcisistas. Essas identidades são elabora-
das por procedimentos de introjeção.
As regiões são recontextualizações das disciplinas singulares e sua face
interna está voltada para as disciplinas singulares, enquanto a externa está voltada
para os campos externos da prática. As regiões universitárias “clássicas”, medici-
na, engenharia, arquitetura, refletem essa dupla posição, pois as associações pro-
fissionais determinam os padrões da prática e, muitas vezes, o credenciamento
ou um credenciamento adicional. Se as disciplinas singulares foram a forma modal
da organização discursiva durante os 100 anos entre meados do século XIX e
meados do século XX, é possível que as regiões se tornem a forma modal a
partir do final do século XX. As identidades produzidas pelas novas regiões mais
provavelmente se voltarão para os campos da prática e, assim, suas disputas
tenderão a ser dependentes das necessidades desses campos. Aqui, as identida-
des são o que são e aquilo que se tornarão, como conseqüência da projeção
daquele conhecimento como prática em algum contexto. E o futuro daquele
contexto regulará a identidade. A volatilidade daquele contexto controlará a natu-
reza da regionalização do conhecimento e, assim, a identidade projetada. Se os
procedimentos da introjeção elaboram as identidades produzidas pelas disciplinas
singulares, então os procedimentos da projeção elaboram as identidades produ-
zidas pela nova regionalização do conhecimento.
O terceiro modo de desempenho, genérico, é complexo. Compreende as
características fundamentais de todos os modos de competência, isto é, as rela-
ções “similares a”. No entanto, o que é “similar a” no caso dos modos de compe-
tência é uma sensibilidade comum à humanidade (modo liberal/progressivista),
uma cultura local em comum (modo populista), uma posição e oposição em co-
mum (modo radical). O que é “similar” no caso dos modos genéricos é um con-
junto de habilidades em geral subjacentes a uma gama de desempenhos específi-
cos. Dessa forma, os modos genéricos e os desempenhos que eles originam estão
diretamente ligados às instrumentalidades do mercado, à construção daquilo que é
considerado desempenho flexível. Dessa perspectiva, sua identidade é elaborada
pelos procedimentos de projeção apesar da semelhança superficial com modos de
competência.
A figura 1 determina as possibilidades discursivas do campo de recontex-
tualização em dois eixos: controle e discurso. O controle se refere à função
terapêutica e econômica geral, e o discurso se refe re ao modo pedagógico. O
modo de desempenho especialista (disciplinas singulares) é ambíguo com respei-

94 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


to à construção e controle da identidade. O modo “autônomo” é ambíguo, uma
vez que o contexto atua seletivamente, seja a autonomia enfatizada e a dependên-
cia mascarada, ou seja a dependência adotada de forma pragmática. Dessa forma,
a identidade aqui é desintegrada, embora seja gerenciável quando os elementos
introjetados e os elementos projetados podem ser realizados em contextos dis-
tintos, isto é, fortemente classificados. O modo dependente é mais claro. Aqui o
desempenho é dependente do econômico e o discurso é explicitamente aplica-
do. As exigências econômicas, ou aquilo que é considerado como sendo exigên-
cias, atuam seletivamente sobre o enfoque do discurso.

FIGURA 1
O CAMPO DA RECON TEX TUALIZAÇÃO

Controle
Terapêutico (competência) Econômico (desempenho)

modo pedagógico Liberal/progressivista

Populista
Especialista

Regionalizado
{ “autônomo”
(introjetado?)
dependente

Radical Genérico
construção da identidade Introjetado Projetado

Por fim, tenho considerado esses modelos e seus modos como descontínuos
e como originadores de formas distintas. É fundamental entender que nem sem-
pre é assim. Os modelos e modos podem originar aquilo que seria chamado de
pacote pedagógico em que podem ocorrer misturas. Um modo terapêutico pode
ser inserido em um modo econômico, mantendo seu nome e ressonâncias ori-
ginais e, ao mesmo tempo, originar uma prática oposta.

O CAMPO DE RECONTEXTUALIZAÇÃO E SUA DINÂMICA

Analisei a convergência no campo de produção do discurso para o conceito


de competência e mostrei como ele deu origem à construção de uma modalidade
pedagógica geral subjacente nos diferentes modos: liberal/progressivista, populista
e radical. Não há dúvida de que o modo liberal/progressivista surgiu muito antes
da convergência (Jenkins, 1990), mas sua institucionalização no campo oficial de
recontextualização somente ocorreu quando da publicação do Plowden Report
(1969).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 95


Discutirei agora como os modos de competência se tornaram posições
dominantes no campo de recontextualização pedagógica no final dos anos 60.
Também mencionei anteriormente como os modos de competência ecoavam as
ideologias de emancipação prevalecentes nessa área, embora isso não seja pro-
priamente uma explicação. Como preparação para essa discussão, fiz o esboço
de um modelo de desempenho generalizado antes de examinar seus vários mo-
dos. Nos anos 60 e início dos anos 70, o governo britânico não dispunha de
controle direto sobre os conteúdos pedagógicos e modalidades de transmissão,
que estavam mais diretamente ligados às atividades do campo de recontextualiza-
ção pedagógica. Em outras palavras, esse campo desfrutava naquela época de
grande autonomia com respeito à formação de professores. Essa formação era o
resultado de posições pedagógicas discursivas naquele campo, responsáveis pela
regulação de princípios recontextualizadores. A principal reforma educacional do
período, adoção do modelo compreensivo*, que visava tornar a escola mais abrangente,
mudou apenas a forma organizacional ; o discurso pedagógico não era tema de
legislação. A mudança de forma pelo Estado no ímpeto do movimento a favor da
redução de privilégios arbitrários (escolas seletivas) criou um espaço local autô-
nomo para a elaboração do currículo e a forma de aquisição.
A eliminação do processo de seleção, como resultado do movimento que
visava a tornar a escola mais abrangente, dentro do modelo de escola compreen-
siva, removeu um regulador fundamental da organização e das exigências curricu-
lares da escola primária. Assim, tanto no nível primário como no secundário,
existia um espaço pedagógico a ser apropriado pelas atividades do campo de
recontextualização pedagógica.
O s modos de desempenho eram ligados e legitimados pelas escolas de
currículo tradicional, mais seletivas, e sua organização discursiva, códigos das dis-
ciplinas singulares e códigos de coleção. Por sua vez, isso regulava o modo peda-
gógico dominante da escola primária: o modo de desempenho. Assim, o controle
dos modos de desempenho no campo de recontextualização pedagógica estava
ligado à estrutura organizacional e discursiva da educação primária e secundária.

* O modelo de escola compreensiva propõe um currículo de formação geral na educação


básica, composto das disciplinas tradicionais e de outras ligadas aos diferentes setores da
economia, como artes industriais, práticas comerciais e agrícolas, economia doméstica
etc. O propósito do modelo compreensivo é o de abrir aos alunos um leque de experiên-
cias escolares, superando o caráter acentuadamente acadêmico da formação, mediante a
introdução de disciplinas de conotação prática (N. da E.).

96 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


O s modos de desempenho enfocam algo que o adquirente não possui, uma
ausência e, conseqüentemente, passam a enfatizar o texto a ser adquirido e o
transmissor. Os modos de desempenho selecionam as teorias de aprendizagem
de enfoque behaviorista, que são acentuadamente atomísticas, a partir do campo
de produção do discurso. E esta seleção (recontextualização) traz conseqüências
para as posições behavioristas no campo de produção do discurso. Isso ilustra a
relação simbiótica entre esse campo e o campo de recontextualização pedagógica.
Com a mudança na estrutura organizacional da educação secundária, centrada
no enfraquecimento da classificação, surgiu um espaço para apropriações peda-
gógicas tanto no nível primário como no secundário, não subordinado à regulação
direta do Estado. Como esse espaço deveria ser preenchido, passou a ser uma
função da educação: primária ou secundária. Em ambos os níveis havia um forte
movimento em direção à modalidade de competência e seus modos, movimento
esse poderosamente legitimado pela convergência no campo de produção do
discurso.
No campo de recontextualização pedagógica, com o enfraquecimento das
posições de desempenho, as posições de competência, que eram previamente
subordinadas, passaram a ser dominantes, dando ensejo ao surgimento de novas
posições de competência. Do ponto de vista de posições de competência, os
modos de desempenho eram baseados no conceito de déficit e os de competên-
cia no de capacitação. Assim, partindo dessa perspectiva, diferentemente de “tera-
pêutico”, como identificado anteriormente, o modo liberal/progressivista foi a
base da capacitação cognitiva, o modo populista da capacitação cultural e o modo
radical da capacitação política. Cada um desses modos recontextualizou diferen-
tes teorias no campo de produção do discurso como resumido anteriormente.
Por conseguinte, na década de 60 e início da década de 70, embora o
modelo de competência predominasse, havia modalidades opostas dentro do
CRP: correntes de oposição entre os modos liberal/progressivista, populista e
radical.
Afirmei que existia um novo espaço para a inserção de modelos pedagógi-
cos gerados pelo CRP. O enfraquecimento da classificação de discursos, adquirentes
e contextos organizacionais facilitou a predominância das modalidades de compe-
tência e de seus modos tanto no COR como no CRP e, depois, na formação de
professores (e, talvez, até em sua prática) em ambos os níveis, primário e secun-
dário. Durante os anos 60, como resultado do envelhecimento gradual da popu-
lação do Pós-Guerra, houve uma expansão das faculdades de educação e uma
subseqüente redução de controle do quadro docente e de estudantes. Além

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 97


disso, ocorreu uma mudança no discurso em direção a maior especialização dos
discursos teóricos e sua maior predominância. Um processo semelhante ocor-
reu na escola secundária, na qual a falta de professores deslocou as relações de
poder, ou seja, o poder seletivo da administração passou para o dos professores.
Ao mesmo tempo, como se vivia em um período de pleno emprego, as escolas
transferiram o seu foco de atenção para as questões que abordavam o universo
das relações sociais (multiculturalismo, culturas jovens) e do lazer. Não apenas
foram criados novos espaços em todos os níveis educacionais, da educação su-
perior até a pré-escola, mas também novas agendas começaram a preencher
esses espaços. Assim, só foi possível institucionalizar os modelos de competên-
cia e seus modos nos níveis primário e secundário por conta do enfraquecimento
geral do sistema de classificação dentro de e entre os diferentes níveis, bem como
por meio da introdução de novos agentes que gozavam de autonomia perante o
CRP, além da comunicação ideológica entre aquele campo e o COR: na verdade
um conjunto ímpar de condições.
Muito já se escreveu sobre o papel cada vez maior da intervenção estatal a
partir do final dos anos 70 e não se tem a intenção de analisar aqui a literatura
publicada sobre o assunto. O movimento do Estado para controlar o conteúdo da
educação ocorreu antes do final dos anos 70 (conselho escolar), mas o ímpeto
fundamental ocorreu durante o Regime Thatcher. Em todos os níveis do sistema
educacional verificou-se uma combinação de descentralização com referência às
instituições locais e sua gestão, e de centralização com respeito ao seu monitora-
mento e financiamento, que mudou a cultura das instituições educacionais, suas
estruturas administrativas internas, os critérios de nomeação de pessoal e, espe-
cialmente, as promoções e suas práticas pedagógicas. A sobrevivência e o cresci-
mento passaram, assim, a depender da otimização de um nicho de mercado, de
produções objetivas e de procedimentos de valor agregado. Ao mesmo tempo, a
centralização de controle sobre os conteúdos da educação, a divulgação das res-
ponsabilidades das autoridades educacionais locais, o estabelecimento de comi-
tês e a nomeação de autoridades geridos e aprovados pelo ministério apropriado
reduziram a autonomia do CRP e mudaram as posições predominantes dentro
dele. Isso também propiciou a introdução de novos discursos, por exemplo,
aqueles voltados para a gestão e avaliação. A autonomia do CRP foi ainda mais
reduzida pelo fato de a formação de professores passar a ter a escola como base,
o que afetou os discursos pedagógicos teóricos e a sua pesquisa, reduzindo sua
significância e mudando sua orientação para atender interesses práticos e políti-
cos. O deslocamento para modelos de desempenho e seus modos foi iniciado

98 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


pelo COR que havia passado a regular mais diretamente as práticas, os conteúdos
e a pesquisa pedagógicos. Que modo de desempenho regulava claramente qual
prática dependia dos níveis da educação e distribuição curricular no interior das
instituições, dentro de um determinado nível.
Quero agora abordar a elaboração e inserção de modo s genéricos como a
base pedagógica de experiências de “trabalho” e de “vida”. Os modos genéricos
não são meros procedimentos pedagógicos econômicos de aquisição, mas se
baseiam em um novo conceito de “trabalho” e de “vida”, um conceito que bem
poderia ser chamado de “algo destinado ao curto prazo”. Isto é, onde uma habili-
dade, tarefa ou área de trabalho passa por um proce sso de desenvolvimento
contínuo, desaparecimento ou substituição; onde a experiência de vida não se
pode basear nas expectativas de um futuro estável e do lugar que se ocupa nele.
Nessas circunstâncias, considera-se absolutamente necessário o desenvolvimen-
to de uma nova habilidade vital: “capacitação”, a habilidade de lucrar com a continui-
dade das reformas pedagógicas e, assim, enfrentar as novas exigências de “traba-
lho” e de “vida”. Essas reformas pedagógicas serão baseadas na aquisição de modos
genéricos, dos quais se espera que concretizem todo o seu potencial de flexibili-
dade e transferência, não se limitando apenas a desempenhos específicos. Assim,
os modos genéricos são totalmente estruturados no conceito de “capacitação”.
Tal capacitação acentua “algo” que o ator deve possuir para que possa ser
formado e reformado da maneira mais apropriada, de acordo com as contingên-
cias tecnológicas, organizacionais e de mercado. Esse “algo”, que é crucial para a
sobrevivência do ator, da economia e, presumivelmente, da sociedade, é a habi-
lidade de ser ensinado, a habilidade de responder à pedagogia concomitante,
subseqüente, intermitente, de forma eficiente. Processos cognitivos e sociais
serão especialmente desenvolvidos para tal futuro pedagogizado. Entretanto, a
habilidade de responder a tal futuro depende da capacidade e não de uma dada
habilidade. A capacidade de dar ao ator a possibilidade de se projetar de forma
significativa e não de forma pertinente nesse futuro e de resgatar um passado
coerente. Essa capacidade é o resultado de uma identidade especializada e isso
precede a habilidade de responder a programas de re ciclagem concomitantes e
subseqüentes. Nesse sentido, formar e reformar com eficiência depende de algo
mais do que o seu próprio processo. Depende da elaboração de uma identidade
especializada. Essa identidade, que é a interface dinâmica entre carreiras individuais
e a base social ou coletiva, só pode ser elaborada em bases sólidas. Não é
meramente a construção psicológica de um trabalhador solitário à medida que
passa por um processo de transição durante o qual se espera que o seu desem-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 99


penho seja totalmente baseado na capacitação. Essa identidade surge de uma
ordem social particular, por meio de relações nas quais ela se insere juntamente
com outras identidades de reconhecimento recíproco, apoio, legitimação mútua
e, finalmente, por intermédio de um propósito coletivo negociado. Parece haver
um vazio no conceito de capacitação, um vazio que torna o conceito auto-refe-
rente e, assim, excludente.
Se a identidade produzida pela “capacitação” é socialmente “vazia”, como é
que o ator reconhece a si próprio e os outros? Por meio da materialidade do
consumo, por sua distribuição, por sua falta. Aqui os produtos de mercado trans-
mitem os significadores com os quais as estabilidades, as orientações, as relações
e as avaliações temporárias são elaboradas. A extensão dos modos genéricos de
sua base em práticas manuais para uma série de práticas e áreas de trabalho,
institucionaliza o conceito de capacitação como o objetivo pedagógico fundamen-
tal. O campo especializado de recontextualização produz e reproduz conceitos
imaginários de trabalho e de vida que abstraem tais experiências de relações de
poder das condições vividas e negam as possibilidades de compreensão e crítica.

O ESTADO E A RECONTEXTUALIZAÇÃO

Se passarmos a considerar a mudança para modelos de desempenho e


seus modos, em relação ao processo de recontextualização com o qual esses
modelos e modos são imaginativamente elaborados como discursos e práticas
pedagógicos, então devemos primeiramente examinar a forma de controle oficial
sobre esses procedimentos recontextualizadores. No caso da educação de nível
superior, não existe campo oficial de recontextualização para a elaboração de um
discurso de educação de nível superior oficial. Entretanto, existe uma forte regu-
lação indireta imposta ao processo recontextualizador pelo Higher Education Funding
Council Executive [Conselho Executivo para Financiamento da Educação Supe-
rior] – inclusive o emprego decisivo de seletividade da pesquisa –, e pelos Research
Councils [Conselhos de Pesquisa] e, no caso de algumas instituições, pela sua
posição no setor. As instituições de educação superior têm de otimizar seus resul-
tados com respeito ao ensino e pesquisa de acordo com essas restrições. Embo-
ra cada instituição tenha seu próprio campo de recontextualização e sua estrutura
particular de gestão, cada uma delas compete com outras semelhantes3. Por conseguinte,

3. “As quarenta ‘novas’ universidades, antigas escolas politécnicas, livres do controle da


autoridade local em 1989 e outras 600 faculdades de educação, que as seguiram há

100 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


o campo da educação superior aceita a estratificação interna das instituições, que
fornece então seu grupo de referência para a recontextualização interna.
Aqueles que se encontram no topo ou quase no topo dessa hierarquia
podem conservar suas posições mais por conseguirem atrair ou manter as prin-
cipais estrelas do mundo acadêmico do que por mudanças em seus discursos
pedagógicos que atendam às exigências do mercado. Isso não significa natural-
mente negar a existência de avanços no campo intelectual, especialmente em se
tratando de resultados tecnológicos bem-sucedidos, significa, sim, que eles não
parecem muito inclinados a regionalizar seus discursos4. Em contrapartida, aque-
las instituições que estão em posição bem menos privilegiada na estratificação
são normalmente as que não conseguem atrair estrelas e, por conseguinte, esta-
rão muito mais preocupadas em explorar as possibilidades do mercado de seu
discurso pedagógico. Assim, essas instituições estarão mais propensas a desen-
volver identidades projetadas. O que elas são passa a ser uma função das exigên-
cias determinadas pelo contexto de mercado e isso significa os recursos para a
construção de sua identidade particular. Nesse caso, a regionalização será prova-
velmente um procedimento recontextualizador decisivo, e os conteúdos e no-
mes provavelmente se deslocarão para o que é considerado como demanda. Se

um ano em busca de independência corporativa (em 1993), criaram corpos dirigentes


idênticos. Dirigentes indepedententes oriundos de empresas locais ocupam a maioria dos
12-14 cargos, enquanto os representantes do corpo docente e outros funcionários foram
marginalizados. Os novos dirigentes de universidades e faculdades espelham-se nos con-
selhos de administração: pretendem ser agentes de mudança cultural, arrastando as suas
instituições para a nova era de empreendimento (privatizado)”. Bargh e Scott, relatando
a sua pesquisa no The Times, 12 de dezembro de 1994.
4. Eu deveria mencionar ainda que os efeitos do monitoramento pelo Estado das publicações
de pesquisa, que se realiza a cada quatro anos por intermédio do exercício de seletividade
da pesquisa, estão alterando o tipo de pesquisa e de publicação. A pesquisa básica de longo
prazo, que pode levar muitos anos (como nas ciências humanas) e cujo resultado é
incerto, não é com certeza candidata a nenhum prêmio. Ela será provavelmente substi-
tuída pela pesquisa aplicada de curto prazo, com baixo risco e garantia de publicação
rápida. Tal imediatismo é facilitado pelas atividades das agências de financiamento, estatais
e privadas. Essas mudanças na pesquisa e nas publicações afetam a base e a orientação do
ensino e, conseqüentemente, a base de conhecimento e a motivação dos estudantes. Não
somente mudou a natureza da pesquisa, como também é razoável esperar que ocorra
uma redução do número de comitês universitários, com um número menor de mem-
bros, na maioria nomeados e não eleitos. Tais mudanças agem seletivamente sobre
aqueles que são nomeados ou promovidos. Dessa forma, uma nova cultura é criada e
reproduzida por novos atores com novas motivações.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 101


essas instituições desenvolverem identidades projetadas, então aquelas próximas
do topo da pirâmide talvez consigam manter suas identidades introjetadas tradi-
cionais, embora elas estejam agora mais ambíguas e ambivalentes, em virtude de
suas orientações mais apropriadas. Como resultado, na educação superior não
existe apenas uma estratificação de contextos recontextualizadores e de regionalização,
mas também uma estratificação de identidades, não somente de instituições, mas
igualmente de pessoal e de estudantes.
O processo de recontextualização na educação superior pode, assim, ge-
rar um discurso pedagógico altamente variado (por meio da estratificação) com
base em um movimento provavelmente comum rumo à modularização.
Fica agora bastante claro que os modos de desempenho dominam tanto o
nível primário como o secundário. Entretanto, esses modos são diferentes da-
queles encontrados na educação de nível superior, na qual, conforme mencionei,
estão ocorrendo mudanças acentuadas em direção à regionalização. Por conse-
guinte, em conseqüência do Currículo Nacional (e de suas muitas versões), exis-
te uma classificação mais forte, porque o currículo é uma coleção de disciplinas
singulares, cujos aspectos comuns não são postos em prática de forma efetiva
(Whitty, Rowe, Aggleton, 1994). O monitoramento desse currículo pelo Estado
por meio de provas nacionais e as estruturas de exames públicos sustentam esse
código de coleção. O enquadramento, por outro lado, diminuiu de importância
em relação à avaliação devido ao papel cada vez maior da avaliação contínua e à
possibilidade de os estudantes repetirem o curso se a nota obtida não for a
esperada. As escolas podem explorar muito bem essa fraqueza estrutural sobre
avaliação como forma de aumentar o seu desempenho. Embora o monitoramen-
to do currículo escolar tenha sido centralizado, a estrutura administrativa foi des-
centralizada. As escolas têm agora maior autonomia sobre o orçamento e sua
alocação, bem como sobre sua situação administrativa (podendo optar por não
serem controladas pela autoridade local). O enfoque principal dessa estrutura
gerencial é o desempenho da escola com referência à capacidade de atrair e
conservar estudantes, seu comportamento e suas realizações. Visto desse ângu-
lo, embora os discursos pedagógicos tenham diferentes enfoques, o enfoque
gerencial de todas as instituições, em todos os níveis, é semelhante. A estrutura
administrativa tornou-se o dispositivo para a criação de uma cultura empresarial
competitiva. Esta última é responsável pelos critérios adotados nas principais no-
meações administrativas e na contratação de pessoal especializado para promo-
ver a eficiência desta cultura. Existe assim um deslocamento entre a cultura do
discurso pedagógico e a cultura gerencial. A cultura do discurso pedagógico das

102 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


escolas é retrospectiva, com base em uma narrativa passada de controle e signi-
ficância das disciplinas, ao passo que a estrutura gerencial é prospectiva, apontan-
do para o novo espírito empreendedor e suas instrumentalidades. O Estado inse-
riu então uma cultura pedagógica retrospectiva em uma cultura gerencial prospectiva.
Entretanto, a ênfase no desempenho dos alunos e os passos tomados para me-
lhorar e manter tal desempenho, para a sobrevivência da instituição, provavel-
mente abrirão caminho para a instrumentalidade promovida pelo Estado. O valor
intrínseco do conhecimento pode ser destruído mesmo que o código de coleção
do currículo pareça sustentar tal valor.
O Estado, por conseguinte, por meio de maior centralização e de novas
formas de descentralização, introduziu mudanças nos modelos e métodos peda-
gógicos, nas estruturas gerenciais e nas culturas de todas as instituições educacio-
nais, além de patrocinar modos genéricos. A reprodução de formas reconhecidas
e recompensadas pelo Estado é facilitada pela mudança nas posições de controle
nos campos de recontextualização (COR, CRP), pela introdução de novos dis-
cursos e, o mais importante de tudo, pela predominância de novos atores imbuí-
dos de novas motivações.

REORGANIZAÇÃO DO CAPITALISMO E A FORMAÇÃO DE


IDENTIDADES

Investigamos as mudanças nos processos recontextualizadores em todos


os níveis educacionais e a nova inserção no trabalho e na vida. Com exceção das
instituições de elite, sugerimos que esse processo está deslocando as identida-
des pedagógicas oficiais em que, os códigos foram adquiridos de modos introjetados
para modos projetados. Vimos que os modos introjetados são narcisistas, hierár-
quicos e elitistas e argumentamos que as novas formas de modos projetados
corroem uma base coletiva e substituem os compromissos internos e sentimen-
tos de dedicação por instrumentalidades de curto prazo. O discurso até agora
teve como única preocupação a elaboração e a distribuição de discursos pedagó-
gicos, instituições e identidades oficiais. Embora tal discurso transmita, ou espera-
se que ele transmita, soluções e estratégias politizadas de grupos e partidos domi-
nantes, ele não está de forma alguma imune a outras influências, regulações e
construção de identidades, as quais finalmente passamos a abordar.
Muita coisa já foi escrita sobre o pós-modernismo, a última fase do moder-
nismo e a localização de identidades (Giddens, 1990,1991; Harvey, 1989; O’Neil,
1995), e não tenho nenhuma intenção de discorrer aqui sobre essa literatura.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 103


Entretanto, parece claro que, na antiga fala, aquelas identidades enfocadas do
ponto de vista biológico (idade, gênero, relação de idade), as chamadas identida-
des “adstritas”, foram consideravelmente enfraquecidas, são ambíguas e podem
até certo ponto ser realizadas. Essas pontuações culturais e especializações (ida-
de, gênero, relação de idade) não possuem hoje mecanismos suficientes para a
construção de uma base estável e coletiva. Além do mais, novamente na fala
antiga, as identidades localizadas de classe e ocupação tornaram-se mecanismos
atualmente considerados insuficientes para as identidades estáveis não ambíguas.
Esse enfraquecimento dos mecanismos estáveis, não ambíguos, coletivos, para a
construção de identidades, como resultado desse novo período do capitalismo
de transição, causou perturbação e também o desmonte de tais identidades, e, ao
mesmo tempo, ensejou a possibilidade de construção de novas identidades.
Podemos diferenciar três construções fundamentais de identidade, com
oposições tanto no interior de cada construção como entre elas: descentradas,
retrospectivas e prospectivas (ver Figura 2). São vários os recursos usados na
construção dessas identidades. As identidades descentradas são construídas a
partir de recursos locais. As identidades retrospectivas inspiram-se nas grandes
narrativas, sejam elas culturais ou religiosas, que servem de modelos. As identida-
des prospectivas, por sua vez, devem sua construção a recursos narrativos que
criam uma recentralização da identidade, isto é, dando à identidade uma nova base
coletiva.

Identidades descentradas

Recursos opostos e com diferentes localizações servem de base para a


construção dessas identidades. Em um caso os recursos são o mercado e, no
outro, os recursos são terapêuticos. Farei uma distinção entre identidade instru-
mental e identidade terapêutica.

Instrumental (mercado)

Origina-se nos significadores de mercado. A identidade surge de uma pro-


jeção para artigos de consumo que transmite para o eu e o utros os atributos
espaciais e temporais da identidade, isto é, seu quem, seu quê e seu progresso.
Tais construções são estáveis apenas no método de elaboração, não nas formas
temporais. Para essas identidades, os limites são permeáveis e o passado não
serve de guia para o presente, muito menos para o futuro. A base econômica
dessas identidades orienta sua política: anticentralista.

104 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Terapêutica

Essa identidade é construída com recursos locais e é descentrada, mas


oposta às identidades de mercado. Se as identidades de mercado são produzidas
por meio de projeção, então a terapêutica é produzida por introjeção. Aqui o
conceito de eu passa a ser fundamental, sendo visto como um projeto pessoal. É
uma construção regulada internamente e independente dos significadores exter-
nos de consumo. Ela é uma construção verdadeiramente simbólica. A identidade
assume a forma de uma narrativa aberta que constrói uma linearidade interna. A
exemplo da identidade de mercado, também para a terapêutica as fronteiras são
permeáveis e o passado não é um guia necessário ao presente ou ao futuro. Se a
identidade de mercado depende da segmentação do shopping center então a
identidade terapêutica é igualmente dependente de procedimentos internos ra-
zoáveis de segmentação externa.

FIGURA 2
CAMPO CON TEMPORÂN EO DE IDEN TIDADE

Capit alismo de t ransição

Desmonte de identidades

Novas construções de identidade

Tipos: Descent rado Ret rospect ivo Prospect ivo


Recursos: local passado nova centragem
Modos:

instrumental terapêutico gênero raça região

fundamentalista elitista
(cultural)

religião nacionalista
populista

Identidades retrospectivas

Essas identidades usam como recursos as narrativas do passado que sejam


capazes de fornecer modelos e critérios. Nesse aspe cto, as identidades retros-
pectivas contrapõem-se às identidades descentradas, uma vez que ambos os

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 105


modos instrumental e terapêutico rejeitam as narrativas passadas como modelos
e critérios para o presente ou para o futuro. Da me sma forma como distinguimos
dois modos opostos de identidades descentradas, também diferenciaremos os
dois modos opostos de identidades retrospectivas: fundamentalista e elitista.

Fundamentalista

Essa é uma identidade retrospectiva elaborada com base em recursos reli-


giosos fundamentalistas. Ela cria as condições para uma identidade não ambígua,
estável, intelectualmente inacessível, coletiva. Além disso, absorve o eu em todas
as suas manifestações, fornecendo-lhe um local livre de instabilidades e ambigüida-
des correntes e futuras para análise crítica, relação e comportamento. Ela também
produz um isolamento considerável entre o sagrado e o profano, permitindo a
entrada no mundo profano sem sofrer os efeitos de algum tipo de apropriação ou
colonização. Em termos menos metafóricos, ela estabelece uma forte separação
entre influências comportamentais e modernizadoras ou pós-modernizadoras. Assim,
o fundamentalismo islâmico possibilita a apropriação de tecnologias ocidentais sem
penetração intelectual. Mais próximo de nós, a ascensão de movimentos religio-
sos fundamentalistas ocupa funções semelhantes. Também podemos considerar
o nacionalismo e o populismo como fundamentalistas, uma vez que ambos recor-
rem a explicações mitológicas de origem, pertencimento, evolução e destino.

Elitista

Trata-se de uma identidade retrospectiva, totalmente oposta à fundamentalista,


elaborada segundo os mecanismos da alta cultura; uma construção e apropriação
elitista. Essa narrativa do passado fornece modelos, critérios e padrões de com-
portamento. É um amálgama de conhecimento, sensibilidades e maneiras, de
educação e criação. Entretanto, ela pode ser apropriada por um tipo especial de
educação, sem interferência da criação. Com as identidades fundamentalistas, ela
compartilha classificações fortes e hierarquias internas, mas, ao contrário dos
novos fundamentalismos, ela não aceita o envolvimento com o mercado. Embora
as identidades fundamentalistas possuam sólidas regras de associação, a conver-
são é alcançável; isso é bem diferente no caso de identidades elitistas, uma vez
que elas exigem um aprendizado bastante longo e árduo. Se as identidades des-
centradas utilizam a projeção e introjeção como métodos organizadores, acredi-
tamos que as identidades retrospectivas (fundamentalistas ou elitistas) dependam
mais das formações de um superego forte.

106 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Identidades prospectivas

Essas identidades são essencialmente voltadas para o futuro. Elas podem


até mesmo utilizar e se sustentar em narrativas, mas tais recursos narrativos de
construção de identidade prospectiva situam a identidade no futuro. Os recursos
narrativos de identidades retrospectivas estabelecem e legitimam essas identida-
des no e em torno do passado. Enquanto as identidades descentradas se distan-
ciam do coletivo, as identidades prospectivas apontam para uma nova base de
solidariedade voltada para aqueles a quem foi dado o direito de serem reconheci-
dos. Nesse sentido, pode-se dizer que as identidades prospectivas estão em
processo de recentralização. Elas alteram a base de reconhecimento e de relação
coletiva. As identidades prospectivas são lançadas por movimentos sociais, por
exemplo, aqueles que tratam de gênero, raça ou região. Em seu ponto de partida,
elas são evangelizadoras e confrontadoras. As identidades prospectivas comparti-
lham com as identidades fundamentalistas a consumação do eu no sentido de que
as manifestações envolvem toda a personalidade. As identidades prospectivas, a
exemplo do que acontece com as fundamentalistas, estão engajadas na conver-
são, assim como as identidades fundamentalistas estão envolvidas em atividades
econômicas e políticas para preparar o desenvolvimento de seu novo potencial.
Embora algumas dessas identidades tenham características semelhantes,
elas são mutuamente exclusivas no sentido de que a adoção de uma exclui a
possibilidade de outras. (Pode haver inter-relação das identidades fundamentalistas
e identidades prospectivas). Esta classificação rigorosa sugere bases sociais distin-
tas e diferentemente especializadas. A posição de classe social pode não fornecer
tal base 5. Na verdade, essas identidades podem bem ser significadoras de frações
de classe em vez de identidades de classes sociais propriamente ditas. Talvez
fosse melhor identificar a posição social dessas identidades, ou antes, a posição
social que atua seletivamente na sua construção em termos de campos de con-
trole simbólico e economia bem como das posições dentro de tais campos. À
guisa de tentativa, poderíamos sugerir o seguinte. As identidades terapêuticas e
elitistas serão provavelmente elaboradas por discursos pedagógicos e distribuídas
em agências especializadas no campo de controle simbólico. As descentradas

5. Surgem questões importantes em relação à interação entre classe social e formação de


identidade. Ver Lancaster Regionalism Group (1985), Giddens (1990) e também uma
crítica, perceptiva e solidária a Giddens, de Hay, O’Brian e Penna (1993/1994).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 107


(instrumentais) são selecionadas por aqueles no campo econômico que não ocu-
pam posições empresariais, por exemplo, as novas tecnologias da informação.
As fundamentalistas (no Ocidente) serão provavelmente selecionadas por aque-
les que têm uma base empresarial no campo econômico ou uma base ameaçada
naquele campo. As identidades prospectivas serão mais provavelmente encontra-
das no campo de controle simbólico do que no campo econômico.
O que importa é que apenas uma das sete identidades possíveis entre os
três tipos é o tipo projetado, enquanto no campo de identidades pedagógicas
oficiais existe um movimento geral em direção ao tipo projetado. Essa parece ser
a base de oposição entre as identidades reguladas pelo Estado e as identidades do
tipo projetado, distribuídas pelo Estado; uma resposta em termos educacionais
ao capitalismo de transição, e o surgimento de novas possibilidades de formação
de identidade do tipo introjetado é também um resultado desse mesmo tipo de
capitalismo. Esse deslocamento entre o princípio organizador de formação de
identidade, dentro e fora da educação oficial, pode bem ser uma condição impor-
tante para uma reavaliação crítica das instituições educacionais e o princípio e foco
de seus discursos. A própria natureza diversa e contraditória das novas formações
de identidade cria uma base generalizada de resistência. Tal diversidade pode ser
menos um índice de fragmentação cultural como nas histórias pós-modernistas e
mais um ressurgimento cultural geral de rituais de subjetividade em novas formas
sociais. Pela primeira vez produzimos um discurso e uma cultura pedagógicos,
virtualmente seculares, e que são ao mesmo tempo uma recuperação do sagra-
do 6. Isso não quer dizer que tais formas serão bem-vindas, patrocinadas ou gene-
ralizadas.

As tradutoras deste artigo são membros da Cooperativa


de Profissionais em Tradução – Unitrad (unitrad@ unitrad.com.br)

6. O que parece estar acontecendo no final do século XX é uma redução do espaço para o
sagrado. No início desse século, o sagrado estava centralmente localizado e informava a
base coletiva da sociedade por meio da inter-relação do Estado, da religião e da educa-
ção. Essa base coletiva se encontra, hoje, consideravelmente reduzida como recurso para
um sagrado centralizado. Atualmente, o sagrado manifesta-se em locais, movimentos e
dispersos. Sua fragmentação é menor, mas é maior a sua dispersão, localização e espe-
cialização. Talvez fosse útil aqui ampliar a relação entre identidades retrospectivas e
recursos religiosos fundamentalistas, na medida em que eles surgem das atividades de
diferentes grupos. No Oriente Médio, por exemplo, o avanço das religiões fundamentalistas
tem sido visto como um meio de recuperar uma identidade coletiva em face da política,

108 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

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dente para que os grupos possam manter a sua identidade anterior, diante dos problemas
de assimilação por parte dos jovens e para servir como base política. O s movimentos
islâmicos nos Estados Unidos criam uma nova base para a identidade negra, para uma
nova política e para a formação de um espírito empreendedor. Nesse caso, a identidade
prospectiva provém da recontextualização de uma narrativa restrospectiva. O cristianis-
mo carismático pode surgir da falta de apoio dos jovens à ortodoxia institucional.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 109


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Recebido em: maio 2003


Aprovado para publicação em: maio 2003

110 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


TRABALHO E ESTRATÉGIAS FORMATIVAS:
UM EXEMPLO EMPÍRICO
VANILDA PAIVA
Instituto de Estudos da Cultura e da Educação Continuada – Rio de Janeiro
vppaiva@terra.com.br

VERA CALHEIROS
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
veracalheiros@openlink.com.br

GISELIA POTENGY
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco
giselia@idaco.org.br

RESUMO

Apoiado em pesquisas empíricas realizadas no Rio de Janeiro nos últimos anos, este relato
focaliza profissionaisconsiderados“potenciaisganhadores”, “potenciaisperdedores” e “ideológicos
alternativos em processo de integração” no contexto das transformações ocorridas na
estrutura produtiva e no mercado de trabalho dos últimos anos. Tem-se pesquisado seg-
mento profissional e sua característica, no que diz respeito à microeletrônica e aos novos
meios de comunicação (potenciais ganhadores), aos professores aposentados e profissionais
que entraram em Planos de Demissão Voluntária (potenciais perdedores); e professores
ativos, que complementam sua renda com atividades informais e pessoas ligadas a seg-
mentos dedicados a diferentes práticas alternativas no processo de integração à nova era
capitalista (terapeutas corporais, praticantes de “adivinhações” e de alimentação alterna-
tiva). O tratamento conjunto dos três grupos pretende oferecer uma visão ampla dos
processos que os afetam e suas contradições, focalizando também as novas estratégias
formadoras acionadas em meio à fragmentária qualificação nos anos mais recentes.
MERCADO DE TRABALHO – QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL – SOCIOLOGIA DO TRA-
BALHO

Texto preparado para o Congresso Latino-Americano de Sociologia do Trabalho – Alast –


, realizado em Havana, em setembro de 2003, com base em resultados de duas pesquisas
amplas financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq –, entre 1995 e 2000, e coordenadas por Vanilda Paiva.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 111-128,2003
novembro/ 2003 111
ABSTRACT

WORK AND SKILL FORMATION STRATEGIES: AN EMPIRICAL EXAMPLE. Based on empirical


research conducted in Rio de Janeiro during the past few years, this article focuses on
professionals considered as “potential winners”, “potential losers” and “followers of alternative/
ideological jobs in the process of integration” within the context of changes occurred in the
production structure and in the labour market during recent years. Research has focused on
different professional segments and their characteristics connected to: microelectronics and
the new means of communication (potential winners); retired teachers and professionals
who opted for voluntary resignation programs (potential losers); and teachers who are working
and supplement their income with informal activities and persons dedicated to different
alternative practices in the process of integration into the new capitalism age (body therapists,
“fortune-tellers” and alternative food suppliers). The treatment given to the three groups
altogether aims to provide a wider outlook of the processes that affected as well as their
contradictions. The article also focuses on the new skill formation strategies adopted the
midst of the fragmentary qualification processes during the past few years.
LABOURMARKET – EMPLOYMENT QUALIFICATIONS – SOCIOLOGY OF LABOUR

As transformações das últimas décadas foram rapidamente notadas como


processos sociais que gerariam ganhadores e perdedores. A importância adquiri-
da pelos novos meios de comunicação em íntima relação com a microinformática
(exemplo, internet) gerou novos negócios, um grande e novo campo de transa-
ções virtuais de diferentes tipos e, portanto, de potenciais ganhadores nos novos
tempos. Em meio à retração do assalariamento e do emprego de longa duração e
da proteção social houve um generalizado incentivo ao auto-empresariamento,
que sobrevive com força neste começo de século. Os grupos que aqui denomi-
namos como “potenciais ganhadores” foram especialmente atingidos por tais idéias
e nem sempre ganharam, pois os negócios virtuais passam por forte crise mundial
desde o estouro da bolha especulativa, refletindo uma crise econômica mais ampla;
como grupo, porém, representam uma “ponta” para a qual estão abertas possibi-
lidades futuras. Mas, a retração do emprego e da proteção também empurraram
grandes segmentos de profissionais experientes para a aposentadoria (em muitos
casos precoce), retirando do mercado força de trabalho de meia-idade. Este
processo foi complementado pelo acionamento, pelos governos e mesmo por
firmas privadas, de Planos de Demissão Voluntária – PDV – ou Incentivada –
PDI – com vantagens financeiras oferecidas àqueles que deixassem os postos de
trabalho que haviam ocupado por longos anos. Estas vantagens estavam, freqüen-
temente, associadas à aposentadoria e conectadas também à difusão da idéia do

112 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


auto-empresariamento. Tratava-se de afastar trabalhadores cuja experiência era
considerada nefasta à introdução das novas tecnologias e à retração da proteção
social e seus integrantes são potenciais perdedores nesta nova era.
Paralelamente, tem sido possível identificar segmentos que não se enqua-
dram na dicotomia ganhadores/perdedores. Podem ser representantes de cate-
gorias profissionais que têm perdido renda ao longo das últimas décadas por
trabalharem nos serviços de bem-estar dos Estados (como médicos e professo-
res) e têm acionado, paralelamente ao emprego formal, estratégias de comple-
mentação de renda com atividades informais. Podem também incluir grupos de
pessoas com alto nível de formação que fizeram uma opção ideológica “alternati-
va” a qual os retirou da competição do mercado e que viram, especialmente nos
anos 90, condições muito propícias para uma integração no mercado de serviços
do novo capitalismo. Agregam ainda jovens que vêem atividades tradicionalmente
consideradas alternativas como campos novos nos quais se podem lançar e se
inserir mais facilmente.
Estes três grupos foram objeto de nossa pesquisa empírica e serão trata-
dos neste texto.

