Você está na página 1de 68
FILME FILME CULTURA ANO II - N11 - novembra de 1968 FILME CULTURA ¢ editada pelo INSTITUTO NACIONAL DO CINEMA. Os artigos assi- nados representam exclusiva- mente o pensamento de seus autores. A transcrigao de arti- gos, na integra ou em parte, s6 pode ser felta mediante auto- rizacdo prévia, por eserito, da Direcdo da Revista. Diretor Responsivel : Durval Gomes Garcia Diretor: Antonio Moniz Vianna Editor Geral: Ely Azeredo Editor-Adjunto: Carlos Fonseca Arte e Coordenacdo Grafica: Oswaldo Carneiro Redacdo: Praca da Repiiblica, 141-A, 2° andar — ZC 14 — Rio de Janeiro, Guanabara — Brasil — Enderéco Tele- gratico: INCBRAS. NCr$ 2,00 inc inpice Pes. Editorial 1 Carl Dreyer — 0 Cineasta da Vida Interior 2 ‘Tambellini e o “Hero?” em Crise 18 2001: A Alvorada do Novo Homem 2 2001: Uma Odisséia Atras das Cameras 8 As Sete Faces de Jece Valadio 2 A Hora do Ingresso Padronizado 38 Jacqueline Myrna — Atriz em Ascenso 40 Movimento 48 Historia Secreta dO Cangaceiro e Outras Miudezas 50 Cinema Brasileiro: Novos Filmes 54 Enciclopédia: Diretores — Letra “B” 59 rilvio ‘Tambeita ‘ima O Mapa do Mercado Dois meses apés o langamento do Ingresso € do Borderd Padronizados na Guanabara, 0 Instituto Nacional do Ginema pode afirmar o pleno éxito da iniciativa em sua primeira etapa. Os proximos desdobramentos do pla- no elaborado pelo ING levario a Sao Paulo, Minas Gerais, Estado do Rio de Janeiro ¢ Brasilia aquéles instrumentos bisicos de controle do cumpr mento das medidas de protecio e estimulo ao cinema brasileiro. Ainda em 1969 todos os cinemas do Pais utilizardo os borderds e ingressos oficiais. fsses soos dispositivos essenciais para instrumentalizar a ago do ING. Prestam servigos a indtistria ¢ ao comércio cinematogrificos no somente porque proporcionam armas adequadas contra a evasio de rendas. Constituem, também, bases fidedignas ¢ seguras para © mapeamento do mercado interno, Pela primeira ver poderemos contar com dados amplos sbbre as po- tencialidades do mercado interno: mimero de salas exibidoras, capacidade em poltronas, freqliéncia ¢ arrecadagio. A partir désses dados sera possivel toacar serenamente, sem 0 cromatismo fluido das paixdes, 0 gréfico das tendéncias das platéias. Nenhum estudo de mercado, em profundidade, sera exequivel antes que surjam 0s dados globais propiciados pelo Ingresso € pelo Borderd Padronizados. Paralelamente ao langamento dessas inovagdes 0 INC vem desenvol- vendo intensa campanha de esclarecimento € propagan tivar a colaboragio do pitblico freqiientador. O apoio do piiblico € indis pensivel ao completo éxito do Ingresso Padronizado. Além da sensibili- zagio mais Gbvia criada pelos sorteios de prémios, 0 Instituto pretende mobilizar 20 méximo a opiniao piblica para o fato de que os bilhetes serializados possibilitam a cada espectador contribuir para o aperteigoa- mento da produgio brasileira de filmes. , visando a mo- CARL DREYER O CINEASTA DA VIDA INTERIOR Carlos Fonseca Be fcxcteto de 1809, 20 de maryo de 1968: Seen «nove Snot de idade. Gingiienta e nove anos de cinema. Quatorze filmes de longa-metragem, Nascido na Dinamarca tem seu nome ligado a cinco