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Por Rudá
Personagens
Recepcionista
Recepcionista trabalha no consultório de Analista. É alguém que estudou e
estuda muito. É uma pessoa trans e ao longo da peça retrata o impacto do
processo de transição em sua vida. Teoriza sobre o tempo através de muitos
campos da ciência e da espiritualidade para poder se conectar consigo e com o
mundo.
Analista
Analista trabalha constantemente tentando resolver os problemas de outras
pessoas enquanto se sente infeliz e sozinha dentro de seu ofício e vida
pessoal. Uma de suas pacientes é a Vera. Analista ainda não compreende
muito essa paciente e acredita que tenham “personalidades conflitantes”, mas
nunca falou isso para ela. Costuma fazer seus relatos das consultas enquanto
volta para casa, mas num desses dias ultrapassa o farol vermelho e bate o
carro, o que a obriga a encarar de frente seus dilemas pessoais.
Vera
Vera é uma jovem artista que é sustentada pelos pais enquanto a sua carreira
não decola. Forçosamente simpática e absurdamente ansiosa se vê
impossibilitada de dar continuidade aos seus trabalhos como atriz. Então,
decide criar um sarau online no qual só ela irá se apresentar devido ao fato de
que não possui muitos amigos e as pessoas que a cercam não acreditam muito
em seu potencial (e também não têm coragem para contar). Sua melhor amiga
se mudou pra Itália e não consegue fazer ligações de vídeo por conta de um
erro de conexão.
“Gi”oconda
Gi é uma jovem que se mudou do Brasil para a Itália. Assim que aterrissa em
terras estrangeiras, recebe a notícia de que sua avó faleceu. A informação
chega de maneira devastadora pois a conexão que ambas tinham era o
principal fio de sustento afetivo de Gi. Ela entra em embates a respeito do
processo de luto e o que é preciso ser feito até o caminho da cura.
Prólogo
Hoje é um daqueles dias que eu ando me sentindo meio cão. Sabe esses dias?
Que em geral são devastadores de alma. Quando é difícil se sentir bem-amada
e bem-cuidada e bem-saudável e andar na rua e ser honesta e fazer carinho e
essas coisas todas humanas que a gente deve fazer justamente pra garantir
que ainda tem pele... E aí eu te pergunto: onde é que tá a salvação? Tá em
Deus? Tá na natureza? No ácido? Na maconha? Na arte? Na Poesia? No
amor? Qual amor? Como conseguir andar pelos escombros que é a própria
rotina? Hoje eu poderia chorar um rio.
De onde vem essa voz? Você ouviu? Me ensina? Me ajuda a viver? De onde
vem essa voz? Alguém consegue me ouvir? Pois então, eu tô tentando.
Sempre tentando. Esse infinito que se monta no meu corpo. Eu queria te dizer
alguma coisa além disso. Mas eu aposto que você também tá tentando. Isso é
tudo um rascunho. Uma passada. Isso aqui é só um ensaio. E eu espero que a
gente possa... como é mesmo? Que a gente possa... ainda se encontrar.
PRIMEIRO ATO
CENA 1
Recepcionista
Sabia que o começo de tudo... que o começo de tudo foi o tempo. Como é que
eu vou explicar isso? A gente aprende sobre o big bang, né? Que antes não
existia nada e que daí teve essa baita explosão que deu origem pra tudo. Mas
na verdade essa explosão deu origem ao próprio tempo. Que antes desse
universo existia um outro universo em que o tempo não existia, onde as
estrelas foram morrendo, foram se juntando, gerando calor entre elas, gerando
uma energia muito forte entre elas, até que elas precisaram se expandir de
novo, dando origem ao NOSSO universo. E o nosso universo tem o tempo que
é como se fosse uma película muito fina na qual a gente e tudo que existe
acaba atravessando. E cada pessoa atravessa de um jeito. Por exemplo: uma
vez fizeram um experimento onde botavam um relógio atômico (que é o relógio
mais exato que existe) no braço de duas pessoas. Uma delas foi viajar
enquanto a outra ficou parada no mesmo lugar, daí quando essa pessoa voltou
pro mesmo lugar que tava a outra, viram que existia uma diferença de
milissegundos entre os relógios. Ou seja, cada pessoa – literalmente – tem o
seu tempo. Não é bonito isso? Quando eu li isso, foi um alívio. Eu descobri que
eu não era louca, que quando você sente que precisa do seu tempo, não é só
você que tá dizendo, mas também o Einstein. Mas ninguém imagina que uma
recepcionista de um consultório saiba ler física quântica, não é mesmo? Ainda
mais se ela for uma travesti.