METODOLOGIA

Os grupos indicados foram abordados por metodologia socioantropológica,


cuja parte empírica foi realizada na cidade do Rio de Janeiro entre 1996 e 2000,
combinando questionário e entrevista semi-estruturada com profissionais contatados
por redes de relações pessoais dos pesquisadores.
Nos segmentos docentes pesquisados, os procedimentos permitiram perceber
os cursos históricos reais nas trajetórias ocupacionais, nas estratégias alternativas,
na complementaridade entre atividades formais e informais e nas formas de tran-
sição no mundo do trabalho. Informações sobre docentes aposentados de ensi-
no superior foram coletadas em 22 questionários e e ntrevistas aprofundadas
com 13 deles. Este grupo de “potenciais perdedores” foi complementado nos
recortes posteriormente pesquisados com funcionário s das Telecomunicações
do Rio de Janeiro – Telerj – que aderiram aos Planos de Demissão Voluntária ou
Incentivada nos anos 1990, entre os quais foram entrevistados 23 profissionais
em 1999.
Docentes ativos do primeiro e segundo graus foram entrevistados como
parte do grupo intermediário de profissionais que têm perdido renda ao longo das
últimas décadas, exatamente por trabalharem nos serviços de bem-estar do Esta-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 113


do (como médicos e professores) e se somaram aos “alternativos” em processo
de integração. Não são necessariamente ganhadores nem perdedores, porque
acionam estratégias compatíveis com as exigências deste novo capitalismo. Fo-
ram realizadas 35 entrevistas com professores ativo s que complementam renda
e 15 entrevistas semi-estruturadas. Objetivou-se detectar a dinâmica das ativida-
des informais acionadas pelos professores no espaço escola, as razões que deflagraram
o seu início, os investimentos necessários, a organização ou reorganização do
espaço/tempo dedicado à casa, à família, à escola e aquele necessário à produ-
ção/comercialização de mercadorias e/ou prestação de serviços, a formação da
clientela, as formas de remuneração, as estratégias adotadas para a divulgação das
mercadorias que produzem e dos serviços que prestam, a percepção da carreira
do magistério e sua relação com a necessidade de engajamento em atividades
remuneradas complementares e os planos para o futuro.
O grupo de professores ativos entrevistados que complementam renda foi
constituído a partir de pesquisa socioetnográfica anterior, realizada em três esco-
las municipais do Rio de Janeiro. Muitas entrevistas foram feitas nas próprias
escolas, nos intervalos de aulas e diziam respeito à venda de alimentos congela-
dos, roupas, jóias, cosméticos e até o agendamento da elaboração de mapas
astrais. Em alguns casos, porém, foi necessário realizá-las nas ruas da cidade ou
em outros locais.
No que concerne aos “alternativo-ideológicos”, os entrevistados foram
divididos em subgrupos dedicados às mancias (três astrólogos e três tarólogos),
à alimentação alternativa (uma macrobiótica, duas slow-food e quatro outras alter-
nativas alimentares) e às terapias corporais (seis entrevistados dedicados ao shiatsu,
oito a outras formas de terapia corporal), num total de 27 entrevistas. Essas
escolhas prendem-se à visibilidade dos subgrupos que, tendo feito no passado
opção ideológica por uma vida alternativa, começaram a passar por nova onda de
absorção na nova era do capitalismo. O grupo, na me dida em que se deixou
absorver, tende a integrar o campo dos “ganhadores”; no entanto, sua posição
social está ainda eivada de muita ambigüidade e de todos os problemas ligados à
constituição e legitimação de novos campos profissionais.
Finalmente, os profissionais de informática constituem um universo muito
diferenciado, uma vez que esta área se caracteriza por variadas formas de relações
de trabalho e exigências de qualificação, não havendo registros da passagem da
maioria dos profissionais que estão em atividade, em firmas, sindicatos ou qual-
quer outra organização que indicasse um possível universo representativo. Na

114 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


primeira pesquisa, as 35 entrevistas realizadas levaram em consideração sexo,
idade, formação/qualificação e formas de inserção. Uma das redes pesquisadas
era composta de amigos com menos de 30 anos com hábito de trabalhar juntos
e que indicavam uns aos outros para assumir funções dentro de projetos. Afirma-
vam que se formaram como autodidatas ou que eram ou foram colegas de cursos
universitários e se consideravam como aqueles que mais se destacavam na sua
idade. Situavam-se em diferentes posições no interior do grupo (gerentes de
projeto, autônomos, estagiários) e integravam diversas redes de profissionais que
militavam em associações de empresários e em sindicatos de trabalhadores. Cer-
ca de 2/3 dos entrevistados estavam na faixa de 20 a 40 anos e 1/3, na faixa acima
de 40 anos, sendo 10 mulheres e 25 homens.
Dos entrevistados, 23 tinham, pelo menos, o 3 o grau completo e dois
estavam cursando a graduação, havendo entre eles cinco mestres, dois doutores
e quatro em cursos de pós-graduação. Q uanto às áreas profissionais, sete ha-
viam-se formado em engenharia (todos homens), cinco em informática (sendo
duas mulheres) e três tinham o diploma de tecnólogo. Os demais eram oriundos
dos mais diversos cursos de graduação, como pedagogia, letras, comunicação,
economia etc. Apesar desses níveis de qualificação formal, era enorme a impor-
tância da qualificação informal, real, conseguida durante o processo de trabalho,
em razão da extrema variedade das relações de trabalho e de tipos de qualificação
dos trabalhadores. Assim, uma mesma pessoa realiza, muitas vezes, diversas
atividades, envolvendo inserções qualitativamente diferenciadas.
Esse grupo de “potenciais ganhadores” se completa com a pesquisa realiza-
da entre profissionais com alto nível de qualificação que utilizam os modernos
meios de comunicação e, mais concretamente, fazem a internet funcionar, ou
seja, trabalham em empresas, próprias ou não, que e stão diretamente ligadas à
internet. Foram realizadas 26 entrevistas, segmentadas por idade: 10 entrevista-
dos entre 22 e 30 anos; 10 entrevistados de 31 a 45 anos e seis entrevistados
entre 46 e 47 anos. Esta segmentação deixa perceber movimentos de reprofis-
sionalização e vantagens/desvantagens obtidas simplesmente mediante o ano de
nascimento e da inserção em diferentes idades tecnológicas, além de forte ten-
dência dos mais jovens seguirem com cursos de pós-graduação.

POTENCIAISPERDEDORESNA NOVA ERA CAPITALISTA

A retração mundial dos benefícios sociais, justificada com base na crise


fiscal dos Estados derivada da retração do assalariamento como base arrecadadora

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 115


e na inversão da pirâmide etária, numa suposta ineficiência dos serviços estatais e
num real crescimento dos custos dos benefícios – especialmente na área da
saúde – tem sido acompanhada de propostas e implementação de reformas dos
Estados que implicam perdas de direitos, desvalorização e afastamento de profis-
sionais com incentivo à aposentadoria precoce num quadro que dificulta a reinserção
e impõe redução salarial e de aposentadorias.
A escolha dos professores aposentados e dos integrantes de PDVs e PDIs
derivou da percepção do momento excepcional e fugaz na trajetória dos profes-
sores universitários da rede pública e dos funcionários de firmas estatais em
processo de privatização no Brasil nos anos 90. A revisão constitucional de 1988
propiciou vantagens, além da possibilidade de acumulação de aposentadorias no
serviço público. Esta ampliação de direitos, seguida da ameaça de sua perda, é
única na história do país. O início dos debates em torno das reformas foi quase
imediatamente acompanhado de aumento no número de aposentadorias de do-
centes nas universidades públicas de todo o país, antecipando a redefinição de
projetos profissionais e/ou existenciais de docentes universitários. Apesar de tal
estratégia, professores aposentados continuam a desenvolver atividades profis-
sionais formais e informais, sendo raros os casos em que predomina uma opção
pelo lazer ou pela dedicação exclusiva à vida doméstica. Quando aparece, trata-se
de mulheres universitárias com problemas familiares e/ou diante da necessidade
de reconversão profissional para poder voltar ao me rcado de trabalho.
Vale ressaltar que a vivência da aposentadoria está ligada a crises de identida-
de e sofrimento psíquico. Representa uma ruptura com um meio determinado,
tarefas, engajamentos, expectativas e a convivência com pessoas. E, mesmo quan-
do se estabelece certo nível de continuidade com o período anterior, trata-se de
uma passagem difícil porque não mais aponta para conquistas, obrigando a encarar
um transcurso que está além da sua primeira metade. Impõe reler e dar sentido a
percursos vividos por vezes de forma errática e a buscar energia para atribuir novos
sentidos a atividades a serem retomadas ou a encontrar novos focos de interesse
e empenho. Por força do simbolismo que a acompanha, este caráter de ruptura
está presente mesmo quando necessidades objetivas conduzam ao início ou à
manutenção de atividades informais ou à busca de reintegração nestas ou em
outras atividades formais. No caso da aposentadoria precoce, os atingidos vêem-
se obrigados a enfrentar não apenas situações objetivas criadas pela aposentadoria
nos mais variados planos da vida (no trabalho/atividade, na família, no círculo de
amigos etc.), mas uma nova situação subjetiva derivada da necessidade de confron-
tar-se mais cedo com expectativas e questões que dizem respeito à terceira idade.

116 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Entre os professores universitários, passou a pairar em sua consciência a
possibilidade de serem lançados para fora das classes médias, com ou sem apo-
sentadoria. O componente subjetivo é, neste caso, essencial à compreensão da
montagem de estratégias de permanência ou retorno ao mercado após a aposen-
tadoria. Trata-se de um fenômeno que comporta situações as mais variadas –
entre as quais uma rotatividade que resulta, no caso dos segmentos mais espe-
cializados, em elevação de seus ganhos. Assim, somente uma parcela dos que se
aposentam – aquela composta por setores mais idosos e menos qualificados do
professorado – cede lugar a novas gerações.
O conjunto dos indivíduos entrevistados que integram as amostras indicam
que, mesmo que o peso relativo do trabalho em sua vida tenha mudado, ele
continua sendo importante para eles. Há uma clara polarização entre quem está e
quem não está no mercado formal de trabalho no que concerne a direitos e
vantagens diversas. No que concerne à proteção social, todos os segmentos
pesquisados vivem as angústias e vicissitudes de um momento em que se procla-
ma o fim da era de valorização de quem trabalha e de construção de mecanismos
de bem-estar.
Todos os recortes empíricos analisados estão na áre a dos serviços e os
entrevistados experimentam as dificuldades e características deste setor. O seg-
mento mais protegido entre os analisados foi o de professores universitários –
segmento no qual a questão do status detém maior importância e está ligada à
titulação e à docência na graduação e na pós-graduação. Mesmo aí, no entanto,
sabe-se que – como resultado de uma supervalorização da capacidade de gestão
em áreas, como por exemplo, a da pesquisa – têm ocorrido situações novas e
complexas que subvertem valores tradicionais da academia e demandam outras
competências.
A questão da mudança de statuscoloca-se, de fato, de forma clara entre pro-
fessores universitários aposentados e entre outras categorias de profissionais alta-
mente qualificados. Se por um lado não é possível negar que o avanço tecnológico
dos últimos 30 anos gerou situações que, em muitas áreas, são radicalmente
novas, exigindo atualização radical de profissionais considerados ultraqualificados
(como ocorre na medicina e, especialmente, nas técnicas cirúrgicas), esta situação
deu origem a uma ideologia que desvaloriza todo conhecimento que não detenha
o “toque” da revolução científico-tecnológica, como se fosse possível trabalhar
sem conhecimento das técnicas precedentes e sem memória científica. Esta ideo-
logia foi ponto de partida para a desvalorização das gerações mais experientes em
todas as áreas, mesmo naquelas em que – como nas ciências humanas – há uma

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 117


dependência de acúmulo de conhecimento anterior e de erudição. Este fenôme-
no pode ter propiciado a entrada de quadros novos nas organizações, mas gerou
também desperdício de qualificação e de experiência. Este último fenômeno apa-
rece fortemente na aposentadoria precoce, mas é igualmente estimulado por
programas de demissão voluntária e outros mecanismos.
Faz parte do consenso na área das ciências sociais que são os quadros mais
qualificados e mais experientes que arriscam deixar posições estáveis (processo
similar ao da migração territorial). Mas este mesmo processo – num momento
de retração do mercado e de forte pressão de geraçõ es jovens que supostamen-
te detenham uma forma de qualificação mais moderna – pode significar simples-
mente a retirada do mercado de um contingente de profissionais que detenham
conhecimentos e informações privilegiadas e até exclusivas a respeito de serviços
e setores. Isto se observa entre profissionais que entraram em Planos de Demis-
são Incentivada, especialmente entre engenheiros que passaram ao pijama, levan-
do consigo informações preciosas sobre diferentes tipos de tubulações nas cida-
des (luz, gás, telefone, trens) que não se encontram escritas, mas que são resultado
de atuação concreta ao longo de anos.
Tais tendências se acoplam à perda relativa do valor dos diplomas. De um
lado, a sociedade ainda valoriza a posse do diploma, como é possível constatar
entre os professores universitários. De outro, o me rcado formal de trabalho o vê
como um importante elemento de juízo a respeito das competências apropriadas
pelo seu portador. A maior relevância do autodidatismo e de movimentos de
reprofissionalização é, porém, perceptível, assim como a clara valorização de
atividades complementares e alternativas que envolvem conhecimentos coloca-
dos em prática no plano doméstico, tanto no que concerne à produção de bens
quanto a relações interpessoais. Lugar especial é atribuído a qualidades e virtudes
consideradas femininas, como se pode constatar entre professores de primeiro e
segundo graus. O novo quadro demanda maior resistência psicológica às frustra-
ções, disposição e forças psíquicas para competir e enfrentar riscos diversos e
situações novas e difíceis, capacidade de lidar com o sofrimento ligado a situações
de passagem que incidem sobre o status social e profissional.
O modelo que hoje se impõe aos países periféricos, uma variante da trans-
formação do Estado de bem-estar, é o da busca de alternativas pobres e desprotegidas
para seus habitantes.

118 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


POTENCIAISGANHADORESNA NOVA ERA CAPITALISTA

As trajetórias de trabalho entre os profissionais de informática também re-


fletem o enxugamento do Estado, privatizações, cortes de gastos das empresas,
deterioração dos serviços públicos, práticas de gestão da força de trabalho que se
traduzem na precarização das condições de trabalho e na proliferação de formas
alternativas ao assalariamento, que com ela coexistem ou se alternam, como sub-
contratação, trabalho por conta própria, consultoria, contrato de gestão etc. permi-
tindo ao profissional muitas combinações de atuação, segundo o momento no
ciclo de vida e/ou obedecendo a outras considerações que possam influenciar suas
disposições. O desenvolvimento da internet no Brasil no fim dos anos 90 se deu
em um ambiente de flexibilização das relações de trabalho, onde as empresas vêm
sendo reordenadas a partir dos pressupostos ditados por uma nova racionalidade.
A gestão e organização do trabalho passaram a exigir novos saberes. Te-
mas como liderança, personalidade, habilidades e comunicação passaram a ser
priorizados no universo da área de recursos humanos das empresas e começaram
a ser valorizados aspectos como vida pessoal, lazer, visões de mundo, identida-
des, ou seja, uma avaliação das qualidades mais subjetivas como simpatia, agressi-
vidade, capacidade de relacionamento em grupo etc. Além disso, apesar de existir
uma imagem das empresas de tecnologia de informação – TI – como altamente
organizadas, fundadas nas mais modernas e racionais formas de gestão e organi-
zação do trabalho, constata-se que muitos princípios que ordenam as relações de
trabalho estão baseados em laços de lealdade e confiança.
Influenciados pelas novas condições do mundo do trabalho, os profissio-
nais redimensionam suas idéias sobre a vida profissional. Na verdade, são força-
dos a realizar opções, mais ou menos já configuradas, valorizando não mais uma
carreira em uma mesma empresa ou uma profissão, mas destacando a preferên-
cia pelo planejamento contínuo de sua própria trajetória, pelo “auto-empresaria-
mento”. Não há postos de trabalho mas tarefas que precisam ser cumpridas em
um projeto. O contrato, formal ou informal, é feito para o tempo do projeto, no
interior de uma equipe responsável por ele.
Nesse contexto, a internet tem constituído um forte atrativo para os jovens
que a vêm como um mundo cheio de glamour capaz de propiciar sucesso e
dinheiro com rapidez. Esta crença é favorecida pelo conjunto das descobertas que
envolveram a informática e, particularmente, as tecnologias desenvolvidas na e
para a internet, meio no qual aparecem de forma bem nítida as habilidades indivi-
duais e as iniciativas pioneiras de alguns jovens talentosos.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 119


O s exemplos de Bill Gates e outros servem para demonstrar que com
inteligência, dedicação e criatividade é possível ao indivíduo ultrapassar quaisquer
barreiras, como um herói moderno, conquistando a nova fronteira da tecnologia.
A ideologia que aparece sempre reiterada na mídia é a possibilidade de ficar rico e
famoso rapidamente. Por outro lado, quando se desce ao universo das pessoas
comuns que trabalham neste campo, encontramos um conjunto heterogêneo,
com recorrências quanto a trajetórias, formações, relações de trabalho e posi-
ções na hierarquia profissional. As variáveis intervenientes parecem ser o gênero,
a idade e o capital econômico e cultural.
Os dois casos que estudamos constituem campos pouco regulamentados,
permitindo que a inserção profissional se faça mediante a qualificação real, no
trabalho, amplamente reconhecida, muitas vezes, por meio de promoção pelas
empresas do estágio não remunerado e não normatizado. Entretanto, a qualifica-
ção formalizada se mantém altamente valorizada, tanto como uma maneira de
legitimação social da qualificação real como para atender às exigências crescentes
do mercado. Configura-se uma forte tendência para as formas alternativas como
terceirização e quarteirização (com formação de “empresas-filhotes”, “empresas-
irmãs” etc.), “conta própria”, consultoria, contrato de gestão etc. que podem coe-
xistir, alternar-se e misturar-se com o assalariamento, permitindo muitas combi-
nações de atuação, segundo o momento no ciclo de vida e/ou obedecendo a
outras considerações que possam influenciar as disposições. Algumas trajetórias
se caracterizam por compreenderem reconversões profissionais, em determina-
dos momentos, uma vez que a enorme expansão destes campos e sua relação
com quase todos os domínios da atividade humana significou a abertura de espa-
ço no mercado para indivíduos provenientes de outras áreas de trabalho. Por
associar vários saberes, a internet congrega profissionais de diferentes campos de
estudo como designers, jornalistas, profissionais em marketing e de vendas, eco-
nomistas, educadores, psicólogos, engenheiros de hardware e de software, mé-
dicos etc. É notável a grande diversificação de atividades e cargos que se sucedem
à medida que vão sendo criadas novas aplicações para a tecnologia da rede.
As demandas muito diversificadas, a contínua reciclagem e o rápido ciclo
vital das empresas (a velocidade com que as empresas nascem e morrem) permi-
tem caminhos erráticos no mundo do trabalho. A valorização das habilidades que
se constituem no ambiente de trabalho, mais reais que formais, ou de qualidades
extremamente subjetivas e psicológicas (capacidade de relacionamento, liderança
etc.) em contraposição ao mérito objetivo, são tendências que se acoplam a
novas formas de gestão nas empresas (flexibilizando os tipos de contratos, as

120 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


formas de remuneração e o controle do trabalho), mas também contribuem para
uma reconfiguração do sentido do trabalho.
Nessas trajetórias de trabalho e qualificação, é notável como os diferentes
tipos de capital cultural, econômico e social constituem a principal variável interveniente
no caminho seguido pelos entrevistados. Sua influência perpassa todas as entre-
vistas, condicionando fortemente a probabilidade da continuação de estudos de-
pois do 2o grau, a efetivação de um empreendimento ou a possibilidade de desen-
volver uma atividade na área. É importante dominar idiomas, possuir formação de
qualidade e relacionamentos pessoais que façam a “diferença”, além de ter tido,
durante a infância e juventude, informações “tácitas” que transitam pelos ambien-
tes familiar, escolar e de lazer. É claro que, em determinados momentos cruciais
do ciclo de vida, outros fatores sociais podem ocupar o papel principal, e assim
fazer com que o indivíduo se afaste de um “caminho” já traçado (como um casa-
mento precoce tornando obrigatório o trabalho antes do final da formação regu-
lar, ou fatores psicológicos que podem impedir o desenvolvimento pleno de uma
carreira). É também possível romper o bloqueio de uma formação deficiente, de
um curso noturno malfeito, pelo esforço no trabalho. Mas é evidente que aqueles
que, mais rapidamente e com menor esforço, conseguem chegar a um razoável
nível profissional socialmente reconhecido, ou ao empresariado, são oriundos de
famílias com a posse de mais forte capital econômico e social. Entretanto, mesmo
para aqueles que têm sucesso por “conta própria”, o u no projeto empresarial,
estão sempre presentes a precariedade e a incerteza. Assim, as relações de traba-
lho descritas como marcadas pela autonomia escondem perda de direitos.
Dessa forma é que se pode compreender as idéias de empresa-mãe e
empresa-irmã que aparecem no discurso dos entrevistados. Oriundas do paradig-
ma produtivo anterior, estas categorias tinham então uma correspondência na
realidade: correlata à fidelidade à empresa por parte do empregado havia a possi-
bilidade de realização de uma carreira estável, com ganhos previsíveis e segurança
efetiva. As empresas da nova economia além de muito recentes tomaram como
bandeira a instabilidade, fortalecendo a ideologia da autonomia no trabalho. Em
contrapartida, encontramos inúmeras estratégias empresariais visando criar laços
e manter a coesão (como a formação de “empresas-filhotes” no interior da “em-
presa-mãe” ou a prática do contato informal cotidiano no almoço ou jantar dos
empregados com os diretores ou sócios da empresa).
Esta necessidade de criar laços e manter a coesão leva a estratégias bem
radicais. Assim, em muitas das jovens microempresas voltadas para a internet,
dado que as jornadas de trabalho são freqüentemente muito longas, procura-se

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 121


proporcionar um ambiente extremamente “amigável”, de “brincadeira”, um verda-
deiro “play-ground ”, em que o profissional se sente à vontade, como se estivesse
em casa ou usufruindo do lazer. Além das fortes tonalidades do ambiente, os
móveis são coloridos e maquilados (micros com capas de animais, por exemplo);
pode-se parar o trabalho para jogos virtuais, andar de bicicleta ergométrica, pular
na cama elástica ou tomar um banho de piscina. O ambiente torna-se tão amigável
que encontramos um caso em que os jovens empresários alugaram uma casa
ampla onde moram e têm uma empresa, onde trabalham com seus funcionários
e estagiários. Muitos, depois do expediente, permanecem no ambiente de traba-
lho, para se divertir. Aliás, a própria noção de expediente, de tempo no trabalho
ou de tempo de lazer é mal aplicada aqui, diluída pelas inúmeras possibilidades das
tecnologias de comunicação.
O trabalho, realizado no ambiente doméstico ou no espaço da empresa,
exige jornadas muito longas e crescente intensidade dos ritmos de trabalho. Di-
luem-se as fronteiras entre os espaços público e privado, entre os tempos de
trabalho e de lazer, com conseqüente superposição entre os tempos e os espa-
ços. A análise do discurso do profissional mostra como a extrema variedade das
relações de trabalho e as possibilidades criadas pela tecnologia permitem que os
tempos e os espaços de trabalho doméstico e de lazer se misturem, imbricando-
se. A valorização da autonomia no trabalho implica ademais a necessidade de
reconfiguração ideológica das relações dos indivíduos entre si, com outros gru-
pos, com o tempo, o espaço e a família e a reorganização das formas de relacio-
namento familiar e das rotinas domésticas. E, sobretudo, esta valorização da auto-
nomia significou a necessidade de reconfiguração do sentido do trabalho. Em
contraposição, a aparência de falta de controle do trabalho, de autonomia, escon-
de uma realidade de controle total, estrito e implícito que, dependendo do caso,
pode ser feito por meio de planilha eletrônica no próprio computador e/ou pelo
cumprimento de metas em um determinado projeto. Pode ainda ser ditado pela
própria relação de trabalho estabelecida quando o profissional é contratado para
realizar uma tarefa em um prazo previamente determinado. As formas de contro-
le podem variar, mas têm em comum o fato de envolver uma apreciação sobre o
tempo despendido, a qualidade e a possibilidade de transparência para o contra-
tante. Não se trata de confinamento dos corpos em nenhum ambiente, mas de
uma ênfase aparente na liberdade de ação em relação ao tempo e espaço, aumen-
tando o controle sobre os corpos. Nesse momento, o profissional relativiza a
idéia do trabalho autônomo, criativo e livre de controles, ressaltando o controle

122 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


do tempo e do espaço de trabalho, jornadas muito longas e crescente intensidade
do ritmo de trabalho que, por vezes, leva à exaustão.

GRUPOSINTERMEDIÁRIOSE INFORMALIZAÇÃO E GRUPOS


ALTERNATIVO-IDEOLÓGICOSE FORMALIZAÇÃO

A questão da perda de status coloca-se de forma diversa entre os profes-


sores de primeiro e segundo graus. O empobrecimento do setor já ocorreu há
um número suficiente de anos para que não seja hoje vivido de forma dramática,
além do mesmo processo ter provocado uma mudança na extração social dos
docentes que torna essa questão menos perceptível. Tal empobrecimento englo-
ba toda a vida escolar e inclui a nova clientela da escola pública, configurando um
todo no qual a venda de produtos pelos professores não destoa do conjunto.
Deve-se ainda mencionar o fato de que ainda é muito forte a associação da
atividade docente com aquelas típicas das mães de família e donas de casa, predo-
minando na produção e comercialização de bens e serviços, aqueles que de
algum modo se conectam a atividades reprodutivas no âmbito doméstico e nos
quais se manifestam conhecimentos e virtudes femininas. Nesse sentido, poder-
se-ia considerar as atividades paralelas das professoras como formas de “trabalho
ampliado” e de “auto-empresariamento”, cujos limites de compatibilidade com o
magistério só se colocam quando a produção e comercialização ultrapassam muito
os muros das escolas.
As instituições, geralmente constituem uma formidável rede de compra e
venda capaz de contra-arrestar não apenas efeitos do empobrecimento, mas
também da precariedade de tempo livre para compatibilizar a docência ou o traba-
lho informal com a “segunda jornada” ou para assegurar a “dupla presença” no lar
e no trabalho. O comércio termina por permear os espaços possíveis, compon-
do um quadro em que ele é resultado e um dos motores da dessacralização do
trabalho docente. Esta se dá de uma forma “solidária”, no sentido de que os
corpos docentes das escolas, incluindo-se aí as direções, terminam por antecipar
o que tem sido pregado como uma “economia solidária” em tempos de pobreza.
As mulheres, transformadas em chefes de família, enfrentam a crescente
identificação dos membros de sua família e delas mesmas com grupos que não
são mais formados a partir do local de trabalho e da escola, mas de novos meios
(como a televisão ou locais de encontro de jovens) mediante os quais, abstrata-
mente, se estabelecem identidades e solidariedades com base em estilos de con-
sumo com poder simbólico suficiente para cunhar o dia-a-dia. Especialmente

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 123


importantes para os grupos pesquisados (qualificados) são as questões relativas
ao computador, além de todas aquelas que giram em torno da moda e dos costu-
mes ditados a partir dos shopping centers.
O trabalho se intensifica, além disso, pelo seu próprio caráter informal,
porque a informalidade significa também o desaparecimento de um espaço insti-
tucional que naturalmente propicia alguma “gordura” e obriga a provar a excelência
do trabalho a cada momento. Informalidade é, assim, também sinônimo de in-
tranqüilidade, de trabalho precário e inseguro, de internalização da responsabilida-
de por um conjunto de tarefas reintegradas e seu re sultado último na forma de
ingresso e de condições de reprodução, o que significa que o trabalho termina
permeando a totalidade da vida. Há quem hoje defenda a idéia de que, no futuro,
todo trabalho será precário. Isto suporia uma redução das instituições e uma
polarização extrema dos profissionais, uma vez que somente uma parcela muito
pequena de dirigentes restaria institucionalmente ancorada. Suporia também que
a retração das camadas médias seguiria seu curso, com maior polarização social e
muitas interrogações políticas.
Estas questões estão cada vez mais presentes no debate sobre o significa-
do do trabalho na estruturação da vida dos indivíduos. No entanto, também ativi-
dades consideradas alternativas ou complementares àquelas reconhecidas pelo
establishment e aceitas como valiosas pelas pessoas comuns – como práticas
divinatórias, terapias corporais e alimentares dive rsas – começaram a sofrer um
processo de modificação crescente, sendo demandadas e oferecidas ao mercado
de forma diversificada e personalizada. Neste momento de transição, profissões
mais tradicionais sofrem forte processo de desvalorização social (como no já
referido caso dos médicos e dos professores); profissões e conhecimentos pro-
fissionais se desmistificam, perdendo grande parte de seu mistério e glamour ;
novas profissões surgem em conexão, seja com as novas tecnologias, seja com a
integração de tarefas que elas impõem, ao mesmo tempo em que outras profis-
sões e ocupações desaparecem por força dos mesmos processos.
No espaço aberto pela contração do mercado formal de trabalho e pela
ideologia do pequeno empreendimento, somado a necessidades sociais fortalecidas
pela incerteza, insegurança e redução das fontes de ingresso e de proteção social,
as práticas alternativas buscam firmar o seu lugar como profissões. O estilo de
vida alternativo tornou-se uma das possibilidades de consumo dos segmentos
que se mantêm integrados, mas que buscam sempre mais o produto não padro-
nizado, artesanal, personalizado, de qualidade elevada. Na medida em que mes-
mo a grande indústria passou a buscar atender ao go sto individual, enxugando

124 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


seus estoques e permitindo a escolha pessoal de acessórios como forma de
elevar os lucros, os produtos naturalmente fora do padrão tornaram-se uma
opção importante para todas as esferas em que a grande indústria não está pre-
sente. Pode-se dizer, neste caso, que eficiência também é griffe, nela se impondo
a marca da criatividade ímpar do produtor alternativo por oposição ao produto
industrial.
De forma paradoxal em relação a tendências atuais, os praticantes de ativi-
dades alternativas, ao se verem confrontados mais diretamente com o mercado,
começam a buscar legitimação profissional por um processo que tem como pri-
meira meta a obtenção de um diploma. É como se esta etapa tivesse que ser
cumprida para que, mais tarde, se possa colocar em questão os mecanismos
formais de legitimação. Os nossos dados empíricos mostram que, de fato, todos
querem ao menos um certificado, pelo qual se possam vincular institucionalmen-
te e gozar de reconhecimento profissional. Em busca da formalização, o informal/
alternativo quer, na verdade, um diploma apoiado em currículos e programas
legitimados por profissionais reconhecidos (por notório saber, formação em áreas
afins e/ou especialização feita no exterior) emitido, seja por uma escola profissio-
nal (de segundo grau, por exemplo), seja por uma escola de ensino superior. Para
isso estão dispostos a adequar-se ao establishment, o suficiente para aceitar re-
quisitos hierarquizados e formação padronizada sem, contudo, alimentar a pers-
pectiva de uma carreira no que esta tem de tradicional e hierárquico. Controle
disciplinar e de recrutamento, aspectos importantes para os grupos profissionais
clássicos parecem mais flexíveis nos segmentos alternativos.

A QUALIFICAÇÃO NO SÉCULO XXI

Tendo como pano de fundo circunstâncias conjunturais únicas e as mudan-


ças no mercado de trabalho que se comporta de modo cada vez mais seletivo no
que diz respeito às qualificações requeridas, a pesquisa procurou apreender as
estratégias econômicas acionadas por um contingente de trabalhadores que:
a. apresenta níveis de escolaridade dos mais elevados em relação ao conjunto da
população brasileira; b. atua em áreas consideradas estratégicas, como a educa-
ção em todos os níveis, além de desenvolver atividades de pesquisa; c. tem sido
compelido, em muitos casos e de forma contraditória, pelas pressões apontadas,
a aposentar-se precocemente, dispondo, portanto, de um longo tempo de vida
produtiva ou a buscar, no quadro de desemprego crescente, formas autônomas e
alternativas de inserção no mundo do trabalho. O estudo de setores qualificados

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 125


escolhidos mostra a profunda imbricação de inserção formal e atividades infor-
mais, e indica claramente que os segmentos pesquisados da população não po-
dem e, na maioria dos casos, não desejam e não escolhem a inatividade.
No que diz respeito à qualificação, estamos diante de um paradoxo. De
um lado, as transformações contemporâneas exigem um nível mais elevado de
conhecimentos para enfrentar não apenas o trabalho ou a atividade alternativa,
mas a vida diária no plano doméstico e fora dele. De outro, estamos diante de
dois fenômenos que incidem de forma especialmente forte nos países periféri-
cos: a deterioração qualitativa do sistema de ensino em seus diversos níveis e um
elevado desperdício de qualificação e de experiência.
Por sua vez, a qualificação real definitivamente se impôs sobre a qualifica-
ção formal, mas a perda do valor dos diplomas ainda é relativa. A sociedade ainda
valoriza a posse do diploma e o mercado formal de trabalho o vê como um
importante elemento de juízo a respeito das competências apropriadas pelo seu
portador. Maior relevância do autodidatismo é, poré m, perceptível. Atividades
complementares e alternativas envolvem uma valorização de conhecimentos do
plano doméstico tanto no que concerne à produção de bens quanto a relações
interpessoais, com lugar especial para qualidades e virtudes femininas. Estamos,
pois, diante de um quadro que demanda maior resistência psicológica às frustra-
ções, disposição e forças psíquicas para competir e enfrentar riscos diversos e
situações novas e difíceis, capacidade de lidar com o sofrimento.
Tais qualidades e competências compõem o quadro da qualificação real e
sua importância cresce nos contextos mais duramente penetrados pela precariza-
ção e pela informalidade. Nesse sentido, a qualificação real termina por moldar a
inserção alternativa, na medida em que determina o que pode ser trazido ao
mercado como bens ou como serviços e a forma de serem comercializados.
Tudo isto implica a apropriação de conhecimentos e características que antes
pertenciam às empresas: capacidade de julgar a situação do mercado, visão pros-
pectiva, flexibilidade etc.
No que concerne aos recortes pesquisados empiricamente, professores e
pessoas versadas em novas tecnologias continuarão a ser formados pelo sistema,
observando-se, porém, maior força da aprendizagem em serviço além de ten-
dência e necessidade de reciclagem profissional e especialização periódica. Sabe-
res tradicionais e familiares ganham espaço tanto no setor formal quanto no infor-
mal. O s “alternativos ideológicos” procuram fazer reconhecer suas práticas e
legitimar-se profissionalmente. Buscam integrar em cursos superiores já existen-

126 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


tes e reconhecidos, disciplinas isoladas ou conjuntos de disciplinas (muitas vezes
capazes de caracterizar uma especialização): é o caso das terapias corporais (na
fisioterapia, na educação física e mesmo na medicina e na psicologia), da alimen-
tação natural (na nutrição, na medicina, por exemplo), da acupuntura e outras
práticas derivadas da medicina chinesa tradicional (na medicina). Tratam de criar
cursos superiores específicos – como no caso da astrologia; cursos específicos
de segundo grau ou cursos livres de especialização pós-secundária (de terapias
corporais, por exemplo) ou estabelecer caminhos de formação, que embora
formais, são externos ao sistema regular de ensino, geralmente ligados a centros
de atendimento que adotam as práticas em questão. Trata-se, pois, de um pro-
cesso que vai do drop out à profissionalização, o caminho que leva diversos
serviços originários de crenças, hobbies e estilos de vida, à busca da inserção
mediante percursos acadêmicos tradicionais.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

A cada recorte empírico corresponde um relatório de pesquisa. Grande


parte de seu conteúdo foi publicada nos números 4, 6, 8, 9 e 10, da Revista
Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro, IEC. Ver, entre outros:

CALHEIROS, V.; PAIVA, V. Nova era capitalista e percursos identitários alternativos.


Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.9, p.109-133, 2001.

CALHEIROS, V. et al. Percursos formativos na nova era capitalista: do alternativo à


busca da legitimidade profissional. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro:
IEC, n.10, p.113-152, 2001.

CASTRO , E. G. de; PO TENGY, G. F. A Vivência da precarização e da incerteza:


trajetórias de trabalho e estilos de vida na microinformática. Contemporaneidade e
Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.4, p.81-121, 1998.

CASTRO , E. G. de; PAIVA, V.; PO TENGY, G. Produzindo novas identidades: frag-


mentação do trabalho e do consumo e novos estilos de vida na sociedade contemporâ-
nea. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.6, p.73-98, 1999.

CHINELLI, F.; PAIVA, E. Emprego e informalidade. Contemporaneidade e Educação,


Rio de Janeiro: IEC, n.6, p.61-72, 1999.

CHINELLI, F. et al. Aposentadoria docente, crise de identidade e reinserção no mer-


cado de trabalho. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC n.4, p.22-60,
1998.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 127


. Qualificação e empregabilidade entre trabalhadores que aderiram a pro-
gramas de demissão incentivada. (Convênio IEC/CCDT/CNPq. Relatório parcial de
pesquisa mais ampla financiada pelo CNPq e coordenada por Vanilda Paiva)

INSERÇÃO: alternativa de setores altamente qualificados: metodologia e algumas con-


clusões. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.6, p.133-149,1999.

INTRODUÇÃO: virando o milênio. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro:


IEC, n.6, p.9-17, 1999.

PAIVA, V. Educação e mundo do trabalho: notas sobre formas alternativas de inserção


de setores qualificados. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.4, p.8-
21, 1998.

. Mercantilização sem fronteiras. Contemporaneidade e Educação, Rio de


Janeiro: IEC, n.10, 1998.

. O Mundo em mudança: deslocamento temático no final do século e


convivência com a incerteza. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC,
n.6, p.18-48, 1999.

. Nova relação entre educação, economia e sociedade. Contemporaneida-


de e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.6, p.120-132, 1999.

PAIVA, V.; CALHEIROS, V.; SOARES, C. Serviços pessoais: a atualização do tradicional


e do alternativo. IEC, 2000. (Relatório parcial de pesquisa mais ampla financiada pelo
CNPq e coordenada por Vanilda Paiva)

PAIVA, V.; POTENGY, G. Gênero, trabalho doméstico e espaço privado como fonte de
produção de mercadorias e serviços. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro:
IEC, n.6, p.106-119, 1999.

PAIVA, V. et al. A Escola como centro de redes de atividades informais. Contemporanei-


dade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.4, p.61-80, 1998.

PEREIRA, V. M. C. Trabalhos e trabalhadores numa sociedade sem empregos. Contem-


poraneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.4, p.122-150, 1998.

POTENGY, G. et al. O Trabalho na rede: trajetórias profissionais; gestão do trabalho e


do lazer, espaço e tempo. IEC, 2000. (Relatório parcial de pesquisa mais ampla financia-
da pelo CNPq e coordenada por Vanilda Paiva)

Recebido em: julho 2003


Aprovado para publicação em: julho 2003

128 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


EXAME NACIONAL DE CURSOS E POLÍTICA
DE REGULAÇÃO ESTATAL DO ENSINO
SUPERIOR
ALFREDO MACEDO GOMES
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco
alf1964@terra.com.br

RESUMO

Análise da política de avaliação para a educação superior formulada pelo Ministério da


Educação e Cultura – MEC – na gestão Paulo Renato Sousa, com especial ênfase sobre o
Exame Nacional de Cursos – ENC. O artigo discute: 1. os princípios, objetivos e caracterís-
ticas da política de avaliação para o ensino superior; 2. o contexto de formulação e imple-
mentação do Exame Nacional de Cursos e a concepção de seu papel dentro do sistema de
ensino superior brasileiro; 3. a avaliação como o principal instrumento de coordenação e
controle empregado pelo MEC; e 4. as relações estratégicas entre a política de avaliação e
a lógica de regulação estatal. Este trabalho é produto de pesquisa realizada entre 1997 e
2000, em que foram entrevistados atores responsáveis pela formulação de políticas para o
ensino superior no nível federal.
POLÍTICAS EDUCACIONAIS – AVALIAÇÃO – POLÍTICAS PÚBLICAS – ENSINO SUPERIOR

ABSTRACT

THE NATIONAL EXAMINATION OF COURSES AND THE STATE REGULATION POLICY IN


BRAZILIAN HIGHER EDUCATION. This work analyses the assessment policy for higher
education formulated by the Ministry of Education and Culture – MEC – in the Paulo
Renato Sousa’s term, with especial reference to the National Examination of Courses. The
following policy aspects are treated in this article: 1. principles, aims, and methodological
features of the Cardoso government assessment policy; 2. the context of the policy’s formulation
and implementation, and the role played by it in brasilian higher education system; 3. the
assessment as the MEC’s core policy instrument of co-ordination and controlling; and
4. strategic relations between this policy and the logic of state regulation.
EDUCATION POLICIES – ASSESSMENT – PUBLIC POLICIES – HIGHER EDUCATION

Este artigo representa a adaptação do capítulo sexto de tese de doutorado (Gomes, 2000)
realizada na Universidade de Bristol, Inglaterra, no período de 1997-2000, com suporte financei-
ro da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior – Capes. Foi apresentado
na 24a Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, (GT
Política de Educação Superior), realizada em Caxambu (MG), de 7 a 11 de outubro de 2001.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 129-149,2003
novembro/ 2003 129
A linguagem do Programa de Avaliação Institucional das Universidades
Brasileiras – Paiub (Brasil, 1993, 1994) não é a mesma daquela do projeto
educacional do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Este go-
verno tem não apenas uma política diferente de avaliação da educação superior
quando esta é comparada com o Paiub, como também vem implementando-a
com instrumentos e estratégias políticas diferenciadas. Este artigo dedica-se à
análise da mais visível e também criticada iniciativa de política educacional implan-
tada pelo Ministério da Educação – MEC – na gestão do ministro Paulo Renato
Sousa. A hipótese explorada é a de que a política de avaliação desse governo
ilustra os novos mecanismos pelos quais a relação entre governo e os setores
do ensino superior tem sido reestruturada. Mais importante, porém, em ter-
mos dessa hipótese, é a observação de que a política de avaliação, formulada e
estrategicamente implementada pelo MEC, não representa simplesmente uma
mudança no relacionamento entre este governo e os setores do ensino supe-
rior. Representa uma reestruturação significativa dos mecanismos e instrumen-
tos tradicionais e burocráticos que têm historicamente caracterizado a relação
do Estado com a educação superior no Brasil.
O objetivo deste artigo é analisar alguns aspectos da política de avaliação
para a educação superior formulada pelo MEC, na gestão do ministro Paulo Rena-
to Sousa1 , tomando como objeto de análise o Exame Nacional de Cursos –
ENC – e suas rupturas e contrastes em relação ao Paiub. Os seguintes aspectos
são abordados:

1. Os princípios, objetivos e características metodológicas da política de


avaliação para o ensino superior.
2. O contexto de formulação e implementação, e o papel desempenhado
pelos principais atores.

1. Gostaria de enfatizar que os procedimentos, instrumentos e mecanismos constituintes da


política de avaliação para o ensino superior do Governo FHC incorporam, além do
Exame Nacional de Curso, que é analisado neste artigo, os seguintes elementos: 1. a
análise dos principais indicadores de desempenho global do sistema nacional de ensino; 2.
a avaliação do desempenho individual das instituições de ensino superior (aqui se encontra
o Paiub que foi redefinido pela atual administração); e 3. a Avaliação das Condições de
Oferta de Cursos (Brasil, 1996). Em outro artigo (Gomes, 2001), que representa a
parte II da análise Política de avaliação para o sistema de ensino superior do Governo
FHC, esses procedimentos da política de avaliação são tratados detalhadamente.

130 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


3. A avaliação como o principal instrumento político de coordenação e
controle usado pelo MEC.
4. A relação estratégica entre a política de avaliação e a lógica de regulação
estatal.

Os dados analisados neste artigo são de várias fontes. Parte foi coletada em
entrevistas abertas realizadas com pessoas que ocupam posições consideradas
estratégicas no MEC e com membros da Câmara de Educação Superior do Con-
selho Nacional de Educação. Outra parte consiste da legislação da educação supe-
rior, com especial referência para aquela produzida durante o Governo Fernando
Henrique Cardoso (que se iniciou em 1995). Também foram analisados docu-
mentos de política educacional tais como planos e programas, e informações
selecionadas de artigos, entrevistas e discursos publicados na imprensa sobre o
ensino superior no Brasil.