cinematografias. Carl Theodor Dreyer — res da historia do cinema. ‘O cineasta da vida interior", como acentuou um dos seus melhores bidgrafos, Jean Sémolué, sua obra est, quase de uma ponta a outtra marcada por constantes da alma. O' que importa em um filme seu, no é a beleza objetiva das imagens, mas a beleza da alma, como dle proprio declarou. Debateuse sempre com problemas de religido, do Bem ¢ do Mal, de Deus e do Diabo, Com estas premissas, o cineasta dinamarqués construiu uma obra fascinante. Quatro filmes, pelo menos, La Passion de Jeanne d'drc, Vampyr, Dies Inne Ordet garanter- Ihe uma posicao invejavel na histéria do cinema, Cento € cingitenta criticos ¢ historiadores foram convidados ao Referendum de Bruxelas de 1958 para a escolha dos “maiores filmes de todos os tempos”. Ouvido o primeiro Jiri — ‘opinides vindas de 26 paises — 12 titulos foram selecionados, entre os filmes cltados em ordem alfabética por 117 convidados que responderam a enquéte. Com base nesta lista atuou um segundo Juri constituide de sete jovens cineastas de sete paises. Foram eleitos — empate em primeiro lugar — Encouracado Potemkin, Em Busca do Ouro, A Grande Musio, La de Bicicletas, Mae, A Paixdo de Joana d’Arc, “O piblico nao se satistez, querendo saber qual 0 filme que imptessionara mais fortemente os sete juurados. Contra a vontade, pronunciaram-se Alexander Mackendrick ("Os dois filmes que me impressionatam mais foram A Grande Il sdo eA Paixdo de Joana d’Arc” ‘Antonio Bardem (“Eu nunca vira Joana d'Arc. Foi uma revelagio para ‘mim, a revelacdo de minha vida”), Alexandre Astruc (“Ja vi Joana d’Are antes. Sai agora da projegao com os olhos marejados de ligrimas”), Robert Aldrich (“Astruc tem razio, Junto com Mae, Joana d’Are me impressionou mais"), Satyajit Ray, Francesco Ma- selli, Michiel Cacoyannis ("...Joana d'dvc”). Alguém do piiblico se levantou e perguntou: “Por que entio os senhores discutiram 10 horas? Joana @'drc € 0 maior filme de todos os tempos!” A platéia delirou Carl Theodor Dreyer nascen em Copenhague, no dia 3 de fevereiro de 1889. Sua mie era sueca ¢ ficou 6rfa0 muito cedo. A. infincia foi cheia de sofrimentos, gracas a falta de cari nho ¢ a0 rigor extremado dos pais adotivos. Muito cedo foi obrigado a tabalhar para 0 seu sustento. Pianista om cafés, depois um empregado modesto na Sociedade de Telegrafia Nordiske. Depois, jomalista: vivamente interessado em aviacio, teatro. Com isto aumentava seus conhe- imentos praticos ¢ finalmente, em 1912, © primeiro contato com o cinema: contratado pela Nordisk Film para redator de legendas. Dai para roteirista. Segundo se diz, devese & éle 0 interésse da companhia em utilizar textos de certa qualidade Iiteriria. Passou_ também pela sila de montagem. Finalmente em 1918 comecou a dirigir: Praesindenten. Opus final: Gertrad, realizado em 1964. Morreu em 20 de marco de 1968, ‘La Pasion de Jeanne @Arc é o filme de Dreyer mais conhecido no Brasil, onde foi exi bido comercialmente com o titulo O Martirio de Joana d’Arc, ¢ é peribdicamente mostrado em sess6es de cinechubes. Este, mas em menor escala de exibigdes, também € 0 caso de Vampyr. Conhecido em todo 0 mundo como