CENA 2
“Gi”oconda e Vera
(Uma conversa por zoom. Elas são amigas e não se encontram se vêem há
algum tempo porque a Gi se mudou pra Itália. Parece que a conexão está
estremecida, elas estão bugando.)
De tanta gente que se foi, que tá indo, uma delas era a pessoa mais especial
desse mundo. Ou do meu mundo. Eu não sei se alguém do seu mundo
acabou indo também. Se foi, eu sinto muito. Eu sinto muito mesmo. Eu estou
sentindo muito. E parece que essa falta não passa nunca. E são nesses
momentos, que uma conexão falha, que a falta faz ainda mais falta. E a gente
fica como? Meio murcha, assim como eram as mãozinhas dela. A gente vai
ficando cansada, assim como ela ficou. A gente fica com medo, assim como
imagino que ela tenha ficado. Mas a gente não quer ficar mostrando, assim
também como parecia a fortaleza dela. É muita falta. Meu nome é Gioconda,
igual o nome do quadro, sabe? No Brasil a gente chama de Monalisa, mas aqui
na Itália o nome é La Gioconda. Desde que ela se foi, ela que era a pessoa
mais especial desse mundo, a minha cara foi ficando igual do quadro. Aquela
cara de alguém que tem muito pra dizer, mas não diz. Fica o mistério. No
caso, de quando isso tudo vai passar. Tem que passar. Repito como uma
oração. Isso que tá aqui, essa dor, essa situação, tem que passar.
CENA 3
Vera e Analista
(Vera está numa sessão de análise. Enquanto ela fala, analista consente mas
se expressa pouco. Por vezes, analista suspira e muda de posição na cadeira.)
Vera - Eu não sei muito bem por onde começar. Na verdade eu tô com tanta
coisa na cabeça que eu não sei nem o que eu tô fazendo aqui. Brincadeira.
Brincadeirinha. Mas é que ando daquele jeito. Não que seja a primeira vez,
sabe? De acordar no meio da noite, suar frio, fica pensando em tudo que pode
dá errado, em tudo que eu poderia ter sido feito, tudo que eu tenho que provar,
enfim. É que eu tive uma ideia que tá me arrancando os cabelo. Eu tô
montando um sarau. Acredita? Não um sarau sarau mesmo. É tipo um sarau,
só que online, onde as pessoas compram online, aí elas recebem um link com
dia e hora marcada, e pronto. Eu já comprei luzinha, comprei também umas
decorações assim tipo “diferentes”, já tô pensando figurino e tals. Tô fazendo
tudo sozinha, né. Não que eu não tenha pensado em chamar outras pessoas
pra fazer também… é só que… fica mais fácil quando é a gente que faz, num
é? Acho importante eu tentar fazer isso. Com a coisa dos meus pais tarem
apostando no meu sonho e tudo mais, e também eu não tá conseguindo,
enfim… Atuar, né… Achei uma boa ideia criar esse sarau, pra provar que eu
posso, pras pessoas verem meu trabalho. Já tô chamando todo mundo. Falei
com minha mãe e ela falou que ia sim, apesar de ter um aniversário online
marcado, falei com umas amigas e elas disseram que iam tentar… Tô super
animada. Só não consegui falar com a minha melhor amiga, que sempre me
ouve, você sabe quem é, a Gi. Não consegui falar com ela porque sempre dá
erro de conexão. Vou mandar pra ela o folder virtual pra ver se ela pode, se
não fica tarde pra ela lá na Itália. Até me dei a licença até de mandar praí no
seu email do consultório esse folder online. A sua recepcionista falou que
recebeu e que ia te mostrar. E pode mandar pra quem você quiser, viu? Porquê
vai que alguém se interessa. Queria demais que você fosse, já pensou? Eu ia
achar o máximo. Até porquê, depois da nossa última conversa, acho que foi o
disparador pra eu tentar dar um up, comecei a escrever um poema e pronto, já
veio a ideia toda do sarau. Quer ouvir?