CONTRASTES ENTRE O PAIUB E O EXAME NACIONAL DE CURSOS

Ao analisar uma determinada política, plano ou programa educacional, é


metodologicamente recomendável que se inicie com a descrição do contexto de
formulação da política educacional acompanhada da caracterização dos principais
atores envolvidos em tais processos. Aqui, porém, adotou-se o caminho oposto.
Inicia-se com apresentação das características de duas iniciativas de políticas de
avaliação, primeiro, o Paiub, formulado e implementado durante o Governo Itamar
(1993-1994) e, segundo, o ENC, elaborado e implementado pelo Governo
Fernando Henrique Cardoso. Espera-se, pois, que a comparação apresentada
adiante contribua para o entendimento da atual política de avaliação do MEC e seu
papel regulador em relação aos diferentes setores do ensino superior brasileiro.
O quadro 1, construído com base em documentos analisados e entrevistas, reú-
ne uma síntese das principais informações sobre essas duas iniciativas.
Diante da omissão intencional das informações sobre os contextos de
formação e implementação das duas iniciativas apresentadas no quadro 1, não é
difícil deduzir que uma política de avaliação concebida e implementada sob os
princípios básicos do Paiub não foi formulada pelo governo, e sim pelas universi-
dades federais ou por uma comissão que as representava. Globalidade (ou seja,
todos os aspectos da vida de uma universidade devem ser, em princípio, avalia-
dos), não comparabilidade, respeito à identidade institucional, não premiação ou

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 131


QUADRO 1
PAIUB E ENC: UM OLHAR COMPARATIVO

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


sociopolítico

132
Fontes: Brasil (1993, 1994, 1995, 1996, 1996b); entrevistas.
* IES: Instituições de Ensino Superior; Inep: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos.
punição, participação voluntária e legitimidade política (Brasil, 1994,1993) são
princípios que não fazem usualmente parte da agenda governamental para o ensi-
no superior, pelo menos recentemente. Isso porque, primeiro, estes princípios
são uma declaração de autonomia e, como tal, constituem uma proclamação
antiintervencionista por parte das universidades; segundo, eles elevam a auto-
avaliação à abordagem central e única do processo de avaliação; terceiro, tais
princípios básicos anunciam as missões e objetivos institucionais e, assim, a plena
liberdade da instituição para realizá-los, dado que a avaliação das suas atividades é
um produto de tais princípios e não um antecedente.
O contrário, todavia, pode ser deduzido dos “princípios” subjacentes ao
ENC (Quadro 1). Eles sugerem um grupo de mecanismos de controle a serem
exercidos por agências externas às universidades e às instituições de ensino supe-
rior não universitárias. Os “princípios”: indicadores de resultados, comparação
das performances das instituições, ranking dos cursos em forma de conceitos,
condicionalidade no uso dos resultados da avaliação e participação compulsória
dos estudantes são instrumentos de uma política de avaliação formulada central-
mente e implementada de cima para baixo. Isso porque, primeiro, exprimem o
ímpeto para medir e, assim fazendo, para comparar resultados medidos; segun-
do, “princípios” tais como participação compulsória e condicionalidade no uso
dos resultados anunciam um elevado grau ou potencial de controle e regulação
estatal; terceiro, a comparação pelos resultados leva, com raras exceções, a sua
publicação em formato de ranking ; e, por último, do ponto de vista da política do
Governo FHC para o ensino superior, a publicação dos resultados da avaliação
deve engendrar uma reação “saudável” por parte dos agentes do mercado do
ensino superior (estudantes-consumidores, pais e outros clientes) em relação às
instituições de ensino superior (leia-se “qualidade dos serviços prestados”) e,
como conseqüência, deve gerar práticas modernas de competição entre as IES.
Ambos os grupos de “princípios” do Paiub e do ENC (“Provão”), como se
pode concluir, respondem a diferentes objetivos e usam para tanto distintos pro-
cedimentos de avaliação. Mais importante, todavia, é que eles revelam projetos
educacionais, estilos e práticas de formulação e implementação de políticas que
são essencialmente divergentes.

O CONTEXTO POLÍTICO DE FORMULAÇÃO DO PAIUB

O Paiub resultou de uma parceria entre a Secretaria de Ensino Superior


do MEC e alguns setores das universidades brasileiras. Em 1993, a SESu criou

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 133


a Comissão Nacional de Avaliação cuja principal “função [era] conduzir politica-
mente o processo de avaliação institucional” (Brasil, 1994, p.5). A Comissão
Nacional, coordenada pela SESu e formada por representantes de quatro asso-
ciações nacionais de universidades (Andifes, Abraem, Anup e Abesc)2 e de qua-
tro associações nacionais de pró-reitores (Graduação, Pesquisa e Pós-gradua-
ção, Extensão, e Planejamento e Administração), era vista como representativa
e oferecia, aos olhos da comunidade acadêmica, legitimidade política ao Paiub. A
primeira versão de um documento nacional sobre avaliação institucional, for-
mulada pela Andifes, foi posteriormente discutida e melhorada, gerando o Do-
cumento Básico para Avaliação das Universidades Brasileiras (Brasil, 1993).
Durante o processo decisório, o governo (gestão Itamar Franco) foi um parcei-
ro, e as universidades, particularmente as federais, assumiram o papel de prin-
cipal agente de mudança. Até 1994, o papel do MEC em relação à política de
avaliação foi claramente definido como sendo o de “coordenador articulador e
de agência financiadora da avaliação institucional, assumindo (...) a posição polí-
tica de parceiros das universidades” (Brasil, 1996b, p.1).
Contudo, entre os princípios do Paiub, alguns são particularmente reveladores
para a compreensão do papel exercido pelo MEC em relação ao processo de
avaliação das universidades. São eles: respeito à identidade institucional, não-
premiação ou punição e adesão voluntária ao programa. Esses princípios significa-
vam que o governo federal era bem-vindo como um parceiro desde que ele não
estabelecesse nenhum tipo de condição como conseqüência dos resultados da
avaliação. Entre 1993 e 1994, tanto as lideranças do MEC como os representan-
tes das universidades estavam muito mais preocupados em estabelecer uma “cul-
tura [positiva] de avaliação”, como notou o ex-secretário de educação superior
do MEC Rodolfo Joaquim (Brasil, 1994, p.6). O objetivo mais urgente era desfa-
zer a idéia de avaliação como necessariamente punitiva, idéia essa associada à
publicação da “lista dos improdutivos da Universidade de São Paulo” em 1988. Aí
reside uma das razões da aceitação de que a parceria entre governo e universida-
de deveria ser realizada em observância aos princípios do Paiub. No tocante ao
relacionamento entre o Governo Itamar Franco – gestão Murilo Hingel – e o
ensino superior, o Paiub representou o reconhecimento consensual de que a

2. Na seqüência as siglas desdobradas: Associação Nacional dos Dirigentes das Institui-


ções Federais de Ensino Superior, Associação Brasileira das Universidades Estaduais e
Municipais, Associação Nacional das Universidades Particulares e Associação Brasileira
de Escolas Católicas.

134 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


avaliação seria necessária para elevar a qualidade das atividades acadêmicas (ensi-
no, pesquisa e extensão) e também que o processo e procedimentos avaliativos
deveriam ser conduzidos pelas próprias instituições de ensino superior. Em ou-
tras palavras, a hegemonia política do processo de formulação da política de
avaliação pertencia às lideranças universitárias, os quais definiram os termos e as
condições sob as quais a avaliação deveria ocorrer3.
Este era um contexto no qual as universidades (principalmente as univer-
sidades federais) tinham voz e exerciam considerável influência na formulação
de políticas para o setor. A então Diretora de Políticas Educacionais do MEC,
Maria José Feres, testemunhava que só era possível mudar em “parceria” com
as universidades. Portanto, pode-se concluir que o papel de coordenador assu-
mido pelo MEC/SESu no período 1993/94 parecia ser o de promotor de
encontros nacionais, agitador da cultura de avaliação e financiador dos projetos
de avaliação (no caso das instituições públicas), sem contudo obter dados que
levassem a um acurado ou mesmo razoável diagnóstico dos problemas do
sistema de educação superior4.
A ausência de informações que levassem a um diagnóstico do sistema de
ensino superior brasileiro, e não especificamente de uma instituição ou depar-
tamento, foi a principal crítica dirigida ao Paiub pelas lideranças do MEC (ver

3. As palavras do então Pró-Reitor de Graduação da UFSC e membro do Comitê Asses-


sor do Paiub, Dilvo I. Ristoff, sintetizam de forma incontestável a posição das univer-
sidades em relação ao MEC. Dizia ele: “As universidades, embora se reservem o
direito da dúvida e de ficar com um pé atrás, parecem ter perdido o temor na sua
relação com o MEC pois viram que este entendeu que, como diz a professora Maria
José Feres, Diretora do Departamento de Políticas Educacionais do MEC, “só é possí-
vel mudar com a parceria das universidades”, mesmo porque qualquer análise revelará
que a continuidade de projetos de educação para o país exige organização e articulação
das bases”. E assim concluiu Ristoff: “E neste contexto é impossível não lembrar que os
reitores e pró-reitores têm, via de regra, vida mais longa em seus cargos do que os
ministros e seus assessores” (Brasil, 1994, p.7).
4. O extrato da entrevista que segue com a então responsável no MEC pelo Paiub (que se
revelou sua defensora ardorosa), quando perguntada sobre as deficiências detectadas
no ensino de graduação, testemunha neste sentido: “Essa é uma das coisas que eu
gostaria de conseguir [...] era um dos objetivos esse ano fazer com o Comitê Assessor
uma análise... várias pesquisas estão sendo feitas, vários documentos, várias análises
com base no programa.[...] Logo agora, talvez para o final desse ano, se peça um
relatório da instituição para que ela realmente faça... essa situação onde que ela
avançou, onde não conseguiu avançar, qual foi o entrave maior para que ela não
deslanchasse esse processo...” (Entrevista realizada em 27/5/1998).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 135


Quadro 1). Do ponto de vista das universidades, o Paiub ainda é visto como o
paradigma de avaliação. Daí emerge a posição de que o Paiub pertence às uni-
versidades, para diferenciá-lo da política de avaliação que caracteriza a gestão do
ministro Paulo Renato.
A principal responsável pelo Paiub no MEC assumira que a adesão de um
grande número de instituições de ensino superior devia-se à natureza de seus
princípios básicos, citando como prova que houve um aumento de 55 IES par-
ticipantes em 1994/95 para aproximadamente 90 em 1996/97, e que em
março de 1997, 136 IES haviam aderido ao Paiub. Ressalte-se, porém, que
baseadas nos princípios e formas de implementação do Paiub, não existiam
razões para que as IES recusassem a tornarem-se “parceiros” do MEC, princi-
palmente naqueles casos em que o governo oferecia suporte financeiro às
universidades para realizar a avaliação. É importante argumentar que o significa-
tivo crescimento do número de adesões por parte das IES não se dera inteira-
mente por causa das qualidades dos princípios básicos do Paiub, uma vez que tal
crescimento foi impulsionado por um novo fenômeno que emergira barulhento
no campo do ensino superior brasileiro, o ENC, o qual foi imposto pelo minis-
tro Paulo Renato em novembro de 1995.

PROCESSO DECISÓRIO DE FORMULAÇÃO DO ENC

O processo de formulação e implementação do ENC foi completamente


diferente daquele do Paiub. As associações representativas dos diversos setores
universitários, assim como outros atores do campo do ensino superior, foram
excluídos da sua formulação. De fato, o Governo FHC e particularmente aqueles
que conduzem o MEC sinalizavam com a sua política de avaliação que um relacio-
namento diferente entre o governo e os setores da educação superior estava
apenas iniciando. Isto é demonstrado não só pelo conteúdo da nova política de
avaliação (“Provão”), mas também pela seletividade dos agentes e dos processos
decisórios liderados pelo ministro Paulo Renato Sousa. Isto pode ser interpreta-
do como uma ruptura com o processo ascendente de consulta e parceria que
tinha permeado o contexto de tomada de decisões na administração Hingel, re-
presentando uma recentralização dos mecanismos e processos decisórios. Se-
guindo as metas estabelecidas no Planejamento Político-Estratégico (Brasil, 1995a),
o MEC perseguia sua estratégia de reestruturar a forma de fazer política educacio-
nal assim como os instrumentos de coordenação e controle do sistema, adotan-
do iniciativas agressivas para colocar em prática aquilo que Neave (1988) deno-

136 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


mina Evaluative State (Estado avaliador). O ENC exerce um duplo papel nessa
transformação. Em primeiro lugar, ele tornou-se o produto mais visível, como
política educacional para o ensino superior, do novo estilo de fazer/gerir políticas
do ministro Paulo Renato e sua equipe, e, em segundo lugar, porque o ENC foi
estrategicamente planejado para ser um poderoso instrumento político para for-
talecer e modernizar as funções de controle, monitoramento e coordenação do
MEC. Ou, usando o discurso da moda em educação, para fortalecer a capacidade
de governança sistêmica do MEC. Para reestruturar o MEC na direção de sua
“progressiva transformação” em um “organismo eficaz de formulação, coordena-
ção e acompanhamento de políticas públicas na área educacional” (Brasil, 1995a,
p.4), o Ministro da Educação e equipe descartaram a adoção de formas participativas
de formulação da política de avaliação, e com isso, descartaram também a con-
cepção de que “só é possível mudar com a parceria das universidades”.
Em 1996, o ENC era ao mesmo tempo o produto mais visível da aborda-
gem centralizadora de fazer política e a primeira medida substantiva na área do
ensino superior baixada pelo MEC. Tendo sido formulado durante o primeiro ano
de governo (1995), o ENC não apenas focalizava uma das mais sensíveis ques-
tões do ensino superior brasileiro (a avaliação), mas o fazia trazendo consigo
princípios, procedimentos metodológicos e condições que negavam essencial-
mente o mais elementar consenso político e técnico já alcançado na história do
ensino superior por um programa nacional de avaliação, o Paiub. A reação dos
defensores do programa (professores e lideranças das universidades públicas e
estudantes e, em menor grau, das particulares), à primeira rodada nacional do
ENC, em novembro de 1996, foi considerável, e poucos, mas muito poucos, se
posicionaram em sua defesa. A presidente do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisa em Educação – Inep –, Maria Helena G. Castro, a quem coube a “mis-
são de colocar o ‘Provão’ na rua”, descreve este período como “a batalha do
‘Provão’” 5. Já o ex-presidente da Andifes, Odilon Canto, explicando por que
a Andifes era “contra o ‘Provão’”, dizia: “Quando surgiu a idéia desse provão, nós
nos colocamos contra a idéia de que se pudesse fazer avaliação de um sistema
complexo como é uma universidade com um simples provão. E nós já vínhamos
trabalhando há muito tempo no processo de avaliação institucional”. Ele conclui:
“Nós não somos basicamente contra o ‘Provão’ como um dos parâmetros para

5. A entrevista com Maria Helena Guimarães Castro foi realizada em 6 de junho de


1998.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 137


avaliar as universidades.[…] A forma como ele foi colocado é que está criando
todo esse problema” (Canto, 1996).
É importante notar que o Paiub era o único paradigma de política de avaliação
que poderia (como o foi) ser usado para contra-atacar a ofensiva política do MEC.
Este paradigma deve ser entendido em termos dos seus princípios, da autonomia
acadêmica para formular e realizar o projeto de avaliação institucional e, principal-
mente, dos processos e mecanismos decisórios de formulação das políticas públi-
cas. Em todos esses aspectos, e particularmente no contexto de implementação
do ENC, eles não poderiam ser outra coisa senão duas políticas opostas.
A parte substancial do contexto de formulação e implementação do Paiub
foi justamente o que se excluiu no caso do ENC: participação, parceria e negocia-
ção entre o MEC e os setores universitários6. O que ocorrera então, como os
dados sugerem, é que o ministro da Educação Paulo Renato Sousa e seus asses-
sores mais próximos não identificaram no Paiub o poder necessário para subsi-
diar e equipar o MEC para exercer com “eficiência” e “eficácia” o papel de coorde-
nador do sistema federal de ensino superior. Ou seja, o Paiub não instrumentalizava
o MEC como órgão formulador de políticas para o setor, uma vez que não intro-
duzia na dinâmica do sistema de ensino superior: 1. a real possibilidade de com-
parar o desempenho das IES (universidades públicas – federais e estaduais –,
privadas e comunitárias, instituições não universitárias, cursos por instituição etc.)
e 2. os mecanismos de monitoramento e punição periódicos das IES7.
O contexto de formulação do ENC não foi marcado por preocupações
em torno de participação, representatividade e legitimidade política, como foi o do
Paiub. A principal preocupação aqui era a de implantar um instrumento de geren-

6. Não se pode deixar de lembrar que os interesses dos diversos setores das universida-
des brasileiras são divergentes, marcados por significativas diferenças históricas entre
os setores público e privado. Contudo, em face do contexto de implantação do ENC
essas divergências foram consideravelmente silenciadas. Neste sentido, falando das
resistências ao ENC, Eunice Durham observava: “Ah, sim, todo mundo resistia. Aliás,
a resistência no setor público foi mais organizada do que no setor privado. Acho que
no Brasil o setor privado age de uma forma muito espúria, no sentido que a sua
posição não se manifesta no grande debate. Ele se manifesta em termos de pressão
sobre o Congresso, pressão sobre o Ministério. É uma forma diversa de resistência.
Ao passo que o setor público é o setor no qual os professores se unem, se mobilizam
e se manifestam. No setor privado os professores não contam” (entrevista realizada
em 5 de maio de 1998).
7. Vários depoimentos de membros do MEC apontavam que o Paiub era incapaz de gerar
dados que pudessem ser analisados de forma comparativa.

138 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ciamento político que fosse capaz de permitir ao MEC o exercício da regulação e
acompanhamento do ensino de graduação o qual passa a ser referido como a
prioridade central da política oficial para o ensino superior (Brasil, 1995a; Sousa,
1996, 1998). Parece ter sido o estabelecimento dessa prioridade que levou a
substituição de mecanismos essencialmente burocráticos de controle da qualida-
de por um sistema de avaliação, o qual foi planejado para regular a expansão do
ensino superior: o objetivo nuclear deste governo.
A presidente do Inep, Maria Helena G. Castro, reconstrói alguns aspectos do
contexto de formulação do ENC que contribui para o entendimento do que foi dito:

Eu acho que [o ENC] foi um mérito do ministro Paulo Renato, porque inter-
namente nós tínhamos dúvidas sobre o desenho do sistema de avaliação do
ensino superior e o ministro insistia que ele queria um exame ao final dos
cursos de graduação. Quer dizer, nós enquanto equipe técnica, em particu-
lar a professora Eunice e eu, e a professora Gilda Gouveia, nós tínhamos
dúvidas. Nós achamos que a avaliação tinha que trabalhar com os indicadores
globais de desempenho levantados pelo censo do ensino superior, com as
comissões de visitas e com a avaliação institucional, certo? E com os processos
de auto-avaliação interna das universidades. Mas nós tínhamos dúvidas com a
obstinação do ministro Paulo Renato em relação à implantação do Exame
Nacional de Cursos ao final dos cursos de graduação. E o ministro entendia
que era preciso ter um exame ao final de curso que seria quase que um
termômetro, um sinalizador de problemas e que esse termômetro ele se
conjugaria com os outros procedimentos de avaliação, como a avaliação ins-
titucional que tem uma complexidade muito maior... Então, o ministro diz
assim: não, nós temos que combinar indicadores globais da instituição como
um todo com indicadores dos cursos. O que eu quero saber é: como é que
está funcionando o curso x? Por que o curso x da faculdade tal, que não é uma
faculdade conhecida, funciona bem e o mesmo curso, vamos supor de direi-
to, de uma boa universidade funciona mal? Quais são os referentes que me
permitem fazer essa afirmação? (Entrevista realizada em 6 de julho de 1998)

Esse extrato de entrevista revela, primeiro, que mesmo este seleto e po-
deroso grupo de atores debatia-se a respeito dos procedimentos que iriam com-
por o sistema de avaliação do ensino superior e, segundo, que foi a “obstinação”
do ministro Paulo Renato Sousa que introduziu o ENC na agenda de atividades de
estudantes, professores, departamentos e instituições de ensino superior. Ele
objetivava identificar e expor, sobretudo, os indicadores de desempenho com
alto grau de especificidade pelos diversos setores do sistema de ensino superior,

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 139


focalizando sobre pequenas unidades de análises (a performance dos cursos de
graduação inferida a partir da performance dos seus estudantes) em uma fase
particular de transição da vida estudantil para a profissional, o ano de conclusão
dos cursos. Assim, o ministro Paulo Renato Sousa queria saber “como está fun-
cionando o curso x ?” Com efeito, ele seria capaz de inferir se “o curso x ” estava
funcionando bem ou não mediante a aferição do desempenho dos seus estudan-
tes, classificando o resultado do curso x, quando comparado com os mesmos
cursos de outras IES. Se o curso x da faculdade y alcança um conceito A ou B no
ranking das IES, o MEC (e a comunidade de pretendentes aos estudos superio-
res, assim como a sociedade em geral) raciocina que ele está funcionando bem e
é melhor do que outros com desempenho inferior. Em outras palavras, a orien-
tação básica é especificar, classificar e comparar para que ações subseqüentes
sejam desencadeadas a partir dos resultados da avaliação.
As observações de Maria Helena Guimarães Castro são também revelado-
ras porque reafirmam que o contexto de elaboração do ENC foi altamente sele-
tivo e, para usar um termo familiar ao Governo FCH, “esclarecido”. Como apon-
tada anteriormente, a exclusão dos principais interlocutores, tais como as lideranças
universitárias, é incontestavelmente evidente. Contudo, essa exclusão foi mais
um componente tático do processo decisório liderado pelo ministro Paulo Renato
Sousa do que uma falha do processo político da atual gestão. É também importan-
te notar que a “equipe técnica” pensava um modelo de avaliação que se aproxima-
va muito do paradigma Paiub, e que seus componentes, segundo a presidente do
Inep, tinham dúvidas sobre a viabilidade do ENC. Finalmente, Maria Helena Gui-
marães Castro revela que o ministro Paulo Renato Sousa buscou estabelecer
procedimentos de avaliação que trabalhassem com indicadores de resultados ins-
titucionais e de cursos, os quais, por sua vez, distinguem sua abordagem avaliativa
daquela dos membros da “equipe técnica” que propuseram um modelo mais
amplo de avaliação.
Diante da reação dos estudantes e da crítica dos professores, o ministro
Paulo Renato Sousa reconhecia que a política de avaliação não seria reduzida a
apenas um “teste”. Assim afirmava ele: “Há uma incompreensão sobre a natureza
do exame. Eu já fui reitor da Unicamp e obviamente eu sei que um teste não avalia
uma faculdade. Mas há um conjunto de indicadores que avalia, junto com um teste
que mede o nível de aprendizagem dos estudantes” (Sousa, 1996a). Enquanto
agora parece absolutamente evidente que a política de avaliação do MEC não se
reduz a um teste, a Lei n. 9.131 de 1995, que estabeleceu o ENC, não menciona
nenhum outro procedimento de avaliação, exceto o ENC (Brasil, 1995).

140 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


LÓGICA E MECANISMOS DE REGULAÇÃO DO EXAME NACIONAL
DE CURSOS

Para se obter uma melhor compreensão da lógica sistêmica que caracteriza


o ENC, é importante considerar que:

a. o MEC 8 introduziu, como função do Conselho Nacional de Educação


(especificamente a Câmara de Educação Superior);
b. o poder de deliberar sobre o reconhecimento e recredenciamento
periódico de IES, inclusive universidades, com base nos relatórios e
avaliações apresentados pelo MEC (Lei n. 9.131, de novembro de 1995).
Pela primeira vez na história da educação superior brasileira, uma lei
condiciona recredenciamento de IES à avaliação. Assim, a vida de uma
instituição veio a depender de avaliação periódica. Contudo, até meados
de 1996 o ENC (criado por esta mesma lei) era o único instrumento de
avaliação indicado pelo MEC para satisfazer a condição acima. O Paiub
não foi mencionado como sendo capaz de realizar tarefa tão importante;
c. em dezembro de 1996, portanto mais de um ano depois, a Lei de
Diretrizes e Bases – LDB – foi promulgada e seu artigo 46 reendossa o
princípio da avaliação para o ensino superior, estabelecendo a apropria-
da determinação legal para realizar-se a ligação não apenas entre
recredenciamento de IES, mas também autorização e reconhecimento
de cursos, por um lado, e regular processo de avaliação, por outro. O
periódico caráter da avaliação foi ressignificado como regular. Os incisos
1 e 2 do artigo 46 da LDB estabelecem, respectivamente: 1. a possibi-
lidade de punição para as instituições privadas que apresentem resulta-
dos indesejáveis nas avaliações; e 2. o monitoramento e suporte finan-
ceiro para as instituições públicas;

8 . Gostaria de destacar que não é minha intenção promover o MEC a uma posição de
protagonista superior ao próprio Congresso Nacional. Na verdade, o MEC, como apare-
lho estatal diretamente subordinado ao executivo federal, conseguiu aprovar no Con-
gresso Nacional metas e objetivos que já haviam sido anunciadas em documento de
maio de 1995 (Brasil, 1995a). Por isso, pode-se argumentar que o MEC conseguiu
aliados importantes no Congresso Nacional que contribuíram para o sucesso da apro-
vação de medidas que vieram a facilitar a implementação da política de avaliação do
ensino superior, a qual, como demonstramos, foi altamente criticada pela comunidade
acadêmica.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 141


d. a LDB determina (art. 47, inc. 1) que todas as IES devem disponibilizar
ou informar a todos os interessados o programa dos cursos e outros
componentes curriculares (duração do curso, qualificação ou titulação
dos professores, recursos, critérios de avaliação etc). Com base nessa
determinação, o MEC estabeleceu a Portaria Ministerial n. 878, de julho
de 1997, que especifica, entre outras coisas, as informações pertinen-
tes que as IES devem tornar públicas mediante um catálogo. Entre ou-
tras informações, encontra-se o conceito obtido pelos cursos da IES no
último “Provão”;
e. por meio do Decreto n. 2.306 de agosto de 1997, que torna de
direito, por um lado, a existência de instituições de ensino superior de
natureza lucrativa para atuar no mercado da educação superior, e por
outro, cria os centros universitários, o MEC reafirma a natureza tempo-
rária da autorização e do reconhecimento de cursos, assim como do
recredenciamento de IES, os quais devem ser renovados com base em
processos regulares (e reguladores) de avaliação (art. 14);
f. em maio de 1997, o MEC baixou várias portarias ministeriais, especifi-
cando requerimentos e condições para: 1. a autorização de novos cur-
sos para faculdades integradas, faculdades e institutos superiores (Port.
n. 641); 2. credenciamento de faculdades integradas, faculdades e insti-
tutos superiores (Port. n. 640); 3. credenciamento de centros universi-
tários (Port. n. 639) e 4. universidades (Port. n. 637). Os resultados
obtidos pelas IES nas avaliações realizadas pelo MEC são parte desses
requerimentos.

Pode-se argumentar, pois, que a política de avaliação do MEC não pode ser
reduzida a um simples teste (“Provão”) como alguns dos seus críticos costumam
apontar. Com efeito, o ENC foi planejado para operar uma nova lógica da política
de controle, coordenação e acompanhamento das IES pelas agências estatais
reguladoras (MEC e CNE). A política de avaliação do MEC envolve manipulação
de complexos e variados mecanismos reguladores que produzem impacto sobre
o sistema de ensino superior como um todo. As condições estabelecidas (auto-
rização, credenciamento e recredenciamento), a possibilidade de punição para as
IES particulares (como, por exemplo, o descredenciamento), e mais a publicação
dos resultados obtidos pelas IES nas avaliações de cursos e das instituições, criam
juntos um poderoso instrumento de coordenação, controle e monitoramento

142 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


que não encontram paralelos na história da educação superior brasileira. É impor-
tante notar, além disso, que tais instrumentos reforçam significativamente os cha-
mados agentes e mecanismos do mercado educacional.
É necessário levar particularmente em consideração a magnitude dos nú-
meros que caracterizam o ENC para se poder captar sua importância no contexto
educacional brasileiro. Em 1996, 55.526 estudantes de 616 cursos nas áreas de
administração, direito e engenharia civil foram avaliados pelo ENC. Em 1997, o
ENC expandiu-se para incluir mais três cursos: engenharia química, medicina ve-
terinária e odontologia. Isto representou a avaliação de 85.574 estudantes de
822 cursos. Mais quatro cursos (jornalismo, engenharia elétrica, letras e matemá-
tica) foram avaliados em 1998, envolvendo 142 mil estudantes de 1.710 cursos
(Brasil, 1998). Em 1999, em torno de 173 mil estudantes de 2.151 cursos
foram avaliados devido à inclusão de economia, engenharia mecânica e medicina.
Em julho de 2000, 18 áreas foram avaliadas, porque o ECN expande-se para
incorporar agronomia, biologia, física, psicologia e química (ver Tab. 1). Isto sina-
liza uma nova economia de regulação e coordenação, a qual tem mudado o
relacionamento entre estudantes, professores, administradores, reitores, pró-
reitores de um lado, e do outro, os instrumentos das agências estatais para agir
em relação às instituições de ensino superior.

TABELA 1
NÚMERO DE CURSOS AVALIADOS PELO EXAME NACIONAL DE CURSOS
1996-1999

Cursos Número de cursos avaliados


1996 1997 1998 1999
Administração 335 354 391 431
Direito 179 196 212 229
Engenharia Civil 102 106 110 112
Engenharia Química - 44 47 48
Medicina Veterinária - 37 39 43
Odontologia - 85 86 87
Engenharia Elétrica - - 81 84
Jornalismo - - 84 92
Letras - - 369 382
Matemática - - 291 305
Economia - - - 187
Engenharia Mecânica - - - 70
Medicina - - - 81
To t a l 616 822 1.710 2.151

Fonte: Brasil (1998, 1999).

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 143


De acordo com as expectativas oficiais, como mais e mais cursos serão
avaliados por cada IES, isto irá constituir a avaliação da instituição como um
todo. Os resultados desse procedimento de avaliação, publicados na forma de
ranking por conceitos, e a sua suplementação com a avaliação das condições de
oferta de cursos realizada pela SESu, constituem veículos essenciais para gerar
dados que permitirão a formação de juízo de valor sobre a qualidade do ensino
oferecido pelas IES. De posse dessas informações, estudantes e seus pais
estarão em “melhores” condições para escolher seus cursos. Dessa forma, o
governo muda o papel regulador do MEC ao incorporar as funções de “Estado
avaliador” (Neave, 1988), e requer de ambos, estudantes e IES, um comporta-
mento fundamentado nos princípios da troca, típico de um moderno mercado e
da teoria dos jogos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo realizou análise comparada de duas iniciativas de política de ava-


liação que caracterizam, respectivamente, as gestões dos ministros Murilo Hingel
(1993-1994) e Paulo Renato Sousa. Argumentamos que existem divergências
fundamentais nas duas políticas de avaliação. Também foram identificadas as ra-
zões que levaram o ministro Paulo Renato e sua equipe a descartar o Paiub e
adotar procedimentos de avaliação que gerassem dados para informar os proces-
sos decisórios de formulação e implementação de políticas. Por isso, defendeu-
se aqui o argumento de que a política de avaliação implantada durante o Governo
FHC foi estrategicamente programada para operar uma nova economia de regu-
lação estatal. Isso implica dizer que a atual política de avaliação do MEC não
representou simplesmente uma mudança no relacionamento entre o Governo
FHC e as IES, mas que introduziu mudanças profundas nos mecanismos e reque-
rimentos burocráticos e tradicionais pelos quais se dava o relacionamento entre
as agências estatais e as instituições e setores do ensino superior.
De um estado de ausência de um sistema formal de avaliação no nível
federal, a avaliação do ensino superior tem-se convertido em característica sis-
temática e regular do sistema de ensino superior brasileiro. O “Provão”, assim
como a avaliação das condições de oferta de cursos (Brasil, 1997f, 1999a),
está certamente alcançando uma fase de consolidação, superando as resistên-
cias, diminuindo a hostilidade que marcou as primeiras rodadas de avaliação, e
mais importante, está conquistando suporte para além das fronteiras das univer-
sidades e das instituições de ensino superior. Até 1995, não havia em operação

144 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


nenhum procedimento de avaliação nacional e centralizado que fizesse a ponte
entre credenciamento de instituições e controle da “qualidade” de ensino. O
princípio da avaliação, colocado em prática através do ENC e posteriormente
pela avaliação das condições de oferta de cursos, inaugurou um novo estágio na
história da educação superior no Brasil. A existência do ENC suscitou toda uma
série de fenômenos sociais e educacionais que não podem ser ignorados. Um
deles é a nova forma de legitimação da função social da educação superior que
emerge da avaliação sistemática e regular.
A avaliação, segundo a retórica governamental, diz respeito à “competên-
cia, competição e controle” (Broadfoot, 1996). Estudantes e instituições de ensi-
no têm de “provar” competência para desempenhar suas funções específicas na
sociedade. No primeiro caso, como futuros profissionais habilitados e treinados
e, no segundo, como instituições competentes para oferecer um serviço de qua-
lidade. Nos dois casos, instituições e estudantes, de acordo com a política de
avaliação em curso, são certificados pelo Estado. A regulação estatal (e como
conseqüência, a certificação formal) funda a situação na qual indivíduos e institui-
ções são levados

...a competir em iguais bases para demonstrar suas credenciais de competên-


cia. A situação de uma competição que é aparentemente aberta e honesta
sugere que aqueles que não tenham obtido sucesso na realização das suas
aspirações irão aceitar o critério de seleção racional aplicado e, portanto, suas
próprias falhas. (Broadfoot, 1996, p.10)

Este parece ser, portanto, o papel da avaliação – da participação de estudan-


tes por um lado, e instituições de ensino superior por outro – que legitima as
novas funções do MEC no ensino superior. Contudo, o MEC, ao exercitar suas
funções avaliativas, passa a exercer por isso mesmo um considerável controle
sobre os processos e mecanismos mediadores da interação dos diversos atores
do campo do ensino superior com o objetivo de realizar suas metas. Como a
interpretação oficial sugere (Sousa, 1996, e vários dos entrevistados enfatizaram
este aspecto) a questão do controle – mais especificamente referida como uma
conseqüência positiva da nova sistemática de recredenciamento – incorpora ou-
tros aspectos do ensino superior, dentre os quais se pode mencionar os conteú-
dos curriculares e o contexto institucional. Isto é particularmente interessante
porque a introdução de procedimentos de avaliação (como o ENC) tem-se dado
paralelamente à proposta de reforma curricular dos cursos de graduação.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 145


Dessa forma, pode-se introduzir um segundo aspecto da questão da legi-
timidade, a “expansão” – no caso brasileiro – “de comissões quase-governamen-
tais” (Clark, 1983, p.147), que demonstra uma nova forma de aumentar a coor-
denação governamental sobre as atividades da educação superior. Quando esta
expansão diz respeito ao estabelecimento das funções avaliativas do Estado, coorde-
nação e controle são inseparáveis. Daí que o papel das comissões dentro do
sistema, na forma como o MEC tem definido, materializa-se como “comissões
de especialistas”. Dado que são definidas como especializadas, seus membros
são indicados a partir de concepções de competência, conhecimento e expertise.
Tais comissões de especialistas legitimam técnica e politicamente os critérios de
avaliação do MEC que define de uma forma relativamente precisa o papel “técni-
co” das comissões. Esses dados corroboram com outras evidências, sugerindo
que as mudanças observadas no sistema de ensino superior são resultados da
ação sistemática do MEC que busca a redefinição do papel regulador do Estado
em relação aos setores do ensino superior (Gomes, 2000).
É importante também notar que a principal estratégia usada pelo governo
para implementar sua política de avaliação foi a institucionalização, via leis (o ENC
e o CNE), decretos (os procedimentos constituintes do sistema nacional de
avaliação do ensino superior, os centros universitários etc.) e portarias ministe-
riais (por exemplo, o novo Paiub). Como observa Clark:

...central para a institucionalização é o interesse disfarçado na forma. Os


participantes trabalham para perpetuar uma forma que lhes serve e protege,
na qual eles desenvolvem direitos percebidos como legítimos por outros, e
em torno dos quais eles desenvolvem ideologias que justificam continuidade
e controle. (1983, p.220)

Finalmente, o ministro Paulo Renato Sousa (1996) tem expressado que


uma de suas metas de governo é desenvolver as funções avaliativas do Estado e
diminuir suas funções credenciadoras. Isso parece paradoxal uma vez que já está
estabelecido por evidências históricas e empíricas que o papel nuclear da avaliação
de sistemas é credenciar e certificar. A análise sugere que o governo não desistiu
de suas funções credenciadoras, e sim que mudou fundamentalmente os meca-
nismos e a lógica dos processos reguladores, agora condicionados aos resultados
de avaliação. Os mecanismos burocráticos de controle que negligenciavam (ou
protegiam?) uma determinada dinâmica de organização e funcionamento do siste-
ma, que ignoravam (ou protegiam?) as missões e aspirações dos principais atores

146 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


e setores do ensino superior foram em parte substituídos por critérios de avalia-
ção dos resultados. A nova lógica de funcionamento do sistema de ensino supe-
rior define os agentes e mecanismos do mercado como um novo vetor coorde-
nador do sistema, ao lado do próprio Estado, das universidades e dos professores.
Segundo o MEC, as informações necessárias ao efetivo funcionamento dos me-
canismos de mercado são agora geradas pelo ENC e pela avaliação das condições
de oferta de cursos, e disponibilizadas pelo MEC (Inep e SESu) para o uso com-
petitivo do cliente-cidadão (Pereira, 1998) – os usuários do sistema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Federal de Ensino, as disposições contidas no art. 10 de Medida Provisória n. 1.477-39,
de 8 de agosto de 1997, e nos arts. 16, 19, 20, 45, 46 e inc. 1º, 52, parágr. único, 54
e 88 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e dá outras providências. Brasília,
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Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 147


. Portaria n. 641, de 13 de maio de 1997. Dispõe sobre a autorização de
novos cursos em faculdades integradas, faculdades, institutos superiores em funciona-
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Recebido em: novembro 2001


Aprovado para publicação em: junho 2003

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 149


CONTROVÉRSIAS SOBRE EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA NO BRASIL: MALBA TAHAN
VERSUS JACOMO STÁVALE
WAGNER RODRIGUESVALENTE
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
valente@ pucsp.br

RESUMO

Este texto tem por objetivo analisar historicamente debate entre dois professores brasileiros
de matemática no início dos anos de 1930. Nessa época, foi criada a primeira lei nacional
de ensino – Reforma Francisco Campos – com um currículo nacional que caracterizava, pela
primeira vez no país, a disciplina denominada “Matemática”, resultado da integração dos
ramos independentes aritmética, álgebra e geometria. Os protagonistas da discussão fo-
ram os professores Júlio César de Mello e Souza (1895–1974) e Jacomo Stávale (1881–
1956). Com a análise da controvérsia, busca-se compreender como o cotidiano escolar
brasileiro apropriou-se da primeira proposta de internacionalização do ensino de Matemá-
tica, surgida há mais de vinte anos antes da polêmica.
MATEMÁTICA – REFORMA DO ENSINO – ENSINO DE MATEMÁTICA – CURRÍCULO

ABSTRACT

CON TROVERSIES ABOUT MATHEMATICS EDUCATION: MALBA TAHAN VERSUS


JACOMO STÁVALE. The aim of this paper to analyse, from a historical point of view, the
debate between two mathematics teachers in the beginning of the 1930’s. At that time
the first National Education Law was created (Francisco Campos Reform), including, in
all schools of the country a single curriculum. In it, a discipline denominated “Mathematics”,
wich was the result of an articulation of the independente branches of arithmetic,
algebra and geometry should be taught. The protagonists of the discussion were Júlio
César de Mello e Souza (1895–1974) and Jacomo Stávale (1881–1956). The analysis of
this event provides an understanding about how it possible to Brazilian’s schools daily
routine to incorporat, more than twenty years before this controversy, the first proposal
of internationalalization of Mathematics teaching.
MATHEMATICS – EDUCATIONAL REFORM – MATHEMATICS INSTRUCTION –
CURRICULUM

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 151-167,2003
novembro/ 2003 151
CONTROVÉRSIASCOMO FONTESPARA ESTUDO DA HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO

Polêmicas são situações férteis para estudos históricos. Controvérsias,


disputas, querelas, brigas, enfim, caracterizam momentos em que se torna possí-
vel distinguir as posições e interesses de diferentes protagonistas que participaram
direta ou indiretamente do estabelecimento de marcos históricos. Num texto
sobre as novas perspectivas teóricas para estudo da história das ciências, Pestre
(1998, p.58) mostra quão importantes são as análises de controvérsias para
estudo da estabilização de um fato científico no trajeto histórico de construção das
ciências. Tais análises intentam compreender como os protagonistas de uma que-
rela procederam para estabelecer suas posições, como construíram seus argu-
mentos e de que modo buscaram convencer outras pessoas.
No âmbito especificamente escolar, há os estudos de Chervel1, particular-
mente, um trabalho já bastante conhecido sobre história das disciplinas escolares
que também considera ocasiões de disputa, de controvérsias, como momentos
privilegiados para estudos históricos. O autor salienta que existem períodos privi-
legiados para a análise do trajeto histórico de um determinado saber escolar. Em
tais épocas:

...de um lado, os novos objetivos impostos pela conjuntura política ou pela


renovação do sistema educacional tornam-se objeto de declarações claras e
circunstanciadas. De outro lado, cada docente é forçado a se lançar por sua
própria conta em caminhos ainda não trilhados, ou a experimentar as solu-
ções que lhe são aconselhadas. (1990, p.192)

Dito de outro modo: há momentos em que se confrontam novas determi-


nações legais, sobretudo impostas por reformas educacionais, e práticas pedagó-
gicas já consolidadas. Essas são ocasiões propícias para o surgimento de debates
e polêmicas no âmbito escolar. Relativamente à análise dessas situações de dispu-
ta, do mesmo modo que no âmbito da produção científica, tem-se a possibilidade

1. O texto de Chervel foi originalmente publicado na revista Histoire de L’Éducation, em


1988, posteriormente traduzido para o português e publicado na revista Teoria &
Educação em 1990; finalmente passou a incorporar livro do autor (Chervel, 1998).
Constou ainda da bibliografia referente aos Conhecimentos Gerais de Educação do
Concurso de Professor de Ensino Básico – PEB II –, definida pela Secretaria Estadual de
Educação de São Paulo em 1998.

152 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


de compreender como as partes procederam para estabelecer suas posições,
como construíram seus argumentos e de que modo buscaram convencer outras
pessoas. No que diz respeito às disciplinas escolares, isso poderia ser traduzido
pela análise de como o cotidiano escolar se apropriou2 de determinações legislativas
do ensino, na transformação de suas práticas pedagógicas. Assim, fica patente a
importância que deve ser dada à análise de controvérsias também no meio esco-
lar. Especificamente, ao localizarmos brigas, polêmicas havidas no ensino de Ma-
temática, obtemos a oportunidade, com a análise desses confrontos, de melhor
conhecer o trajeto histórico da educação matemática brasileira.
Este texto tem por objetivo a análise histórica de uma controvérsia entre
dois professores de Matemática no início dos anos de 1930. Por esse tempo, foi
criada a primeira lei nacional de ensino – Reforma Francisco Campos – com um
currículo para todo o Brasil, caracterizando pela primeira vez no país, a disciplina
única denominada Matemática, resultado da fusão dos ramos independentes arit-
mética, álgebra e geometria que constituíam, até então, disciplinas independentes.
O s protagonistas do debate foram o professor Júlio César de Mello e
Souza (1895-1974), e o professor Jacomo Stávale (1881-1956). Mello e Souza
conhecidíssimo professor de Matemática do Colégio Pedro II, lente catedrático
do Instituto de Educação e da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro,
teve muitos de seus textos publicados em várias línguas com o pseudônimo
Malba Tahan3. Jacomo Stávale foi professor de Matemática no Instituto Caetano
de Campos e de vários colégios de São Paulo 4.

COMEÇA A POLÊMICA: O ATAQUE DE MELLO E SOUZA

Rio de Janeiro, 2 de abril de 1933. O jornal A Nação estampou em uma de


suas páginas um artigo intitulado “Um Livro ridículo e errado” de autoria de Júlio
César de Mello e Souza. O já bastante renomado professor de Matemática insur-
gia-se contra a obra didática de Jacomo Stávale, professor em São Paulo.