o diretor dos martifios, das bruxarias, dos sofrimen- tos, uma andlise de sua carreira revela insblitamente um Dreyer mais rico, mais versitil, ¢ talver mais feliz, como acentuou Eileen Bowser, em apteciacio de sua carreira por ocasido de tuma retrospectiva completa de seus filmes *fetuada no Museu de Arte Modema de Nova York fem. 164. Entre os projetos no concretizados pelo diretor, ‘uma vida de Cristo” e uma moder nizagio da tragédia grega “Medea”. No capitulo a seguir, “os filmes de Carl Dreyer’, procura mos sintetizar sua carreira, com a ajuda, principalmente de Jean Sémolué, jovem critico francés que escreveu em 1962 um livro muito competente sdbre.o realizador dinamarqués, m homem, um artista, Um dos maio- Os filmes de Carl Dreyer: 1018/20 — Praesidenten (O Presiden te) * Producgo: Nordisk Films Kom- pagni, Copenhague, Dinamarca * Ro- teiro: Carl Th, Dreyer, do romance de Karl Emil Franzo * Fotografia Hans Vago * Cenografia: Carl Th. Dreyer * Intérpretes: Halvard Hoff, Elith Pio, Olga Raphsel Lindon, Betty Kirkeby, Carl Mayer, Jacoba Jessen, Hallander elleman, Fanny Petersen, Richard Christensen, Peter Nielsen, Jon Iversen * Observagéo: filme rea- lizado em 1918, langado na Suécla em 1919 © om Copenhague em 1920. @ Numa cidade de provincia no século XIX, a pessoa mais importan- te 6 0 presidente, juz todo-poderoso. ste personage tem uma filha lle- sftima que é acusada de erime pe- les setts patrées. No julgamento, advogsdo tenta comover 08 jurado: ‘que, embora sem as provas definitivas de sua culpa, a condenam. O pai a ajuda a fugir da priséo quando era homenageado num banguete por suas “0 Presidente”, o primis fllme de Dreyer smtimeras qualidades de justica e hon= ra, Entre 0 sentimento de honra eo Ge amor paternal, o presidente deci- de-se pelo segundo e, sabedor de ‘Que sua filha esta salva ¢ feliz, comete suietdio, 4 neste primeivo filme, é observa do um grande controle da imagem a linguagem cinematogréficas, Ape- sex do melodrama o diretor consegue ‘um bom nivel notadamente ne seqiin- ela do banquete, onde o personagem principal atormentado pela idéia de estar cometendo algo contra os seus principios de honra e justica, inter- cealadas com a fuga da filha da pri- io, Note-se também a valorizacio do “décor” como elemento cataliza- dor e/oui estimulante do drama. 1920/21 — Blade af Satons Bog (Pé- ginas do Livra de Sat) * Producto: Nordisk Films Kompagni, Copenha- gue, Dinamarca * Roteiro: Edgard Hoyer (refeito por Carl Th. Dreyer) rake, te do romance de Marie Corelli * Foto- srafia: George Schnéevoigt * Cono- gratia: Carl Th, Dreyer, com assis- téncia téeniea de Axel Bruun e Jens G. Lind * Intérpretes: Helgen Nis- sen (Saté); 1° epis6dio (na Palesti- a); Halvard Hoff, Jacob Texlere, Br- ling Hansson, Donrer Weizel; Wi- Thelm Jensen; 2° episédio (A Inqui- sigio): Hallender Helleman, Ebon Strandin, Johannes Meyer, Nalle Hal- den; 32 episédlo (A Revolugso Fran- cesa): Tenna Kraft, Emma Wiehe, Elith Plo; 4° episédio (A Rosa Ver- mielha da Finlindia): Carlo Wieth, Clara Pontoppidan, Carl Hillebrandt, Karina Bell * Lancado em Copenba~ ‘gue em 1921 © Quatro histérias Hlustrando as ar- ‘timanhas de