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A14 | Valor | Sábado, domingo e segunda-feira, 28, 29 e 30 de agosto de 2021

Especial
BETO RICARDO/ISA

Índios Bruce Albert critica projeto


que muda regras de demarcação

Antropólogo
vê catástrofe
ameaçando
Yanomami
Daniela Chiaretti Em parceria com o xamã e ami-
De São Paulo go Davi Kopenawa escreveu “A
queda do céu” (Companhia das Le-
O antropólogo francês Bruce tras) publicado na França, em
Albert, que convive com os Yano- 2010, e no Brasil em 2015. A seguir,
mami há 50 anos, lembra de vá- trechos da entrevista que conce-
rias tragédias que o contato cau- deu ao Valor por telefone e e-mail:
sou ao povo desde 1973, época da
construção da Perimetral Norte, Marco temporal
obra que dizimou várias aldeias A tese do “marco temporal de
de sarampo. “Mas a pior catástro- ocupação” é uma afronta aos prin-
fe que vejo em 46 anos é a que es- cípios da Constituição oriunda da
tamos assistindo agora”, diz. redemocratização do país. Sua va- Bruce Albert com o xamã Lourival: “A vida dos Yanomami está indexada ao preço do ouro na Bolsa de Londres. Sobe o preço, chega garimpeiro. É o ‘gold blood’”
Seis mil indígenas estão acam- lidação pelo STF abriria uma bru- CHARLES VINCENT/ISA
pados em Brasília há oito dias para tal regressão ao tempo da ditadu- do a estrada no meio da floresta. homologada, e há 30 anos têm ga-
marcar posição contrária ao mar- ra e dos projetos de esbulho maci- Foi impressionante. rimpeiros lá. Para neutralizar o ga-
co temporal, tese que estabelece a ço das terras indígenas. Em pleno rimpo tem que cortar a logística —
promulgação da Constituição, em século XXI se trataria da pseudole- Sarampo aviões, combustíveis, investimen-
outubro de 1988, como data-limi- galização de uma política de ge- Muitos morreram porque co- tos. Já foram feitos trabalhos de in-
te em que índios deveriam estar nocídio dos povos indígenas em meçaram as epidemias. No come- teligência pela Polícia Federal, mas
ocupando as terras que reivindi- câmara lenta. Seria uma vergonha ço da construção da estrada, em os interesses políticos e econômi-
cam para demarcação. A tese é de- internacional para o Brasil. 1973, várias aldeias sumiram, uma cos lá são tão grandes que a coisa
fendida por bolsonaristas e pela tragédia. Vejo catástrofes desde não avança. Não é garimpo — são
base ruralista do governo e está em PL da demarcação aquele tempo. A pior, em 46 anos, pequenas mineradoras ilegais.
julgamento no Supremo Tribunal Vejo no país uma ofensiva gene- é a que estamos vendo agora.
Federal. “Se aprovada, será a pseu- ralizada contra os direitos territo- Desnutrição
dolegalização de uma política de riais constitucionais dos povos in- O massacre de Haximu O contato intenso desestrutu-
genocídio dos povos indígenas em dígenas. Os autores dessa ofensiva Era 1993 e eu estava no campo, ra os meios de subsistência tradi-
câmara lenta”, diz. “Seria uma ver- são representantes de interesses na aldeia do Davi [Kopenawa, xa- cionais. Com o garimpo, em pou-
gonha internacional para o Brasil”, privados ilegais que pretendem se mã Yanomami e amigo de Lam- co tempo não há mais caça para
continua Albert, um dos maiores apoderar das terras públicas pro- bert]. Escutei no rádio que havia comer. As pessoas ficam constan-
expoentes da antropologia atual. tegidas da Amazônia. Os índios acontecido um massacre entre os temente doentes, perdem o pe-
Albert, que nasceu no Marrocos não têm propriedade de suas ter- Yanomami. Era tudo confuso, to- ríodo de plantio, e aí não tem
e é doutor em antropologia pela ras, que pertencem ao patrimônio dos mundo queria saber onde es- mais roça e comida. Nos anos 70,
Université Paris X Nanterre, é a da União. Eles têm mero usufruto tavam as vítimas. Chegou a Polícia quando vi os Yanomami isolados
maior referência entre estudiosos permanente, garantido pela Cons- Federal com um delegado muito não havia desnutrição nenhuma.
dos Yanomami. Começou a traba- tituição de 1988. Portanto, a Câ- profissional, Raimundo Soares Cu-
lhar com o povo em 1975, fala bem mara, por mais absurdo que pare- trim, que fez o inquérito e eu fui o O que estamos perdendo
uma das línguas e foi um dos fun- ça num país dito democrático, pre- intérprete dos Yanomami. Passa- A área Yanomami no Brasil re-