2. Caberia esclarecer que tomamos o conceito de apropriação caracterizado por Chartier


(1991, p.180) como “uma história social dos usos e das interpretações, referidas a
suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem”.
3. A biografia, trajetória e produção didática de Malba Tahan podem ser estudadas no
trabalho de O liveira (2001).
4. Informações sobre Jacomo Stávale foram obtidas por uma entrevista que fizemos com
a viúva do autor, senhora Consuelo Stávale, em 5 de fevereiro de 2000, em São Paulo.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 153


Mello e Souza iniciou seu artigo ponderando que o ensino de Matemática
vinha sofrendo inúmeras mudanças em diversos países, inclusive no Brasil, e que
a metodologia dessa disciplina apresentava-se radicalmente transformada. Sem
procurar estender-se sobre o movimento renovador do ensino de Matemática,
Mello e Souza sintetizou para o leitor as tendências tradicional e moderna do
pensamento sobre a educação matemática de sua época:

O edifício matemático, constituído pela estrutura das demonstrações e pelo


encadeamento lógico das proposições – como bem acentua Boutroux – con-
tinua inviolável, fiel às tradições euclidianas. Sente-se, porém, que há ten-
dências para tornar “intuitivas” as concepções mate máticas, isto é, a corrente
dominante é aquela que procura modernamente apresentar o ensino sob a
uma forma viva e concreta. As teorias devem trazer como complemento
indispensável, as aplicações práticas que delas resultam.

Depois de discorrer sobre as necessidades modernas do ensino, o autor


concluiu: o “algebrista que pretendesse fazer da Matemática uma escola de puro
raciocínio, surgiria hoje como uma figura ridícula no meio didático”.
Que preceitos fundamentais, então, deveriam os professores seguir diante
das modernas propostas didáticas para o ensino de Matemática? Como o profes-
sor de Matemática poderia afastar-se do algebrista5? Mello e Souza explicou que
nos novos tempos,

...sendo a parte teórica, no curso de Matemática, reduzida a um mínimo,


deve ganhar, por isso, em precisão, muito mais do que perdeu em extensão.
Em outras palavras: a finalidade indireta do estudo científico exige que a parte
teórica seja impecável do ponto de vista do rigor com que são apresentados,
não só os teoremas, como também os conceitos e definições.

Com essa argumentação, que ressaltava o rigor teórico, Mello e Souza


criticou o livro didático de Jacomo Stávale, intitulado Primeiro ano de mathematica –
P.A.M. –, que teve sua primeira edição em 1930. Mello e Souza iniciou a crítica
considerando que Stávale não teve preocupação em ser rigoroso e preciso, o que

5. Em mais de um texto seu, Malba Tahan caracterizou o algebrista. Segundo Tahan


(1961, p.61), por exemplo, trata-se do professor de Matemática que lança mão de
“teorias intrincadas, problemas complicados, sem a menor aplicação; cálculos numéri-
cos, trabalhos reloucados, dos quais o estudante nada aproveita; questões cerebrinas
fora da vida real; demonstrações longas, complicadas, cheias de sutilezas”.

154 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


resultou na produção de uma obra cheia de “erros graves e imponderáveis”, e
repleta de “conceitos e definições que são inaceitáveis”. Depois desse veredicto
inicial, Mello e Souza passou à análise da obra, apontando erros do professor
paulista, levando em conta “alguns exemplos que (nos) parecem mais eloqüen-
tes”. A seguir estão citados os trechos do livro de Stávale, selecionados por Mello
e Souza, para crítica:

• A primeira potência de um número é um produto constituído por um


fator igual a esse número.
• Consideremos, por exemplo, o número 7. Esse número não tem
divisores, é um número primo.
• Expressão aritmética é a indicação de uma série de operações.
• Multiplicação é a operação que tem por fim repetir um número tantas
vezes quantas são as unidades de outro.
• Segmento retilíneo é uma linha reta que tem um comprimento determi-
nado.
• Número abstrato é aquele que não menciona o nomeda unidade.
• Múltiplos do metro são as medidas de comprimentomaiores que o
metro.
• Termômetro com o qual se mede o calor.
• A álgebra resolve todos os problemas que a aritmética declara impossível!
• Vera, passando pela Casa Sloper, viu uma flor cujo preço era 23$000.
Entrou na loja, abriu a sua bolsa, entregou ao empregado os 18$000
que a sua bolsa continha e retirou-se muito satisfeita com a linda flor que
comprara. Como? Ora, dirá uma das colegas. Vera ficou devendo 5$000.
Mas, em álgebra não há dívidas. Para o algebrista não há dívidas. Pelo
contrário, todos têm dinheiro. Donde se vê que a álgebra é um consolo
para as pessoas que devem!

No artigo de A Nação, um a um foram analisados esses trechos por Mello


e Souza. Em todos eles, o autor apontou os erros e fez diversas críticas, usando
ironia, humor e, por vezes, desprezo. Por exemplo, ao criticar o primeiro trecho
selecionado, Mello e Souza escreveu: “eis aí um disparate que nem mesmo uma
pessoa de reduzida cultura não pode repetir”. O utro exemplo: indo ao último
trecho, Mello e Souza disparou:

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 155


Neste ponto, sentimos dizer, o digno Prof. Stávale abusou do direito de
parecer ridículo aos olhos de seus leitores. Afirmar que em Álgebra não há
dívidas é a mesma coisa que dizer que para o astrônomo não há estrelas de
cinema ou para o acadêmico não há letras de câmbio. “A Álgebra é um
consolo para quem deve!” Medite bem o Dr. Stávale sobre essa frase e
procure avaliar a sesquipedal tolice que ela encerra.

Finalizando o artigo, Mello e Souza considerou que os professores que


indicassem a seus alunos o livro de Stávale, “um livro errado e ridículo”, de duas
uma: ou faziam a indicação de algo que não conheciam, praticando “uma levianda-
de criminosa”, ou tinham lido o livro e não perceberam a presença de “definições
erradas, os disparates, as proposições absurdas, as expressões ridículas”.

A DEFESA DE JACOMO STÁVALE

A resposta às críticas de Mello e Souza não tardaria. A partir de um livreto


de trinta páginas, intitulado Coisas da... mathematica, Jacomo Stávale (1933) reu-
niu três textos: o primeiro, de um professor de Matemática, que adotava o seu
livro; os outros dois, de sua autoria, contendo um, a resposta direta ao professor
Júlio César de Mello e Souza; e outro, observações sobre a Revista Brasileira de
Mathematica 6.
André Rocha, professor de Matemática do Ginásio Municipal “Maria Leite”
de Corumbá, à época, Mato Grosso, fez publicar no jornal Tribuna, de Corumbá,
no dia 18 de abril de 1933, dezesseis dias, portanto, após o ataque de Mello e
Souza ao livro de Stávale, um artigo intitulado “Porque adotamos o compêndio
Primeiro ano de mathematica do professor Jacomo Stávale”. No extenso artigo,
Rocha tomou um por um os pontos relacionados por Malba Tahan e saiu em
defesa de Stávale. O professor de Corumbá justificou que escreveu o artigo, pois
como adotou o livro de Stávale, viu-se na “obrigação de procurar desfazer a má
impressão que por acaso a aludida crítica tenha suscitado no espírito dos progeni-

6 . A Revista Brasileira de Mathematica, de acordo com Dias (2000), foi o primeiro


periódico brasileiro dedicado especificamente a assuntos matemáticos. Ainda segun-
do o mesmo autor, o periódico começou a ser editado em 1929, na Bahia. A partir
de seu segundo ano de existência, em 1930, passou a ser publicado no Rio de
Janeiro. Dias destaca que, no Rio de Janeiro, apenas a Livraria Francisco Alves fez
anúncios publicitários na revista. Esses anúncios e ram do livro de Matemática de
Cecil Thiré e Mello e Souza.

156 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


tores dos nossos caros alunos”. Rocha preveniu os leitores, desde o início, de
como iria construir sua defesa e a de Stávale: “Não temos a pretensão de terçar
armas com o ilustrado crítico cujo nome não se limitou a fronteiras da Pátria; é
nosso intento somente, por meio de tratadistas, mostrar que, se realmente o
Prof. Stávale errou, errou em ótima companhia”.
No livreto Coisas da... mathematica, além da reedição do texto de André
Rocha, havia, ainda, o texto de Stávale “Aos professores e estudantes do Brasil”.
Nele, o professor de São Paulo, como havia feito Rocha, tomou um por um os
erros apontados por Malba Tahan e construiu a sua réplica. Antes disso, porém,
mencionou ter ficado perplexo, com a “falta de educação” de Malba Tahan. Con-
siderando que o melhor teria sido, por uma questão de ética, iniciar uma palestra
entre colegas que tendesse a desfazer equívocos... Stávale terminou a introdução
de sua defesa, ponderando que muitos amigos o aconselharam a dar de ombros,
a não responder. No entanto, achou melhor não silenciar. Justificou ter querido se
defender dizendo:

Nasci no Rio, nessa bela cidade que é o orgulho de todos os brasileiros, onde
todos nós nos sentimos bem, confortados pela gentileza e carinho da gente
carioca, e deslumbrados pelas maravilhas com as quais o bom Deus a dotou;
mas resido em São Paulo há quarenta anos e aqui, enrijando a minha fibra
moral ao contato da gente bandeirante, aprendi a não ter medo de lutar.
Respondamos, pois, ao Prof. Mello e Souza, linha por linha.

PONTO POR PONTO, ERRO POR ERRO: O CALOR DOSDEBATES

A fim de localizarmo-nos na polêmica, apreendendo os argumentos, as


lógicas da acusação e da defesa, cabe citar alguns exemplos que alimentaram a
discussão entre os professores. Tomemos o primeiro deles:

A primeira potência de um número é um produto constituído por um


fator igual a esse número

Malba Tahan:
À pág. 71 de sua Matemática escreve o ilustre Prof. Stávale: A primeira potên-
cia de um número é um produto constituído por um fator igual a esse número. Eis
aí um disparate que nem mesmo uma pessoa de reduzida cultura não pode
repetir. Como existir um produto com um único fator? Há erros que não
merecem os comentários da crítica. Esse é um deles.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 157


André Rocha:
O douto professor interroga, com muita razão, como haver um produto de –
um único – fator? No compêndio, de número 05296, 3ª edição, que temos
em nossas mãos, à pág. 71, lê-se: “A primeira potência de um número é
constituída por um fator igual a este número; é, portanto, o próprio número”.
É corriqueiro em Lógica o seguinte caráter das Definições Matemáticas: “Como
todas as definições deverão elas enunciar a essência, e não o acidente”.
Lendo-se todas as definições da página 71, desde “potência de um número”
até a questionada, chega-se à conclusão de que a preocupação do Prof.
Stávale outra não era senão a “essência” da definição de “potência de um
número” tanto que, ao chegar à da “Primeira Potência” ele cita a “essência”
para depois de um “Ponto e Vírgula” enunciar a “conseqüência de um aciden-
te”: “É, portanto, o próprio número”, importante fe cho que o crítico deixou
de mencionar, abastardando assim a sua definição.

Jacomo Stávale:
O ra, a transcrição feita pelo prof. Mello e Souza, não está completa. O que
eu escrevi no meu P.A.M. (3ª edição, pág. 71) foi o seguinte: A primeira
potência de um número é um produto constituído por um fator igual a este
número; é, portanto, o próprio número. A primeira potência de 24 é 24; a primeira
potência de 35 é 35. Portanto, o prof. Mello e Souza não é leal nas suas
transcrições. Todavia, na quarta edição do meu P.A.M., para evitar novos
dissabores, escreverei: Por analogia com as definições anteriores, deveríamos
dizer que a primeira potência de um número é um produto constituído por um
fator igual a este número; ora, não sendo possível existir um produto constituído
por um único fator, concluímos que a primeira potência de um número é o próprio
número. Por exemplo, a primeira potência de 25 é 25. E não há outro remédio...
O prof. Mello e Souza custa tanto a compreender... Agradecendo ao prof.
Mello e Souza esta correção, embora feita em tom pouco amável, aproveito
o ensejo para corrigir uma pequenina falta do seu artigo, no trecho acima
ditado. Diz o prof. Mello e Souza: Eis aí um disparate que nem mesmo uma
pessoa de reduzida cultura NÃO pode repetir. O prof. Mello e Souza deve
suprimir aquele pleonástico e dissonante NÃO, antes que Malba Tahan o
censure por tão grave erro de português.

Tomemos outro exemplo, contido na polêmica, considerando novamente


os argumentos dos contendores:

158 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Segmento retilíneo é uma linha reta que tem um comprimento
determinado

Malba Tahan:
Seria melhor dizer: Segmento retilíneo é uma porção limitada da reta. Seria
melhor – repetimos –e mais correto.

André Rocha:
O ilustre crítico diz que seria melhor: “Segmento retilíneo é uma porção
limitada da reta” e nós afirmamos... É melhor. Nem por isso, atendendo ao
método seguido pelo Prof. Stávale, não nos sentimos com direito de criticá-lo
neste ponto, pois ele procura esclarecer lentamente para o principiante estas
noções de “linha reta e segmento retilíneo” tão baralhadas por muita gente
boa. Tanto é assim que, em seu livro Segundo ano de mathematica, página
239 em “O bservação”, assim diz: “Em rigor não é possível medir uma linha
reta, porque ela não tem começo nem fim. O que se pode medir é um
segmento retilíneo, mas em geral diz-se indiferentemente medir uma linha
reta ou medir um segmento”. Se isto é bastante para depor contra um livro,
deverão merecer menos os seguintes que escrevem “linha reta” quando, em
rigor, deveria ser “segmento retilíneo”: Clairaut, Elementos de geometria, 2ª
ed., 1909, pág. 2: “A linha reta é a distância mais curta que se pode tirar de
um ponto a outro, e por isso é a medida da distância entre dois pontos”.
O lavo Freire – 15ª ed., pág. 16 e seguintes. Legendre, Elementos de geome-
tria, 25ª ed., 1886, págs. 2 e A. Ferreira de Abreu, Apontamentos de geome-
tria, pág. 6: “Uma linha quebrada ou poligonal é uma linha composta de linhas
retas”. S. F. Lacroix, Elementos de geometria, ed. 1874, pág. 3, n. 4: “Mesurer
la distance de deux points ou la longueur d’une droite, c’est chercher le
rapport de cette droite à une autre prise pour unité”. F.I.C., Elementos de
geometria, pág. 2, números 4 e 5. A. Cunha Rosa, Prof. da Escola Industrial
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“Reunião de professores”, Geometria elementar, pág. 5, n. 5. Giuseppe da
Camin, Geometria: obra citada, vol. 2, pág. 8, n. 9. No entanto, são competentíssimos
tratadistas que não estão escrevendo para “1º ano ginasial” e, se assim escre-
veram, é porque acharam que não constitui isto falha.

Jacomo Stávale:
O prof. Mello e Souza continua a citar os meus erro s. Pág. 46. Segmento
retilíneo é uma linha reta que tem um comprimento determinado. Seria melhor

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 159


dizer: Segmento retilíneo é uma porção limitada da reta. Seria melhor –
repetimos – e mais correto. Neste ponto o prof. Mello e Souza tem alguma
razão. Alguma, porque dizer linha reta em lugar de segmento, e vice-versa,
é coisa muito comum, não sendo bastante, evidentemente, para dizer que o
meu P.A.M. é um livro ridículo e errado. O utras razões, com certeza, levaram
o prof. Mello e Souza a atacar tão violentamente o meu P.A.M. Q uais? Não
sei... Entretanto, posso defender a minha definição de segmento retilíneo
citando o sempre clássico Comberousse que, em sua excelente Geometria
(5ª edição, de 1911) diz: Mesurer la grandeur d’une ligne droite, c’est la
comparer à une autre droite, prise pour unité (pág. 7). Donde se vê que os
grandes mestres da Matemática não se preocupam com a distinção entre reta
e segmento retilíneo. Mas neste ponto estou de acordo com o prof. Mello e
Souza. Ao iniciarem o curso secundário, os estudantes devem aprender de
um modo preciso a diferença que existe entre reta, semi-retas e segmentos.
Aliás, esta distinção entre retas, semi-retas e segmentos, eu a faço cuidadosa-
mente no meu P.A.M. (3ª edição, págs. 3, 38, 39, 46, 48, 54, 55, 56, 134,
144, 257, 259, etc, etc...). A minha definição da pág. 46 foi um descuido de
importância mínima; agradeço ao prof. Mello e Souza a sua observação, feita
com alguma cortesia, e prometo servir-me dela na pró xima quarta edição do
meu P.A.M.

Os exemplos considerados nos dão bem a idéia de como se desenvolveu


a disputa. Malba Tahan apontando sempre categoricamente os erros de Stávale.
Este, por sua vez, contando com a ajuda de Rocha. O professor de Corumbá
buscará sempre na citação de outros autores, justificativa para a escrita do livro
que adotou. Por fim, Stávale lança mão de muitos expedientes para responder a
seu oponente sem, contudo, reafirmar a ajuda dada por Rocha.

QUERELA DOSPROFESSORESE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NO


BRASIL

As querelas envolvendo professores de Matemática no Brasil vêm já de


longa data. Desde 1845, pelo menos, isso ocorre. Naquela altura, meados do
século XIX, Cristiano Benedito O ttoni e Francisco Villela Barbosa, o Marquês
de Paranaguá, envolveram-se numa disputa a respeito do ensino de geometria
na Academia de Marinha do Rio de Janeiro 7. Outra polêmica, com grande reper-

7. Essa polêmica está analisada no texto de Valente (1999).

160 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


cussão, foi a que ocorreu entre o professor Euclide s Roxo e Joaquim Inácio de
Almeida Lisboa, ambos professores de Matemática do Colégio Pedro II. Roxo
foi o autor de uma proposta considerada revolucionária para o ensino de Mate-
mática, incorporando as idéias do movimento internacional para modernização
da disciplina, que teve início em 1908, num congresso de matemáticos ocorri-
do em Roma. A proposta envolvia uma concepção de ensino que propunha a
fusão da aritmética, álgebra e geometria. Além disso, sustentava Roxo a idéia de
que o ensino secundário deveria começar a ser dado intuitivamente, longe do
rigor e, paulatinamente, caminhar para a abstração e formalismo matemático. As
idéias de Euclides Roxo ultrapassaram os muros do Colégio Pedro II e ganha-
ram lugar na Reforma Francisco Campos. Lisboa ataco u violentamente a pro-
posta e ambos travaram intensa disputa8 pelo Jornal do Commercio no final de
1930 e início de 1931.
A polêmica entre Malba Tahan e Jacomo Stávale repete, em seu núcleo, a
mesma discussão verificada em outras disputas anteriores entre professores de
Matemática. Trata-se da exigência do rigor. A argumentação para o ataque é sem-
pre o rigor matemático, ou melhor dizendo, a falta de rigor que os textos didáti-
cos apresentam. Assim, O ttoni cobrou rigor do texto de Barbosa; Lisboa fez o
mesmo a Roxo; e, em nosso caso, Malba Tahan apontou erros e considerou
ridículo e errado o livro de Stávale, pela falta de precisão matemática em seu livro
didático para o 1º ano do ensino secundário. Nesta, como em outras polêmicas,
o argumento do rigor esconde outros ingredientes que fazem parte da constru-
ção do trajeto histórico da educação matemática. Assim, pois, há outros elemen-
tos a considerar no caso que estamos analisando.
Por trás da cobrança do rigor feita por Malba Tahan, existia uma disputa
comercial em andamento. Sob o sugestivo título Coisasda... mathematica 9, Jacomo
Stávale organizou sua defesa contra os ataques de um dos mais conhecidos pro-
fessores de Matemática brasileiros. As reticências no título do livreto sugerem,
desde logo, que as discussões tinham origem fora do âmbito da Matemática

8. A dissertação de Rocha (2001), em seu capítulo 3, analisa a polêmica que envolveu


Euclides Roxo e Almeida Lisboa.
9. O título completo do livreto é Coisas da... mathematica: resposta ao professor Júlio
César de Mello e Souza, lente catedrático do Instituto de Educação e da Escola Nacional
de Belas Artes do Rio de Janeiro; redator-chefe da Revista Brasileira de Mathematica.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 161


propriamente dita. Stávale, desde o título, indicava que outros interesses permeavam
a escrita do artigo de Mello e Souza. A disputa comercial fica esclarecida pelo
próprio Stávale quando este afirma – lamentando que Malba Tahan não o tivesse
corrigido privadamente – que para entender a crítica de seu opositor, seria preciso
acrescentar

...a circunstância, deplorável no caso presente, que o prof. Júlio César de


Mello e Souza é também autor de um livro intitulado Mathematica, 1º ano
(Cécil Thiré e Mello e Souza) e que, assim como o meu P.A.M., também se
destina aos alunos do primeiro ano dos cursos ginasiais. Portanto, eu e o prof.
Mello e Souza somos autores e comerciantes e, considerando o artigo do
prof. Mello e Souza, sob este novo aspecto, forçoso é concluir que, também
no terreno comercial, esse professor faltou aos mais comezinhos princípios da
ética profissional. (1933, p.12)

De outra parte, a editora dos livros de Stávale, Cia. Editora Nacional, pro-
duziu e distribuiu os livretos contendo a defesa de seu autor. Em muitos trechos
do livreto, Stávale procurou abertamente trazer a polêmica para o terreno comer-
cial, o que iria enfraquecer os argumentos de Mello e Souza diante do grande
público. Além do texto intitulado “Aos professores e estudantes do Brasil”, no
qual Stávale buscou rebater os erros apontados por Malba Tahan, outro texto foi
reunido no livreto. São comentários sobre a Revista Brasileira de Mathematica10.
O professor de Matemática de São Paulo menciona haver uma parceria entre Júlio
César de Mello e Souza e Salomão Serebrenick11 na editoria da revista. Destaca,
ainda, a existência de propaganda explícita dos livros de Mello e Souza no perió-
dico, e faz pilhéria sobre o texto dos anúncios das obras de Mello e Souza. A
propaganda afirmava serem as obras de seu rival, “o s livros mais interessantes
publicados até hoje, excedendo em clareza e precisão aos melhores compêndios

10. A crítica de Mello e Souza, publicada inicialmente no jornal A Nação, constituiu também
matéria da Revista Brasileira de Mathematica, em seu número de junho de 1933.
11. Salomão Serebrenick ingressou no curso de Engenharia Civil da Escola Polytechnica da
Bahia em 1926, concluindo-o em novembro de 1930. Após a sua formatura, mudou-
se para o Rio de Janeiro. Iniciou precocemente sua trajetória científica ainda na Bahia,
quando em 1927, aos 18 anos, publicou Demonstração do Postulado de Euclides;
depois vieram a Revista Brasileira de Mathematica, que durou de 1929 a 1932; Aspec-
tos da superfície do Sol, resultado de um estudo inédito sobre as manchas solares
observadas na primeira semana de 1930 (Dias, 2000, p.54).

162 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


americanos e alemães”. Stávale reage à propaganda afirmando que como a revista
não iria transpor as fronteiras do Brasil, “os auto res americanos e alemães não
poderão[iam] dar ao prof. J. C. de Mello e Souza a resposta que a sua petulância
merece”. Por fim, Stávale analisa brevemente as seções da revista descrevendo
que, após a propaganda dos livros de Mello e Souza,

...continua a R. B. M. com algumas páginas de auto-reclame; seguem-se bons


artigos de colaboração, mas que em nada interessam ao ensino da Matemá-
tica no curso secundário e... depois... começa a função, isto é, o propósito
firme e evidente de inutilizar todos os compêndios que não sejam da autoria
do prof. J. C. Mello e Souza. (1933, p.27)

É pelas razões mencionadas que Stávale faz questão de incluir no título do


livreto que contém sua resposta, que Mello e Souza era redator-chefe da Revista
Brasileira de Mathemática, fato que terá peso importante na defesa engendrada
pelo professor de São Paulo.
Assim, uma primeira conclusão que se pode tirar da análise da polêmica é
que ela tratou de uma disputa pela hegemonia da produção didática em Matemá-
tica envolvendo Rio de Janeiro e São Paulo. Por conta do Colégio Pedro II, criado
em 1837 para constituir padrão nacional para o ensino secundário, os professo-
res-autores de livros didáticos desse estabelecimento viam suas obras transfor-
marem-se em verdadeiros best-sellers, uma vez que se tornavam, por força de
lei, referências para o ensino das diferentes disciplinas. Com o crescimento da
produção didática em São Paulo e com as modificações da legislação do ensino
que, pouco a pouco foram tirando as prerrogativas do Colégio Pedro II, a hegemonia
carioca foi sendo mais e mais ameaçada. O que obrigava autores já famosos
como Mello e Souza a usarem de expedientes como os que usou contra Stávale:
críticas em jornais, seções de revistas para desabo nar obras didáticas dos mais
diferentes autores-professores de Matemática que surgiam no Brasil dos tempos
de Getúlio Vargas.
Muitos anos mais tarde, em 1962, Malba Tahan inclui em seu livro Matemá-
tica divertida e delirante os textos da polêmica, sob o título “Uma polêmica entre
matemáticos”. No entanto, o autor subtrai da reedição os textos de Stávale, publi-
cando apenas o de André Rocha. Desse modo, Mello e Souza buscou apagar da
memória da educação matemática os ingredientes comerciais presentes na disputa
travada com Stávale. Acrescentando, ao texto original de Rocha, notas de rodapé,
o renomado professor buscou encerrar a polêmica sugerindo que dela tinha saído

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 163


vencedor. A prova de sua vitória, segundo Mello e Souza, eram as modificações
que Stávale fez em seus livros didáticos, nas edições posteriores à briga.
A questão comercial ficou bastante à mostra na contenda. O s textos de
Stávale explicitaram desde logo esse ingrediente fundamental que moveu a briga.
No entanto, há outros elementos relevantes para a história da educação matemá-
tica brasileira, que podem ser revelados pela análise dessa querela.
A educação matemática, sobretudo na primeira metade de 1930, vivia
sob o impacto da Reforma Francisco Campos, que incorporou profundas mo-
dificações no ensino de Matemática. A proposta inicial de reforma está registra-
da na Ata da Congregação do Colégio Pedro II, do dia 14 de novembro de
1927, p.64-67 (Valente, 1999, p.200). Assinam o documento os professores
de Matemática Euclides Roxo, Cécil Thiré e Mello e Souza, dentre outros (Tavares,
2002, p.103). Em 1929, a reforma é implantada no Colégio Pedro II. Com a
revolução varguista, a reforma circunscrita à instituição modelo do ensino se-
cundário ganha caráter nacional. Dentre as modificações feitas no ensino de
Matemática, figuram a proposta de fusão de seus diferentes ramos (aritmética,
álgebra, geometria), ministrados de acordo com os preceitos do Movimento da
Escola Nova, mediante “um ensino orientado segundo o grau de desenvolvi-
mento mental, baseado no interesse do aluno, que deveria partir da intuição e
apenas aos poucos ir introduzindo o raciocínio lógico, que enfatizasse a desco-
berta, e não a memorização”(Miorim, 1998, p.95).
Como descrevemos acima, Mello e Souza foi um dos professores que
apoiaram o movimento renovador do ensino de Matemática. Seu nome figurou
desde o início na proposta de modernização no Colégio Pedro II. No entanto, os
argumentos que utilizou para criticar o trabalho do professor de São Paulo reve-
laram uma compreensão equivocada da proposta renovadora. Retomando o nú-
cleo de sua argumentação, usada para fazer a crítica a Stávale, Mello e Souza
considerou que nos novos tempos de modernização do ensino de Matemática, a
parte teórica tinha sido reduzida a um mínimo e deveria ganhar, por isso, em
precisão, muito mais do que havia perdido em extensão. Sendo assim, concluiu o
renomado professor: “a finalidade indireta do estudo científico exige que a parte
teórica seja impecável do ponto de vista do rigor com que são apresentados, não
só os teoremas, como também os conceitos e definições” (Mello e Souza, 1933).
Dessa maneira, Mello e Souza traduz a renovação como uma tendência de redu-
ção da parte teórica a um mínimo, com um máximo de rigor matemático. Essa
leitura do movimento, feita por Malba Tahan, não consistiu simplesmente em uma

164 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


estratégia para desqualificar o livro do seu concorrente. Ele reafirma essa com-
preensão, de certo modo, também no livro didático, que escreveu com Cécil
Thiré, Mathematica: 1º ano, rival do P.A.M.: primeiro ano de mathematica, de
Stávale. No prefácio podemos ler: “sem fugir ao programa oficial, que seguimos
pari passu, procuramos abordar as diferentes partes da aritmé tica, álgebra e geo-
metria, em conjunto, com simplicidade e máxima clareza, sem a confusão de
assuntos” (Mello e Souza, Thiré, 1930, p. XIII).
Ao fazer alusão ao trato dos ramos matemáticos “sem a confusão dos
assuntos”, Mello e Souza traduz um dos elementos essenciais da proposta reno-
vadora do ensino – a “fusão” da aritmética, álgebra e geometria – por “confusão”.
Assim, Malba Tahan, ao reafirmar a necessidade do rigor matemático e rechaçar a
fusão dos assuntos a ensinar, revelou-se absolutamente refratário às modifica-
ções substantivas que a reforma para a modernização do ensino de Matemática
propugnava.
Jacomo Stávale, por seu lado, não fugiu à arena da disputa circunscrita por
Mello e Souza, a da necessidade do rigor matemático nos textos didáticos. De um
modo ou de outro, buscou argumentos para justificar as objeções feitas por
Mello e Souza nesse terreno. Sua defesa incluiu artimanhas, pilhérias, e, também,
a aceitação de que o rigor era importante. A certa altura, concorda plenamente
com seu opositor sobre como interpretar o movimento renovador do ensino da
Matemática. Stávale afirma que Mello e Souza está cheio de razão ao dizer que, ao
iniciarem o secundário, os estudantes deverão aprender de modo preciso as
definições matemáticas da Geometria (Stávale, 1933, p.19). Ora, justamente a
proposta renovadora, contida na Reforma Francisco Campos, incluía um curso
inicial de Geometria intuitiva, no primeiro ano do secundário, quando não haveria
qualquer preocupação com o formalismo e o rigor! Stávale, buscando defender-
se no âmbito delimitado por Mello e Souza, tampouco partilhou da proposta
renovadora. Também ele, no prefácio de seu livro didático P.A.M., permite que
reforcemos essa conclusão. A certa altura, diz o professor de São Paulo, que não
lhe era “possível concordar com a interdição do método dedutivo no primeiro
ano ginasial” (Stávale, 1931, p.XI).
Essas constatações nos permitem compreender um pouco melhor o traje-
to da educação matemática brasileira, num período tão importante que foi o da
criação da disciplina Matemática. A rejeição a elementos nucleares da proposta
modernizadora, como a fusão dos diferentes ramos, o ensino gradual, conside-
rando a progressão do aluno das formas intuitivas para a abstração formal, está

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 165


documentada em obras didáticas como as que foram objeto da polêmica. Livros
que se tornaram best-sellers em seu tempo 12, acabaram demonstrando como o
cotidiano escolar brasileiro apropriou-se da primeira proposta de internacionaliza-
ção do ensino de Matemática, surgida há mais de vinte anos antes da polêmica. Os
personagens da polêmica que analisamos não travaram, desse modo, um debate
entre o novo e o velho ensino da disciplina, entre concepções diferentes de
educação matemática, como fizeram Euclides Roxo e Almeida Lisboa dois anos
antes, pelas páginas do Jornal do Commercio, em uma série de artigos publicados
entre dezembro de 1930 e março de 1931.
A disputa comercial que envolveu Malba Tahan e Stávale usou como con-
teúdo a discussão sobre o rigor nos textos didáticos de Matemática. Ambos os
contendores demonstraram, cada um a seu modo, a não-aceitação da proposta
de renovação do ensino da disciplina. Tal proposta apregoava que os primeiros
anos de ensino de Matemática deveriam ser intuitivos, afastados do rigor. Além
disso, deveria haver a fusão dos ramos matemáticos. O posterior sucesso edito-
rial dos dois autores reafirmou o fracasso da propo sta renovadora.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

CHARTIER, R. O Mundo como representação. Estudos Avançados, v. 2, n.5, p.173-


191, 1991.

CHERVEL, A. La Culture scolaire: une approche historique. Paris: Belin, 1998.

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DIAS, A. L. M. A Revista Brasileira de Mathematica (1929-193?). Epistème, n. 2, p.37-


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MELLO E SOUZA, J. C. de. Um Livro ridículo e errado. A Nação. Rio de Janeiro, 2 abr.
1933.

MELLO E SOUZA, J. C. de; THIRÉ, C. Mathematica: 1 º ano. São Paulo: Francisco


Alves, 1930.

12. No caso de Stávale, por exemplo, seus didáticos foram reimpressos muitas vezes,
totalizando mais de 150 edições, com um número aproximado de um milhão de
exemplares (Pfromm Netto, 1974, p.81). Relativamente ao livro de Malba Tahan,
escrito com Cecil Thiré, Mathematica: 1º ano, concorrente do P.A.M. de Stávale,
O liveira (2001, p.145) informa-nos que teve, pelo menos, 13 edições até 1941.

166 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998.

OLIVEIRA, C. C. de. Do Menino “Julinho” à “Malba Tahan”: uma viagem pelo oásis do
ensino de matemática. Rio Claro, 2001. Dissertação (Mest.) Unesp.

PESTRE, D. Les Sciences et l’histoire aujourd’hui. Le Débat. Paris, Gallimard, n.102,


p.53-68, nov./dez. 1998.

PFROMM NETTO, S. O Livro na educação. Rio de Janeiro: Primor, INL, 1974.

ROCHA, J. L. da. A Matemática do curso secundário na Reforma Francisco Campos.


Rio de Janeiro, 2001. Dissertação (Mest.) Departamento de Matemática/PUC.

STÁVALE, J. Coisas da... mathematica. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1933.

. Primeiro ano de mathematica. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1931.

TAHAN, M. Didática da matemática. São Paulo, Saraiva, 1961.

TAVARES, J. C. A Congregação do Colégio Pedro II e os debates sobre o ensino de


matemática. São Paulo, 2002. Dissertação (Mest.) Programa de Estudos Pós-Graduados
em Educação Matemática/PUC.

VALENTE, W. R. Há 150 anos uma querela sobre a geometria elementar no Brasil:


algumas cenas dos bastidores da produção do saber escolar. Bolema, v.12, n.13, p.44-
61, 1999.

Recebido em: novembro 2001


Aprovado para publicação em: junho 2003

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 167


A ESCOLA MÉDIA:
UM ESPAÇO SEM CONSENSO
NORA KRAWCZYK
Faculdade de Educação da Unicamp
norak@terra.com.br; nora@unicamp.br

RESUMO

Este artigo busca discutir o processo de implementação da reforma do ensino médio, a


partir de dados colhidos em pesquisa realizada em três estados brasileiros. O intuito é
analisar os principais eixos das reformas estaduais e seus focos mais críticos, a partir do
estudo de seus diferentes aspectos e das tensões geradas entre a intencionalidade das
novas estratégias, a realidade que se quer transformar e o que foi efetivamente produzido
como decorrência das medidas propostas. As preocupações principais suscitadas refe-
rem-se: ao cenário educacional em que convivem velhos e novos problemas que apontam
para a expansão do ensino médio com baixa qualidade, para a privatização da sua
gestão, e, simultaneamente, para um forte componente de exclusão; ao fato de que a
reforma em curso vem afetando sensivelmente o trabalho do professor e a dinâmica
institucional da escola e, em muito menor grau, a realidade educacional do aluno. O
estudo conclui que a situação atual do ensino médio encerra o seguinte paradoxo: uma
reforma curricular complexa junto com a desvalorização do trabalho intelectual da esco-
la como instituição cultural.
ENSINO MÉDIO – REFORMA DO ENSINO

Este texto é de exclusiva responsabilidade da autora e foi produzido como subsídio para a
palestra inicial no Seminário Nacional de Ensino Médio, promovido pela Secretaria de
Ensino Médio e Tecnológico – Semtec – no Ministério da Educação nos dias 5 e 6 de junho
de 2003. Agradeço à Dagmar Zibas e à Raquel Brunstein pelos valiosos comentários na
análise dos dados.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 169-202,2003
novembro/ 2003 169
ABSTRACT

SECONDARY SCHOOL: A SPACE WITHOUT CONSENSUS. This paper aims to discuss the
implementation process of secondary school reform through the analysis of data collected
by a research conducted in three Brazilian states. The purpose is to point out the main
aspects of state reforms and its most critical issues, starting with the study of the different
features and tensions generated between the purposes of the new strategies, the reality to
be transformed and what was actually achieved as a result of the proposed measures. The
main concerns refer to: the educational scenario in which old and new problems coexist,
highlightingthe expansion of lowquality secondary education, the privatization of itsadministration
and, simultaneously, the presence of a strong exclusion component; the fact that the reform
in progresshas significantly affected teachers’ work and the school’s institutional dynamics
and, to a lesser degree, the students’ educational reality. The study concludes that secondary
school current situation encompasses the following paradox: a complex curriculum reform
coexistin with the depreciation of intellectual work of the school as a cultural institution.
SECONDARYEDUCATION – EDUCATIONAL REFORM

Este artigo discute o processo de implementação da reforma de ensino


médio com base em dados colhidos em pesquisa que estamos realizando 1 em
escolas médias de três estados, localizados nas regiões Nordeste e Sul do país2.
O intuito é analisar os principais eixos das reformas estaduais e seus focos
mais críticos, tal como identificados na pesquisa, a partir do estudo dos diferentes
aspectos da sua constituição e do campo de tensões produzido entre a intencio-
nalidade das novas estratégias, a realidade que se quer transformar e a nova
efetividade produzida. Essas três dimensões possibilitam discriminar os elemen-
tos facilitadores e inibidores do êxito da reforma, bem como sugerir novas linhas
de ação político-educacionais.
A Constituição de 1988 define como dever do Estado a “progressiva uni-
versalização do Ensino Médio gratuito”. Como instrumento regulatório, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN –, promulgada em 1996,

1. “Acompanhamento e avaliação da implantação das novas políticas de gestão de Ensino


Médio”, financiada pela Fundação Ford e coordenada conjuntamente pela professora
Dagmar Zibas, da Fundação Carlos Chagas e por mim.
2. Trata-se de pesquisa realizada em 18 unidades escolares de três estados: Pernambuco,
Ceará e Paraná (seis escolas em cada estado), por meio de observações e entrevistas.
Foram também entrevistados técnicos/dirigentes das respectivas Secretarias de Estado
da Educação – SEE – e dos órgãos intermediários das redes estaduais.

170 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


determina que esse nível de ensino integre o ensino básico, juntamente com a
educação infantil e o ensino fundamental.
Historicamente, os índices brasileiros de matrícula no ensino médio sem-
pre foram constrangedores, até mesmo em comparações com outros países
latino-americanos. Nos últimos anos, no entanto, tem-se assistido a uma evolu-
ção significativa no número de matrículas, devido, principalmente, à tendência de
correção do fluxo no interior do sistema – o que tem permitido diminuir a idade
dos concluintes do ensino fundamental –, e às exigências do mercado de traba-
lho, agora mais estreito e competitivo, que motiva os jovens trabalhadores a
demandarem uma carreira educacional mais longa. Assim, é possível observar
que a clientela do ensino médio tende a ser cada vez mais heterogênea, tanto
socioeconomicamente quanto pela composição etária (Krawczyk, Zibas, 2001).
O aumento da demanda da escola média está acontecendo por sobre uma
estrutura sistêmica pouco desenvolvida, com uma cultura escolar incipiente para o
atendimento dos adolescentes das camadas populares, uma vez que, historica-
mente, a escola secundária, dirigida apenas para re sponder às necessidades de
setores médios e da elite, teve como referência mais importante somente os
requerimentos do exame de ingresso à educação superior.
A reforma educacional, iniciada no Brasil na década de 1990, colocou o
ensino fundamental como núcleo de suas preocupações. Todavia, no marco da
tendência latino-americana a partir da segunda metade da década, iniciou-se um
processo de mudança do currículo e de definição de ações para o ensino médio,
buscando atender à nova demanda que, segundo supõe-se, será cada vez maior e
viabilizar as inovações definidas na LDB.
Essas inovações curriculares deveriam articular-se com outras mudanças
também prescritas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, como descentraliza-
ção da gestão, autonomia administrativa, financeira e pedagógica das escolas e
avaliação externa do rendimento dos alunos.
Para viabilizar a reforma curricular proposta, os e stados vêm implementando,
com ajuda de financiamento externo, programas e ações que têm como objetivo,
segundo suas Secretarias de Educação, a otimização de recursos e, ao mesmo
tempo, a democratização e melhoria da qualidade da educação oferecida. Nos
diferentes estados da federação, tais estratégias ganham características próprias,
com ênfases diferenciadas.
Pudemos observar, em primeiro lugar, que, apesar das peculiaridades re-
gionais e locais das reformas de ensino médio analisadas, há larga predominância

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 171


de certas tendências, compartilhadas entre os estados pesquisados, que definem
perspectivas similares. Assim, esta análise privilegiará as caraterísticas comuns,
indicativas talvez de mudanças mais integrais.
A situação atual do ensino médio encerra várias e complexas questões:
aspectos estruturais que ainda não foram resolvidos, a precariedade desse ensino
público no Brasil, condicionamentos mais amplos que dizem respeito às transfor-
mações que ocorrem em outros âmbitos: políticos, sociais e econômicos, dire-
trizes e ações compartilhadas com a política de gestão do ensino fundamental e
tendências em construção a partir de novas diretrizes para a expansão e melhoria
desse nível de ensino.
Assim, as principais preocupações suscitadas pela análise dos dados da
pesquisa que pretendemos discutir são:

1. O cenário educacional em que convivem velhos e novos problemas


aponta para a expansão do ensino médio com baixa qualidade, para a
privatização da sua gestão e, simultaneamente, exibe um forte compo-
nente de exclusão.
2. A reforma político-educacional do ensino médio, em curso, vem afe-
tando sensivelmente o trabalho do professor e a dinâmica institucional
da escola e, em muito menor grau, a realidade educacional do aluno.

Fica mais fácil compreender este aparente paradoxo quando se analisam os


focos principais de atenção governamental e seus desdobramentos diante das
condições materiais, técnicas e pedagógicas presentes nas escolas e à complexi-
dade do tecido institucional. A análise conjunta destas dimensões permite perce-
ber uma penetração institucional maior das mudanças na organização e gestão
escolar e das condições de trabalho docente em relação ao processo de ensino-
aprendizagem propriamente.

PRINCIPAISEIXOSDA REFORMA E FOCOSMAISCRÍTICOS


Adequação da rede física e melhoria do equipamento

A partir de 1997, aproximadamente, as Secretarias Estaduais de Educação


passam a elaborar, a pedido do Ministério da Educação, um documento-base com
o planejamento de ações e metas nas áreas técnico-administrativa e pedagógica
previstas no âmbito da reforma da sua rede de ensino médio, objetivando ser

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beneficiadas com o Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio, financia-
do pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID.
Esse programa envolve um conjunto de investimentos destinados à adapta-
ção da rede física e melhoria da infra-estrutura das escolas. Por isso as primeiras
inovações nas unidades escolares serão: a reforma de seus prédios e a instalação
de bibliotecas e laboratórios de informática, biologia e física.
À primeira vista, quando visitamos a escola e conversamos com a equipe
diretora e os professores, a reforma de ensino médio aparece como sinônimo
de remodelação física. O fato mais significativo a esse respeito na memória dos
docentes é a melhoria do prédio ou de parte dele – conserto do teto, instalação
de ventiladores, restauração dos banheiros etc. – e a instalação de laboratórios e
biblioteca, ainda que o núcleo da reforma assente na revisão curricular. É necessá-
rio perguntar bastante até que os docentes reconheçam as mudanças ocorridas
em decorrência da inovação curricular proposta.
Parece fácil compreender tal fato quando se observa que a política mais
evidente nos três estados analisados é, de fato, a implementação do Programa de
Melhoria e Expansão de Ensino Médio, porque representa um orçamento signifi-
cativo e um compromisso financeiro com o Ministério da Educação e Cultura –
MEC –, afeta o conjunto da rede, ainda que de maneiras diferentes entre as
instituições, e é de fácil visibilidade. Também não se deve desprezar o sentimento
docente de revalorização de seu lugar de trabalho e portanto de si próprio.
A reforma dos prédios escolares, ainda que de forte impacto entre os
docentes e alunos, apresenta sérios problemas devido à qualidade dos materiais,
ao contra-senso de realizar uma reforma física na escola sem levar em conta as
dificuldades de manutenção e o comportamento depredatório dos alunos.
Além disso, é importante considerar que a falta de saneamento básico,
ainda que não seja atribuição da mesma esfera de governo, prejudica a qualidade
da rede física da escola primária. Isto leva a pensar na necessidade cada vez mais
imperiosa de políticas intersetoriais que viabilizem um projeto educacional demo-
crático. Por outro lado, já começa a faltar espaço para o atendimento da demanda:
soubemos que em alguns estados foram fechadas bibliotecas para albergar con-
tingentes de alunos dos programas de telecurso 3 e/ou alugadas instalações perto

3. Trata-se de programas que estão sendo implantados em todo o país, destinados aos
alunos fora da faixa etária apropriada para o ensino médio que permitem a sua
conclusão em, aproximadamente, 18 meses.