Satf na tentativa de pro- ‘wocar junto ao povo a traigho, a mentira ¢ a falsidade, Estas histé- las s8o desenvolvidas em quatro tempos: a traigéo de Cristo por Ju- das, a Inquisicio Espanhola do século XVI, a Revolugso Francesa ea Ro- volugie da Independéncia Finlandé- sa em 1018, Francamente inspirado em Infole- réncia de Griffith: inspiragio 16 nica e temfticn Artisticamente, as primeiras manifestacies do mundo reyeriano: suas preoeupagdes com a religio, @ presenga de Deus ¢ do Diabo, os bruxedos, 0 Bem ¢ 0 Mal, (© sofrimento fisieo em contraponto com a sublimagéo esplritual. Acentue~ se também seu cuidado em transmi- tir a realidade do “décor” © dos cos- ‘tumes de eada épora focalizada. Seus personagens interpretados por ato= res de teatro em sua grande maio- ria eram orfentados num sentido mais realista, mais cinematogritico. 1920 — Praesteenken / Prastanken / Prastaken (A Quarta Alianga da Senhora Margarida) * Produsio: ‘Svensk Filmindustri, Estocolmo, Sué- cia * Roteiro: Carl Th. Dreyer, do conto de Kristofer Janson * Fotogra- fia: George Schnéevoigt * Cenogratfia: filmado em exteriores e interiores reais na Noruega * Intérpretes: Hile dur Carlberg, Binar Rod, Greta Alt reth, Olav Aukrust, Kurt Welin, Emi Je Helsengreen, Mathikle Mielsen, Lorentz Thyholt * Realizado apés Blade af Satane Bog, fol langado an- tes em Estocolmo, em 1920. © Tels estudantes so candidates uma vaga de ministro nume peque- na cidade rural do séevlo XVII. O hherdi passa no teste, mas para obter © emprégo deve casar com a vitva do pastor, uma rica e velha matro- na que astistira o enférro de trés marides. Com a ajuda de muita be- Dida éle se eonvence de que passa também por esta prova, Tem um pro- Dlema, sus amante, que éle faz pas- sar por sua Irmf. Ao descobrir 0 fato a _vitiva more. O casal se une mas vive atormentado com sua lembranca, Filmado toda em exteriores nas bo- niitas montanhas e nos campos da No- ruega, a historia déste filme, conta- da om tom de farsa, traz alguns ele- mentos no muito comuns ao reali- — procurada nas situagées e nos tips. Muito embo- ra éste tom, transformado, ow me- Thor, conduzido paralelamente a um sentido de grande humanidade e de realidade, Dreyer nfo deseuida de sua paixo pelo cendrio aqui presen te na paisagem, nas pequenas cida~ des, nas fazendas, nas igrejas, que ‘sransmitem a époea de sua agio admi- rivelmente, 1921/22 — Die Gezeichneten/Elsker Hveranire (Amai-vos uns aos Ou- ‘t0s) * Produsio: Primusfilm, Ber- lim, Alemanha * Roteiro: Carl Th, Dreyer, do ramance de Ange Made- lung * Fotografia: Friedrich Wein- mann * Cenogratia: Jens G. Lind * Intérpretes: Condéssa Polina Pieko- waka, Wladimir Gajdarow, Torleitf Reiss, Richard Boleslawsky, Duwan, Johannes Meyer * Langado em Co- penhague em 1922, © Honna 6 uma moga judia que eres ‘eeu numa pequena cidade russa pré- revolucionfria, onde existe 0 com- pplexo anti-semita e onde ela se en: mora do filho do médicb, Sacha, que ‘a faz seguir para Sio Petersburgo. Com a ajuda de seu irmio cristio, infeliz no casamento e perseguido pelo pai, ela encontra morada na ¢2 sade um clentista e sua mulher, Hanna participa do movimento re- volucionsrio