dadores da Comissão Pró-Yano- tende legislar contra a Constitui- mos dias colhendo depoimentos presenta cerca de 1% da floresta
mami (CCPY), que conduziu com o ção e em prejuízo do patrimônio dos sobreviventes. Ouvimos sem- tropical no planeta. Estão preser-
xamã e amigo Davi Kopenawa a fundiário e ecológico da nação. pre a mesma história e se desco- vando uma área imensa que é da
campanha de 14 anos pela homo- briu tudo, quem havia morrido e nação inteira. Cuidam dos rios, co-
logação da Terra Indígena Yano- Executivo e Legislativo quem eram os garimpeiros. O de- nhecem o ambiente nos menores
mami, em 1992. Foi o intérprete no Nesta ofensiva há uma privati- Albert ajuda Yanomami em 1989: “Tolerar o garimpo ilegal configura crime” legado Cutrim atestou a solidez detalhes, comem dezenas de frutas
inquérito que ouviu sobreviventes zação disfarçada da Amazônia e daquela história. Depois foram aos diferentes, mais de 35 tipos de mel,
do massacre de Haximu —que viti- sua entrega aos piratas promoto- Convenção 169 da Organização In- internacionalmente como um garimpos atrás dos caras, alguns têm um conhecimento botânico
mou 16 crianças, velhos, mulheres res de sua destruição —garimpei- ternacional do Trabalho em 2002; modelo de respeito às minorias. foram presos, outros escaparam gigantesco. São cientistas do meio
e um bebê em 1993. Cinco garim- ros, madeireiros, grileiros, trafi- por ela, os povos indígenas têm direi- [em 1997 a justiça condenou cinco natural da maior competência.
peiros foram condenados no caso. cantes. O presidente da República to à consulta livre, prévia e informada Produção em terras indígenas garimpeiros na primeira sentença de Perde-se uma cultura com toda
O Superior Tribunal de Justiça, em lidera e, infelizmente, a maioria da de projetos que possam afetá-los; PL Historicamente, desde que suas genocídio assumida no Brasil.] sua riqueza. Tenho amor pelo Bra-
decisão inédita, caracterizou o Câmara segue em troca de benefí- no Congresso propõe que o Brasil dei- terras e recursos naturais sejam sil desde os meus 20 anos e fico
massacre como genocídio. cios. Estamos assistindo a uma xe de ser signatário] seria um novo respeitados, os índios demons- A dinâmica do garimpo perplexo com estes absurdos.
“O garimpo em terras indígenas monstruosa cumplicidade entre episódio do desmantelamento da tram grande capacidade de auto- O garimpo começou há muitos
está na origem de graves depreda- Executivo e Legislativo na destrui- proteção do Estado brasileiro aos sustentação econômica. Mas a in- anos na região. No começo tinham Soberania perdida
ções ambientais que levam os ín- ção do país e do povo —do manejo direitos originários dos indígenas. vasão de suas terras, destruição bateia, mas depois chegaram os É a soberania perdida aos crimi-
dios à desnutrição e a um processo genocida da pandemia à devasta- Seria, sobretudo uma sinalização dos recursos e degradação da si- maquinários. Falava-se em 40 mil nosos, grileiros, garimpeiros, ma-
de contaminação maciça por ma- ção da Amazônia. Voltamos à fero- internacional oficial de que o Bra- tuação sanitária pelo contato os garimpeiros nos anos 90 e cente- deireiros. Isso não é desenvolvi-
lária, covid, tuberculose. A conse- cidade predadora do Brasil colo- sil agora faz parte do grupo de paí- mergulham na pobreza. A “po- nas de pistas clandestinas. O Brasil mento econômico, é pilhagem. A
quência é grande mortalidade. A nial, só que agora se trata de um ses que perseguem suas minorias. breza dos índios” é só a imagem abrigou a Eco-92, a questão era um riqueza vai para fora, de contra-
isto se somam violência armada e colonialismo interno, uma louca no espelho da nossa capacidade desastre de imagem para o país, bando. É só prejuízo para a nação.
degradação social”, diz Albert. “To- autofagia na qual o Estado bolso- Os Yanomami e o garimpo de destruição social e ecológica de então teve reação. O governo ex- O garimpo também virou uma
lerar o garimpo ilegal em terras in- narista quer “suicidar” o Brasil. O garimpo em terras indígenas outros povos. Atividades ilegais pulsou os garimpeiros e delimitou máquina de lavagem de dinheiro.