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das escolas, chamadas de “anexos”, para abrigar salas de aula muito precárias, em
caráter emergencial.
A qualidade dos laboratórios e bibliotecas é bastante heterogênea no inte-
rior de cada uma das redes estaduais e até mesmo entre as escolas de uma
mesma rede. Encontramos laboratórios com equipamentos bastante atualizados
e escolas onde só existe a sala destinada para essa função. Isto se deve, segundo
as Secretarias, à demora na instalação, porque o dinheiro do empréstimo acabou
e estas têm dificuldades de cumprir com sua contrapartida.
Em alguns estados, encontramos a instalação de unidades escolares de
referência, no planejamento da reforma da rede física, que se destacam pela
estrutura e recursos didáticos. A intenção é, em alguns casos, constituir núcleos
que possam responder às necessidades do conjunto da rede – recursos didáticos
para os alunos de todas as escolas e formação continuada de professores – e, em
outros, que possam ser centros-modelo de inovações educacionais.
O s depoimentos demonstram que as escolas de referência são, de fato,
um conjunto de instituições privilegiadas pelo financiamento do Programa de Melhoria
de Ensino Médio, escolhidas pela qualidade de seus prédios. Não temos registro
de aproveitamento da constituição das escolas-núcleo na formação docente nem
por outras escolas da rede para o trabalho com os alunos. Isso é fácil de entender
se lembramos que, para utilizar essas instalações, os professores teriam de tras-
ladar os alunos de uma unidade para outra, situação difícil de imaginar nas dinâmi-
cas cotidianas observadas nas escolas, como veremos mais adiante. As escolas-
modelo tampouco têm algum tipo de vínculo com as outras unidades da rede ou
irradiam novas formas de trabalho pedagógico.
O que pudemos observar é que esta estratégia de concentrar recursos
materiais em poucas instituições pode ser mais econômica, mas, longe de produ-
zir um efeito multiplicador, tende a consolidar uma sub-rede diferenciada no con-
junto da oferta educacional pública do ensino médio no estado.

REFORMA CURRICULAR
Reorganização curricular

A nova concepção curricular, de acordo com o que preconiza a Resolução


15/98 do Conselho Nacional de Educação, deve ser interdisciplinar e contextua-
lizada, de forma que: “as marcas das linguagens, das ciências, das tecnologias, da
história, da sociologia, da filosofia estejam presentes em todos os momentos da
prática escolar”. Na organização curricular proposta estão reservados 25% da

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carga horária para que as escolas e/ou Secretarias de Educação Estaduais definam
os conteúdos a serem oferecidos para atender aos interesses diversificados e
inclinações de seus alunos – pressupõe-se, desta forma, que os Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCN – possam oferecer as condições para a elabora-
ção de currículos diversificados e, ao mesmo tempo, articulados com a base
nacional comum.
Nos três estados analisados pela pesquisa, os órgãos centrais estão in-
troduzindo o dispositivo da LDB que libera as escolas para a reorganização da
grade curricular e a definição do conteúdo diversificado do currículo. Ainda que
em alguns estados a reforma curricular esteja mais adiantada que em outros,
encontramos em todos as mesmas tendências. Esses princípios de reorganiza-
ção curricular, no entanto, não têm garantido as co ndições para a flexibilidade
curricular suposta.
O argumento das secretarias de educação para não de finir um currículo
estadual é o de oferecer às escolas plena liberdade para elaborar suas grades
curriculares, obedecendo sempre aos princípios básicos estabelecidos pelo MEC.
Nesses termos, a escola passaria a definir propostas pedagógicas próprias, de
forma diversificada e sob uma base comum. A falta de uma política estadual na
construção de um currículo local afeta as possibilidades de contextualização e
regionalização do currículo. Além disso, a falta de uma direção estadual efetiva
impede que as condições reais do universo escolar e seu éthos sejam considera-
das na elaboração do currículo, favorecendo a interferência das características de
cada unidade escolar, a ponto de desqualificar o ensino.
O processo de comunicação entre as diferentes instâncias de governo é
bastante burocrático e ocorre “em cascata”: os dire tores de escolas recebem
informação sobre a reforma curricular por meio dos órgãos intermediários, que
por sua vez receberam indicações das SEE, que transmitem as decisões do
MEC. O s PCNs são referenciados como “o currículo do MEC”, acerca do qual
cada um tem sua opinião, mas, concordando com ou discordando das mudan-
ças, há um distanciamento total das secretarias e dos docentes em relação aos
novos parâmetros.
Nesse quadro, não é difícil compreender a falta de identificação com os
conceitos-chave dos parâmetros. Por exemplo, os conceitos de interdisciplinari-
dade e competência são interpretados de diferentes formas pelos profe ssores e
também pelos alunos. Sabe-se que essa mudança conceitual tem a ver com a
intencionalidade de formar o aluno para que possa lidar com as situações presen-
tes. Em algumas escolas simplesmente se afirma que os conteúdos não são

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 175


trabalhados de forma interdisciplinar porque os docentes não estão preparados
para isso; outros professores dizem que sempre trabalharam com esse critério,
levando aos alunos exemplos da vida cotidiana ou relacionando seus conteúdos
com temas de outras disciplinas. Mas na maioria das escolas se associa interdisci-
plinaridade com a elaboração, pelo conjunto dos professores, de um ou dois
projetos por ano, nos quais, a partir da definição de vários temas da atualidade, os
alunos escolhem um para aprofundar, pesquisar e expor em grupo, sendo avalia-
dos por professores de diferentes disciplinas. Aparentemente, esta dinâmica de
trabalho escolar mobiliza os alunos e professores e m torno de um interesse
comum, pelo menos durante o período de elaboração da apresentação.
O conceito de competência é ainda mais confuso entre os professores.
Algumas escolas estão começando a planejar e avaliar, levando em conta as com-
petências adquiridas pelos alunos, mas o que é isso? De modo geral, os profes-
sores têm dificuldade para explicar o que entendem por competência; alguns
afirmam que são os objetivos de cada tema de sua disciplina ou a capacidade de
resolver os assuntos e problemas por ela colocados; para outros, a competência
envolve também atitudes e comportamentos dos alunos diante do grupo e da
aprendizagem.
O fato de as secretarias de educação não reservarem um espaço próprio
para a transformação dos parâmetros em um currículo estadual, nem para a
definição do conteúdo diversificado, determina uma nova relação entre governo
federal e instituição escolar, processo que discutiremos em vários momentos
desta análise.
Ao mesmo tempo, a aproximação com as instituições permitiu-nos obser-
var que a margem para a ação autônoma das escolas na sua definição curricular é
extremamente limitada. A partir dos depoimentos registrados, é possível pensar
que isso se deve aos seguintes fatores: a.estrutura organizacional das secretarias
que não comporta organizações curriculares alternativas; b.obrigação da escola de
reformular sua grade curricular levando em conta os recursos humanos que já
possui, o que inibe vários projetos inovadores na área diversificada prevista pelos
PCNs; c. falta de recursos para novos investimentos; d. corporativismo docente,
que leva a escola a não propor nenhuma mudança que signifique alterações das
condições de trabalho de seu corpo docente.
Esta situação acaba delineando um cenário em que as possibilidades criati-
vas das escolas são restringidas e as propostas acabam sendo limitadas, na maioria
dos casos, à incorporação de temáticas que possam ser oferecidas pelos profes-

176 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


sores da casa, principalmente aqueles que perderam horas-aula na nova grade
curricular. Ao mesmo tempo, o espaço diversificado do currículo escolar tende a
ser ocupado por “mais do mesmo” ou por um numeroso pot-pourri de temas e
atividades aleatórias. Encontramos também algumas iniciativas que resgatam a
função profissionalizante da escola média, com ensino de conteúdos que prepa-
rariam o aluno para atividades tais como turismo (mediante a melhor formação
histórica, geográfica e urbanística sobre seu estado e sua cidade) e informática,
procurando enriquecer o leque de possibilidades laborais do estudante.
As dificuldades institucionais para criar alternativas curriculares são utilizadas
para reforçar a idéia, presente em muitos órgãos oficiais, de que os professores
são responsáveis por grande parte das dificuldades para implementar diversas
inovações que procuram a melhoria da qualidade do ensino, porque colocam
seus interesses acima das necessidades dos alunos. Lembrar as condições reais
de trabalho, salariais e de formação dos docentes, a ausência de políticas para
mudar essa situação e a falta de espaço da categoria na definição das políticas
educativas pode levar a explicações mais fundamentadas. Estas não se devem
ancorar na busca do “culpado”, e, ainda que não justifiquem a posição de alguns
professores e agremiações, permitiriam compreender a cultura e prática docente
no cenário no qual elas se engendram.
As dificuldades identificadas para uma ação autônoma das escolas no que
tange à inovação na definição e organização das grades curriculares alertam, por
sua vez, para o fato de que a simples afirmação de que as mudanças para a
construção de uma escola democrática têm de vir de baixo para cima não é
suficiente e que é necessário um movimento conjunto, de baixo para cima e de
cima para baixo. Isto significa, em outras palavras, que não há mudanças na orga-
nização e gestão escolar sem mudanças na gestão do sistema educacional e que
transformar a escola significa não só mudar a dinâmica no interior dela, mas
também, e ao mesmo tempo, mudar a lógica de todo o sistema.

Recursos didáticos

A nova concepção curricular em processo de implementação nas escolas


de ensino médio requer recursos didáticos adequados que viabilizem a prática
pedagógica pressuposta. Isso está claro, entre outros, nos documentos de base
das reformas do ensino médio dos estados, em que são enunciadas as principais
ações e a necessidade de instalação de laboratórios de informática, de química e
física e também de bibliotecas.

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No entanto, a precariedade de recursos didáticos na maioria das escolas
dos três estados analisados é paradoxal diante da complexidade da proposta
curricular. A maioria das escolas visitadas tem um chamado Centro Multimeios,
com vídeo, TV e gravador, mas são poucas as que têm um bom acervo de fitas. A
maioria possui apenas as fitas dos programa de telecurso, que muitas vezes são
utilizadas pelos professores para ensinar no curso regular.
É interessante destacar que, ainda que esses programas de aceleração se-
jam muito polêmicos e tenham apresentado resultados não muito positivos, os
professores que passaram por essa experiência de trabalho apreciam ter aprendi-
do outras estratégias de ensino como, por exemplo, o trabalho em grupo, pon-
do-as em prática nas salas de ensino regular. Os recursos oferecidos pelos pro-
gramas de aceleração proporcionam novas dinâmicas de ensino preenchendo o
espaço vazio de uma política de formação. A instalação de laboratórios e bibliote-
cas tem ocorrido em ritmos muito heterogêneos nos estados e entre as escolas
de uma mesma unidade da federação. Em algumas, ainda não foi realizada a refor-
ma física do prédio; outras, que já estão em condições de acolher os materiais
didáticos para os laboratórios e o acervo para a biblioteca, ainda não receberam
nada e, portanto, os laboratórios se reduzem a salas vazias e fechadas à espera do
equipamento. Também existem muitas escolas em que os laboratórios já estão
em funcionamento.
A implantação dos laboratórios de informática tem caraterísticas similares
aos Centros Multimeios. Existe o equipamento básico, os computadores, mas
não há recursos que permitam otimizar seu uso. Neste caso, não há programas
que permitam aos alunos e professores realizar uma pesquisa bibliográfica e mui-
tas vezes sequer estão ligados à internet. Essa situação acaba, na maioria dos
casos, por reduzir o uso dos laboratórios de informática a uma aprendizagem
técnica.
Na apreciação da maioria dos docentes, os laboratórios de física e química
estão sendo bem equipados. Eles são utilizados, principalmente, pelos professo-
res da área que já estão familiarizados com pesquisa em laboratório. É difícil
encontrar professores que explorem os recursos das bibliotecas e dos laborató-
rios de informática disponíveis, ainda que supostamente possam ser utilizados
por qualquer um deles. Alegam-se falta de tempo e necessidade de instrutores de
informática para alunos e professores. Isto leva a supor que a falta de familiaridade
da maior parte dos docentes com esse tipo de recurso inviabilizaria seu uso ou o
tornaria mero auxiliar do ensino tradicional.

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Não obstante, é evidente que este tipo de recurso não só pode permitir ao
aluno ter acesso à informação variada e atualizada, como também oferecer condi-
ções para uma prática de estudo diferente, abrindo espaço para a curiosidade e a
criatividade e novas possibilidades de informação e descobrimento.
Entretanto, nos depoimentos sobre as dinâmicas de trabalho na classe e as
possibilidades de aprendizagem dos alunos, os professores declaram com bas-
tante freqüência a necessidade do livro didático e a impossibilidade de sua adoção
obrigatória devido ao perfil socioeconômico dos alunos. Isso coloca em questão
a política de acesso ao livro didático gratuito exclusivamente para os alunos de
ensino fundamental. Como já se disse, nos três estados, essa deficiência não é
sequer de longe suprida pelas instalações de bibliotecas e de informática.
Se a falta de recursos didáticos é um problema evidente no processo de
ensino-aprendizagem, este fica muito mais complexo e paradoxal quando se co-
gita da agilidade com que as novas informações têm sido oferecidas e das exigên-
cias de interdisciplinaridade e contextualização feitas pela nova concepção curricu-
lar, fulcro da reforma.
O fato de o livro didático ter sido, na maioria dos casos, o principal instru-
mento do professor e do aluno no processo de ensino-aprendizagem pode ser o
motivo pelo qual esses atores evocam a ausência do livro para justificar que a
maior parte do tempo na sala seja dedicado pelos alunos a copiar do quadro-
negro, sobretudo quando não há possibilidade de utilização de fotocópias de
apostilas4 para a classe.
O mercado editorial, ciente dessa carência, parece estar respondendo de
maneira bastante rápida à demanda. Vários professores queixaram-se da edição
de coleções que, a partir de 2002, começaram a ser vendidas e que concentram,
num pequeno livro por disciplina, os conteúdos curriculares dos três anos do
ensino médio. Mesmo considerando que essas coleções oferecem uma visão
muito resumida do conteúdo disciplinar, eles acabavam recomendando-as por
serem mais econômicas.
É possível que a distribuição gratuita do livro didático seja uma necessidade
premente das escolas. Mas, ao centralizar o debate político-educativo em torno
da distribuição de livros para os estudantes da escola média, corre-se o risco de
desconsiderar o valor pedagógico da seleção e elaboração de recursos didáticos

4. As escolas não têm condições de reproduzi-las para todos, por isso as fotocópias
acabam sendo custeadas pelos próprios professores o u pelos alunos.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 179


na organização da aula, reforçando a alienação cada vez maior do professor no
seu trabalho; negar a necessidade de uma ação política que enfrente a falta de
recursos didáticos adequados à complexidade dos processos de conhecimento e
informação nesse nível de ensino; desconsiderar ainda o dinamismo do mercado
editorial, que nem sempre aposta na melhoria da qualidade do ensino. A necessi-
dade manifestada pelos professores acerca de um livro didático que oriente seu
trabalho e facilite os estudos dos alunos pode ser uma demanda legítima, mas ela
deve ser pensada e enfrentada sem negar a abrangência das necessidades didáti-
cas contemporâneas.

Avaliação

Nos três estados, foi implementada uma mudança no regime de avaliação


e promoção dos alunos e, na maioria deles, foi prescrita de forma geral, para todo
o sistema, a avaliação em processo, eliminando-se as notas e estabelecendo-se
apenas conceitos que podem ser resumidos, embora com denominações dife-
rentes em cada estado, em “aprendizagem ou desempenho efetivado, não efeti-
vado ou em processo”. A intenção é que o professor acompanhe cada aluno
individualmente e faça avaliação constante do progresso e das dificuldades de cada
um, providenciando, concomitantemente, a revisão e a recuperação de conteú-
dos não assimilados.
Há muita resistência entre professores e alunos à nova sistemática de ava-
liação. Entre as questões mais freqüentes destacam-se a falta de graduações entre
a avaliação considerada “satisfatória” e a considerada “não satisfatória” e o receio
de que os alunos deixem de se interessar pelos estudos, tendo a convicção de
que serão aprovados de qualquer forma. Muitos profe ssores consideram que as
salas superlotadas e/ou trabalhar em várias escolas impedem o acompanhamento
individual e constante do aluno, dificultando a possibilidade de implementação
dessa sistemática de avaliação. Nesse último caso, o principal questionamento
são as dificuldades de implementação, isto é de mudança de foco – do resultado
para o processo – na avaliação e não uma crítica à forma de registro, como nos
casos anteriores.
Em resumo, de maneiras diferentes, questiona-se o critério de justiça im-
plícito na proposta de avaliação por conceito, que cria um mal-estar entre os
professores, que interpretam a mudança no sistema de avaliação, sem as condi-
ções adequadas de trabalho, como uma estratégia dos órgãos centrais para pro-
mover a maioria dos alunos, a fim de melhorar as estatísticas oficiais de rendimen-

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to, sem maiores investimentos. Essas apreciações estão também entre os alunos
que só conhecem os fundamentos e propósitos do novo sistema de avaliação
através da opinião de seus professores.
A dinâmica que introduziu o novo sistema de avaliação influi, sem dúvida, na
sua implementação nas escolas. A definição de uma política de avaliação descolada
do ensino, a falta de entendimento tanto pelos professores quanto pelos alunos
e suas famílias, a ausência de reflexão sobre o “saber” institucional fortemente
ancorado numa ótica meritocrática5 e o fato de que muitos profissionais da edu-
cação estejam persuadidos de que os docentes gostam de reprovar e de utilizar a
“nota” como ferramenta disciplinar, condicionando um diálogo preconceituoso
com estes, têm favorecido as resistências, os mecanismos de simulação e os
limites da execução do novo sistema de avaliação na antiga prática pedagógica.
É difícil descrever o processo de avaliação hoje presente na maioria das
escolas. É visível que estamos diante de um processo de transição em que dife-
rentes concepções e interpretações de avaliação e comportamentos docentes se
entrelaçam, produzindo situações contraditórias e de tensão. Ao mesmo tempo
em que muitos dos professores declaram que, de fato, nada mudou, que conti-
nuam avaliando do mesmo modo, tendo apenas mudado a forma de registro
porque, no final do semestre transformam a nota em conceito, observamos
também que, aos poucos,eles começam a ganhar intimidade com o novo sistema
de avaliação e diminuem sua resistência. Mas isso não significa necessariamente
que o propósito do sistema de avaliação em processo esteja a caminho de ser
alcançado, já que não há uma concepção de aprendizagem condizente com a nova
concepção de avaliação. Não se produz, portanto, uma nova prática pedagógica.

GESTÃO ESCOLAR

A gestão da escola é um dos temas mais comentados no âmbito das Secre-


tarias de Educação, no marco de um processo mais amplo de descentralização
das suas ações e de reorganização dos órgãos intermediários.

5. A ótica meritocrática parte do princípio de que reconhecer o mérito individual é sinô-


nimo de democracia. Pressupõe que a diversidade de possibilidades de aprendizagem
entre os alunos deve-se unicamente a suas capacidades, esforço e disponibilidade de
estudar, e concentra a avaliação somente nos desempenhos acadêmicos do estudante,
excluindo toda consideração de ordem relacional.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 181


Os Programas de Melhoria e Expansão do Ensino Médio dos três estados,
apresentados ao MEC, estabelecem como uma de suas metas prioritárias, junto
com a reforma física e instalação de equipamentos nas escolas, a mudança da
gestão, a descentralização das ações e a autonomia administrativo-financeira.
Muitos programas federais e estaduais que chegaram posteriormente às
escolas, com regras claramente definidas de redirecionamento do cotidiano esco-
lar, também têm como objetivo primordial instaurar dispositivos de ação institu-
cional para melhorar sua capacidade de planejamento e administração orçamentá-
ria. São eles que garantem o aumento de responsabilidade dos atores educacionais,
tendo como referência o processo de descentralização dirigido à escola.
Um dos programas que têm maior presença nas escolas é o Fundescola,
programa federal que exige das instituições a elaboração de um Plano de Desen-
volvimento Escolar – PDE –, elaborado por toda a comunidade escolar, repre-
sentada no Conselho de Escola, a fim de que se tornem aptas a receber os
recursos solicitados. Supõe-se que o PDE seja veículo e produto de uma gestão
participativa na escola. Mas, e paradoxalmente, é muito pouco lembrado pelos
professores e, às vezes, nem é referido pelos diretores.
O PDE é um programa de gestão financeira dirigido para o ensino funda-
mental, no qual o ensino médio “pega carona”, como veremos. Este programa,
ainda que suponha a produção de uma proposta educacional institucional, não
estimula uma nova forma de trabalho pedagógico, mas de administração escolar,
ancorada na lógica participativa. Incentiva uma gestão escolar sob perspectiva tec-
nocrática e não como resultado de uma prática social democrática, na qual os
atores coletivos são sujeitos do próprio processo de mudança.
Existem também outros programas federais, estaduais e privados6 de im-
plementação de políticas pedagógicas que também chegam à instituição na forma
de “pacotes”. Conversando com os diretores, é possível perceber que a gestão
escolar hoje depende da boa administração institucional de um conjunto de pro-
gramas implantados de maneira superposta, sem articulação entre eles e sem
constituir uma proposta pedagógica institucional.
Essa lógica imposta às escolas reproduz a gestão educacional comparti-
mentalizada “em programas” dos órgãos intermediários, das Secretarias Estaduais
e do MEC, sendo produto, entre outros, de uma política educacional viabilizada

6. Implementados nas escolas por fundações e Organizações Não-Governamentais – ONGs.

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principalmente por meio do financiamento externo negociado em diferentes momentos
para desenvolver diversos projetos e/ou programas.
A dinâmica da maioria dos programas que chegaram às escolas nos últimos
anos e o modo de proceder das secretarias na reforma curricular, como vimos
anteriormente, vem instaurando uma nova lógica de gestão educacional que redi-
mensionou o papel da União e dos agentes privados na educação.
Essa nova lógica de gestão educacional que se instaura na gestão do ensino
médio vai além da dicotomia controle/execução e envolve novas relações entre
governos federal e estadual e unidade escolar, relações que, ainda que tenham
seu fundamento no complexo e confuso ordenamento jurídico constitucional de
um regime de colaboração dificilmente viabilizado, não se esgotam nesse âmbito
e por isso, sem dúvida, merecem ser estudadas em profundidade.
Ao mesmo tempo, esses projetos convivem com “velhas” propostas de-
mocráticas de gestão escolar originadas e defendidas pelos docentes na década
de 80, como as que comentamos a seguir.

Eleição do(a) diretor(a)


Em grande parte dos estados brasileiros, a função de direção geral da esco-
la pública tem um histórico de práticas clientelistas, em que a única forma de
ascender a essa posição era por indicação de políticos ligados à administração
estadual ou municipal. No entanto, no processo de redemocratização do país,
após o período de ditadura, diversas unidades da federação incluíram em sua Cons-
tituição a obrigatoriedade da eleição como critério de escolha dos(as) diretores(as)
das escolas públicas (Krawczyk, Zibas, 2001).
Todos os sistemas de eleição de diretores adotados pelos estados, ainda
que com caraterísticas distintas e com participação diferente dos órgãos centrais,
tendem a combinar requisitos acadêmicos, avaliação de conhecimentos gerais e
específicos e eleição com a representação de todos os segmentos educativos:
pais, alunos, professores e funcionários. No processo eletivo, concorrem dife-
rentes candidatos com suas propostas de gestão escolar.
Pelo fato de os alunos serem numericamente determinantes nesse pro-
cesso, ainda que esse universo tenha o mesmo valor que os demais segmentos
educativos, os candidatos costumam escolhê-los como seus principais interlocu-
tores de campanha. Já os professores da casa acabam por desempenhar, na sua
maioria, o papel de “cabos eleitorais”. Esta dinâmica orienta o tipo de propostas
apresentadas pelos candidatos, que tentam torná-las mais próximas dos interes-

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ses e do universo dos alunos. Ela estabelece um diálogo entre a futura direção e
os discentes e, ao mesmo tempo, cria uma relação de solidariedade com alguns
professores e situações de conflito com outros, o que, segundo depoimentos,
uma vez realizada a eleição, afeta o engajamento dos docentes opositores na
gestão do dirigente eleito.
Embora aparentemente mais democrático, no processo de eleição têm
sido identificadas também práticas clientelistas que produzem certos comporta-
mentos corruptos ainda presentes nos processos eleitorais de algumas unidades
da federação. Há, por exemplo, professores que ao se candidatarem para o cargo
de diretor oferecem recompensas aos alunos mais jovens e/ou a colegas em
troca de seu voto.
Não encontramos, no entanto, um processo pedagógico na comunidade
que permita a construção de mecanismos de controle capazes de inibir esse tipo
de prática e potencializar o caráter democrático do processo eletivo para escolha
do diretor. Em outras palavras, não há uma intencionalidade pedagógica explícita
no processo de eleição do diretor de escola, e destaque-se o fato de que ali o
exercício democrático é, principalmente, um comportamento educativo para a
construção de uma sociedade democrática.
A eleição do(a) diretor(a) surgiu no Brasil como expressão da reconstru-
ção do sistema democrático, à qual se soma, na década de 1990, um conjunto de
ações de gestão participativa nas escolas. A mudança da lógica de designação da
direção escolar consolidou-se em algumas regiões do país. Entretanto, o proces-
so continua cercado de dificuldades políticas, não havendo consenso, tanto nos
órgãos centrais quanto na própria comunidade escolar, com relação a mecanis-
mos de controle que garantam a governabilidade do sistema escolar e, ao mesmo
tempo, conservem o caráter democrático do processo. Este, sem dúvida, muito
fecundo no contexto de reconstrução social e política que sucedeu o regime
militar, como foi a década de 1980 no Brasil, está sofrendo um esvaziamento de
seus propósitos e desafios. Além disso, é um tema de difícil estudo porque os
entrevistados tendem a mascarar a trama de relações e conflitos que cerca a
eleição do(a) diretor(a), assim como também o Conselho de Escola.

Constituição de equipes na gestão escolar


A gestão das unidades escolares é compartilhada por um grupo de docen-
tes que formam a equipe diretiva ou de gestão, a depender do estado; a constitui-
ção dessas equipes é diferente em cada um deles e também são distintos os

184 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


recursos humanos disponíveis, mas em todos os casos busca-se contemplar a
coordenação administrativa e pedagógica da escola.
Pudemos detectar nas entrevistas com os diretores e coordenadores das
escolas que a dinâmica da equipe diretiva é diferente em cada uma delas e que isso
depende, principalmente, da disponibilidade dos diferentes membros da equipe e
das relações estabelecidas entre eles e com os professores da casa.
A disponibilidade do diretor na instituição é diferente segundo os estados.
O fato de eles não lecionarem na mesma instituição em que exercem o cargo
diretivo os afasta do trabalho pedagógico e os dispersa, porque acabam trabalhan-
do em mais de uma unidade escolar. Em nossas observações do cotidiano, ficou
claro que a jornada completa do(a) diretor(a) na escola permite seu maior envol-
vimento com o trabalho institucional e uma gestão mais articulada entre os dife-
rentes níveis e turnos de ensino.
O s critérios de seleção dos coordenadores pedagógicos ou educadores
de apoio – segundo os estados – são bastante controvertidos no âmbito escolar.
A maioria dos coordenadores pedagógicos são formados em pedagogia ou são
professores das primeiras séries do ensino fundamental que foram deslocados
para outras funções quando os municípios assumiram essas séries. Os professo-
res geralmente questionam o fato de os coordenadores pedagógicos não serem
especialistas de área e de não terem experiência no ensino médio. Por isso, não
são considerados interlocutores válidos para discutirem o conteúdo nem a meto-
dologia de trabalho de suas disciplinas. Pelo que foi possível observar, a coordena-
ção pedagógica se reduz, na maioria das escolas, a um apoio aos professores para
tarefas burocráticas, tais como: organizar passeios, resolver problemas de rela-
cionamento entre o professor e os alunos, providenciar tarefas para os estudan-
tes quando falta o professor etc.

Conselhos de Escola
A gestão colegiada das unidades escolares, mediante conselhos de escola e
de outros mecanismos democráticos de gestão conquistados na década de 1980,
ocorre em associação com a implementação dos novos programas de gestão
escolar. De fato, na maioria das escolas, o Conselho foi finalmente constituído
pela exigência de alguns desses programas e, salvo alguns exemplos isolados, não
os encontramos inseridos na gestão da instituição; os professores e alunos nem
sabem de sua existência. Eles atuam isoladamente para tomar decisões orçamen-
tárias, principalmente a partir do aumento dos repasses de dinheiro diretamente

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 185


às escolas, e como respaldo ao diretor na tomada de decisões disciplinares em
relação aos alunos e/ou professores.
Um fator importante de revitalização dos conselhos escolares parece ser
o aumento de responsabilidade institucional da gestão financeira da unidade
escolar e a implantação de um novo órgão colegiado, chamado Unidade Execu-
tora – UEx –, para administrar o dinheiro que a escola recebe do governo
federal pelo Programa Fundescola.
A criação das UExs é bastante polêmica e tem sofrido muita resistência por
parte dos sindicatos docentes de alguns estados, por serem elas compreendidas
como uma estratégia de esvaziamento dos conselhos de escola e de privatização
do ensino, o que levou a várias modificações na proposta original. Mas a imposi-
ção da UExs na gestão escolar parece não estar necessariamente produzindo a
proliferação dos órgãos colegiados nem o esvaziamento do conselho, como se
pensava no início.
Em quase todas as escolas, a maioria dos representantes do conselho
também é membro da UEx. Essa superposição de funções dos representantes
acabou praticamente produzindo, em muitos casos, quase a sua fusão no conse-
lho escolar, outorgando-lhe de fato novas responsabilidades deliberativas sobre o
destino do dinheiro que chega à escola.
De qualquer maneira, a gestão colegiada não tem ainda força suficiente para
tornar verdadeiramente público o espaço escolar. Não sabemos se o processo
de organização e participação dos conselhos de escola é muito incipiente ou se
não há uma tradição institucional, social e cultural que facilite o crescimento e
amadurecimento da gestão colegiada. Uma explicação plausível é que, por um
lado, uma nova dinâmica nas relações no interior da escola só é possível se
produzida uma ruptura na organização escolar vigente. Por outro, destaque-se a
incoerência entre a política de gestão democrática escolar e a gestão burocrática
do conjunto do sistema educativo e dos outros espaços públicos locais, que
acaba transformando a escola numa ilha e desvinculando suas propostas de pro-
jetos educacionais e sociais mais amplos.

Gestão do financiamento

A gestão do financiamento escolar tem criado também situações novas.


Nicholas Davies (2002), ao analisar o financiamento estatal do ensino médio, faz
referência à dificuldade para estudar os seus gastos reais, já que em muitos casos
estes não são separados dos do ensino fundamental. De fato, a partir da intensi-

186 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ficação da municipalização das quatro primeiras séries do ensino fundamental em
quase todo o país, as Secretarias de Educação estaduais têm acoplado o nível
médio às últimas séries do ensino fundamental em muitas das suas ações.
Desde a promulgação da LDB, em 20 de dezembro de 1996, o ensino
médio passou a ser compreendido como etapa final da educação básica. No
entanto, esta não parece ser a justificativa para a atitude dos governos estaduais, e
sim a carência de condições materiais e humanas para o funcionamento do nível
médio. O s recursos financeiros disponíveis para o e nsino médio são principal-
mente oriundos dos organismos internacionais e comprometem contrapartidas
estaduais. Eles são bastante reduzidos e não têm continuidade ou fonte fixa de
arrecadação, geram baixa capacidade de sustentação financeira a longo prazo,
tanto na rede quanto nas escolas.
A descontinuidade dos projetos em andamento já tem sido sentida nas
escolas, principalmente diante da demora no fornecimento de equipamentos dos
laboratórios e bibliotecas para o conjunto da rede e da impossibilidade de sua
manutenção, o que estimula a busca de ajuda comunitária. A própria falta de
funcionários e até de professores começa a ser resolvida nas escolas com a ajuda
da comunidade, surgindo assim um novo ator educativo, o “amigo da escola”, que
ressignifica o sentido da participação dos pais. Em alguns casos, os diretores já
começam a identificar os pais que compõem o “conselho escolar” como amigos
da escola, e não como representantes de sujeitos coletivos na gestão escolar.
Nos seus depoimentos, os diretores mostram-se muito gratos por rece-
ber esse tipo de colaboração. Ao mesmo tempo, muito deles estão preocupados
diante da necessidade cada vez maior de recorrer à caridade comunitária para
assegurar o funcionamento da merenda escolar, da limpeza do prédio e até do
esporte e de outras disciplinas na escola.
Nesse quadro, também observou-se que as escolas de ensino médio que
mantêm as últimas séries de ensino fundamental têm mais recursos financeiros
porque recebem o financiamento oriundo desse nível de ensino para comple-
mentar seu orçamento. É o caso do Programa Fundescola que, tendo como alvo
a escola fundamental, é utilizado também para subsidiar as necessidades do ensi-
no médio. Vários professores revelaram que as escolas elaboram um PDE para o
ensino fundamental, mas este, uma vez aprovado, acaba sendo estendido também
aos alunos de ensino médio. Ainda que nestes casos as dificuldades financeiras
sejam menores, vários problemas permanecem sem solução, tais como a falta de
material didático, de merenda escolar e de atividades curriculares diferenciadas,
dentro ou fora da escola, para os alunos do ensino médio.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 187


Observe-se, a propósito, que a maioria das escolas de ensino médio nos
três estados oferece também as últimas séries do ensino fundamental. Muitas
instituições, tradicionalmente exclusivas deste grau de ensino, incorporaram o
nível médio, ainda que sem nenhuma experiência, porque a municipalização das
primeiras séries esvaziou as unidades escolares, de sorte que o número de alu-
nos se tornou suficiente para manter a escola.
Esta situação, relatada em muitos estabelecimentos de ensino, tem um
significado ainda mais grave do que o fato de a expansão do ensino médio estar
ocorrendo mediante a ocupação dos espaços ociosos que, como se pode cons-
tatar, não existem somente no período noturno. Significa também uma equipe
diretora, coordenadores pedagógicos ou educadores de apoio que nunca traba-
lharam no ensino médio e até mesmo professores que não têm experiência
acumulada no ensino de jovens.
A falta de uma política de financiamento para o ensino médio não se ex-
pressa apenas no comportamento escolar, mas também na atitude e preocupa-
ções das Secretarias de Educação Estaduais, que vão sistematicamente em busca
de novos programas federais, apresentando projetos e disputando financiamen-
tos para ter condições de continuar com a reforma, como afirmam seus próprios
representantes.
Retomando a apreciação feita por Davies e associando-a com as informa-
ções que temos coletado na pesquisa in loco, podemos levantar a hipótese de que
tem-se instaurado uma nova lógica de regulação financeira da educação que não
se esgota na análise da política orçamentária para cada nível de ensino. Por isso, é
possível pensar que uma estratégia adequada para conhecer os gastos no ensino
médio seja ir às escolas e mergulhar em seus dados.
A análise até aqui desenvolvida indica a incompatibilidade entre as propostas
e as condições concretas das escolas e a insuficiente disponibilidade de recursos
financeiros federais e estaduais para o investimento no ensino médio.

OSPROFESSORES

As condições de trabalho dos docentes no Brasil são bastante conhecidas.


No entanto, nos últimos anos, duas questões têm sido especialmente problema-
tizadas: o número insuficiente de professores e a sua falta de capacitação para
ensinar, com base da nova concepção curricular.
Efetivamente, a composição do quadro do magistério é um tema crítico em
quase todo o país, pois persiste a carência de docentes habilitados para atuar em

188 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


áreas como matemática, física, química e biologia. Esta situação agravava-se ao se
levar em conta a faixa etária média dos docentes em exercício, muitos deles
próximos da aposentadoria.
Na maioria das escolas, existe entre os docentes, principalmente mas não
exclusivamente entre os professores, uma nova situação empregatícia, através
dos minicontratos. Por estes instrumentos são admitidos, fora de concurso ofi-
cial, profissionais não efetivos com contrato anual que pode ser renovado, rece-
bendo 50% do salário do professor efetivo, os quais não têm direito a serviço
médico, nem férias. Além de violar os direitos trabalhistas, o contrato temporário
dos chamados “estagiários” abre a possibilidade de que professores não habilita-
dos atuem no magistério. Em alguns estados já se vêm contratando estudantes
para substituir os docentes em licença.
É inegável a gravidade da falta de profissionais para ensinar no ensino mé-
dio, o que, pela sua magnitude, já chegou a ser notícia de jornal (Folha de S. Paulo,
27 maio 2003). Mas o que chama a atenção é que a flexibilização que vem
acontecendo nos últimos anos nas redes de ensino, com deterioração dos con-
tratos de trabalho dos docentes, seja apresentada como estratégia imediata para
enfrentar essa situação.
O fato de os professores contratados recentemente aceitarem essa situa-
ção está claramente associado à necessidade financeira, que acaba por deixá-los
sem possibilidade de escolha. A análise das entrevistas revela que a injustiça dessa
situação está clara para todos os professores mas, em um contexto de altos
índices de desemprego, a estabilidade e os direitos historicamente conquistados
pelas diferentes categorias perdem, aos poucos, o caráter de benefício coletivo e
passam a caracterizar-se como um privilégio. A deterioração cada vez maior das
condições de trabalho docente afeta de forma significativa, como vários estudos já
têm demonstrado, a subjetividade do professor, que convive com o sentimento
constante de injustiça, sendo assim uma das principais fontes de estresse (Vieira,
2002).
As soluções até o momento encontradas para resolver a carência de pro-
fissionais de determinadas áreas é a formação do professor polivalente. Isto sig-
nifica a organização da formação inicial e continuada por áreas e não por discipli-
nas, principalmente no Nordeste do país.
É assim que, no âmbito político-educativo, coexistem hoje de maneira bas-
tante confusa dois níveis bem diferentes de análise, um epistemológico e outro
estratégico, sobre os critérios de seleção e de organização do conhecimento esco-
lar, e por isso é necessário, como diz a sabedoria popular, separar o joio do trigo.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 189


No marco de uma discussão epistemológica contemporânea que busca
erradicar a compartimentalização, especialização e hierarquização do conhecimento,
a proposta da organização curricular por áreas é, como vimos, uma das inovações
das diretrizes curriculares nacionais. Ao mesmo tempo, pelo que as entrevistas
revelam, as preocupações colocadas pelas secretarias são bastante diferentes
daquelas que expressam a fundamentação dos PCNs para sua organização por
áreas. No âmbito político, o debate prioriza o potencial de uma organização cur-
ricular e de formação docente por áreas enquanto estratégia para resolver a es-
cassez de professores especializados em algumas disciplinas; é, portanto, redu-
cionista do ponto de vista das aprendizagens escolares.
A precariedade com que os órgãos oficiais estão ope rando a formação
continuada de docentes permite pensar que uma proposta que poderia ser com-
plexa e desafiadora corre o risco de ficar esvaziada de qualquer sentido pedagógi-
co e fragilizar ainda mais a formação do professor.