com Sacha ¢ ambos so présos, Salva polo irmo, Hanna & Jevada para sua cidade natal. La um Snformante atenta contra éles — 0 emo & morte, Mas Hanna é rapt 0 por Sacha © ambos fogem Baste filme, como acentue Sémolué, ppeca pelo seu maniquefsmo excessi- yo: 0s “bons” sio acentuadamente bons e os “maus" somente maus. Fil- mado na Alemanha, exteriores e in- teriores, prova mais uma vez 0 ex- ‘traordinirio senso de Dreyer para a cenografia, que transite uma atmos- fera real russa, 1922 — Der var Engang (Bra uma Ver) * Produgéo: Sophus Madsen, Copenhague, Dinamarea. * Roteiro Carl Th. Dreyer e Palle Rosenkrantz, da peca de Holger Drachman * Fo~ togratia: George Schéevoigt * Ceno- grafia: Jens G, Lind * Intérpretes: Clara Pontoppidan, Svend Methling, Peter Jerndorff, H. Ahnfeldt-Ronne, Karen Poulsen, Gerda Madsen, Schio- ler-Linck, Torben Meyer, Musse Scheel * Langado em Copenhague em 1922, © Uma historia simples, de fadas. S6 restam fragmento: déste filme. De acérdo com quem o viu, ¢ © proprio Dreyer, & um filme menor, muito embora seja muito elogieda sua atmosfera bucélica ¢ fantéstica. 1924 — Mikael (Michel) * Produca Deola Bioscop, para a Ufa, Pommer Production, Berlim, Alemanha * Ro- teiro: Carl Th, Dreyer, assossorado por The von Herbou,” da romance de Herman Bang * Fotografia: Karl Freund ¢ Rudolf Maté (para os ex- teriores) * Cenogratia: Hugo Haring, * Intérpretes; Benjamin Christensen, Welter Slezak, Nora Gregor, Grete ‘Mosheim, Robert Garrison * Langado em Berlim em 1924, © Um rico e famoso artista apaixo- nase por seu Jovem ¢ belo modélo maseulino. Dedicando ao rapaz um ‘amor sublimade, cria-o como um fi- Tho, mas o rapa2 6 Ingrata e frivolo, e Teva sua propria vida com mulhe- res, inclusive apsixone-se por uma princesa. Um antigo amor do artis- ta, um eritico, ¢ 0 seu tinico ami- 0, permanecendo a seu lado na hora da morte. © artista morre chamando fem vo por Mikael, Sémolué acentua a excessiva fideli- dade ao romance original, 0 nico defeito do filme, a seu yer. Por ou- tro lado frisa 0 exiremo rigor dos “décors" — época de 1900, a atmos- fera germaniea, “uma pintura ver~ @adeira de um mundo falso”. O te- ‘mo, inusitado, 6 desenvolvido por Dreyer com grande profundidade dignidade. De certa forma o mito de Fedra, visivelmente Inspirado na vi- da de Rodin. Grandes “close-ups”, @ tensio e contensfio dramitiea de ca- da cena, cada seqiitnela, prenunciam ppor assim dizer a obra-prima do di- retor, La Passion de Jeanne D'Arc. E Mikael é 0 filme mais caro a0 res- ‘6 nem € 0 mal stasis dor s6ulos Iizador nesta primeira fase de sua ccarreira, No papel de Mikael um jo= vem ¢ talentoso Walter Slezak que mais tarde feria nome no cinema amerieano como ator caracteristico e, como 0 artista, Benjamin Christen sen, famoso diretor dinamarqué 1925 — Du Skal Aere Din Hustrw (Voce Deve Respeitar sua Mulher/O Senhor da Casa) * Producio: Palla- dium, Copenhague, Dinamarea * Ro- teiro: Carl Th. Dreyer e Svend Rin- dom, da peca déste ultimo * Foto- mrafia: George Schnéevoigt * Ceno- srafia: Carl Th. Dreyer * Intérpre~ tes: Johannes Moyer, Astrid Holm, Karin Mellemose, Mathilde Nielsen * Langado em Copenhague em 1925. © A