dígenas configura, portanto, um está na origem de graves depreda- como garimpo, desmatamento e a terra. Desde a metade dos anos Este é um fato novo. É uma repú-
crime de genocídio por omissão.” O governo e os bandidos ções ambientais que levam os ín- grilagem são fontes de degrada- 80 a vida dos Yanomami e do ga- blica pirata que se instala ali com
“Vejo no país uma ofensiva ge- No regime militar havia alguma dios à desnutrição e a um processo ção ecológica, social e sanitária rimpo está indexada ao preço do traficantes de droga e de ouro.
neralizada contra os direitos terri- preocupação com legalidade e de contaminação maciça —malá- com imensos custos para o erário. ouro na Bolsa de Londres. Quando
toriais constitucionais dos povos com a opinião internacional, não é ria, covid, tuberculose. A conse- o preço do ouro sobe, aparece gen- O povo da mercadoria
indígenas”, diz, referindo-se tam- mais o caso. Agora o governo, co- quência é uma grande mortalida- O primeiro choque te para garimpar. É o caso agora. É Nossa cultura transforma tudo
bém ao PL 490, que altera as regras mo disse meu amigo Carlos Zac- de. A isto se somam violência ar- Em 1974 vim ao Brasil fazer o mercado do “gold blood”. em mercadoria, nada a ver com os
de demarcação e foi aprovado em quini [missionário que está com os mada e degradação social. Tolerar doutorado. Fui convidado a parti- Yanomami. Eles têm dois mecanis-
junho pela Comissão de Constitui- Yanomami há 50 anos e deu entrevis- o garimpo ilegal em terras indíge- cipar de um projeto entre a univer- Não é país estrangeiro mos sociais que impedem qual-
ção e Justiça (CCJ) da Câmara. “A ta sobre a situação de aldeias que so- nas configura, portanto, um crime sidade e a Funai para tentar prote- Foi Jarbas Passarinho [militar e quer forma de acumulação. O pri-
Câmara, por mais absurdo que pa- frem com falta de remédios e profis- de genocídio por omissão. ger os Yanomami durante a cons- político, ex-ministro do Trabalho, da meiro é que não existe herança:
reça num país dito democrático, sionais de saúde], está do lado dos trução da Perimetral Norte [a BR- Educação, da Previdência Social e da quando alguém morre, tudo o que
pretende legislar contra a Consti- bandidos em relação aos ataques Constituição modelo 210 foi planejada para unir o Amapá Justiça] quem convenceu os milita- pertencia ao morto é destruído. E
tuição e em prejuízo do patrimô- aos Yanomami [referindo-se a vários As tensões entre Estado e índios ao Amazonas passando por Pará e res naquele tempo que delimitar a pessoas notáveis na comunidade
nio fundiário e ecológico da Na- episódios recentes, com pessoas ar- estão atingindo um nível inédito Roraima; cruzou regiões com povos área Yanomami não era criar um são as que têm extrema generosi-
ção”, diz, lembrando que as terras madas atirando nas aldeias]. Tive- porque o governo Bolsonaro des- indígenas não contactados]. Foi um país estrangeiro. Os índios não dade e distribuem tudo. Também
indígenas são da União, os índios mos muitas catástrofes com as vá- lanchou uma anacrônica guerra choque descobrir os Yanomami e têm propriedade de coisa alguma, detestam quem passa o tempo se
têm apenas usufruto e preservam a rias ondas do garimpo, mas é a pri- colonial contra os povos indíge- ver a chegada da estrada, um dos a crítica de que a terra deles é enor- lamentando: ou você está com rai-
floresta, os rios e a biodiversidade. meira vez que não há para onde re- nas, desmantelando a proteção do projetos militares daquele tempo. me é absurda. É terra da União, pa- va e vai para a guerra, ou tem que
“Estamos assistindo à uma mons- correr, nenhuma autoridade. Estado e incentivando interesses Descobri a realidade em sua dupla trimônio da nação brasileira. rir. Têm muito bom humor e uma
truosa cumplicidade entre o Exe- privados a invadir territórios. A face: o povo ainda muito isolado e, dignidade no sofrimento que ad-
cutivo e o Legislativo na destruição Saída da Convenção 169, da OIT única solução é um novo governo, do outro lado, o choque do conta- Cortar a logística miro muito. A referência da minha
do país e do povo”, acredita. Sair da 169 [o Brasil ratificou a que respeite a Constituição — tida to com máquinas enormes abrin- Há 30 anos a Terra Indígena foi vida são os Yanomami.