Formação docente

A formação em serviço é um dos itens mais valorizados nos Programas de


Melhoria do Ensino Médio nos três estados pesquisados e o detalhamento de
suas propostas mostra-se bastante inovador e ambicioso, além de envolver todas
as instâncias de governo. O argumento principal para tal empreendimento é a sua
centralidade na mudança curricular pretendida.
Não obstante, as ações de formação continuada são bastante tímidas, es-
porádicas e desorganizadas nos estados do Nordeste pesquisados; trata-se de
uma realidade bem distante da que havia sido proposta nos programas estaduais.
São ações que os docentes registram como episódicas e sem muita significação.
Em outro estado, foram implementados sistematicamente cursos de curta
duração, desenhados por diferentes “provedores”, se jam universidades, profis-
sionais independentes ou empresas particulares de assessoria. A escolha das
propostas é realizada através de licitações, provocando a proliferação de peque-
nos institutos privados que elaboram projetos de formação para vendê-los à
Secretaria.
As entrevistas com especialistas das secretarias de educação 7 e com os
docentes denotam uma visão crítica das políticas de formação. Avalia-se que as

7. Entrevistas realizadas em 2002.

190 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ações implementadas não estão contribuindo para a melhoria da prática docente e
alerta-se para a dificuldade manifestada pelos professores que participam dessas
atividades para atuarem como multiplicadores nas suas instituições.
Pelas queixas dos especialistas das Secretarias em relação ao governo fe-
deral, nas entrevistas realizadas em 2002, parece que a formação em serviço tem
sido priorizada no discurso oficial, mas relegada nas prioridades de financiamento.
Vários membros desses órgãos insistiram em que, do financiamento que rece-
biam dos diferentes projetos assinados via MEC com organismos internacionais,
nenhum deles contemplava um real investimento em formação de professores.
Além disso, na opinião de um dos membros de Secretaria de Educação, o
fato de as equipes de desenvolvimento curricular e de formação docente estarem
administrativamente separadas na estrutura organizacional da Secretaria e não te-
rem conseguido realizar um trabalho coordenado, tem prejudicado a possibilida-
de de pensar a formação articulada com a reforma curricular.
Nas declarações dos professores, fica claro que a relação teoria/prática
permanece problemática, ainda que não se expresse em demandas claras. As
Secretarias tampouco conseguem identificá-las, tornando muito ambígua a com-
preensão dos motivos do fracasso das ações de formação em serviço, o que
torna mais difícil a definição de novas políticas nesse sentido.
Quando nas escolas se tenta articular trabalho em equipe com formação,
reconhecendo que esta última se dá em qualquer atividade planejada para propor-
cionar desenvolvimento profissional e aperfeiçoamento do ensino, conforme de-
finido por Garcia (apud Vieira, 2002), também não se consegue resolver a dissociação
teoria/prática na problematização do fenômeno educativo. De modo geral, orga-
nizam-se palestras ou a leitura de textos, selecionados pelo diretor ou coordena-
dor pedagógico, ao redor dos quais são discutidos temas de interesse, mas sem
a possibilidade da construção de um “problema”, que destrince a prática pedagó-
gica a partir da reflexão teórica. Trata-se, contudo , de iniciativas que constituem
passo fundamental para a conscientização da complexidade da realidade que se
pretende mudar e, portanto, para a tomada de decisões.
As ações de formação continuada para os docentes são bastante questio-
nadas em todos os estados. Os professores não lembram direito quais foram os
cursos dos quais participaram e muitos deles consideram que esses cursos exis-
tem para reproduzir o discurso da Secretaria. De mo do geral, lembram as ativida-
des de formação organizadas pela própria escola, que foram orientadas a partir
das necessidades e dificuldades identificadas pela sua equipe docente. Já entre os

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 191


diretores, existe uma opinião bem favorável a um processo de formação conti-
nuada nas unidades escolares.
É possível que estratégias de formação docente para o coletivo escolar
possam incorporar com mais facilidade a dimensão da dinâmica institucional e, ao
mesmo tempo, interferir nela, mas também podem isolar a unidade escolar e
impedir um diálogo e reflexão coletiva, enriquecidos pelas diferentes experiências
institucionais.
Também não devemos desprezar o dinamismo do mercado e reconhecer
a possibilidade de a escola ser alvo das consultorias privadas que, sabendo da
abertura desse espaço, podem fazer lobby nos estabelecimentos de ensino.
Além das ações de formação continuada do docente implementadas pelas
Secretarias, outro aspecto que se coloca com bastante assiduidade na fala dos
entrevistados é a importância do planejamento coletivo, estudos e discussões em
grupo para que o currículo possa ser trabalhado de forma interdisciplinar. Uma
política de remuneração docente que contemple carga horária específica para o
planejamento coletivo e individual do professor continua sendo uma reivindicação
dos docentes e uma estratégia governamental. Na verdade, essa diferença entre a
carga horária remunerada e a carga horária destinada às aulas tem um efeito com-
pensador dos baixos salários e não resolve necessariamente a falta de disponibi-
lidade dos docentes para o trabalho coletivo. Já citamos, inclusive, a nova situação,
que é a do professor contratado com o regime de “minicontrato”, que só consi-
dera as horas em sala de aula.
A organização do trabalho pedagógico em equipe, apesar da ênfase no
planejamento escolar coletivo presente nos discursos oficiais e no saber espontâ-
neo dos professores, apresenta sérios problemas nos diferentes estados. Em
cada um deles o número de horas semanais remuneradas para trabalho em con-
junto e planejamento das atividades é distinto, mas as dificuldades para organizar o
trabalho escolar coletivo são bastante similares. Em todos os casos se argumenta
que os óbices residem, principalmente, em encontrar um horário de reunião em
que todos os professores estejam disponíveis, porque a maioria deles trabalha
em outras escolas.
Dessa forma, na maioria dos casos, a organização do trabalho pedagógico
fica centrada no trabalho individual do professor. Cabe afirmar, então, que não há
uma cultura escolar de trabalho coletivo e que os e sforços para definir novas
formas de organização e gestão da escola não têm resultado na construção dessa
cultura. Nesse sentido, as observações das reuniões dos professores nas dife-

192 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


rentes unidades escolares foram bastante esclarecedoras acerca da responsabili-
dade do diretor ou do coordenador pedagógico, segundo a instituição, na dinâmi-
ca e aproveitamento desse momento.
Outra dificuldade que as escolas devem enfrentar diariamente é a ausência
sistemática dos professores. Há uma espécie da naturalização dessa situação, que
faz com que já não chame a atenção nem dos diretores nem dos alunos o fato de
que dois ou três professores faltem em cada turno. O absenteísmo freqüente
dos professores, justificado pela insatisfação com suas condições de trabalho,
gera um clima de baixa produção na escola: alunos fora da sala e desanimados,
diretores e/ou coordenadores tentando suprir a ausência do docente com ativida-
des lúdicas etc.
A desvalorização social do professorado é hoje um campo em que se
revigoraram algumas contradições. A imagem que o professor tem de si está
construída com base nas condições sociais de seu trabalho e de posturas requeridas
pela sociedade 8. As condições do trabalho docente já foram bastante estudadas
e “denunciadas” por diferentes pesquisadores e atores sociais. Ao mesmo tem-
po, a exigência de uma nova postura do professor, que envolva o controle
sobre o próprio trabalho, é crescente, ainda que co ntradiga a indigência das
condições de exercício da profissão historicamente construídas, que o levaram
a alienar-se progressivamente de seu trabalho, mas e m relação às quais não
vislumbramos indicadores de ruptura. Esta contradição, longe de ser discutida,
tem sido negada e, portanto, reforçada pela insistência discursiva na capacidade
de escolha e transformação dos atores escolares, co mo quando se diz que “o
diretor faz a diferença”.

ESCOLA DE JOVENS, ESCOLA PARA JOVENS


Perfil do aluno e proposta pedagógica

Definir o perfil do aluno de ensino médio, começando pela faixa etária, não
é tarefa fácil, e muito menos no ensino noturno, predominante na escola média
brasileira. Nos últimos anos, vem-se insistindo, no âmbito nacional e internacio-

8. A postura requerida pela sociedade pode ser considerada, sem dúvida, como parte das condi-
ções sociais de trabalho. Aqui colocamos a questão em termos de duas dimensões para efeito
de melhor compreensão do processo de ressignificação da valorização social no âmbito da
reforma.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 193


nal de produção das políticas educativas, na necessidade de contemplar a “juven-
tude” como categoria de análise da escola média. Mas, tanto no âmbito acadêmico
quanto no político, sempre se enfatizou a complexidade da faixa etária de alunos
pertencentes a esse nível de ensino no Brasil, devido à forte defasagem idade/
série que encontramos na escola pública.
Na expectativa de mudar o perfil da clientela da educação pública pelo das
políticas de aceleração implementadas nos últimos anos e pela tendência, no
campo acadêmico e nos movimentos sociais, de revitalizar políticas para jovens
que contestem a visão social de negatividade da juventude, é que o tema está
ocupando cada vez mais espaço no debate educacional.
O clima das escolas pesquisadas é bastante afetuoso, quase “compassivo”
com os jovens, construído pela sensibilidade dos docentes e sua baixa expectativa
em relação aos estudantes. Esse clima escolar está ancorado numa visão bastante
negativa da juventude contemporânea e, principalmente, da escola pública, reco-
nhecida pela maioria dos docentes como carente, sem possibilidades de ter um
“futuro promissor”.
Nossa pesquisa registrou que a maioria dos docentes conhece pouco da
vida de seus alunos: onde e com quem moram, as atividades que realizam além
de ir à escola, como ocupam seus finais de semana, as características de suas
famílias, suas expectativas e possibilidades futuras etc. O s comentários dos do-
centes nesse sentido são, de modo geral, muito ambíguos e tendem a limitar-se
à diferenciação, às vezes estereotipada, entre os alunos que assistem ao curso
diurno e aqueles do noturno. No entanto, a percepção dos docentes e dirigentes
sobre o perfil do aluno é muito heterogênea intra e interescolas, o que indica que
tal percepção não parece estar vinculada à instituição.
Ainda que todos considerem que os estudantes do noturno, que traba-
lham ou buscam trabalho, têm menor poder aquisitivo e que muitos não têm
tempo de estudar, alguns de nossos interlocutores declararam também que
este grupo de alunos é mais maduro e interessado que o do diurno, porque
eles não querem perder tempo. São alunos que têm interesse, mas vêm cansa-
dos. Em contrapartida, outros docentes enfatizam o fato de que os alunos do
noturno costumam chegar tarde (porque saem tarde do trabalho), têm pouco
interesse nos estudos, tratam a escola como um espaço de encontrar amigos e
buscam apenas o diploma.
Nas entrevistas com os alunos, ficou visível que a demanda pelo curso
noturno é bastante complexa. De um lado, os discentes trabalham ou buscam

194 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


trabalho não só para sua sobrevivência e da sua família, mas também pelo dese-
jo de poder ter certa independência econômica, que muitas vezes está ligada ao
aumento crescente do comportamento consumista da população, incentivado
no dia-a-dia pela mídia. De outro, a clientela do noturno não está formada só
por alunos que trabalham ou buscam trabalho, mas também por jovens que têm
maior afinidade com o “clima descontraído” do noturno, ou que escolhem o
ensino neste turno para poder ter “mais tempo livre ” para fazer outras coisas9.
Também algumas pesquisas mostram que, às vezes, o trabalho vem como con-
seqüência da freqüência à escola noturna, motivado pelos pais, para que não
fiquem com muito tempo livre e na rua (Marques, 1997). Além disso, recupe-
rando também as caraterísticas institucionais, muitos alunos que freqüentam o
turno diurno justificam sua escolha pela melhor qualidade do ensino da escola
nesse período.
A atitude do grupo de jovens que escolhe o ensino noturno independente-
mente do trabalho é bastante questionada, porque se coloca como desvaloriza-
ção da escola e dos estudos por esses estudantes. Mas caberia indagar ainda os
motivos que os levam a atribuir tão pouca importância aos estudos, além da
inevitável tensão entre as instituições e a juventude.
Tais depoimentos conduzem-nos a considerar seja a necessidade de co-
nhecer melhor o universo dos alunos do noturno para elaborar uma proposta de
trabalho singular e discutir o imaginário social dos docentes, seja a importância de
verificar a influência desse imaginário no relacionamento professor–aluno e na
organização do trabalho pedagógico. Dessa forma, será dada atenção ao sujeito
“jovem aluno” não como uma categoria “sem endereço” mas, ao contrário, na sua
materialidade.
Q uanto ao último ponto referido, algumas indicações foram registradas.
Vale citar um exemplo: quando os professores se referem à especificidade do
ensino noturno devido ao perfil do aluno e às diferenças de organização da escola
(hora-aula menor que no diurno, sem intervalos etc.), reduzem este fato a uma
“adaptação” em seu planejamento, com menos atividades e conteúdos de ensino.
Também foi observado um procedimento oposto, mas sempre tendo como

9. O debate em torno do perfil da clientela do ensino noturno coloca que a abertura de


novos cursos nesse turno se deve também à necessidade de responder às pressões
sociais pela falta de vagas no diurno. Nossa pesquisa tem encontrado essa situação
apenas nas escolas com maior prestígio e, portanto, com maior demanda.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 195


referência o ensino diurno: para alguns professores, apresentar uma proposta
específica para o ensino noturno ou adaptar seu trabalho seria sinônimo de facili-
tar o ensino e deteriorá-lo, por isso eles procuram trabalhar da mesma forma nos
diferentes grupos. Segundo eles, muitos alunos utilizam o trabalho como uma
desculpa para o professor facilitar a averiguação do seu desempenho.
Nos dois procedimentos referidos, o estudante do noturno sai prejudica-
do: no primeiro caso, pela degradação do curso e, no segundo, pela negação da
singularidade dos alunos. Em ambas as situações, os professores vivenciam um
sentimento de frustração.
Por sua parte, a percepção dos alunos sobre os professores é similar
àquela que estes têm deles. O s jovens reconhecem as condições adversas em
que o professor trabalha no turno noturno quando afirmam que estes chegam à
escola cansados, porque tiveram de trabalhar durante o dia todo e têm menos
paciência. É possível que os professores manifestem, verbalmente ou não, esse
cansaço. Esse tipo de comunicação, sem dúvida, gera um clima de apatia e de
baixa motivação, clima muitas vezes denunciado tanto pelos professores quanto
pelos alunos.
Deve-se observar que a política de correção de fluxo na escola fundamen-
tal, praticada por diversos governos estaduais, pode chegar a contribuir para a
diminuição das matrículas no período noturno, mas ainda não se observa uma
mudança significativa no comportamento dos jovens.
Sem dúvida, em termos pedagógicos e sociais, o perfil predominantemen-
te noturno do ensino médio brasileiro é alarmante. Mas nem por isso a realidade
desse nível de ensino e sua forte demanda devem ser desprezadas e muito me-
nos simplificadas. Em virtude das características extremamente perversas da dis-
tribuição da renda, os alunos (mesmo aqueles entre 15 e 17 anos) provavelmen-
te continuarão a optar pelo curso noturno, uma vez que necessitam conciliar
emprego e estudo em face das suas expectativas de sustentar-se e de ajudar as
suas famílias.
A grave crise de empregos dos últimos anos, atingindo também os jovens,
tem contribuído para situações diversas. Alguns alunos comentam que deixaram
de freqüentar o curso noturno e se matricularam no diurno, em vista da impossi-
bilidade de encontrar emprego; outros preferem não desistir de sua vaga no
noturno.
Vários estudos qualitativos têm mostrado com bastante freqüência que há
muita diferença quanto à estrutura, conteúdo e dinâmica pedagógica e de gestão

196 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


nos cursos diurnos e noturnos. Essas diferenças, longe de serem expressão de
uma proposta alternativa que leve em conta as especificidades do aluno do ensino
noturno, tendem a tornar ainda mais precário o ensino oferecido à noite. Nossa
pesquisa corroborou, mais uma vez, essas diferenças entre os turnos, principal-
mente quanto ao fato de que, quando a escola planeja algum trabalho inovador
com seus alunos, realiza-o apenas no período diurno. As justificativas para a ex-
clusão do noturno são várias: vão desde aulas mais curtas nesse período até o
cansaço e desinteresse dos alunos.
O s dados de nossa pesquisa e de outras tantas realizadas com alunos do
ensino noturno revelam que pensar num projeto democratizador do ensino mé-
dio envolve necessariamente a ressignificação do ensino noturno, para que em
vez de ser uma expressão de exclusão possa ser concebido como direito. Isto
requer uma discussão séria sobre a qualidade do ensino nesse período, visando
a uma proposta curricular que contemple e potencialize sua especificidade, sem
mitigar a aprendizagem desses adolescentes, tal como está ocorrendo com vários
programas de aceleração da aprendizagem.
Outro elemento importante para compreender o comportamento e com-
promisso dos alunos parece ser a tensão que se estabelece entre o professor e
o aluno. Como disseram Martuccelli e Dubet (1997), as normas escolares exi-
gem um processo de identificação com o professor, que o impulsiona a atuar
bem na sala. Por sua vez, as normas do mesmo grupo de pares confere o reco-
nhecimento dos semelhantes. A sala de aula é o lugar de conflito entre estas duas
fontes maiores de identificação.
O princípio de reciprocidade está na relação entre alunos e professores.
Ambos querem ser considerados e reconhecidos pelo seu esforço. O interes-
se intelectual do aluno pelas diferentes disciplinas está bastante ligado a seu
relacionamento com os professores e com seus resultados escolares. De modo
geral, os alunos aprovam os professores exigentes, que utilizam diferentes re-
cursos para explicar, que lhes facilitam a compreensão dos conteúdos e que
têm disponibilidade para responder a suas perguntas, aceitam ser consultados
fora da sala etc.

Programas para jovens

Entre os programas federais e/ou estaduais destinado s aos “jovens”, o


mais significativo para os estudantes é o Rumo à Universidade, porque responde
às suas expectativas ou desejos.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 197


A categoria estruturante do jovem na sociedade, pelo menos na sua pers-
pectiva, é de forma cada vez mais forte a universidade e bem menos o trabalho. O
diploma do ensino médio ainda é um motivo importante para os alunos estuda-
rem, mesmo convencidos de que aprendem pouco. Eles não têm dúvida de que
“o ensino público é péssimo”. Mas a assombração do desemprego os obriga a
pensar na necessidade de continuar estudando. É por isso que muitos freqüentam
o terceiro ano do ensino médio junto com o curso pré-vestibular e outros têm
como desejo fazê-lo no ano seguinte.
O trabalho é uma necessidade, mas a possibilidade de consegui-lo apenas
com o diploma de ensino médio é pequena. Ao mesmo tempo, a possibilidade de
estudar na universidade dilui ou retarda o problema do desemprego. Nos depoi-
mentos dos alunos, fica claro que estão diante de um horizonte de possibilidades
bastante frustrante, não conseguir ingressar na universidade, não conseguir traba-
lho, mas isso não os fará desistir. Como exemplo, podemos citar a situação de
um dos alunos entrevistados. Ele aprendeu computação quando estava realizando
um estágio na prefeitura e, por isso, tem uma situação semiprivilegiada em relação
a alguns de seus companheiros, porque, se não conseguir ser aprovado no ves-
tibular, poderá trabalhar no jogo do bicho, introduzindo os dados no computador
e recebendo uma renda mensal de R$ 700,00. E, como disse este aluno: “o
único problema é que não terei carteira de trabalho”.
O lugar que ocupa a universidade no imaginário dos jovens não é diferente
do que tem no dos docentes; por isso, podemos afirmar que a universidade não
só é a categoria estruturante do jovem na sociedade, mas também do ensino na
escola média. Tanto para uns como para outros, o número de alunos de uma
mesma instituição que “conseguem” ingressar na universidade é um dos indicado-
res mais importantes da qualidade da escola e demonstra a legitimidade dos con-
teúdos ensinados. Deste modo, o “princípio do vestibular” acaba pautando os
conhecimentos úteis e significativos e, portanto, afetando também a proposta
pedagógica da escola.
À primeira vista, o problema da parceria está na busca da articulação entre a
escola média com os estudos superiores e/ou com o mundo do trabalho, mas a
questão é bem mais complexa e envolve a discussão sobre a especificidade do
ensino médio e sobre quem define as diretrizes para a seleção dos conhecimen-
tos válidos. É necessário fortalecer a escola pública para que ensine conhecimen-
tos legítimos que sejam respeitados pelo mercado e pelo vestibular, permitindo
assim que se inverta o processo de legitimação dos conhecimentos ensinados.

198 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Note-se também que os alunos são muito críticos a respeito dos profes-
sores quando percebem que o que lhes está sendo exigido no vestibular não foi
ensinado na escola e o que eles aprenderam na escola não pode ser aproveitado
no exame para a universidade.
Essa valorização dos estudos superiores pelos professores e alunos talvez
explique a ausência no discurso escolar, salvo em pouquíssimos casos, do ensino
profissionalizante como parte do universo de possibilidades educacionais pós-
ensino médio. Não explica, contudo, a invisibilidade de políticas de articulação
entre ambas as modalidades de ensino, uma vez que não existe uma aproximação
do aluno com o ensino profissionalizante e com mecanismos de informação e
divulgação, tal como ocorre com a universidade.
As escolas, em contrapartida, têm sofrido pressões governamentais para
criar um ambiente juvenil, e nesse sentido há vários programas e ações voltados
para a interação da escola com a cultura juvenil e com a comunidade. Trata-se
principalmente de atividades de lazer nas áreas do esporte, música, dança e ciência
que buscam, por meio do reconhecimento de suas preferências, recuperar uma
imagem positiva do jovem. São atividades recreativas que não se refletem neces-
sariamente na prática intelectual da escola.
Algumas dessas atividades são realizadas nos finais de semana e outras
fazem parte das atividades escolares, principalmente através de festivais e/ou con-
cursos realizados por competições entre as escolas do estado ou entre os alunos
de uma mesma escola.
Temos acompanhado em algumas instituições o entusiasmo dos diretores
com esses programas e ações, o que tem levado às vezes a quase convertê-los
em “cartão de apresentação” da escola. Em contrapartida, os alunos lembram
com satisfação algumas dessas atividades quando realizadas no horário escolar,
principalmente a feira de ciências, mas a maioria desconhece as atividades que a
escola oferece nos fins de semana.
Os dados levantados e analisados ao longo desta pesquisa indicam a dificul-
dade das escolas, nas condições atuais, de encarar uma reforma curricular, com-
plexa pela sua proposta e pelo universo de estudantes que tem de atingir. Essa
dificuldade pode caminhar para um maior aligeiramento dos conteúdos aprendi-
dos no ensino médio e a uma concepção trivial do papel da escola na construção
da identidade juvenil. Isto é, a ênfase discursiva na interdisciplinaridade e no de-
senvolvimento de competências pode estar estimulando um “ativismo pedagógi-
co” inócuo para o atendimento das necessidades de aprendizagem dos jovens.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 199


Referimo-nos anteriormente à falta de uma política clara de formação do-
cente. Nesse sentido, ainda que a inclusão da categoria juventude no debate
educacional signifique o início de uma mudança de foco na reflexão sobre o
ensino médio, isto não se tem revertido numa reflexão sistemática acerca da
cultura e da situação social juvenil e no potencial inclusivo da escola e de participa-
ção na construção da sua subjetividade.

CONSIDERAÇÕESFINAIS

A reforma do ensino médio é incipiente; cinco ou seis anos constituem


muito pouco tempo para observar mudanças estruturais nesse nível de ensino.
Por isso, podemos considerar este momento fecundo para questionamentos,
mais do que para conclusões. As questões aqui levantadas, no entanto, eviden-
ciam, no nosso entender, que a implementação das políticas analisadas compro-
meteria a “qualidade democrática” da educação e que tais políticas, uma vez con-
solidadas, se tornariam de difícil alteração.
Vimos, por fim, que a reforma do ensino médio obriga-nos a estudá-la
com um novo olhar, isto é, reconhecendo nela tendências de mudanças sistêmicas
e, ao mesmo tempo, tendências singulares que fazem dela uma realidade diferen-
te e que devem ser levadas em conta na hora de repensar a identidade deste nível
de ensino.
Parece ser cada vez mais difícil à escola média recuperar sua autoridade
cultural ante o processo regressivo da prática intelectual na escola. A situação atual
da escola de ensino médio encerra o seguinte paradoxo: uma reforma curricular
complexa junto com a desvalorização do trabalho intelectual da escola como
instituição cultural.
Essa desvalorização tem acontecido, como vimos, pela deterioração das
condições de trabalho dos professores; de uma governança10 educacional cada
vez mais burocratizada e de uma gestão escolar cada vez mais tecnocrática e
menos pedagógica; pela ausência de reflexão e trabalho coletivo nos processos
de definição político-educativos; pela falta de uma unidade conceitual entre as
diferentes ações pedagógicas propostas nas várias instâncias governamentais, en-
tre outros fatores.

10. Ação social de governar: movimento de constituição de esfera pública com mediação
do Estado.

200 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Em meados da década de 1990, quando estavam já delineadas as diretrizes
das reformas educacionais em várias nações latino-americanas, em conversa com
alguém que participava ativamente da definição da reforma educacional num dos
países que tiveram forte influência no delineamento para a região, perguntamos
por que a reforma não tomava como foco a mudança das condições de trabalho
docente e, portanto, sua formação, para poder gerar os alicerces para a transfor-
mação da educação pública. A resposta foi que “uma reforma desse tipo não teria
impacto político”. Com isso não queremos simplificar a realidade de nossa educa-
ção, nem reduzir a problemática educacional ao trabalho docente, mas deixamos
para reflexão duas das principais dimensões que têm predominado na lógica do
fazer político: o tempo e o impacto.

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de pesquisa entregue à Fundação Ford. Dezembro, 2002.

Recebido em: setembro 2003


Aprovado para publicação em: setembro 2003

202 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


LITERATURA, INDÚSTRIA CULTURAL
E FORMAÇÃO HUMANA
JOANA ALVESFHILADELFIO
Assessoria de Comunicação Social da Universidade Federal de São João Del-Rei/MG
joana@funrei.br

RESUMO

Este trabalho aborda questões referentes à literatura e aos produtos da indústria


cultural, especialmente aos chamados romances “cor-de-rosa”, focalizando as poten-
cialidades de diferentes discursos na formação da subjetividade. As protagonistas dos
romances O Quinze e As Três Marias, de Rachel de Queiroz são utilizadas como
referência. Nesta perspectiva, evidencia-se a impregnação das criações ficcionais,
atuando, de forma subconsciente e inconsciente, nas camadas profundas da persona-
lidade, que pode em alguns casos, ampliar o conhecimento e a experiência humanos,
aguçar os meios de expressão, despertar o senso crítico, mas em outros, reforçar a
alienação da realidade. Conclui que enquanto a literatura oferece a possibilidade de
libertar, os produtos da indústria cultural, ou seja, a literatura de massas, constituem
um convite à alienação, ao conformismo, uma vez que tendem a inculcar estereótipos
e preconceitos.
INDÚSTRIA CULTURAL – LITERATURA – RELAÇÕESDE GÊNERO – RACHEL DE QUEIROZ

ABSTRACT

LITERATURE, CULTURE INDUSTRY AND HUMAN FORMATION. This paper addresses


aspects referring to literature and culture industry products, mainly the “rosy” novels,
focusing the potential role of different discourses on the formation of subjectivity. The
characters portrayed in the novels O Quinze and As Três Marias by Rachel de Queiroz
serve as reference. From this point of view, it is plain to see how fiction creations
impregnate, sub-consciously and unconsciously, the deep layers of the personality. This
may, in some cases, enlarge human knowledge and experience, sharpen means of
expression, arose critical sense, but, in other cases, it may reinforce alienation from
reality. It concludes that while literature offers the possibility to set people free, the
products of culture industry, i.e. mass literature, are an invitation to alienation, to conformity,
as they tend to instill stereotypes and prejudices.
CULTURAL INDUSTRY– LITERATURE – GENDER– RACHEL DE QUEIROZ

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 203-219,2003
novembro/ 2003 203
Somos o que lemos.
Alberto Manguel

É objetivo deste trabalho investigar as potencialidades da literatura no pro-


cesso de conscientização crítica da leitora, tendo como referência as protagonis-
tas dos romances O Quinze e As Três Marias, de Rachel de Queiroz. A escolha
desses dois romances se deve ao fato de eles focalizarem os efeitos da leitura na
construção da identidade de suas protagonistas.
Para análise e interpretação dos romances, adotamos uma perspectiva téorico-
metodológica ampla e flexível, recorrendo às contribuições de vários autores
ligados à temática em questão, com destaque aos estudos sobre educação da
mulher, sociologia da educação, gênero e literatura, nos quais se vislumbra a
possibilidade de melhor explicar a educação da sensibilidade e dos sentimentos
femininos pela leitura de romances, bem como o papel desempenhado pela lite-
ratura na vida das personagens.
Com relação à interpretação dos achados, foi utilizada a análise de conteú-
do, técnica própria, segundo Moraes (1999), para ler e interpretar o conteúdo de
toda classe de documentos e textos – jornais, livros, diários etc. – que, analisados
adequadamente, abrem “as portas do conhecimento de aspectos e fenômenos
da vida social de outro modo inacessíveis” (p.10).
Moraes (1999) ressalta que a análise de conteúdo, em sua vertente quali-
tativa, parte de uma série de pressupostos que, no exame de um texto, serve de
suporte para captar seu sentido simbólico. Porém, enfatiza que esse sentido nem
sempre é manifesto e o seu significado não é único. Desse modo, o mesmo
texto pode ser enfocado em razão de diferentes perspectivas.
Vale lembrar, como afirma esse autor que, de modo geral, a análise de
conteúdo é uma interpretação pessoal do pesquisador, relativa à percepção que
tem dos dados: “Não é possível uma leitura neutra. Toda leitura se constitui uma
interpretação” (p.17).

LITERATURA E INDÚSTRIA CULTURAL


Quem ousaria hoje decidir entre o que é literatura e o que não o é,
diante da irredutível variedade de escritos que se lhe costuma
incorporar, sob perspectivas infinitivamente diferentes?
Todorov

A epígrafe enfatiza a dificuldade de classificação e demarcação das fronteiras


entre os diferentes textos que circulam na sociedade e na escola, tendo em vista

204 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


a diluição de limites entre as classificações antes referidas como arte de elite, arte
popular, arte de massa, literatura de consumo, arte superior, arte inferior, realida-
de e ficção.
Assim sendo, torna-se uma empreitada difícil, senão impossível, demarcar
os contornos polêmicos que separam essas modalidades de literatura; no entan-
to, não se pode furtar à tentativa de elencar as possíveis diferenças que existem
entre a chamada alta literatura e a literatura de massas, procurando conceituá-las,
conforme estudos pertinentes ao assunto, tendo em vista ampliar o debate sobre
esse tema instigante.

Do conceito de literatura

Campos (1992, p.13) declara que as classificações e o próprio conceito


de literatura e os juízos dele decorrentes “reflete m a ideologia dominante” em
determinado contexto histórico-social. Desse modo, há vários conceitos de lite-
ratura, relacionados a diferentes contextos, alguns questionáveis, outros bastante
imprecisos, todos discutíveis, tais como: “a literatura é o homem”; “a literatura é
a arte do belo”; “a literatura é a arte da palavra”, dentre outros. Mesmo os teóricos
da literatura não chegam a um consenso sobre questão tão polêmica.
Alguns autores preferem responder a essa questão co m exemplos, em
que se constatam características inerentes à linguagem literária, tais como: ambi-
güidade – que dá margem a mais de uma interpretação; abertura à polissemia –
nenhuma análise pode pretender esgotar as possibilidades interpretativas de uma
obra, já que há vários níveis de leitura configurados na plurissignificação de um
texto; linguagem conotativa – diferentes significações que o signo lingüístico ad-
quire dentro de um texto, ou seja, as palavras ganham significados amplos, figura-
dos, simbólicos; aspecto ficcional/mimético e verossímil – representação criativa
da realidade, mantendo uma lógica interna, sem compromisso com a verdade do
mundo exterior (Campos, 1992).
Vale destacar que esses elementos ajudam a entender a complexa natureza
da literatura, mas estão também presentes em outros tipos de discursos, até
porque é difícil usar o código verbal sem alguma ambigüidade. Portanto não se
pode concluir que, se houver ambigüidade, existe literatura.

Literatura de massa

Sodré (1978) afirma que o discurso da literatura de massa é manifestação


de um discurso específico e não uma utilização medíocre do discurso literário.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 205


Esta produção é resultado de exigências geradas pela sociedade moderna, tanto
que a indústria editorial responsável por esse tipo de literatura investe cada vez
mais neste mercado, sem jamais reclamar de prejuízos.
Apesar de muitos estudantes do ensino fundamental e médio mostrarem-
se familiarizados com essa forma de literatura não referendada pela escola, a
literatura de massa é vista com desconfiança e, muitas vezes, com requintado
desprezo. No entanto, alguns estudiosos, como Mafra (1997), ressaltam a ne-
cessidade de um trabalho mediador entre esta literatura e a outra, respeitando o
leitor e sua história de leitura. Para esse pesquisador, negar a literatura de massa
na prática docente seria interromper a iniciação que ela proporciona ao jovem.
Em direção oposta, Morin (1997), referindo-se à cultura das massas, de-
nuncia a progressiva “industrialização do espírito e colonização da alma”, por meio
de um progresso ininterrupto da técnica, que, penetrando no domínio interior do
homem, aí derrama mercadorias culturais, para serem consumidas. Essa indústria
cultural tem sido alvo de crítica de diversos intelectuais que protestam contra a
industrialização do espírito por subprodutos da cultura que dizem funcionar como
barbitúrico (o novo ópio do povo) ou mistificação deliberada, em que o capitalis-
mo desvia as massas de seus verdadeiros problemas.
Mas o que diferencia a literatura da cultura de massas? Morin (1997) apre-
senta alguns elementos diferenciadores, alertando para a necessária relativização
das fronteiras entre eles. Segundo ele, “tudo parece opor a cultura dos cultos à
cultura de massa: qualidade à quantidade, criação à produção, espiritualidade ao
materialismo, estética à mercadoria, elegância à grosseria, saber à ignorância”
(p.18).
Nessa linha de raciocínio, na cultura de massas há um impulso em direção
ao conformismo e ao produto padrão, enquanto na literatura há um impulso para
a criação artística e para a livre invenção (Morin, 1997). O autor ressalta que os
produtos da indústria cultural

...favorecem as estéticas médias, as poesias médias, os talentos médios, as


inteligências médias, as bobagens médias. É que a cultura de massa é média
em sua inspiração e seu objetivo, porque ela é a cultura do denominador
comum entre as idades, os sexos, as classes, os povos, porque ela está ligada
a seu meio natural de formação, a sociedade na qual se desenvolve sua
humanidade média, de níveis de vida médios, de tipo de vida médio. (p.13)

Nessa mesma perspectiva, Perrone-Moisés (1998) mostra-se pessimista


com relação à situação da literatura. Segundo ela, a cultura de massa tornou-se

206 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


industrial em escala planetária, havendo, com isso, a proliferação de produtos
padronizados de acordo com uma demanda de baixa qualidade estética que essa
indústria cria e satisfaz. Essa autora assevera que

O s valores estético-literários são diária e progressivamente vencidos por uma


cultura de massa embrutecedora, ou transformados em mercadoria de grife
na indústria cultural. A alta cultura, a criação de sinteressada, ou interessada
em ampliar o conhecimento e a experiência humanos, em aguçar os meios
de expressão, em despertar o senso crítico, em imaginar outra realidade,
tudo isso está ameaçado de extinção. (p.206)

Tendo em vista tais aspectos, diversos estudiosos manifestaram preocupa-


ção com o papel do ensino de literatura para o indivíduo e para a sociedade num
momento em que a indústria cultural, com recursos sonoros e visuais apelativos,
parece criar alternativas para a necessidade humana de fantasia e de conhecimento
simbólico.
Rocco (1981), ao contrastar esses dois tipos de literatura, salienta que os
produtos da cultura de massa se mostram muito mais acessíveis e agradáveis,
porém são altamente dirigidos e carentes de variação, “enquanto os textos literá-
rios, ainda que de menor acessibilidade, abrem-se em leque e oferecem-se a
múltiplas opções, momento em que se torna evidente sua maior riqueza criado-
ra” (p.270).
Pesquisadores como Vieira (1989), em consonância com Zilberman, consta-
tam que o best-seller, por ser um tipo de leitura fácil, descartável, pronta para ser
consumida sem esforço, recorrendo a elementos relativos a sexo, violência como
motivadores da narrativa, é a leitura privilegiada pelos estudantes.
Também Haquira Osakabe, citado por Britto (1999), condena os produtos
de mass media (livro, revistas, vídeos, programas de rádio e TV) por reproduzi-
rem a ideologia do senso comum, espelhando o universo imediato dos sujeitos.
São produtos em que, segundo ele,

...prevalece a harmonia de sexos e faixas etárias, cujas tensões, no fim, se


configuram como manifestações naturais e que naturalmente se diluem. [...]
Neste universo pouco há que se fazer, e o convite à reprodução das atitudes
parece ser o único apelo de ação. (Haquira O sakabe apud Britto, 1999, p.87)

Para Britto (1999), a leitura de produtos dessa natureza é equivalente a


qualquer outra atividade de entretenimento ou de recepção de informação como

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 207


“ver um filme, assistir a um noticiário de televisão ou ir a um parque de diversão”
(p.88). Ele considera um equívoco supor “o amadurecimento progressivo do
leitor, que com o tempo passaria à leitura de textos mais densos”, acrescentando
que a conseqüência mais provável é a rejeição de textos densos “sob argumento
de que são complicados e chatos”.
O autor reconhece que tais práticas de leitura produzem conhecimento,
porém, aceitam uma representação do mundo em que as coisas são naturalmen-
te como são. Não há engajamento do sujeito com o processo de reelaboração
do saber instituído e muito menos questionamento dos valores veiculados (Britto,
1999).
Oswald (1997) atribui ao trabalho inadequado com a literatura na escola
essa inclinação exclusiva de futuras professoras para a literatura veiculada pela
cultura de massas, conforme constatou a pesquisa de Kramer (1995). Alerta para
o fato de que “essa preferência aliada à forma inadequada de trabalho escolar com
a literatura pode subtrair ao leitor o contato com as virtudes desta última” (Oswald,
1997, p.77).
A autora desconstrói a idéia recorrente de que a cultura de massas é sinal
dos tempos atuais e ao mesmo tempo sugere que a premissa “gosto não se
discute” é, na verdade, bastante discutível, levando-se em conta o perigo de que

...o respeito à valorização das práticas de leitura de consumo – leituras de


consolação – se constitua como reforço à privação do acesso a leituras que
sejam um convite à reflexão, um convite a que o desfecho da história possa
ser pensado para além dos mitos morais da economia de mercado. É a pró-
pria questão da cidadania que se coloca aí. Excluir os leitores da possibilidade
de modificarem a história, reedita a exclusão dos direitos políticos de partici-
pação e transformação da sociedade. Sendo assim, dizer que o gosto não se
discute – mas educa-se, longe de ser uma afirmativa preconceituosa, se
coloca como tese a ser defendida no interesse da suspensão daqueles mitos
e em direção à colocação dos próprios valores humanos no centro da con-
versa. (p.193)

Dentre as virtudes da literatura, cabe destacar que essa modalidade de


discurso, dada sua ambigüidade, revela uma poética preocupada com o seu pró-
prio questionamento, com autonomia, coerência interna e organicidade, o que
permite ao leitor realizar leituras em diferentes níveis.
Vieira (1989), optando por uma atitude conciliatória, sugere que a escola
saiba lidar com essa situação, permitindo o acesso do estudante não só aos

208 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


produtos da indústria cultural, mas também aos da cultura erudita, para que ele
possa fazer suas escolhas conscientemente. A leitura do best-seller ou da história
em quadrinhos precisa revelar-se “uma opção e não impossibilidade de acesso a
outras formas culturais”, com a proposta de que se deve

...partindo do repertório cultural dos estudantes, neste caso a leitura de best-


sellers, em um trabalho de análise e comparação, encaminhá-los à leitura de
textos literários mais elaborados. Aceitando-se que um dos objetivos da esco-
la é formar indivíduos capazes de conhecer, criticar e modificar a sociedade
em que vivem, então cabe a ela oferecer meios para que alunos de classes
sociais diversas tenham acesso também ao saber erudito. (p.45)

Nessa mesma linha, Bosi, em entrevista concedida a Rocco (1981), afirma


que não é possível formar um espírito crítico sem capacidade de ler e apreciar
coisas muito diferentes entre si. “Temos que aceitar que o adolescente tenha um
mundo de experiência mais restrito e que é preciso começar pelo conhecido e
depois, aventurar-se pelo desconhecido” (p.103).
Desse modo, cabe ao docente promover um trabalho dialético entre as
diferentes produções textuais, levando em conta as histórias de leituras dos alu-
nos, a literatura de massa, buscando ampliar esse horizonte, democratizando o
acesso à arte literária.
Nesse aspecto, o trabalho com a obra de Rachel de Q ueiroz apresenta um
subsídio significativo, conforme poder-se-á verificar.

LITERATURA E VIDA: ENTRE A REALIDADE E A FANTASIA

Segundo pesquisa realizada por Fhiladelfio (2001), Rachel de Q ueiroz é


mestra em demonstrar os efeitos da literatura na co nstrução da identidade de
suas protagonistas, principalmente, Conceição, de O Quinze, e Guta, de As Três
Marias. Tendo por base essas duas personagens-leitoras, pode-se constatar duas
dimensões de leitura, com funções distintas e opostas.
No primeiro caso, a literatura desempenha papel importante na formação
da protagonista Conceição, tornando-a crítica perante a realidade e ao que lê,
interferindo em suas atitudes. Uma educação fundamentada na leitura de diferen-
tes clássicos que “constituem o depósito de uma comunidade humana” (Larrosa,
1999, p.12) e o contato com obras diversificadas ampliaram a visão de mundo, o
universo cultural, bem como aguçaram a sensibilidade da protagonista de O Quin-
ze. Segundo os críticos, Conceição é a mais intelectual das heroínas de Rachel de

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 209


Queiroz. Já no primeiro capítulo, mencionam-se o gosto e o hábito de leitura da
personagem, como se pode constatar no trecho a seguir:

Aqueles livros – uns cem no máximo – eram velhos companheiros que ela
escolhia ao acaso para lhes saborear um pedaço aqui outro além, no decorrer
da noite [...] Pegou o primeiro livro que a mão alcançou [...] Conceição
folheou devagar, relendo trechos conhecidos [...] Ao repô-los lastimava-se: –
Está muito pobre esta estante! Já sei quase tudo decorado. (O Quinze, p.4,
grifos meus)

Da citação, pode-se depreender que Conceição tem por hábito folhear


diferentes tomos até altas horas da noite, saboreando cada pedaço, embora saiba
muitos deles de cor. As sucessivas leituras de um mesmo livro sugerem que, para
esta protagonista, o texto volta sempre diferente a cada leitura, uma vez que “toda
leitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira” porque, “um
clássico nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, conforme afirma
Calvino (1993, p.11). Barbosa (1999) sugere que as leituras realizadas foram
responsáveis pela formação humanística e crítica da personagem, bem como pelo
surgimento de idéias consideradas absurdas pela avó.

Talvez Conceição tivesse umas idéias; escrevia um livro sobre pedagogia,


rabiscara dois sonetos, às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da
biblioteca do avô. Chegara a se arriscar em leituras socialistas e justamente
dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas
à avó. (O Quinze, p.5)

Nos diálogos de Conceição com a avó, fica evidente o contraste entre o


sistema de valores instituídos como absolutos e legitimados pela tradição e os
novos valores que o progresso da ciência defendia naquele momento. Até mes-
mo as atitudes dessas duas mulheres mostram esse contraste. Antes de dormir,
a avó reza, Conceição lê um tratado em francês sobre religião, escrito pelo avô,
descrevendo a mística da fé e os ritos. Já na cidade, enquanto a avó continua com
suas rezas e novenas pedindo chuva, Conceição procura ajudar os flagelados da
seca, assistindo-os no “campo de concentração”, conversando com políticos para
conseguir passagens para Chico Bento deixar o Ceará, em busca de melhoria de
vida. O êxito das atitudes de Conceição sugere que a solução de problemas
depende menos de rezas e mais de atitudes,vontade político-social, ou seja, mais
do humano que do divino.

210 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Devido às suas idéias, avançadas para o contexto social da época, decor-
rentes de leituras, geralmente destinadas ao sexo masculino, segundo Costa (1973),
Conceição significa a abertura para um novo espaço social que se situa no plano
da contra-ideologia, enquanto a avó é a típica representante da tradição, com a
qual a protagonista rompe ao recusar o casamento, por não querer um marido
nos padrões da sociedade da época, que aceita a infidelidade masculina com
naturalidade. O que pesou mais na sua decisão de não se casar com o primo foi
o desnível intelectual existente entre eles, conforme ela própria declara:

...provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... N em nada do que ela lia.


Ele dizia sempre que de livros, só o de nota de gado. Num relevo mais forte,
mas tão forte como nunca sentira, foi lhe aparecendo a diferença que havia
entre ambos, de gosto, de tendências, de vida. (O Quinze, p.58)

Percebe-se que a leitura/literatura, além de representar uma ameaça à ma-


nutenção da ordem natural das coisas, é também a origem da diferença de Con-
ceição: “seu interesse pelo conhecimento, pela cultura (idéias, poesia, literatura,
filosofia, psicologia, política...) tradicionalmente vedada às mulheres cujo único
caminho de auto-realização era o casamento – a submissão absoluta a um ho-
mem – e a procriação” (Coelho, 1993, p.317).
Conceição, além de ser professora, é uma leitora crítica, tanto dos livros,
quanto da realidade. Para ela, é importante que o companheiro também tenha
sensibilidade pela literatura. Pois, sem afinidades literárias, eles formariam um es-
tranho par. Ela, então, imagina as noites na fazenda, casada com o primo, quando

...sublinhasse num livro querido um pensamento feliz e quisesse repartir com


alguém a impressão recebida. Talvez Vicente levantasse a vista e lhe murmu-
rasse um “é” distraído por detrás do jornal... Mas naturalmente com que
distância e com quanta indiferença... (O Quinze, p.58-59)

Abdala Júnior (1995) afirma que Conceição se afasta do plano ideológico


por não aceitar os papéis masculinos nem os femininos de seu ambiente, dada a
sua socialização liberal e o convívio com a literatura, que propriamente decorre de
uma educação escolar.