histéria de um tirano domésti- co levado a uma total reforma gra- 628 & revolucfo feminina em sua casa Entre os defetios anotados por Sé- molué, a rigidez da transposicao do criginal © que de certa forma tea- traliza um pouco o filme. Entre as a © “décor”, a composigio dos personagens das ce- znas, 0 humor — tirado mais das si- tuagées do que das atitudes dos per sonagens — a seguranca e a imagi- ago de Dreyer, sempre presentes A Quarta, Allanes da Senhora Marra 4 0 primeiro sucesso comercial in- ternacional do diretor. 1925/25 — Glomsdalsbruden (A Noi- va de Glomsdal) * Produgdo: Vieto- Hia-Film, Oslo, Noruega * Roteiro: Carl Th. Dreyer, da novela de Jacob Breda Bull * Fotografia: Hiner Ol- sen * Cenografia: Carl Th, Dreyer * Intérpretes: Stub Wiberg, Tove ‘Tellback, Herald Stormoen, Einar Sissener * Lancado em 1926, © Histéria simples do fitho de um fazendeiro pobre que se enamora pe- la filha de um fazendeiro rico, Nar~ va as tribulagdes e as aventuras do rapaz até a conquisia da mao de sua eleits, num "happy ending” amavel Pode ser considerada 0 “western” da carreira do grande realizador, Sus maior qualidade é a paisagem da No- ruega, aqui focalizada do mesmo mo- e com a mesma grandiosidade dos ‘westerns amerieanos. A preoeupa- ‘¢éo com a paisagem propicia uma cer- fa fragilidade na abordagem dos per- sonagens, Mesmo assim, um filme in= ‘eressante, que atinge bem sua pri- meira proposicao de diversio, 1928/28 — La Passion de Jeanne @Arc/O Martiria de Joana a'Aro * Produgio: Société Générale de Films, Paris, Franca * Roteiro original de Carl Th. Dreyer, baseado em parte no romance de Joseph Delteil * Fo- tografia: Rudolf Maté * Cenogratia: Hermann Warm e Jean Hugo * Cos- tumes: Jean e Valentine Hugo * In- térpreies; Marie Falconetti, Eugene Silvain, Antonin Artaud, Michel Si- ‘mon, Maurice Schutz, Jean d’'¥d, An- aré Berley, Ravet, A. Curville, Mi- hhaleseo, R. Navlay, Henry Maillard, Léo Larive, Henry Gualtier, Paul Jorge * Lancado em 1928. © Paixio © morte de Joona d’Arc, seu sofrimento e éxtase. Nfo 6 a his- térla da donzela dé Orleans. Nem mesmo os fatos historias de sua vida tém importancla no filme, Para uma grande maloria de eriti- os, ensalsias, eineastas, Le Passion de Jeanne @'Are & 0 maior filme de Dreyer, também um dos maiores de ‘thda @ histérla do cinema. Conta Sé- molué que 0 sucesso do filme ante- rior de Dreyer, Glomsdalsbruden, na Franca, levou a Société Générale de Films, a convida-lo para realizar uma ‘obra sdbre um grande personagem da historia francesa, Dreyer respondeu ‘que trés nomes o interessavam: Ca- therine de Médicis, Marie-Antoinette e Jeanne d’Are. O titulo escolhido La Passion de Jeanne d'Arc indica 0 que o atraiu na personalidade da he- roina: uma santa atendendo & voca- fo do martirio. Fscothide a base do filme, 0 livro “Vie de Jeanne d’Are” de Joseph Delteil Gun livre da mour” dedicado as almas simples, ‘0s coragées arrebatados, as criancas, As virgens, © aos anjos”), resta a cer~ teza que 6 roteiro do filme foi todo ie eriado por Dreyer. O prdprio Del- ‘ell publicou dois anos apés a elabo- rasd0 do roteire, em 1926, um ndvo livro, com o mesmo titulo da obra de