Analista - O que?
Vera - O poema!
Vera - Lá vai:
Âmago amargo
Alô?
Não te ouço
Me ouves?
Gi?
Me desculpa, eu fugi?
É você ó Gi?
Acho que eu
Me perdi.
Vera - Não, não, não! Não precisa responder, eu que sou ansiosa, né? Você
vive falando isso. Que desagradável ficar perguntando assim, nem te dei tempo
pra sentir. Mas eu te espero no Sarau. Você vai né?
CENA 4
Analista
(Analista está no carro voltando para casa após o trabalho. Como de costume,
ela coloca o gravador no banco do passageiro e grava seus relatórios das
consultas.)
(Analista cruza o farol vermelho em meio ao surto e choca-se com outro carro)
SEGUNDO ATO
CENA 1
Recepcionista e Vera
Sabe que no tarô tem uma carta que ela é fora do tempo. Eu sempre começo
de repente, né? Desculpa, eu vou explicar. No tarô cada carta fala de um
tempo da vida e a ideia é que cada carta é um portal que te apresenta uma
sabedoria que fica no espaço-tempo capaz de te transportar para um outro
lugar e depois te trazer de volta. Tipo um portal mesmo. Pra que você tenha
acesso a algo que você não sabia e tomar melhor suas decisões. Cada carta
tem essa função. Acho que é isso que chamam de oráculo, né? Mas no caso,
essa carta que eu queria contar pra vocês, é uma carta fora do tempo, uma
carta que não tem número, diferente das outras cartas… um oráculo que não te
conta muito, que te mostra que não há nada pra saber, só a aleatoriedade que
é a própria vida. Essa é a carta do Louco. Ele tá na beira do abismo com a sua
trouxinha de roupa, mas olha pra cima, ao invés de ver o abismo bem na sua
frente. É estranho isso. Alguém que não olha pra um abismo. Um abismo que
se apresenta bem à frente. Eu fui numa cartomante e ela virou essa carta e me
contou tudo isso. Fiquei fula da vida: como que pode a gente pagar uma
cartomante (mesmo que seja online) e ela falar que seu futuro é tão incerto? Eu
vivi isso! Uma vida inteira! Eu e minha trouxinha de roupa. Não é louco isso?
Louco que é carta, que sou eu. Não, eu não sou louca. Porque se eu estiver
louca, isso significa que o mundo todo tá doido. Entende? Eu sou louca por
achar que tudo tá muito errado? Que não é lá muito justo estarmos passando
por isso? Que tem dores na vida que a gente não precisa passar? Nesse
momento eu rezo no horário do almoço, no homeoffice, pra que as pessoas
sozinhas se encontrem, na loucura delas. Porque, quem sabe, a solidão não
seja só loucura.
CENA 2
Gioconda
Eu já falei que eu sinto muito? Que eu sinto muito mesmo? Que eu estou
sentindo muito?
Cena 3
Analista e Recepcionista
(As duas fazem uma reunião online. A Analista está toda entrevada por conta
do acidente de carro.)
Analista: Oi, meu bem. Brigada viu… Adorei o pudim que você deixou aqui…
Ai, cacete!
Analista: Tá óótimooo.
Recepcionista: Ah! Sim! Ela me mandou e achei super interessante, que ela
fala…
CENA 4
Recepcionista, Vera, Gioconda e Analista
G: E você olha pro lado e não acha nada mas a coisa continua crescendo. Por
dentro.
A: Você sabe.
V e G: Eu sei?
R: Você ali no chão, como quem perdeu todas as forças desse mundo.
G: O que tá acontecendo?
V: Isso é um ataque.
V: Você ou o mundo?
A: Isso é…
G: Isso é uma…
R: Promessa?
G: É sim.
A: Então essa serve.
(todas riem)