Conceição olha para os livros de outros contextos, um horizonte maior para


onde se deslocam suas expectativas. Um olhar para fora, à procura de um
porto de chegada. Nesses horizontes mais amplos, para além da região, talvez
da nação, estariam as bases de sua identidade feminina. (O Quinze, p. 78)

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 211


Nessa perspectiva, o campo intelectual estabelece a diferença entre Con-
ceição e Vicente: enquanto ele é o típico homem da terra, usando a força bruta
no trabalho da fazenda, lutando contra a seca, preso ao espaço privado, Concei-
ção transita tanto no espaço da fazenda quanto no da cidade, assistindo os
flagelados, buscando solução para os retirantes. De acordo com Abdala Júnior
(1995), “O espaço simbólico de Conceição articula-se mais com o de outras
cidades do Brasil e do exterior do que aquele que se encontra no interior de sua
região” (p.79).
Segundo Coelho (1993), nos anos 30, enquanto o movimento pela emanci-
pação da mulher avançava na Europa e Estados Unidos, no Brasil eram fracas suas
repercussões. “A literatura estava destinada a desempenhar um papel decisivo na
denúncia daquele descompasso e daquelas barreiras” (p.312) e, nesse aspecto,
Rachel de Queiroz é reconhecidamente uma das pioneiras.
Isso posto, podemos afirmar que a leitura/literatura teve um papel educa-
dor e formador na personalidade da protagonista em questão, ampliando seus
horizontes, afinando sua sensibilidade artístico-literária e propiciando uma cons-
ciência social crítica.
No segundo caso, contrastando com o potencial positivo da literatura, em As
Três Marias, a literatura, fruto da indústria cultural, exerce função alienadora, forne-
cendo à leitora-personagem Guta ingredientes que alimentam o mundo de aspira-
ções ilusórias, estando, portanto, desvinculada de qualquer intenção questionadora.
Pinto (1990) enfatiza o relevante papel exercido pela literatura no aprendi-
zado de Guta, pois é através da leitura de romances que a protagonista estabelece
contato com a realidade fora do internato. Guta e suas colegas procuram nos
livros o contato com o mundo exterior que não têm. A literatura funciona ainda
como conselheira que dá dicas para solução de problemas pessoais. Elas buscam
solução para o problema de Jandira que sofria discriminações por sua origem.

E nós a acolhíamos, a acalentávamos, projetávamos vinganças. Sonhávamos


casamentos impossíveis como nos livros. É verdade que nos livros sempre se
descobre que a professorinha órfã é de origem nobre, filha de condes, e com
Jandira a realidade inegável estava sempre ali, pre sente. (As Três Marias,
p.55, grifos meus)

Essa passagem mostra que a literatura veiculada no internato atua no intuito


de reforçar os preconceitos sociais, naturalizando-o s, atuando para legitimar os
valores da classe dominante e espelhando a sociedade hierarquizada.

212 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Ao analisar o romance As Três Marias, Barbosa (1999), em consonância
com Pinto (1990), constata efeitos negativos das leituras feitas no internato, por
passar uma imagem romântica, deturpada e preconceituosa da realidade. Essas
autoras reconhecem que as leituras do tempo do internato, Gulliver, Robinson
Crusoé e, principalmente, os chamados romances cor-de-rosa, foram prejudi-
ciais à educação da protagonista, pois acentuaram seu temperamento exacerba-
damente romântico, incutindo-lhe uma falsa visão da realidade. Ao que tudo indi-
ca, esse tipo de literatura era abonado pela escola, conforme sugere a citação

...eu lia um romance, sentada no batente da porta. Uma Irmãzinha, [...]


aproximou-se de mim, suavemente, leu-me o título do livro por cima do
ombro. Fiquei vermelha, confusa, levantei-me, esperando o carão. Porém a
irmã me tomou o volume, sorriu, e exclamou: “Não se zangue, Guta, mas
quem vai ler agora sou eu!” Saiu com o romance, sentou-se na sala dos pianos,
ficou o resto da tarde embebida nas aventuras de Magali. (As Três Marias, p.22)

Magali integra uma coleção de romances, muito popular, com ampla divul-
gação no Brasil, sob o título Coleção Biblioteca das Moças, de autoria de um casal
de irmãos franceses que utilizavam o pseudônimo M. Delly, autores de cerca de
35 dos romances desta coleção. Trata-se, segundo Cunha (1999), da chamada
“literatura cor-de-rosa”. Ela constata, baseada em pesquisa, que esse tipo de lite-
ratura, ao mesmo tempo que fornecia alimento para o imaginário da leitora, “di-
vulgava normas, valores e condutas que, apropriados, via leitura, se ligariam a uma
certa construção da sensibilidade romântica feminina” (p.101). Acrescenta que,
ao se trabalhar sentimentos universais como: amor, felicidade, vergonha, culpa e
afeição, contentamento, depressão, continuamente exaltados nas histórias ro-
mânticas, vai se educando a sensibilidade das leitoras. Assim, tais romances, lidos
na adolescência, não só alimentaram sonhos, mas também introjetaram um ideal
romântico de vida, envolvendo maneiras de amar, de se comportar, um modelo
ideal de ser mulher e ser homem que, de certa forma, “ajudavam a construir uma
sensibilidade romântica impossível de ser concretizada na vida cotidiana” (p.104).
Mesmo considerando a forte possibilidade de que essa literatura tenha
exercido influência na educação dos sentidos das leitoras, moldando/plasmando
uma certa visão de si próprias e do mundo, Cunha le mbra, citando Chartier,
sobre a possibilidade de não ocorrer uma interiorização total do que foi lido:

...a leitura é sempre uma prática criativa capaz de produzir outros sentidos
completamente singulares e que não se reduzem às intenções daqueles que

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 213


escrevem. Por esse motivo não devem ser considerado s totalmente eficazes
e radicalmente aculturantes os textos e as palavras que pretendem moldar os
pensamentos e as condutas. (Chartier apud Cunha, 1999, p.107)

A autora ressalta que esse tipo de literatura desfrutado pela maioria das
internas apresenta um universo irreal, onde tudo é perfeito e atraente, que vai
servir de parâmetro para a compreensão da realidade do colégio e do mundo
exterior. Assim, quando as alunas se deparam com uma obra como Nada de novo
no front (1929), de Erich Remarque, a reação é totalmente negativa, porque a
imagem da guerra trazida não correspondia à realidade idealizada por elas, confor-
me destaca a protagonista: “A guerra só a compreendíamos com heróis esbeltos
[...] voltando, levemente mutilados e cobertos de medalhas, para os braços da
amada” (As Três Marias, p.25).
Pinto (1990) constata certa similaridade entre este romance e a própria
história de Guta. No romance de Remarque, são retratados jovens soldados que
se alistam para a guerra cheios de um idealismo que vai desaparecer rapidamente
em contato com a crueldade dessa realidade, tornando-se, física e psicologica-
mente, destroçados e precocemente envelhecidos. De forma semelhante, Guta
deixa o internato cheia de sonhos e ideais, que serão triturados pela estreita
realidade exterior. Desiludida e derrotada, ela retorna à casa paterna. Assim, a
recusa desse romance realista já antecipa sua rejeição à realidade da vida, muito
distinta da mostrada na literatura.
Ao longo das aventuras e desventuras da protagonista, fica implícito que sua
visão de mundo, ingênua e romântica, adquirida pela leitura de obras superficiais,
como ela própria declara, não corresponde à realidade concreta, conforme se
pode observar a seguir.

Nesta nova fase comecei a ler como adolescente [...] os livros que falassem
de amor, os eternos e róseos romancinhos franceses, em que homens cheios
de espírito e de tédio [...] se apaixonam pelas ingênuas de dezesseis anos. (As
Três Marias, p.24)

E a poesia, a grande e divina poesia! [...] É preciso não mentir. A poesia me


envolveu, me sufocou, me raptou. Mas na sua forma mais banal e subalterna –
nos sonetinhos sentimentais, nas coisas leves e triviais do amor. [...] Mas naque-
la idade curiosa, só interessa e comove o postiço, o artificial. (Idem, grifos meus)

A própria protagonista estabelece a distância desse tipo de leitura alienante


para a verdadeira literatura, aquela que retrata a alma humana e a realidade em sua

214 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


complexidade e contradições que, ao desnudar o real, “choca, escandaliza, mos-
tra coisas que a gente não quer ver” (As Três Marias, p.25).
É interessante observar certa similaridade entre o primeiro relacionamento
amoroso de Guta e as histórias típicas dos “romancinhos róseos”, descritas por
Guta, em que homens entediados se apaixonam por jovens ingênuas. Assim, ela
própria encarna a heroína jovem e ingênua, por quem o pintor Raul, idealizado
como “um artista incompreendido, casado com uma mulher estúpida”, era apai-
xonado (As Três Marias, p.90). Seu romantismo faz com que se volte para a busca
do exótico, fora dos padrões normais, tendo como parâmetro o universo roma-
nesco, como a própria personagem sugere.

Desejei amar um homem excepcional, diferente de todos – um cego, por


exemplo [...] Seria talvez influência dos romances de guerra, cheios de galãs
mutilados, que eram nossa leitura então? (As Três Marias, p.70)

Foi então que notei um homem de cabeleira grisalha [...] Era feio, débil,
pequeno, mas tinha um ar de romance... (Idem, p.71)

Raul representava para mim, então, o amor, e como tal era puro, intangível,
acima de tudo e de todos, acima do bem e do mal... Em verdade, talvez o lado
romanesco, irregular e ilegal da aventura, era o que mais me seduzia. (Idem,
p.90, grifos meus)

Ao descobrir em Raul o homem comum, interessado apenas em intimida-


des sexuais, ela se decepciona

Ele me decepcionava horrivelmente, só queria aquilo, aquelas intimidades


violentas, sempre de mãos estendidas, sempre ávido. O nde as maravilhosas
coisas que seu olhar prometia tanto [...] O nde as enebriantes palavras que eu
esperava, os contos do mundo dos sonhos... (As Três Marias, p.103).

Talvez a socialização religiosa e a visão romântica do ato sexual tenham


feito Guta recusar-se a ser amante de Raul. Ela percebe o quanto se enganara a
respeito do relacionamento dos dois e principalmente das intenções dele. Ele,
por sua vez, se espanta e se ofende com a recusa.

– Afinal o que é que você queria? [...] Pensava que eu era um boneco, um
fantoche de pincel na mão lhe dizendo galanteios? [...]
– Você não é mais criança, quer ser emancipada, diz-se livre, e por que tem medo?
– Você queria a literatura, o fraseado sentimental... (As Três Marias, p.105)

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 215


Os devaneios românticos da protagonista, fortemente abalados, sofrem o
golpe de misericórdia quando ela descobre ter sido substituída como objeto da
paixão dele.
Mediante sucessivas frustrações e desencantos, ela, aos poucos, vai des-
cobrindo certa distância entre realidade e fantasia, entre o real e o ideal. Para fugir
da desolação, agarra-se à idéia de uma viagem de navio para o Rio de Janeiro.
Porém esta viagem, que ela imaginava tal como no cinema, “lugar de prazeres
inéditos e de deliciosas convivências” (As Três Marias, p.125), resulta em decep-
ção, pois, além de não conhecer ninguém a bordo, enjoa o tempo todo, e o
camarote é sujo, abafado e fétido, em tudo o oposto do que ela imaginara, basea-
da na ficção romanesca e cinematográfica. A cidade maravilhosa também é decep-
cionante; ela se sente inútil e sozinha em meio à agitação.
Guta também se decepciona com a realidade familiar do interior, não se
adaptando à vida em família, que não corresponde à imagem idealizada pelas
canções e hinos escolares.

No Colégio, cantavam-se em todas as composições e todos os hinos de fim de


ano as belezas e as delícias do lar. Por isso, talvez, minha decepção foi tão
funda. O s meninos me importunavam, não os amava, sentia por eles apenas
aquela ternura convencional que me tinham ensinado os livros, “a ternura
devida aos irmãozinhos”. (As Três Marias, p.60)

É patente, nessa citação, o uso da literatura para transmissão de normas de


comportamento, com exemplos edificantes de como agir corretamente, desen-
corajando a transgressão das normas estabelecidas, conforme condena Oswald
(1997), alegando que a literatura precisa ser um objeto estético, que guarda a
complexidade da vida dos homens, e não um manual a ser seguido.
Também é a literatura que vai estabelecer o distanciamento entre Guta e
seu pai. Ela não reconhece na figura dele o homem romântico, o pai afetuoso e o
marido apaixonado do primeiro casamento. Ele que antes era alegre, amante da
boa leitura, da poesia, tornara-se quase um estranho aos olhos de Guta: “Agora
tudo isso é história perdida, esquecida, papai é severo, é outro, trabalha muito,
está gordo [...] O nde estão os seus livros? Ele agora lê jornal. O nde estão as
poesias que você me ensinava...” (As Três Marias, p.41).
Assim, a leitura constitui um elemento diferenciador do tipo de homem
que ele foi para o que se tornou, ou seja, o homem alegre, romântico que lia bons
livros, inclusive poesia, enquanto o homem severo, gordo, acomodado lê jornal.

216 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Essa mesma imagem contrastante foi utilizada em O Quinze para estabelecer a
diferença intelectual entre Conceição e Vicente, focalizando o conseqüente dis-
tanciamento entre eles proveniente desta diferença.
Rachel de Queiroz cumpre um papel valioso no processo de discussão da
problemática da educação feminina no Brasil e, ao mesmo tempo, chama a aten-
ção para o papel importante da literatura na educação, ressaltando seu potencial
na modelagem do sujeito, podendo torná-lo crítico ou alienado, e apontando a
necessidade de uma ética de leitura para a formação de leitores críticos da cultura.

CONSIDERAÇÕESFINAIS

A análise da influência da literatura na construção da subjetividade das heroí-


nas de Rachel de Queiroz permite que se reconheça a importância e a urgência do
desenvolvimento de propostas de escolarização da literatura mais adequadas do
que as que, de maneira geral, vigoram atualmente. Com relação ao problema de
gênero, pesquisadores/as têm criticado o tratamento dado a essa questão nos
impressos dirigidos especialmente ao público feminino, veiculados pela indústria
cultural, considerando que os conteúdos desses impressos contribuem para cul-
tivar o sexismo que a arte de Rachel de Queiroz empenha-se em desconstruir. É
importante observar que publicações do tipo Júlia, Sabrina e congêneres impõem
às jovens, guardadas as devidas proporções, as mesmas aspirações ilusórias que
os romances cor-de-rosa e açucarados de M. Delly inculcaram na protagonista de
As Três Marias. Tais romances, à semelhança de revistas femininas como Cláudia,
Nova e outras, convidam sistematicamente a mulher a vestir, maquiar e pentear-
se para agradar aos homens, perpetuando a ideologia de que ela deve “ser para os
outros”, ao mesmo tempo em que funcionam como divulgadores de um modelo
de mulher e de um padrão de beleza, forjando, portanto, um estereótipo ao qual
as leitoras devem-se adequar.
Vale ressaltar que não se está propondo que se vete aos estudantes os
produtos da indústria cultural e que se lhes imponha a leitura dos clássicos, mas
que seja dada a eles a possibilidade de discernir os limites que os objetivos das
obras de consumo impõem à formação de um leitor que seja simultaneamente
crítico da cultura, e a potencialidade que a arte contém de favorecer a construção
desse leitor. O caminho para chegar a uma verdadeira apreciação da arte passa
pela educação da capacidade crítica.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 217


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Recebido em: junho 2002


Aprovado para publicação em: julho 2002

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 219


UMA ANÁLISE DA MUNICIPALIZAÇÃO DO
ENSINO NO ESTADO DE SÃO PAULO
ANGELA MARIA MARTINS
Fundação Carlos Chagas
Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de Santos
amartins@fcc.org.br

RESUMO

O texto analisa alguns resultados de pesquisa mais ampla que avaliou a implementação do
convênio estado-municípios no que diz respeito aos serviços educacionais do ensino funda-
mental no Estado de São Paulo. Tomando como cenário o contexto político-adminitrativo e
dados de transferência da administração de escolas estaduais para o nível local, o estudo
original buscou investigar as características do processo gestor de dois municípios, escolhidos
com base nos índices de cobertura do ensino fundamental, nas características de suas
políticas de formação continuada e no seu perfil de arrecadação fiscal. Discutem-se, neste
artigo, apenas as características do processo de transferência de escolas, alunos e profes-
sores para as redes municipais de ensino.
POLÍTICAS PÚBLICAS – GESTÃO – MUNICIPALIZAÇÃO DO ENSINO – ENSINO
FUNDAMENTAL

ABSTRACT

AN ANALYSIS OF THE ELEMENTARY SCHOOLS ASSIGNMENT FROM THE STATE TO THE


MUNICIPALITIES IN THE STATE OF SÃO PAULO. The text discusses some results of a more
comprehensive research aimed to assess the implementation of a state-municipalities agreement
to provide elementary education in the State of São Paulo. Considering the political-administrative
context, as well as data on schools assignments from state to local schools, the original
study searched to identify the characteristics of the management process of two municipalities,
chosen on the basis of their elementary schooling coverage, their policies on teacher’s continued
education and the cities taxpayer profile. This article focuses specially on the characteristics
of the two Municipal Education Departments management process, based on interviews
with the Departments’ main authorities, members of the Municipal Board of Education and
school principals and vice – principals.
PUBLIC POLICIES – MANAGEMENT – TEACHING MUNICIPALITIES –ELEMENTARY SCHOOL

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 221-238,2003
novembro/ 2003 221
Parte de pesquisa mais ampla, este texto analisa aspectos da implementa-
ção do convênio estado-município referente à manutenção do ensino fundamen-
tal. No estudo original, foram discutidas as diretrizes da política estadual paulista
no que tange à municipalização dos serviços educacionais, com base na análise do
conjunto legal-normativo e nos documentos oficiais que a orientam, a partir de
1996. Nessa etapa, foram coletados, ainda, dados relativos a: prefeitos; partidos;
regiões administrativas; regiões de governo; diretorias de ensino; número de
escolas; professores e alunos municipalizados entre 1996 e 2001; matrículas
municipais; escolas municipais; valores repassados e recebidos do governo fede-
ral, por municípios no Estado de São Paulo, entre 1998 e 2000, via Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magis-
tério – Fundef 1.
Tomando como cenário o contexto político-adminitrativo e os dados de
transferência, o estudo original buscou investigar as características do processo
gestor de dois municípios cujas administrações foram escolhidas com base nos
índices de cobertura do ensino fundamental, nas características de suas políticas
de formação continuada e no seu perfil de arrecadação fiscal2. Procurou-se anali-
sar as principais variáveis intervenientes da transferência para as Secretarias Muni-
cipais de Educação, com base em entrevistas realizadas com as equipes envolvi-
das, na tentativa de verificar se esse processo dificultou ou facilitou a gestão do
ensino municipal: o conhecimento das questões técnicas e políticas; as possibili-
dades de aprendizagem no percurso; a compreensão e/ou resistência às mudan-
ças geradas no desenho institucional; atuação dos órgãos colegiados: o Conselho
Municipal de Educação e o Conselho de Acompanhamento Fiscal e sua relação
com o poder executivo municipal.

1. A pesquisa intitulada O processo de municipalização no Estado de São Paulo: mudanças


institucionais e atores escolares, coordenada por Angela Maria Martins, recebeu finan-
ciamento da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. No
estudo original, os dados foram sistematizados e analisados por José Roberto Rus
Perez, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Unicamp, pes-
quisador convidado da Fundação Carlos Chagas, a quem agradecemos a participação.
Eles estão organizados e disponíveis em banco de dados na biblioteca da Fundação
Carlos Chagas.
2. Os dois municípios são grandes, com população entre 500 mil e 800 mil habitantes.
Possuíam, até 1997, uma rede de atendimento municipal de educação infantil, um
quadro de professores e diretores com salário acima do dos profissionais da rede
estadual, escolas muito bem equipadas e consistentes políticas de formação continuada.

222 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Embora o estudo não tenha analisado os aspectos tributários que envol-
vem a operacionalização do convênio, pois isso exigiria outro tipo de abordagem
cuja ênfase não reside propriamente na teoria política, a questão dos recursos
sempre veio à tona durante a realização das entrevistas no âmbito das equipes
centrais das duas Secretarias Municipais de Educação. Não constituiu, porém,
objeto de análise (Martins, Perez, 2002).
É preciso, ainda, que algumas considerações sejam feitas sobre o conceito
de mudança institucional utilizado no estudo. As implicações na utilização dos
termos inovação, reforma e mudança são muitas e não há um consenso na
literatura da área acerca do conceito que melhor explicite as características de cada
processo. De modo geral, o discurso recente que embasa as diretrizes do que se
convencionou denominar reformas dos sistemas de ensino não faz distinção
entre os termos, considerando-os, de certa forma, semelhantes 3. A despeito
dessa heterogeneidade, adotou-se como referência básica o conceito de mudan-
ça institucional relacionado a mecanismos não estabilizadores 4 que ocorrem por
força de novos rumos imprimidos na gestão do Estado, e que implicam a adoção
de reformas estruturais que reconfiguram o exercício e as relações de poder.
Nesse sentido, partiu-se do pressuposto de que a implementação de
políticas alinhadas à ampliação do exercício da democracia, ou de políticas orientadas
para as mudanças exigidas pela economia de mercado, tem sido condicionada,
num caso ou noutro, por relações de macropoder que criam demandas e reorientam
a gestão das políticas setoriais, promovendo mudanças institucionais significati-
vas. O sentido de reforma educacional, neste caso, está diretamente relaciona-
do às mudanças efetivadas na estrutura do próprio sistema de ensino as quais
promovem, concomitantemente, inovações na organização político-pedagógica
das escolas. Pode-se afirmar, com certa tranqüilidade, que a implementação do

3. Ver, a esse respeito, a discussão realizada por Afonso (1998) sobre as diferentes
posturas assumidas por diversos autores que analisam o tema.
4. Ver, sobre o conceito de mudança em sociologia: Lipset (1977, p.191). O autor
destaca a importância da análise funcionalista, bem como as contribuições do estrutu-
ralismo para o conceito de mudança social, salientando que, embora preocupados com
os níveis de estabilidade dos sistemas sociais, os autores que se alinham a essas
correntes de pensamento admitem que todos esses sistemas são constituídos por
mecanismos estabilizadores e não estabilizadores. Exatamente por isso, é possível
administrar os conflitos surgidos em processos de mudança como decorrência natural
de mecanismos antagônicos que tendem a se acomodar de um modo ou de outro.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 223


convênio estado-município em curso representa uma expressiva reorganização
político-administrativa do sistema público estadual paulista, com conseqüências
no âmbito pedagógico sem precedentes na história da educação no Estado de
São Paulo.

A POLÍTICA E SUA GESTÃO: PROCESSOS DECISÓRIOS E PODER


LOCAL

A discussão sobre democracia na literatura política invariavelmente vem


acompanhada de ponderações acerca das reais possibilidades de compartilhamento
do poder e da representação dos cidadãos. O tema é analisado, de um lado, por
teóricos defensores da formalidade imposta pelas regras do jogo democrático,
ou em outras palavras, pela defesa incondicional dos procedimentos formais de
delegação da representação, com base em eleições que consagram a convivência
democrática. De outro, encontram-se os defensores da conquista do aumento
de participação daqueles que se acham sub-representados, mesmo que essa
ampliação ainda represente uma defesa dos canais legitimados pela formalidade
dos procedimentos democráticos. Ao longo do século XX, no campo da teoria
política a discussão sobre as transformações inevitáveis e inerentes às sociedades
democráticas e aos seus mecanismos de funcionamento, oscila entre a defesa
dos procedimentos formais de participação social e política dos indivíduos e a
constatação da complexidade da distribuição do poder nessas sociedades, isto é,
sobre a necessidade de ampliação dos canais de representação.
Para Bobbio (2000), entre os nobres ideais – cujos princípios legais e
normativos fundamentam a democracia desde o liberalismo – e a realidade con-
creta, um processo de transformações sociais, históricas e econômicas mudou
seus mecanismos de funcionamento, acrescentando-lhes propriedades diferen-
tes. Assim, a concepção individualista que lhe deu origem – contrariando a con-
cepção orgânica de sociedade prevalecente nas sociedades antigas e medievais, e
partindo do princípio do indivíduo soberano que, de acordo com outros indiví-
duos soberanos, criaria a sociedade política em um regime sem intermediários –,
confrontou-se com a realidade social de organizações, grupos, associações, sin-
dicatos, interesses partidários, de uma sociedade, enfim, burocratizada.
Nas últimas décadas, a preocupação central acha-se dividida entre a idéia de
manter a democracia nos moldes liberais, baseada sobretudo na representação
exclusivamente via eleições, ou a de ampliar seu próprio conceito, inspirando-se
nas idéias socialistas para a defesa da ampliação da participação e da representação

224 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


daqueles segmentos sub-representados. De qualquer modo, a adoção de proce-
dimentos formais como via legítima para que a democracia represente interesses
heterogêneos generalizou-se ao longo do século XX e continua sendo a forma
que dá vida aos regimes democráticos, embora outros teóricos sublinhem que
tais procedimentos estão longe de ser sua substância.
De acordo com Santos (2002), a tensão entre capitalismo e democracia,
sobretudo nos países centrais, visando priorizar a acumulação do capital e con-
trolar a redistribuição social na tentativa de evitar o que se denominou sobrecar-
ga democrática, explodiu após os anos de 1980. A pressão criada por segmen-
tos sociais que nunca tiveram acesso às políticas de proteção – acrescida da
pressão formulada por outros segmentos inseridos nessas políticas –, criou
demandas sobre as democracias formais que buscaram respondê-las com dife-
rentes estratégias de governo, contaminando os países periféricos ou semiperi-
féricos. As estratégias adotadas para reorientar a capacidade de atendimento das
democracias ocidentais às demandas crescentes variam de acordo com as ca-
racterísticas históricas, políticas, econômicas e culturais dos países envolvidos,
no entanto, de modo geral, consolidou-se a idéia de uma democracia capaz de
controlar a governabilidade, em detrimento da idéia de uma democracia capaz
de inserir a pluralidade contida nos segmentos excluídos, sem deixar de atender
aos que já estavam assistidos.
As concepções hegemônicas de democracia que vigoraram ao longo da
segunda metade do século XX procuraram responder basicamente a três ques-
tões: à complexidade da relação entre procedimento e forma; ao papel desempe-
nhado pela burocracia na vida das sociedades democráticas modernas; e, final-
mente, à complexidade de que se reveste a representação nas democracias de
larga escala. Porém, essa discussão não soluciona o problema crucial de saber se
as eleições esgotam os procedimentos de autorização dos cidadãos e se a repre-
sentação esgota o problema da diferença. A questão da inevitabilidade da burocra-
cia nas sociedades modernas é outro problema que parece não solucionado pelas
democracias formais (Santos, 2002).
Ao longo do século XX, o Estado de bem-estar social fez com que as
questões de ordem burocrática adquirissem conotação positiva na análise de boa
parte do pensamento político, com exceção das críticas formuladas por Foucault.
Segundo Santos,

...a concepção tradicional de gestão burocrática (nos moldes weberianos)


advoga uma solução homogênea para cada problema, a cada nível de gestão

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 225


administrativa, no interior de uma jurisdição administrativa. No entanto, os
problemas administrativos exigem cada vez mais soluções plurais nos quais a
coordenação de grupos distintos e soluções diferentes ocorrem no interior
de uma mesma jurisdição. (2002, p.48)

No rastro desse debate, insere-se a defesa do desmonte do aparelho


burocrático que dá vida às sociedades democráticas ocidentais: se os problemas
são heterogêneos, sua solução deve ser buscada em diferentes procedimentos e
níveis administrativos da gestão da coisa pública, em contraposição às políticas
centralizadas e burocratizadas implementadas até meados do século XX. Final-
mente, a questão da autorização para que os cidadãos se achem representados
também não está solucionada nas democracias formais.
Em escala ampliada, o exercício da democracia buscou soluções na facilida-
de encontrada pela representação formal. Porém, encontrou dificuldades no que
diz respeito à prestação de contas e à representação das múltiplas identidades,
fazendo com que os choques de interesses étnicos, de opção sexual, religiosos,
raciais etc. fossem inevitáveis. Na contracorrente das concepções hegemônicas –
de modo geral defensoras dos procedimentos formais para autorização da repre-
sentação dos cidadãos como únicos canais legítimos de prática democrática –,
houve uma revalorização dos preceitos democráticos, baseados, no entanto, em
novos mecanismos de participação social e política.
Uma solução apontada após os anos de 1980 para que a democracia
liberal se viabilize como regime hegemônico é a ampliação da participação local
dos cidadãos. Supõe-se que a democracia exercida em escala menor – nas
localidades – facilite a superação dos problemas gerados pelos diferentes níveis
da burocracia, bem como pela complexa questão da representação. Nas cida-
des, por exemplo, as condições para o desenvolvimento de experiências alter-
nativas e o exercício de práticas democráticas seriam maiores, estariam delimi-
tados territorialmente, se beneficiariam da proximidade do poder e seriam baseados
na criatividade dos atores locais. Essa idéia encontra respaldo nas teorias contra-
hegemônicas de democracia que também defendem uma convivência e uma
complementariedade entre níveis de escala dentro do regime democrático (Santos,
2002).
Resta uma pergunta: até que ponto ou de que maneira os novos desenhos
institucionais surgidos de formas experimentais de exercício democrático podem
mudar substancialmente o modelo hegemônico de democracia? Em outras pala-
vras, de que forma a dinâmica instaurada em razão da descentralização de proces-

226 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


sos decisórios, tais como este aqui analisado, pode configurar um novo desenho
institucional para a prática da democracia em pequena escala, permitindo: aperfei-
çoamento na gestão das políticas; participação efetiva dos atores escolares nas
decisões coletivas; encaminhamento de soluções mais efetivas e eficazes para os
graves problemas configurados pela burocratização da implementação de políti-
cas? Ou os novos desenhos correm o risco de ser apenas a reconfiguração de
velhas formas de gestão das políticas públicas?

PROCESSO DE MUNICIPALIZAÇÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO

Após o fim do Regime Militar e a instauração de um processo de democra-


tização política, a redistribuição das receitas públicas para dotar as subunidades
federadas de maior autonomia financeira, ao que tudo indica, ainda está longe de
resolver de forma satisfatória a redefinição do desenho das políticas setoriais no
Brasil, embora tenha iniciado um percurso de mudanças fundamentais para que o
modelo de gestão de Estado centralizado seja superado. De modo geral, a indefinição
de competências, a dispersão de esforços e recursos, as dificuldades para se
responsabilizar as diferentes esferas executivas pela inexistência ou inadequação
da prestação de serviços têm sido as características do processo descentralizador
no Brasil. De qualquer forma, a descentralização tem ocorrido baseada na redis-
tribuição das receitas de um lado, e, de outro, fundamentada em novos arranjos
político-institucionais, com a redistribuição de competências entre as diferentes
esferas de governo. Como medida última, o processo descentralizador tem transferido,
gradativamente, funções do setor público para o setor privado lucrativo ou não
lucrativo, com base na instauração de parcerias e convênios.
A agenda política implementada a partir de meados dos anos 1980 na
educação paulista – centrada no discurso da descentralização e da autonomia da
escola como um dos principais instrumentos para instaurar uma gestão demo-
crática após anos de regime militar – derrapou até meados dos anos de 1990,
no modelo de gestão de Estado intrinsecamente ligado a mecanismos centrali-
zadores. A ruptura com esse modelo teve início a partir da metade dos anos de
1990, com a vitória do ideário que defendia um projeto de modernização admi-
nistrativa, constituindo-se um campo de tensão no planejamento educacional a
partir da instauração de processos descentralizadores. Dentre as principais medidas
que operacionalizaram esse processo de mudanças institucionais no Estado de
São Paulo, está a transferência de escolas, professores e alunos de 1 as a 4 as

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 227


séries aos municípios5. Historicamente, a cobertura do ensino fundamental tem
sido feita pelo setor público, com especial destaque para a maciça participação
da Secretaria Estadual da Educação, responsável por 79% das matrículas nesse
nível de ensino, por exemplo, em 1995. Com a redefinição de competências
entre as esferas de governo a partir de 1996, intensificada nos anos seguintes,
os municípios passaram a assumir a responsabilidade pelas matrículas de 1ª a 4ª
série, saltando de 12% para 44% a sua participação no conjunto da oferta no
período de 1996 a 2001, enquanto a rede estadual caía de 77% para 44%.

GRÁFICO 1
DISTRIBUIÇÃO DAS MATRÍCULAS DE ENSINO FUNDAMENTAL (1ª - 4ª SÉRIE)
SEGUNDO DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA SÃO PAULO, 1996 - 2001

Fonte: Centro de Informações Educacionais – CIE/ Secretaria de Estado da Educação de São Paulo –
SEESP.

5. O Decreto n.40.673/96, posteriormente alterado pelo Decreto n.40.889/96, insti-


tuiu o Programa de Ação de Parceria Educacional Estado-Município para atendimento
ao ensino fundamental, consolidando o processo de municipalização, iniciado em 1989,
com o Decreto n.30.375/89. O instrumento administrativo criado para viabilizar o
programa foi um Termo de Convênio, do qual faziam parte um Plano de Trabalho do
município com objetivos e metas, um Plano de Aplicação dos Recursos e um Crono-
grama de Desembolso Financeiro. Na assinatura dos dois primeiros eventos de muni-
cipalização, apenas 46 municípios apresentaram todas as condições legais e financeiras
para aderir à parceria. Os professores, diretores e coordenadores pedagógicos foram
cedidos por cinco anos de vigência dos convênios, embora sua situação funcional não
se alterasse: continuariam sendo funcionários do estado, sem perda das vantagens
trabalhistas, e o estado permanecia responsável por seus salários e aposentadorias.
Mensalmente os municípios deveriam reembolsar ao estado apenas o montante da
folha de pagamento desses profissionais.

228 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


O processo de municipalização teve início em 1996 e foi marcado pela
adesão de um pequeno número de municípios (6,7%). Nesse mesmo ano, o
Fundef foi discutido e finalmente aprovado pelo Congresso em dezembro. No
ano seguinte, ocorreu a maior proporção de municipalizações, período em que
um terço dos municípios assinaram o convênio com a Secretaria Estadual, anteci-
pando-se, dessa forma, à implantação do Fundef. Coincidentemente, 1997 foi o
primeiro ano das novas gestões eleitas. Em 1998, ano em que finalmente foi
implantado o Fundef, deu-se um refluxo e apenas 43 municípios aderiram à
municipalização. Vale lembrar que nesse ano houve eleições para governador e
presidente da República. Em 1999, o processo tomou fôlego novamente, incor-
porando mais 18% dos municípios. Finalmente, nos dois últimos anos abrangi-
dos por esta análise, ocorreu um declínio do número de adesões que atingiram
no máximo 6% dos municípios.
Ao final desse processo, em 2001, vislumbrava-se a seguinte situação,
conforme os dados da tabela 2: 67,9% dos municípios haviam aderido ao pro-
cesso de municipalização e passaram a oferecer ensino fundamental; 12,7% de-
les já possuíam uma rede própria e mantiveram-na e 19,4%, continuaram sem
uma rede municipal.

TABELA 1
PORCENTAGEM DE MUNICÍPIOS, SEGUNDO O ANO DE REPASSE
DAS ESCOLAS ESTADUAIS PARA A SUA ADMINISTRAÇÃO
SÃO PAULO, 1996 - 2001

Ano Municipalização
1996 1997 1998 1999 2000 2001 TOTAL
%(N=645) 6,7 30,4 6,7 18,1 1,9 4,2 67,9

TABELA 2
PORCENTAGEM DE MUNICÍPIOS QUANTO À MANUTENÇÃO
DAS ESCOLAS DE ENSINO FUNDAMENTAL
SÃO PAULO, 2001

COM ESCOLAS RECEBIDAS DA REDE ESTADUAL 67,9


COM REDE MUNICIPAL PRÓPRIA 12,7
SEM REDE ESCOLAR 19,4
TOTAL DE 645 MUNICÍPIOS 100,0

Fonte: CIE/SEESP.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 229


A análise desse processo de municipalização segundo o porte do municí-
pio aponta para alguns dados muito relevantes quanto ao momento de adesão e
6

à intensidade. No primeiro ano de municipalização, foram os municípios grandes


que mais aderiram. Os municípios de porte médio passaram a municipalizar com
mais intensidade no segundo ano, em 1997. Os municípios pequenos entraram
nesse processo mais intensamente em 1997 e 1999, mas continuaram municipalizando
ainda nos três anos seguintes (Gráf. 2). Ao final desse processo, em 2001, ainda
existiam 32% dos municípios pequenos que não possuíam rede municipal de
ensino fundamental, entre os municípios médios, havia 10% e entre os grandes
apenas 2% estavam nessa situação. Também havia um conjunto de municípios
que não aderiram ao processo de municipalização porque já possuíam rede pró-
pria de ensino fundamental. Nesse caso, encontravam-se 28% dos municípios
grandes, 15% dos médios e 8% dos pequenos.

GRÁFICO 2
DISTRIBUIÇÃO DOS MUNICÍPIOS SEGUNDO
O ANO DE MUNICIPALIZAÇÃO E PORTE
SÃO PAULO, 1996 - 2001

Nota: Centro de Informações Educacionais – CIE/Secretaria de Estado da Educação de São Paulo –


SEESP; Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do Rio de Janeiro – FIBGE (disponível
em: http//:www.ibge.gov.br; acessado ao longo de 2001 e 2002).

6. Os municípios do Estado de São Paulo foram classificados segundo o número de


habitantes: porte pequeno (até 10 mil habitantes), médio (de 10 mil a 100 mil habitan-
tes) e grande (mais de 100 mil). Dos 645 municípios, 45% eram pequenos, 45%,
médios e 10%, grandes.

230 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


O desenho institucional que se formou na política educacional paulista
em decorrência do convênio que transferiu professores, alunos, prédios esco-
lares e funcionários da esfera estadual para os municípios é fragmentado e
forma um mosaico de interesses díspares, o que nos permite afirmar que a
sacralizada cultura burocrático-administrativa consolidada nos anos de 1970
começa a sofrer fissuras, para o bem e para o mal. Considerando-se as enor-
mes desigualdades regionais no tamanho, formas de atendimento, desempe-
nho e capacidade fiscal dos municípios paulistas, configura-se uma engenharia
operacional de transição na qual os novos papéis institucionais têm sido testa-
dos de todas as formas, pois pode-se afirmar, com certa tranquilidade, que cada
município é um caso. A retirada de cena da esfera executiva federal, substituída,
em parte, pelas novas prerrogativas dadas aos estados e municípios para que
estes passem a assumir novas competências de gestão, não constitui apenas
um problema técnico, mas esbarra exatamente na cultura política sacralizada em
torno de negociações nem sempre pontuais.
O campo de tensão constituído nesse processo apresenta elementos do
projeto de modernização encetado desde fins dos anos de 1970 e elementos
tradicionais que a eles se mesclam, potencializando, na rede de escolas, com-
portamentos de resistências, omissões, dissimulações e/ou simplesmente de
adesões às orientações oficiais por meio de cumprimento ritual das ordens
emanadas. Acrescente-se que a cultura institucional – o sistema de crenças,
valores e de interação dos atores entre si e entre estes e a própria organiza-
ção –, ao ser instada a se modificar, metaforiza parte do ritual normativo, incor-
porando o velho no novo desenho que se forma como estratégia de sobrevi-
vência. Da mesma forma, o clima organizacional – técnicas e procedimentos;
política de recursos humanos; metas, regulamentos e estatutos; comportamen-
to encorajado dentro da instituição; atividades de caráter integrador etc. –, tam-
bém sofre um processo de aprendizagem em contextos de mudança, confor-
me se observou na pesquisa de campo.
O cenário político recente, em que predomina a defesa da localidade como
espaço apropriado para exercício da democracia em pequena escala, parece ade-
quar-se à necessidade de se instaurar em novas formas de gestão da rede de
escolas, tendo em vista a comprovada ineficiência e ineficácia dos grandes siste-
mas de ensino para oferecer um ensino de qualidade e de responder com agilida-
de aos problemas suscitados das mais diferentes ordens, em regiões completa-
mente diferentes entre si. Nessa perspectiva, os problemas heterogêneos que
permeiam as redes de escolas, aparentemente, encontram alguma solução mais

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 231


imediata nos diferentes procedimentos e níveis administrativos da gestão munici-
pal, pois a proximidade com o poder executivo, ao que tudo indica, além de
ampliar a participação dos profissionais do ensino, também perturba mais direta-
mente o centro desse poder, no caso, as Secretarias Municipais de Educação e/ou
o gabinete do prefeito.
Porém, em contextos de mudança institucional nos quais ocorrem nego-
ciação de transferência de responsabilidades e/ou de compartilhamento de poder,
pode-se constituir um paradoxo. A necessidade de forjar novas formas de de-
sempenho das políticas educacionais exige que as instituições envolvidas em sua
implementação adquiram um corpo de informações e de conhecimentos buro-
crático-administrativos para assumir suas novas funções, o que, sem dúvida, gera
um período de tensão política e de vácuo no conjunto normativo-legal, pois sua
racionalidade não responde mais às necessidades do cotidiano. Isto é, entre o
que este conjunto propugna para que a gestão da política educacional funcione em
outro paradigma, e sua efetiva operacionalização, configura-se um período de
instabilidade institucional que imprime rumos inesperados às suas diretrizes, na
tentativa de romper a cultura fortemente enraizada em seus órgãos gestores e nas
próprias unidades escolares. É nesse vácuo que os professores, diretores e coordenado-
res pedagógicos têm sido chamados a desempenhar suas funções, enfrentando
as inovações propostas pelas Secretarias Municipais de Educação, estas próprias
protagonistas estreantes em seus novos papéis institucionais, pois acabaram de
assumi-los. Temos, portanto, uma dupla aprendizagem: da própria esfera execu-
tiva municipal que está aprendendo a desempenhar suas novas funções e dos
atores escolares, demandados a serem criativos, colaboradores, a aceitarem as
mudanças propostas e a compreenderem a situação de indefinição profissional a
que estão submetidos.
A conduta da Secretaria Municipal de Educação (que será designada por A)
foi no sentido de negociar a transferência de alunos e professores, construindo,
nesse processo, o que se convencionou denominar “condomínios”, pois as es-
colas municipalizadas, em alguns casos, funcionavam dentro das escolas estaduais
onde, durante um período de tempo, conviveram no mesmo espaço físico pro-
fessores, diretores e coordenadores pedagógicos estaduais e municipais. Em
outros casos, o estado construiu o prédio e a prefeitura assumiu sua gestão. Essa
situação gerou, em uma das escolas analisadas, uma relação de colaboração efe-
tiva, em que as duas diretoras trabalharam em conjunto encaminhando e resol-
vendo as situações de ordem administrativa e pedagógica.