Dreyer, naturalmente inspirado pelo ealizador dinamarqués. De qualquer forma a idéia de concentraglo nas ile timas 24 horas da santa de Orleans de Dreyer. “A concentracéo no tem- po corresponde a concentrac3o no es Paco: tédas as censs do filme se de- senrolam nos Iimites do Paltcio da Justiga de Rouen". Dreyer consagrou ois anos & criagko de seu filme: 0 assunto, a eseolha da directo de atd- res, a construcio dos “décors", a vi- sualizagio da montagem, enfim fi- xando-se com verdadeira’ paixéo em todos 08 detalhes — muito divulgada, a legenda do sacrificio de Falconetti, “aprisionada e torturada pelo dire~ tor’. Segundo Alberto Cavalcanti que dirigiu Falconeiti no teatro, a atriz, apaixonada pelo eriador se sub- meteu & experiéncias fisicas muito préximas das sofridas pelo persona- gem ¢ Faleonetti nunea mais encon- trou a paz de espirito. Afirma Sémo~ lug, “La Passion de Jeanne dare & uma afirmagio, quase uma demons- tragdo, das concepcoes de Dreyer”. ‘Uma afirmacao no _premeditada. “Dreyer nfo imp6s 4 obra uma esté- tica felta, Refletindo sObre o tema, por aproximacies e intuig6es le des- ‘cobriul sun estétien. Assim deseobrit fs leis de sus arte no sto de aplici- las. & uma espontineldade sistemati- zade, nunca sistemétiea”. La Passion de Jeanne d’Are & tamoso, principal- mente, pelo uso continuado dos pri- meiros planos: € uma sinfonia de ros tos, os dos juizes ou algores © 0 da heroine. Observou Henri Langlois: “De todos os eseandinavos aquéle que levou mais longe o gésto do in- timismo, a anélise psicolégica, do estudo do coragio humano quase nas mais ténues nuances, foi Carl Th. Dreyer", B, ainda fazendo referén- cia A cimera de Dreyer: “nos movi- mentos os mais delicados, nas nuan- ces mais impalpaveis, 0 conflito de dois personagens no quadro mais ba- nal, © mais quotidian”, Pierre Le- prohon acentua: “a abundancia de primeiros planos, os angulos de ca- ‘mera mais insolitos justfieam-se pela posigée ou olhar dos personagens- testemunhas; 0 espectador se torne entio cada um dos personagens que véem Jeanne ¢ que Jeanne ve"... “num didloge constante de fotogenia ue, escamoteando a palavra expres- sa, discursa através de pensamentos”, Langlois, ainda, que diz: “o en- contro de Dreyer com 2 “avant-gar- do" francesa vai dar um filme estra- ‘nho no qual nfo so encontra mais nada de sua forma, de seu estilo fantertor, um filme ‘feito escenciel- mente de primeiros planos, de Angu- los torturados ¢ sibios, cheios de sig- psiquica ¢ mistiea” (..) ‘Dreyer radiografouliteralmente a alma”, Para Brasillach, o filme “opse- se magnificamente a0 Nepoledo de Gance, a epopéia interior contra a epopéia exterior. B sem diivida deve ser considerado um fracass0, porque fo drama é muito simples, Mas 6 um esses fracassos magnificos e sébre (0s quais se pode sonhar t0da a vida”. (Qu como disse Moniz Vianna: “Um rosto contra muitos outros. © rosto de Falconetti... Nfo resta mais nada a face de Falconetti, de-sua perso- nalidade, ela nfo existe senfo por sua arte, que a faz através dos sécu- los uma evocagio magiea de Jeanne @Are, Houve muitas Joanas no nema — antes e depois da grande ou a tinica... Nenhuma sobrevive. Mas