Funai fala em busca de soluções e em interesses escusos


De São Paulo trabalhado firmemente para re- Em nota anterior sobre as acompanhamento de ações de disse, também em nota, que “o STF, apreendeu 26 escavadeiras e três
solver uma série de problemas, ações na TI Yanomami, a assesso- saúde, entre outras atividades.” assim como o Congresso Nacional, caminhões. No fim de junho, fez a
Em nota da assessoria de im- fruto de décadas de fracasso da ria disse que o órgão “permanece A Funai disse ter investido R$ são soberanos para a fixação dos terceira operação do ano na TI Ya-
prensa, a Funai rebateu as acusa- política indigenista brasileira que realizando as atividades de sua 17,2 milhões em ações de fiscali- marcos regulatórios da política nomami. Agentes inutilizaram 14
ções. “A Funai esclarece que, em vez no passado era guiada por interes- atribuição” nas quatro bases de zação em áreas indígenas no país pública para indígenas no Brasil. O geradores, 30 bombas, cinco bal-
de trabalhar com assertivas falsas, ses escusos, falta de transparência proteção etnoambiental (Bapes) durante a pandemia. “As ativida- papel da Funai é dar execução à es- sas, quatro barcos, um helicóptero
tem atuado, efetivamente, com me- e forte presença de ongs. Um cená- na terra indígena. “Todas essas des são fundamentais para coibir sa política, sempre com atenção ao e apreenderam 3.500 litros de
didas práticas de apoio à popula- rio dominado por intermediários, unidades são responsáveis por ilícitos como garimpo e extração princípio da legalidade.” combustível e dois quilos de mer-
ção indígena”. Cita a entrega de 700 no qual os indígenas eram feitos ações permanentes e contínuas ilegal de madeira e garantir a se- A Polícia Federal realizou há cúrio em 20 garimpos. Participa-
mil cestas básicas a famílias indíge- de massa de manobra.” Segue a de proteção, fiscalização e vigi- gurança das comunidades, pre- poucos dias uma ação para expul- ram equipes do Ibama, Força Na-
nas desde o início da pandemia. nota: “A Funai reitera que está, lância territorial, além de coibi- venindo o contágio pela covid.” sar garimpeiros da TI Kayapó, no cional, FAB, Exército e Secretaria
“A atual gestão da Funai tem sim, a serviço dos indígenas.” ção de ilícitos, controle de acesso, Sobre o marco temporal a Funai Pará. Desativou alguns garimpos, Especial de Saúde Indígena. (DC)

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