232 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


Em outra cidade (designada aqui por B), o processo de transferência se deu
através do “repasse” de escolas estaduais para a prefeitura, com base em uma
discussão sobre municipalização que teve início em março de 1997, envolvendo
toda a rede de ensino na cidade. O principal argumento nas discussões realizadas
sublinhava que o Fundef – elemento indutor desse processo –, não deixava
margem de manobra para o executivo municipal. Na realidade, a esfera executiva
estadual constitui o centro gestor centralizado do Fundef, uma vez que detém a
maior parte do atendimento, competindo a esta esfera repartir os recursos, o que
lhe possibilita reforçar os mecanismos daquilo que se denomina “ultrapresidencialismo
estadual”7. O município, até 1998, não assumia o ensino de 1a a 4a série, resu-
mindo-se a gerenciar uma rede de pré-escolas. No final de 1998, elaborou-se o
estatuto do professor municipal, e em 1999 estruturou-se o Departamento de
Educação. A reconhecida “falta de experiência política, burocrática e administrati-
va” para gerenciar um volume maior de recursos financeiros e a expansão das
equipes centrais gerou um processo tenso de mudança institucional.
De qualquer forma, apesar de o processo de transferência de escolas,
professores, funcionários e alunos se constituir em objeto de polêmica e estar
permeado de contradições, houve consenso na opinião dos entrevistados, ao
defenderem a mudança física e simbólica do locus de negociação entre os atores
escolares e o poder executivo, embora reconheçam os riscos dessa proximida-
de. Essa aproximação parece contemplar a reivindicação pela ampliação da partici-
pação dos atores escolares e da comunidade, pois os canais de comunicação são
encurtados e os conflitos gerados nesse processo são negociados diretamente
com os gestores dos sistemas municipais.
O desenvolvimento de estratégias e mecanismos governamentais de indução
para que os municípios adiram aos programas de descentralização do governo
federal – e o Fundef é um dos principais deles –, não exclui o complexo processo
de negociação entre as esferas federal, estadual e municipal, visto que os arranjos
político-partidários originam as mais diferentes barganhas. Nesse sentido, a pro-
ximidade proporcionada pela delimitação do espaço territorial entre instâncias de
atuação e níveis administrativos parece contemplar a reivindicação pelo alarga-
mento das bases democráticas de funcionamento da rede de escolas, de um lado.
De outro, os mesmos profissionais entrevistados sublinham que essa proximida-

7. Ver a discussão feita por Abrucio (1998) sobre essa questão.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 233


de é potencialmente perigosa, pois os conflitos de poder, nesse sentido, podem
ser utilizados em sentido contrário àquele que alimentaria a dinamização do exer-
cício democrático.
Como em todo processo de mudança institucional, corre-se o risco de
configurar-se, no desenho da política educacional estadual paulista, um vácuo
legal-normativo, pois todas as prescrições do conjunto de orientações da Secre-
taria de Estado da Educação de São Paulo esbarram nas peculiaridades dos muni-
cípios envolvidos, permeadas por profundas diferenças na cobertura dos serviços
educacionais. Tem ocorrido um aumento sem precedentes dos encargos admi-
nistrativos, pedagógicos e financeiros para os municípios, considerando que nas
Secretarias Municipais não existia, até então, uma cultura burocrático-administra-
tiva e financeira, pois todo o conjunto normativo era de responsabilidade restrita
da esfera estadual. Na implementação do convênio, esse arcabouço – que não é
pequeno – está sendo assumido pela esfera municipal, com a otimização dos
Conselhos Municipais de Educação e/ou com a estruturação de um sistema de
supervisão da rede de escolas.
Mudar as bases de negociação não é tarefa simples nem constitui um sim-
ples mecanismo burocrático. As esferas executivas têm procurado responder às
novas demandas postas para a gestão da política educacional, com diferentes
estratégias de governo que variam de acordo com as características históricas,
políticas, econômicas e culturais dos municípios envolvidos. Sem sombra de dú-
vida, a necessidade de ampliação da participação dos atores envolvidos em sua
operacionalização é condição sine qua non para que os problemas heterogêneos
encontrem soluções, também diferenciadas, localizadas na gestão municipal.
Dessa forma, o redesenho institucional das próprias Secretarias Municipais de
Educação – seus novos órgãos e fluxogramas – bem como os Conselhos Muni-
cipais, configuram novas formas de gestão da política educacional.
Porém, a democracia, sua prática e seus canais de expressão não se resu-
mem a um problema de escala. Ao que tudo indica, não é de todo improvável que
ocorram reversões de algumas das expectativas, pois a burocratização dos canais
de participação dos atores é inevitável. Portanto, o risco de se introduzirem outras
e novas formas de negociação dos diferentes interesses é grande, considerando-
se que, fundamentalmente, esses processos em sociedades democráticas ocor-
rem em torno de grupos corporativos, estejam eles situados em quaisquer espa-
ços nos quais a democracia possa ser exercida.
Algumas das principais questões que compõem a tensão configurada por
esse jeito de fazer política, herança de um passado que se manifesta com inten-

234 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


sidade no presente, não encontrarão solução imediata, pois a possibilidade de
mudança na cultura institucional ainda não passa disto, uma possibilidade. Dentre
os principais entraves ressaltam-se: a manipulação de informações por parte de
segmentos que representam diferentes interesses locais; alguma indiferença e/ou
desprezo em relação aos critérios estabelecidos pelas novas formas de adminis-
trar; a negociação de influências e níveis de participação nas decisões de impacto
da esfera executiva, como: quem levará vantagem (entenda-se qual grupo) se tal
medida for implementada? Sem dúvida, a reorganização dos conselhos locais,
fundamentada em normas legais, diferenciadas das que prevaleceram até o pre-
sente momento, que constitui um processo de negociação cujas bases ainda
sofrem de males hereditários, pode mudar substancialmente o modelo de geren-
ciamento da política educacional.
É necessário, contudo, olhar para esse processo compreendendo que
ainda levará muito tempo para que a possibilidade de ampliação de participação
dos atores escolares nos órgãos deliberativos locais seja de fato o resultado de
amadurecimento da democracia participativa, e não mais um mecanismo de ca-
muflagem na defesa de interesses pouco transparentes. Questões como o lega-
do da cultura política local; a existência ou ausência de quadros capacitados tecni-
camente para assumir a gestão de maiores recursos financeiros; a ampliação sem
precedentes dos recursos humanos envolvidos; as diferenças nos níveis de parti-
cipação dos cidadãos, formam um caldo político-institucional nesse período de
transição. De um lado, esse caldo pode perturbar a estabilidade momentânea da
gestão da rede de ensino. De outro lado, essa situação poderá gestar novas
formas de relacionamento entre as esferas executivas se a aprendizagem gerada
no processo conseguir dinamizar os canais de expressão locais, o que demons-
traria maturidade política dos atores envolvidos.
Observou-se, também, que há uma disputa entre os profissionais que per-
maneceram nos quadros da administração estadual e aqueles que foram munici-
palizados. No cerne dessa disputa, está não apenas a apropriação do espaço físico
e dos recursos das escolas municipais – muito mais bem equipadas em ambas as
cidades –, sobretudo, o status adquirido por estes últimos quadros, tendo em
vista que a diferença nas condições de trabalho oferecidas pelos municípios ana-
lisados são muito melhores. Embora a sensação de insegurança e de provisoriedade
da situação trabalhista tenha diminuído à medida que os executivos municipais têm
aperfeiçoado sua aprendizagem institucional, estruturado departamentos, organi-
zado fluxogramas e treinado equipes técnicas para administrar maiores recursos
financeiros e humanos, a sensação de não saber a quem obedecer ainda é bastan-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 235


te forte entre os profissionais e tem fundamento no próprio vácuo constituído
nesse processo de transição. As dúvidas pairam sobre questões até então co-
muns: faltas abonadas, férias, décimo terceiro salário, formação em serviço.
As relações entre as Diretorias de Ensino Regional e as Secretarias Munici-
pais de Educação também estão baseadas na racionalização do atendimento das
matrículas, e tendo sido contornado o problema da demanda. De fato, até 1998,
as redes municipais de ensino organizavam a matrícula de seus alunos indepen-
dentemente da rede estadual. Essa falta de sincronia acarretou, muitas vezes, a
superlotação de uma rede em detrimento da outra, comprometendo a otimiza-
ção dos equipamentos públicos. Além disso, como as matrículas eram feitas na
segunda quinzena de novembro – com o início das aulas em fevereiro –, as
inesperadas demandas de vagas em determinados locais não podiam ser atendi-
das porque não havia tempo suficiente para novas contruções e/ou ampliação da
escolas. A antecipação do cadastro feito em conjunto por ambas as esferas exe-
cutivas, processo mediado pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de
Educação – Undime –, facilitou e otimizou o atendimento da demanda.
Porém, os mesmos problemas de reconcentração de poder local também
são apontados pelos entrevistados. O enxugamento das antigas Delegacias de
Ensino e sua reconfiguração local em cidades-pólo que atendem um número
grande de escolas foi apontado como um entrave na agilidade, democratização e
acesso dos profissionais da rede de escolas às informações e capacitações minis-
tradas. Dessa forma, o novo desenho institucional evidencia que o processo de
descentralização em curso não constitui simplesmente uma etapa subseqüente da
descentralização financeira e fiscal, sem que sejam consideradas as peculiaridades
que envolvem o complexo processo de negociação entre as esferas de governo.
Nesse sentido, é inevitável que as administrações locais realizem uma leitura
política sobre os possíveis ganhos e perdas resultantes do fato de assumirem, ou
não, os compromissos de gestão da rede de escolas.
Em suma, o atendimento municipalizado aproxima mais os profissionais da
educação, os alunos e seus pais do centro de decisão, facilitando constituir a pauta
de reivindicações e localizando mais facilmente os conflitos entre estes e os ges-
tores do sistema municipal. Porém, o processo tem sido permeado de proble-
mas que se parecem eternizar no ensino público, pois a expansão repentina das
redes municipais começou a provocar, ao que tudo indica, um rol de intervenientes,
evidenciando que a tensão entre a expansão da cobertura dos serviços educacio-
nais e a manutenção da sua qualidade é realmente difícil de ser resolvida.

236 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


De uma parte, a mudança do locus de negociação – da esfera estadual para
a esfera municipal – atingiu as reivindicações e/ou expectativas dos profissionais,
acentuando ou normatizando de outra maneira os conflitos entre os pares e entre
estes e o novo centro do poder: a Secretaria Municipal de Educação. De outra
parte, contribuiu para que os profissionais realizassem uma releitura das mudan-
ças institucionais, possibilitando a construção de uma aprendizagem mais do que
pedagógica, política, pois se encontram, atualmente, na contingência de negociar
em bases diferenciadas daquelas praticadas até então, possibilitadas pela proximi-
dade do centro de poder. Porém, a emergência e consolidação de formas mais
plausíveis de gestão descentralizada da escola pública dependerão do grau de
maturidade política das instâncias e dos atores envolvidos nesse processo que
será tanto maior quanto maiores forem as chances de se exercitar a democracia
como prática e não como conceito.

POSSÍVEIS CONCLUSÕES

Na história da política educacional paulista mais recente, modificou-se radi-


calmente a natureza das relações entre a esfera executiva estadual e os municí-
pios, porém, numa conjuntura, nem sempre favorável para que a efetiva descen-
tralização seja bem-sucedida. Como demonstram os dados, o convênio atinge
municípios de pequeno, médio e grande porte com capacidade fiscal, administra-
tiva, perfil político-partidário e cobertura do ensino fundamental totalmente dife-
rentes entre si, tendo construído, ao longo de sua história, mecanismos de parti-
cipação da população local também diferenciados. A engenharia operacional em
curso, ao desconsiderar as peculiaridades culturais, demográficas e socioeconô-
micas dos municípios paulistas, desenhou um mosaico fragmentado, originando
não apenas um processo de municipalização, mas vários.
De um lado, pode-se dizer que, finalmente, o discurso prevalecente ao
longo dos anos 1980 que enfatizava a necessidade de se desmontar o aparato
burocrático ineficiente e centralizado da educação paulista foi atendido. Ninguém
discorda que o exercício democrático exige atualmente uma revisão dos meca-
nismos de representação nas democracias de larga escala e que, no rastro desse
debate, se insere a discussão sobre a necessidade de ampliação da participação
local dos atores envolvidos na operacionalização das políticas sociais. De fato, de
acordo com esse princípio político, o processo de municipalização em curso
parece facilitar a superação dos problemas colocados pelos diferentes níveis da
burocracia, bem como o desenvolvimento de experiências alternativas, delimita-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 237


das territorialmente e beneficiadas pela proximidade do poder. Esta dinâmica pode
aperfeiçoar a complementariedade necessária entre os diferentes níveis de escala
dentro do regime democrático. Dessa forma, há que se estabelecer processos
transparentes de negociação com os municípios, considerando-se o porte, o
perfil de arrecadação, sua inserção na economia regional e as características polí-
tico-administrativas que permeiam o atendimento do ensino fundamental, tais
como os índices de cobertura e peculiaridades de suas redes de escolas.
De outro lado, no entanto, os limites e a complexidade dessa engenharia
institucional não podem colocar em risco os mecanismos estabilizadores da pró-
pria gestão do sistema e este processo não pode ser construído, permanente-
mente, na base da negociação nem sempre favorável para o poder local.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRUCIO, F. L. O Ultrapresidencialismo estadual. In: ANDRADE, R. de C. (org.).


Processo de governo no município e no estado. São Paulo: Edusp, Fapesp, 1998. p.87-117.

AFONSO, J. A. Políticas educativas e avaliação educacional. Portugal: Universidade do


Minho, 1998.

BOBBIO, N. O Futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

LIPSET, S. M. Estrutura social e mudança social. In: BLAU, P. M. Introdução ao estudo da


estrutura social. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p.190-233.

MARTINS, A. M.; PEREZ, J. R. R. O Processo de municipalização no Estado de São Paulo:


mudanças institucionais e atores escolares. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, Fapesp,
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sileira, 2002.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Decreto n. 40.673, de 16 de janeiro de


1996. Institui o Programa de Ação de Parceria Educacional Estado/Município, para
atendimento ao ensino fundamental. São Paulo: SEE, 1996. v. 41.

. A Municipalização do ensino fundamental: o sucesso e o processo. São


Paulo, 2002.

Recebido em: agosto 2003


Aprovado para publicação em: agosto 2003

238 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


RESENHAS

O PROFESSOR E A PESQUISA que quando feita para o âmbito da educação


Me nga Lüdke (co o rd.), Cle o nice fundamental. Baseando-se em problemas le-
Puggian, Filipe Ceppas, Rita Laura Ca- vantados por vários autores brasileiros que
valcante, Suzana Lanna B. Coelho. têm abordado esse assunto, toma-se como
Campinas: Papirus, 2001, 112p. espaço de investigação o campo de trabalho
desses professores, procurando lançar luz so-
O título do livro mostra uma posição bre como esses profissionais vêem sua rela-
cautelosa em relação ao tema. As autoras op- ção com a pesquisa. Quatro foram as institui-
taram por um título que deixa espaço à dife- ções participantes da investigação, a qual se
renciação entre práticas de pesquisa e práticas iniciou com contactos com gestores e coleta
de ensino – O professor e a pesquisa –, abrin- de informações diversas e, especificamente, sobre
do com isso uma reflexão sobre os espaços de atividades de pesquisa que professores reali-
intersecção e não supondo uma superposição zavam, com o que se definiram critérios para
arbitrária das duas modalidades de prática. Isto realizar entrevistas com os docentes que a
nos parece muito positivo diante de posições instituição considerou que faziam pesquisas. Ao
que associam ensino e pesquisa como elementos todo foram feitas setenta entrevistas. Os pon-
de mesma natureza, reduzindo um ao outro, tos abordados referem-se ao tipo de pesquisa
passando por cima de especificidades e condi- feito, concepções de pesquisa, formação para
ções de realização que são muito díspares. a pesquisa, apoios formativos ao trabalho de
Onde e em que condições esse encontro pode investigação, apoios específicos e estímulos,
se dar e produzir frutos concretos interessan- entre outros. As análises conduziram à cons-
tes para professores e alunos no âmbito da tatação de que os trabalhos realizados pelos
educação básica? professores pesquisadores mostram: elastici-
Trata-se, neste livro, de discutir a rela- dade em relação ao conceito de pesquisa, aco-
ção entre a formação ou o exercício da do- modando uma boa variedade de atividades;
cência na educação básica e a idéia, difundida ambigüidades na relação ensino-pesquisa; que
em certos meios, de que o exercício da pes- a formação do professor para o exercício da
quisa pelo professor/futuro professor pode ser pesquisa tem precariedades visíveis, sendo que
fator importante para a qualidade das suas a formação continuada para a pesquisa, ao
práticas. Fruto de um estudo realizado com longo do trabalho docente, não se apresenta
apoio do Conselho Nacional de Desenvolvi- com papel bem delineado; que o trabalho em
mento Científico e Tecnológico – CNPq –, a grupo para o desenvolvimento de pesquisa na
equipe de pesquisa norteou-se pela busca da escola é realmente raro, ainda que se declare
compreensão sobre a possibilidade de articu- interesse por essa forma de trabalhar. Verifi-
lar pesquisa e prática no trabalho e na forma- cou-se também que nas escolas estudadas há
ção de professores, guiando-se por perguntas condições razoáveis para que os professores
que a idéia de professor pesquisador suscita, pesquisem, o que não ocorre nas escolas da
especialmente quando se trata do exercício rede comum, com o que se “poderia esperar
docente na educação fundamental e média. melhor aproveitamento dessas condições fa-
Já para o ensino superior esta discussão voráveis para o desenvolvimento de pesqui-
não é pacífica, tornando-se mais complexa do sas” (p.95) nas escolas estudadas.

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/


p. 239-247,2003
novembro/ 2003 239
Ponto-chave em todo o trabalho é a visa discutir a problemática da atividade de
questão do que se entende por professor pes- pesquisa realizada por professores de educa-
quisador e por pesquisa. O grande mérito do ção básica. Conclui: “...ao se visualizar o que
texto está em discutir esses conceitos sob dife- de fato fazem os professores sob essa deno-
rentes ângulos mostrando perspectivas varia- minação, fica patente a insuficiência do concei-
das, problemas e impasses que surgem, quer to corrente para dar conta de modo satisfatório
nas discussões presentes na bibliografia, quer de uma tal variedade de manifestações, mui-
na prática cotidiana das escolas. Os limites são tas delas não atingindo sequer critérios míni-
vários e estão incrustados nas expectativas de mos comumente por ela requeridos” (p.99).
papel dos professores da educação básica e na A terceira, refere-se à necessidade de sinaliza-
estrutura de gestão e de currículo. As limita- ções que propiciem caminhos para o clarea-
ções são muitas, indo das dificuldades de apoio mento dessa situação com base nas contribui-
real e compreensivo de instituições universitá- ções de Pedro Demo (1994), Jacques Beillerot
rias e de pesquisadores mais experientes à in- (1991) e Martyn Hammersley (1993).
corporação pelos professores, em seu dia-a- O assunto não é simples pois se trata
dia, de uma atitude de investigação quanto ao das formas de construção de conhecimentos,
seu trabalho, à possibilidade de acesso a infor- o que abrange uma gama enorme de possibi-
mações, aos estímulos a uma reflexão cons- lidades. Há sempre dúvidas conceituais e se-
tante sobre a escola, os alunos, o currículo, o mânticas ao se falar em “professor refletindo
conhecimento disciplinar etc. sobre suas ações” ou em “professor pesquisa-
Assinalamos três contribuições impor- dor”. Agregam-se a estas dúvidas as condi-
tantes deste texto. A primeira, é a análise ar- ções para a prática da pesquisa nas escolas,
ticulada das discussões sobre o conceito de pelos professores, tais como a cultura da pró-
reflective practitioner em suas relações com a pria escola, os tempos didáticos, os apoios
questão da prática orientada pela pesquisa, fa- necessários (humanos, intelectuais, financeiros
zendo laços com o debate sobre os saberes e materiais), as relações com instituições pro-
docentes e a relação teoria-prática, o que con- dutoras de pesquisa e com as administrações
duz a um olhar instigante sobre a produção de escolares, as relações com associações cientí-
conhecimentos pelo professor de educação ficas e de classe, os contratos de trabalho. O
básica. A segunda, é a análise sobre a impor- texto arrisca-se nesse emaranhado trazendo
tância da pesquisa para o trabalho docente, e um pouco de luz para o trato do tema.
mostra que é difícil encontrar trabalhos acadê-
micos que enfrentem de fato a questão da pro- Bernardete A. Gatti
priedade do conceito de pesquisa, tal como Fundação Carlos Chagas e PUC/SP
admitido nos meios acadêmicos, quando se gatti@fcc.org.br

240 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


ENSINO MÉDIO : MÚLTIPLAS VOZES truir alternativas para a melhoria da educação
Miriam Abramovay e Mary Garcia atual. Os estudos de que trata esta resenha
Castro (coord.) caminham nesta direção. Embora não se apói-
Brasília: Unesco, MEC, 2003, 662p. em explicitamente em uma teoria específica
ESCO LA E JUVENTUDE: O APRENDER A de representações sociais, como os trabalhos
APRENDER de Moscovici, Jodelet e Abric, trazem à boca
Regina Magalhães de Souza de cena os atores principais da tarefa educativa
São Paulo: Educ, Fapesp, Paulus, 2003, e a eles dão a palavra. Ambos os trabalhos
271p. lançam mão de uma metodologia plural para
captar a percepção dos sujeitos, utilizando
Tem-se registrado nos últimos anos um observação direta, questionários, entrevistas
movimento crescente de pesquisas e publica- semi-estruturadas, grupos focais. Ambos pro-
ções que ousam abordar questões até recen- curam alcançar o significado destas percepções
temente distantes da produção acadêmica. Este analisando-as no contexto dos desafios atuais
é o caso dos estudos sobre educação que pro- que enfrentam a escola e o processo de esco-
curam associar a dimensão empírica quantita- larização.
tiva e as representações sociais dos atores en- A abrangência dos dois trabalhos é dis-
volvidos. Arazão desse movimento é que depois tinta. Abramovay e Castro coordenam, com
de mais de uma década de grandes reformas o patrocínio do MEC e da Unesco, uma pes-
educativas instituídas no nível central, torna-se quisa realizada em 13 das 27 capitais de esta-
cada vez mais evidente que mudanças ocor- dos, onde se concentram aproximadamente
rem somente quando há uma apropriação lo- 1/6 das matrículas de ensino médio dos 5.652
cal dos atores diretamente envolvidos. Uma municípios do país: Rio Branco, Macapá, Maceió,
apropriação que se dá nos limites de suas pos- Salvador, Goiânia, Cuibá, Belo Horizonte,
sibilidades, sejam estas referidas às suas condi- Belém, Curitiba, Teresina, Rio de Janeiro, Por-
ções materiais, sejam às suas representações to Alegre e São Paulo. Magalhães de Souza
no que tange ao papel da escola e a todos os centraliza sua investigação nos alunos do pe-
demais aspectos daí decorrentes. Mesmo quando ríodo noturno de duas escolas públicas esta-
a reforma resulta da intervenção de uma re- duais do município de São Paulo, jovens, no
presentação nacional fundada na legitimidade dizer da autora, provenientes das camadas “in-
democrática, é mais provável que a escola termediárias” da população, não totalmente
modifique a reforma do que seja por ela mo- “excluídos”, tampouco totalmente “incluídos”
dificada. Esta é a razão do crescente empenho no mundo do trabalho e do consumo.
em conhecer o que efetivamente pensam da Abramovay e Castro estão interessadas em
escola os alunos e os educadores responsá- mapear as percepções de alunos, professores,
veis pela sua formação. diretores e supervisores de escolas de ensino
As representações sociais são elabora- médio, públicas e privadas, sobre a reforma
ções mentais, construídas socialmente, que dão do ensino médio definida nas Diretrizes Curri-
conta do posicionamento do sujeito em rela- culares Nacionais e nos Parâmetros Curricu-
ção a determinado objeto e indicam uma pro- lares Nacionais – PCNs – aprovados em 1998.
vável orientação para a ação. Identificá-las, Magalhães de Souza procura compreender a
compreender sua estrutura e os mecanismos crise da escola pública, com base em um cená-
de sua elaboração é imprescindível a todos rio de significativa mudança cultural e de perda
aqueles investidos da responsabilidade de cons- da autoridade característico do mundo con-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 241


temporâneo, e responder à questão sobre o para o ingresso em universidades públicas – a
tipo de sujeito que está sendo formado nesta maioria dos alunos que nelas pretende conti-
escola. Sua pesquisa de campo é realizada no nuar os estudos dirige-se a escolas particula-
ano de 1997, ou seja, antes da divulgação das res –, quer sobre o desenvolvimento de apren-
novas orientações legais para o ensino médio, dizagens comportamentais e práticas que
brindando-nos com uma rica análise das con- consideram necessárias para o mercado de
dições e do contexto com os quais a implanta- trabalho. O papel da escola restringe-se ao de
ção das novas normas vieram se defrontar. provedora de credenciais necessárias para a
O estudo de Magalhães e Souza, inserção futura nos diferentes espaços sociais.
centrado em alunos cuja maioria está inserida Os alunos não gostam da escola e com
no mercado de trabalho, oferece elementos ela não se identificam. Têm muitas críticas so-
que ampliam o quadro atual de análise, tra- bre os procedimentos de gestão, as faltas e o
zendo para o centro da reflexão sobre a esco- desinteresse dos professores, a precariedade
la e a educação, a dimensão cultural das trans- das instalações. A escola é vista como um
formações que ocorrem nos dias atuais. Partindo ambiente desorganizado, em que pesem as
de uma visão durkheimiana de educação, como inúmeras regras e procedimentos disciplina-
conservação e transmissão de uma herança res. As regras estabelecidas são rapidamente
cultural considerada legítima, a autora busca esquecidas, relevadas ou renegociadas ao sa-
em Hannah Arendt, Max Horkheimer e François bor dos humores e das circunstâncias. Vistas
Dubet, as noções e idéias que lhe permitem como arbitrárias e sem legitimidade, são bur-
compreender o processo mediante o qual se ladas pelos alunos não como forma de contes-
pode afirmar que a escola, em que pese a tação de um poder vigente, ao qual se opõem
desestabilização de sua organização tradicio- com vistas à construção de uma nova relação,
nal, continua a manter um forte poder mas simplesmente como uma estratégia de
socializador, numa direção bastante distinta sobrevivência dentro de uma organização sem
daquela impressa nos documentos norteado- sentido. Os comportamentos são os mesmos
res do ensino médio no país. de um passado mais politizado, mas o signifi-
Trabalhando com os alunos das 3 as sé- cado é outro. A escola não representa uma
ries de duas escolas, a maioria na faixa etária autoridade para o aluno, quer por seu conteú-
de 17 a 20 anos de idade, mediante a utiliza- do, quer pelos procedimentos de socialização
ção de um questionário e de entrevistas cole- que utiliza, mais voltados para a garantia de
tivas, a autora procurou captar elementos da funcionamento institucional do que para a for-
subjetividade desses alunos, que fundamentam mação do estudante. Como conseqüência, este
a vivência cotidiana no interior dos estabeleci- desenvolve um comportamento de exteriori-
mentos escolares: suas idéias acerca de si dade, de desprendimento, de distanciamento
mesmos, seu ponto de vista sobre a vida es- em relação à escola. O jovem insatisfeito de-
colar, seus sentimentos e condutas, suas rela- nuncia a situação, mas se acha impotente para
ções com professores e colegas. modificá-la. Em lugar de questionar e buscar
Os dados encontrados na pesquisa re- uma transformação da escola, o aluno aceita
velam que os alunos são portadores de uma a realidade existente como inevitável, senão
visão instrumental da escola. Suas representa- como norma. Ele mesmo se define como de-
ções traçam o perfil de uma instituição que sinteressado, indisciplinado, imaturo. Resta-lhe
pouco lhes tem a dizer, quer sobre uma rela- uma conduta de adaptação ou ajustamento
ção efetiva com o conhecimento necessário para sobreviver: colar, pular o muro, contes-

242 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


tar os resultados de uma avaliação indepen- critérios segundo os quais se avalia um bom
dentemente da legitimidade dos critérios. Para trabalho, assumem-se responsabilidades.
Magalhães de Souza não se trata de confor- Um dos maiores defeitos que os alunos
mismo ou apatia uma vez que há uma crítica apontam nos professores é o desinteresse pela
pertinente e uma ação. Contudo, não se trata aprendizagem do aluno. Um bom professor é
de uma ação transformadora, mas de mani- aquele que gosta de dar aula, tem vontade,
pulação de estratégias para sobreviver diante interesse, o que implica também saber dar
das regras montadas para o funcionamento da aula, dispensar atenção ao aluno e realizar
escola. tantas explicações quantas forem necessárias,
A partir dessas constatações, a autora abrir espaço para participação dos alunos. Deve
desenvolve a análise em duas perspectivas: o ser amigo, manter sua autoridade e saber
sentimento de “insignificância” que acomete os motivar os alunos.
indivíduos na sociedade contemporânea, par- Conforme a representação do aluno,
ticularmente os alunos, e o significado do ato aprender não implica esforço, estudo, investi-
de aprender que ocorre na escola. mento de tempo e energia pessoal. É um ato
Os alunos constroem uma representa- espontâneo que se expressa na oportunidade
ção da realidade da escola, assim como da para se emitir uma opinião. Ele rejeita as aulas
sociedade, como algo pronto e acabado o que expositivas, as leituras, valoriza os debates. A
impede uma reflexão sobre o modo como ela maioria cola.
foi produzida e anula a capacidade de imaginar Segundo Magalhães e Souza, as novas
e construir outros mundos possíveis. A sensa- diretrizes curriculares nacionais para o ensino
ção é de fragilidade e impotência e a conse- médio, apesar do discurso de caráter forma-
qüência disso é a adaptação à realidade exis- dor e humanista, dirigido ao desenvolvimento
tente. Por outro lado, aprender não significa de individualidades autônomas, críticas, pró-
uma compreensão radical da realidade, ultra- ativas, alimenta esta tendência sobre a manei-
passando o nível das aparências e a possibili- ra de aprender, no sentido de aprender a se
dade de formular uma crítica com potencial dar bem na vida.
transformador. Aprender, para o aluno, signi- A pesquisa coordenada por Abramovay
fica dominar coisas novas, coisas já existentes, e Castro, realizada quatro anos depois, de
novas apenas do ponto de vista de quem não perfil mais abrangente do ponto de vista do
as conhece. Nesse sentido, o aprender está escopo e profundidade, confirma achados de
direcionado à inserção social e não à transfor- Magalhães e Souza e suscita outras tantas in-
mação social. Para os alunos o sentido do dagações.
aprender é fazer. Como o saber escolar é por As características sociais e culturais dos
eles considerado teórico, distante da realidade alunos, identificadas na pesquisa, confirmam
e das necessidades cotidianas, a avaliação que dados já revelados por outros estudos: 60%
fazem do ensino ministrado na escola é que acima da faixa etária, a maioria cursando o
ele é fraco, porque além de teórico e distante noturno, predominância do sexo feminino e
da realidade, nunca se chega ao final do pro- desigualdade sociocultural existente entre os
grama traçado a cada ano letivo. Para esses alunos das escolas públicas e privadas. Chega
alunos, o local em que se dá uma efetiva apren- a ser até 15 vezes superior o percentual de
dizagem é no trabalho. Ali aprendem-se coi- pais de alunos de escolas privadas que tiveram
sas novas no exercício da função e no contato acesso ao ensino superior, comparativamente
com pessoas diferentes, tem-se clareza dos aos pais de alunos de escolas públicas. A situa-

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 243


ção socioeducacional dos pais dos alunos dife- Um dado interessante não explorado na
re também bastante entre as capitais estuda- análise da pesquisa é a freqüência a museus e a
das. Quanto aos professores, há capitais que teatros. Na maioria das capitais há uma gran-
ainda registram apenas 72% de professores de porcentagem dos que não freqüentaram
com formação em ensino superior, embora já estes locais de cultura e, ao mesmo tempo,
se verifique um número expressivo de docen- grande porcentagem dos que usufruíram mui-
tes pós-graduados em Porto Alegre e Curitiba. tas vezes destas atividades culturais, disparidade
Ainda neste, quesito, dois dados revela- que talvez não possa ser explicada com base
dos pela pesquisa merecem destaque. O pri- unicamente nas diferenças econômico-culturais
meiro, refere-se à percepção da identidade ra- dos alunos. É possível que a escola esteja aí
cial dos alunos. Vem aumentando a proporção fazendo alguma diferença, tanto por sua au-
dos alunos que se auto-identificam como sen- sência e insensibilidade em colocar os alunos
do de cor/raça negra, o que pode ser interpre- em contato com os bens culturais existentes
tado, segundo as pesquisadoras, como resul- nestas capitais, quanto por sua presença, acui-
tado das crescentes campanhas em prol da dade e disposição para identificar no município
elevação da auto-estima da população negra espaços e logradouros potenciais para a for-
do país. Ao mesmo tempo, verifica-se uma mação cultural e social de seus alunos.
discrepância surpreendente entre a maneira pela Confrontando as informações sobre os
qual os professores percebem a identidade ra- alunos nesse quesito e os dados sobre os pro-
cial dos alunos e a percepção dos próprios fessores, constata-se que também entre os
alunos. Há uma tendência dos professores a professores registra-se uma baixa freqüência
enxergar seus alunos como mestiços. A pro- a atividades culturais e de lazer. Aqui se verifica
porção dos alunos que se identificam como igualmente a mesma tendência. O percentual
brancos é maior do que a proporção de pro- é grande entre os que nunca participam dessas
fessores que identificam os alunos como bran- atividades e entre os que participam muitas
cos. A proporção dos alunos considerados vezes, sugerindo uma possível correlação da
mestiços pelos professores é muito mais alta vivência dos professores no que diz respeito a
do que aquela de alunos que assim se identifi- atividades culturais e a dos alunos em relação
cam. E a proporção dos professores que iden- a este tipo de atividade formadora.
tificam seus alunos como negros é bastante Quanto às representações sobre as fi-
inferior à proporção dos alunos que se consi- nalidades do ensino médio, a pesquisa revela
deram negros. “Tais discrepâncias alertam para que, em 2001, há um evidente conflito de
possíveis problemas de reprodução de estere- expectativas entre o que dispõe a lei e as re-
ótipos nas escolas e a complexidade de lidar presentações sociais de alunos e professores.
com o racismo nesse ambiente” (p.66). Enquanto a lei traça as coordenadas para uma
Outro dado que merece acento é a ex- redefinição do ensino médio como parte da
posição de alunos e professores a estímulos educação básica com um perfil mais próximo
culturais dentre os quais a freqüência a cinemas, à formação geral, mais de 50% dos alunos
shows, teatros e museus e o domínio da infor- das escolas públicas e 3/4 das privadas mantêm
mática. É reduzido o acesso de jovens da escola a expectativa de uma escola direcionada para
pública a estas atividades culturais. Nas capitais a inserção no ensino superior, quer por ques-
de estados mais desenvolvidos do Sul e Sudeste tões de retorno financeiro, quer em busca de
verifica-se um reduzido acesso aos cinemas, o diferenciação social.
que pode indicar outras formas de diversão e Nesse sentido, as expectativas dos alu-
lazer mais propícias a vivências de grupo. nos parecem bastante aderentes às condições

244 Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003


atuais do mercado de trabalho. A oferta de na sua análise e nas decisões do próprio esta-
egressos de ensino médio, nas duas últimas belecimento sobre sua implementação, fos-
décadas, começa a superar a demanda do sem elas decisões de rejeição ou de apropria-
mercado de trabalho e caem as taxas de re- ção nos termos do projeto pedagógico da
torno de investimento nesse nível de ensino. escola.
Somente o ensino superior apresenta algum Dentre os professores, 4/5 conhecem os
aumento das taxas de retorno. Portanto, o PCNs embora muitos confessem não ter do-
desencanto dos jovens em relação ao seu fu- mínio dos conceitos e mesmo dos objetivos da
turo profissional corresponde a uma margina- reforma. Consideram a autonomia das escolas
lização objetiva, resultante do quadro de dete- um aspecto importante da reforma ao mesmo
rioração do mercado de trabalho que vem tempo em que parecem desconhecer seus es-
afetando especialmente os grupos mais jovens paços de liberdade. Queixam-se de programas
e os setores mais pobres da população. exaustivos, de cronogramas apertados, o que
Os professores, por sua vez, embora talvez não seja sem razão pois é das Secretari-
apontem a preparação para a vida em maior as de Estado da Educação que emanam as orien-
porcentagem, não deixam, também, de con- tações sobre currículo e avaliação e algumas
siderar como finalidade do ensino médio a pre- delas tomam decisões que restringem ou mes-
paração para o ensino superior, quer por pres- mo anulam o espaço de decisão que deveria
são dos alunos e dos pais, quer por concordar ser deixado para as escolas.
que este é o caminho, enquanto não muda- Os professores não se vêem como pro-
rem os vestibulares. tagonistas na definição do saber escolar neces-
A formação para o trabalho não está sário para promover a formação de seus alu-
ausente das representações de alunos e pro- nos. Valorizam a orientação para relacionar o
fessores sobre as finalidades do ensino médio, conteúdo à realidade do aluno, mas continu-
embora com uma perspectiva mais profissio- am a interpretar a interdisciplinaridade apenas
nalizante do que de orientação geral para o como uma abertura para atividades extracur-
trabalho, como indica a lei. Esta expectativa riculares, paralelas, e não como uma nova
confirma a posição de vários autores que, por forma de interpretar o currículo, mais integra-
razões diversas, criticam a separação entre do e com possibilidade de se trabalhar o co-
ensino médio e educação profissional. nhecimento de modo relacional, ultrapassan-
Contrariando uma opinião corrente que do a ideologia prevalecente de “pensamento
o convívio simultâneo trabalho-escola é pre- único”. Mostram-se bastante ressentidos pelo
judicial ao processo de escolarização do alu- modo centralizado, top-down, de definição e
no, mais de 50% dos alunos demonstra que implantação da reforma e queixam-se insis-
valoriza este convívio: traz crescimento pes- tentemente da falta de orientação e de condi-
soal e não os impede de trabalhar, o que ções para implementação. Dão evidências de
confirma os dados encontrados por Maga- que não conseguem perceber, ou não querem
lhães de Souza. assumir, seu poder de apropriação das diretri-
Os alunos pouco têm a dizer sobre a zes da reforma, aliando reivindicação por
reforma propriamente dita. Seu conhecimento melhores condições de trabalho a iniciativas
incipiente é selecionado pelos meios de co- que avancem na construção de um novo pro-
municação de massa. A escola e os professo- jeto de escola democrática e de qualidade.
res parece que não se interessaram ou não Para subsidiar a interpretação desses da-
se sentiram em condições de envolver os alunos dos, Abramovay e Castro traçam, como pano

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 245


de fundo, um panorama com o que há de mais de por este desinteresse. Raramente colocam-
significativo na literatura nacional sobre a re- na sobre a escola ou os professores. Ao mes-
forma do ensino médio. Em sua maior parte, mo tempo, 55% a 70% dos alunos de esco-
são análises bastante críticas que focalizam a las públicas acham que a escola ensina pouco
separação ensino médio versusa educação pro- ou quase nada. Seria referência ao conteúdo
fissional, o regime de implantação sem debate necessário para o vestibular e à dificuldade dos
democrático e as diretrizes pedagógicas com professores para cobrir o exaustivo programa
base em conceitos complexos, polissêmicos, diante da dificuldade de aprendizagem dos alu-
que exigem para sua aplicação, condições que nos? Certamente há uma coerência no núcleo
não estão dadas ou que ainda precisam ser dessas representações que anula a aparente
construídas. Isso ocorre, segundo analistas ci- contradição.
tados, porque a lógica que sustenta a reforma O outro lado da moeda é a percepção,
é econômica, não é pedagógica. surpreendentemente coincidente, que alunos e
O capítulo sobre as relações sociais traz professores têm dos professores. A maioria
novamente um dado precioso na tentativa de considera que a principal qualidade de um bom
se compreender o complexo e intrincado ce- professor é ter interesse em ensinar e ter inte-
nário que tomou conta da escola e do proces- resse pelo aluno. Confirmando dados já regis-
so educativo que nela se desenrola. Quanto trados por Magalhães e Souza, para 1/3 dos
mais aberta a práticas de reflexão, capacitação alunos das capitais estudadas o principal pro-
contínua, utilização de novos recursos peda- blema com os professores é o absenteísmo.
gógicos, mais parece que a escola patina na Completando esse quadro, uma outra
sua intenção de alcançar uma melhoria efetiva representação coincidente é a crítica ao que
de qualidade para todos os alunos. A maioria chamam de “pacto de mediocridade” presente
dos professores tem uma visão positiva dos na educação. Professores e alunos criticam as
alunos, julga-os honestos, generosos, solidá- facilidades para promoção dos alunos.
rios, sem deixar de serem competitivos, mas A reprovação não tem a ver apenas com
para 3/4 deles o principal problema da escola a aprendizagem realizada pelo aluno, mas é
são os alunos. Por quê? Porque os alunos são tida primordialmente como um instrumento
desinteressados. Mais uma vez a origem da de formação moral. Aproximadamente 1/4 dos
crise que atravessa a escola é identificada em alunos que passaram pela repetência acham
fatores externos, o que fortalece a postura de que vale a pena repetir de ano: revêem con-
mera constatação. Essa percepção, que de fato teúdos sim, mas também melhoram hábitos e
procede, uma vez que se assiste a uma signifi- atitudes, amadurecem, acordam, tornam-se
cativa mudança cultural, social e econômica, mais conscientes. Passar de ano é um mérito
ocorrendo para além dos muros da escola, conquistado pelo empenho, determinação, com-
vem obscurecida pela falta de consideração do portamento em conformidade ao que se es-
caráter histórico e social dessas transforma- pera de um aluno. Uma forma de discriminar,
ções, que são interpretadas como inevitáveis, de fazer justiça. Ou seja, as representações
inibindo a representação da escola como uma registradas nesta pesquisa nada diferem das
instituição destinada e com potencial para a encontradas há quase quatro décadas, quando
formação de uma geração de atores sociais. se tentou implantar, pela primeira vez, o regi-
Confirmando os dados encontrados por me de ciclos no Estado de São Paulo e expan-
Magalhães e Souza, os alunos também estão dir o acesso ao ensino secundário com a eli-
desinteressados e assumem a responsabilida- minação dos exames de admissão.

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Alunos apontam os sentimentos e de- desestimulante para o professor e desintegrador
corrências negativas de uma situação de re- de uma imagem profissional histórica e forte-
provação, professores criticam seu caráter de- mente arraigada.
sestimulante, mas boa parte de alunos e Aluno desinteressado, professor desmo-
professores considera que as políticas de cor- tivado, eis o pano de fundo, ou, ainda, os acordes
reção de fluxo deixam os alunos acomodados. de base que dão o tom e o clima no qual se
Embora os alunos apontem como motivos desenrola a cena da educação. Não há que se
para reprovação as greves prolongadas, o estranhar, portanto, a proliferação de estudos
absenteísmo dos professores e a falta de me- e pesquisas sobre o mal-estar dos professo-
todologia de ensino, geralmente reforçam a res, o desencanto com a profissão e a síndrome
tendência dos professores a culpar os alunos de desistência – o burnout.
por seu desinteresse e falta de maturidade.
Poucos percebem a reprovação como uma
falha da escola, dos professores ou da relação Eleny Mitrulis
professor versusaluno. Nesses termos, a pressão Faculdade de Educação da Universidade
que os professores denunciam para uma facili- de São Paulo
tação do fluxo escolar é um fator altamente mitrulis@uol.com.br

Cadernos de Pesquisa, n. 120, novembro/ 2003 247


AGRADECIMENTOS

Aos pareceristas dos Cadernos de Pesquisas, abaixo mencionados, nossos agradecimentos


pela valiosa contribuição que têm prestado à seleção dos artigos publicados na revista, assegu-
rando o padrão científico de qualidade que a distingue no cenário acadêmico.

Afranio Mendes Catani (USP)


Alda Junqueira Marin (Unesp/Araraquara)
Ana Luiza Bustamante Smolka (Unicamp)
Angela Maria Martins (FCC e Universidade Católica de Santos)
Antonio Joaquim Severino (USP)
Aparecida Neri de Souza (Unicamp)
Bernardete Angelina Gatti (FCC e PUC/SP)
Celso Fernando Favaretto (USP)
Cesar Augusto Amaral Nunes (USP)
Cláudia Pereira Vianna (USP)
Cleiton de Oliveira (Unimep)
Dermeval Saviani (Unicamp)
Eleny Mitrulis (USP)
Guacira Lopes Louro (UFRGS)
Jacques Rocha Velloso (UnB)
Júlio Groppa Aquino (USP)
Lea Pinheiro Paixão (UFF/RJ)
Lucíola Licínio de C. P. Santos (UFMG)
Maria Betania de Melo Ávila (SOS Corpo/Recife)
Maria Thereza Fraga Rocco (USP)
Marília Pinto de Carvalho (USP)
Marli André (USP e PUC/SP)
Marta Arretche (USP)
Menga Lüdke (PUC/RJ)
Moysés Kuhlmann Junior (FCC e Universidade São Francisco/Bragança Paulista)
Pedro Roberto Jacobi (USP)
Renato da Silva Queiroz (USP)
Sérgio Vasconcelos de Luna (PUC/SP)
Suely Kofes (Unicamp)
Vera Maria Nigro de Souza Placco (PUC/SP)
Yara Lucia Esposito (FCC)
Zeila de Brito Fabri Demartini (Unicamp)

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