a Jeanne d'Are de Dreyer esté mais viva do que nunca, Falconetti sim, & uma santa” 1931/82 — Vampyr/I'#trange Aven- ture de David Gray (O Vampiro/A Estranha Aventura de David Gray) * Produgiéo: Carl Th. Dreyer, Paris, Franga * Roteiro: Carl Th. Dreyer ¢ Christen Jul, baseado em parte na novela de Sheridan Je Fanu, “In a Glass Darkly” * Fotografia: Rudolt Maté * Cenografia: Hermann Warm + Misica: Wolfgang Zeller * Intér- pretas: Julian West (ou Barfio Nico- las de Gunzburg), Henriette Gérard, Jean Hieronimko, Maurice Schutz, Rena Mandel, Sybille Schmitz, Al- bert Bras, N. Babanini * Lancado em Berlim, em 1092, © A lends do vampiro, eriatura que vive apés a morte, bebendo sengue de suas vitimas, Ndo ha nenhuma tra- ‘ma a ser compreendida ou ser segui- da: o filme é um puro pesadelo a que 0 espectador deve contributir, ens tregando-se como num sonho. ‘A segunda (e iiltima) manifestacso de Carl Dreyer no cinema francés. Na carreira do diretor dinamarqués, pre- cede um longo siléneio, pois de 1932 a 1943 (0 ano de Dies Trac) Dreyer nada té2, Uma parte déste siléncio se deve 20 esgotamento nervoso do cineasta. Como esereveu Moniz Vian= na: “Vampyr é ainda um dos filmes ‘mais misteriosos entre todos os que se. tornaram eléssicos. Mesmo sua posi¢go no cinema francés é incerta, quase insélita, estilisticamente falan- do, Se La Passion de Jeanne d’Are é uma obra universal, sem vineulos com qualquer pats ou sistema de pro- dueio — 0 que facilmente a natura- lizou francesa — 9 mesmo ndo se pode dizer de Vampyr. Pelo estilo © pelo tema, éste filme poderia ser Incluide na obra nérdica do artista, uase a0 lado de Blade aj Satans Bos. Mas Vampyr, sem embargo de sua localizago mais para o contro do es- {ilo nérdieo do diretor, nfo é mais — nem menos — dreyteano do que Jeanne dare. Hi, como observou 0 ceritieo Chris Marker, uma linka co- ‘mum a todos o grandes filmes de Dreyer, uma fascinag&o, uma obsessao pelo sentimento cristo do sofrimento. “Para um cristfo, 0 Cristo na cruz lio cessa de softer pelos homens até © fim do mundo, e 6 sofrimento & 0 ‘nico meio de participar do Cristo, de ser um pouco “Ble”. Maricor obser ‘va que ésse sofrimento 6 levado por Dreyer, singularmente, sempre para ‘9 plano fisico da tortura. “Os supli- ccios dos inguisidores em Péginas do Livro de Sat8, a fogueira de Jeanne, ‘© sepultamento do doutor em Vam- pyr, a fogueira da felticeira de Dies Trae ou 0 confronto do casal de Toa Manniskor, mostram a mesma fasci- ago piedosa e cruel em face do mal, A obra de Dreyer esté quase de uma ponia a outra entre Deus ¢ 0 Diabo. Mais visivel do que a de Deus 6.2 presenca do Diabo — que surge em Piginas do Livro de Sata, © é sugerido em Vampyr. Mesmo quando Deus € meneionado, sobretudo ai com © nome nos liblos e no coracao de Joanne — 6 0 Diabo que esta quase fisicamente representado no proprio rosto dos juizes @ nos seus atos, No universo de Dreyer, hé santos e, em conseqiiéncia, hi deménios. Existem bbruxas porque existe a Inquisicgo © festa é menos uma prova da existin- cla de Deus do que do Diabo — se Deus simboliza 0 Bem e 0 Dinbo re- presenta o Mal, Feiticetras, padres,

Você também pode gostar