Encontro estadual de História – ANPUH-SP – Campinas, Setembro, 2012.
O uso do termo “desconstrução” pela autora não é, de forma alguma, aleatório; a
referência à teoria de Jacques Derrida é utilizada para demonstrar que gênero surge como categoria analítica histórica a partir das correntes teóricas pós-estruturalistas, que trocaram o paradigma científico pelo literário, e com a mudança de ênfase da explicação causal pela busca do significado (SCOTT, 1986, p. 1066). As três grandes correntes teóricas até então empregadas pelos historiadores feministas – teoria do patriarcado, teoria marxista e teoria psicanalítica – não conseguiram apresentar o conceito de gênero como uma categoria analítica relevante para a História, pois acabavam, em última instância, constituindo a oposição binária dos sexos como um universal, ou seja, a-histórico. Para Scott, seria preciso uma desconstrução1 dos termos da diferença sexual, o que só poderia ser realizado pela História, mas apenas sob a condição de conseguir construir e adequar um quadro teórico ao material histórico analisado, submetendo à crítica permanente a oposição sexual binária, de maneira a deslocar sua construção hierárquica. Pg. 02 Scott apresenta, então, a sua definição do conceito de gênero, composta de duas afirmações: Gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e gênero é uma maneira primordial [primary way] de significar relações de poder (SCOTT, 1986, p. 1067). O que está em jogo para a autora é o jogo das identidades produzidas historicamente, e o papel político que estas identidades e sua história exercem no presente. Em certo sentido, sua posição é mais radical do que a de Scott, pois não se trata de aplicar o gênero à disciplina histórica em geral, mas de incluir a história do gênero na política de identidade atual. Parece bastante clara aqui a influência do pensamento de Michel Foucault nesta definição de gênero. A sua “História da Sexualidade” constitui, sem dúvida, referência fundadora nos estudos de gênero. 3 Pode-se retomar a definição de Foucault: “Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a” (FOUCAULT, 1995, p. 235). Pg. 03 O pensamento feminista, aponta Butler, instituiu uma disjunção entre sexo e gênero. Enquanto o primeiro significaria o elemento biológico, gênero seria o elemento cultural, a construção social da identidade. Mas não há correspondência imediata entre os dois, de modo que é possível haver gênero masculino sobre um sexo feminino (e vice-versa), ou até mesmo a possibilidade de uma cultura em que existam mais de dois gêneros, a partir dos mesmos elementos sexuais biológicos; gênero, assim é “a interpretação múltipla do sexo” (BUTLER, 2007, p. 8). Essa disjunção é importante no pensamento feminista, pois é a partir dela que se pode formular uma política que escape ao determinismo biológico (presente em diversos argumentos não-feministas a respeito do “papel natural” da mulher e do homem). Porém, interroga-se Butler, essa separação epistemológica coloca o problema de definição do próprio conceito de sexo, uma vez que deixá-lo no terreno da pura biologia significa retirá-lo da história; seria preciso reinscrevê-lo no campo histórico, de maneira a entender como foi estabelecida a dualidade dos sexos, e a própria percepção de que exista um sexo masculino e outro feminino. Retirar a imutabilidade da categoria sexo, para a autora, é entender que “talvez esse construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído quanto gênero; de fato, talvez já tenha sempre sido gênero, com a consequência que a distinção entre sexo e gênero não seja, afinal, distinção alguma [turns out to be no distinction at all]” (BUTLER, 2007, p. 9-10). Para Butler, portanto, não há sentido em distinguir sexo de gênero, uma vez que gênero não pode ser definido como a inscrição cultural em um sexo pré-dado pela natureza; também o sexo se inscreve na cultura. Gênero também deve designar o próprio aparato de produção onde os sexos são estabelecidos. Como resultado, gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza; gênero é também os meios discursivos/culturais pelos quais “natureza sexuada” [sexed nature] ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré- discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual a cultura age (...). Esta produção do sexo como o pré-discursivo deve ser entendida como o efeito do aparato de construção cultural designado por gênero (BUTLER, 2007, p. 10, grifos da autora). Pg. 04 A concepção do poder como microfísica proposta por Foucault o transforma em campo de luta agonística, em relações de força espalhadas por todo o corpo social. O sexo, dessa maneira, não pré-existe a um poder que o reprime; ele é produção, é o efeito dos poderes sobre o corpo. Para Butler, também não faz sentido pensar gênero a partir de um sexo natural, pronto para ser culturalmente transformado (ainda que de diversas maneiras e aberto a múltiplas possibilidades). Esta dicotomia transfere apenas o determinismo do campo biológico para o campo cultural, uma vez que o sexo estaria destinado a tornar-se gênero (BUTLER, 2007, p. 11). A teoria feminista há muito abriu mão de estabelecer um conceito de “mulher” no singular, e mesmo de imaginar essa possibilidade, uma vez que a identidade feminina também é atravessada por outras clivagens, como raça, classe, orientação sexual. Ainda assim, por instável que seja, a ideia de uma mulher a ser representada é um requisito essencial ao movimento político feminista. Para Butler, entretanto, a mulher é igualmente construída dentro do discurso de representatividade do movimento e da teoria feminista. A mulher é o efeito do discurso que advoga sua opressão, produção discursiva engendrada pela representação política. Seguindo a teoria de Foucault, e aplicando-a especificamente ao conceito de gênero e feminismo, a mulher é tornada sujeito, não apenas no sentido de sujeitada à lei (masculina) da opressão, mas portadora de uma subjetividade feminina que a liga à condição de mulher. A dificuldade, nesses termos, está em pensar a política a partir de uma crítica à própria noção de sujeito feminino, o que Butler denomina, em termos claramente foucaultianos, genealogia feminista. Pg. 05 “A tarefa é formular dentro do quadro constituído uma crítica das categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (BUTLER, 2007, p. 7). Pg. 06 A analítica do poder de Michel Foucault até hoje carrega diversos equívocos, dentre os quais o principal talvez seja o de que apresenta uma ordem social em que não há possibilidade de alternativa ao poder disciplinar vigente na sociedade moderna. Entretanto, o seu conceito de poder implica necessariamente a liberdade de resistir. O poder, de acordo com Foucault, é relação e exercício, e não lugar ou posse. Sendo relação, abre sempre a possibilidade de um contra-exercício, ou seja, a resistência. Margaret McLaren (2004) analisa como o feminismo pode se apropriar das teorias de Foucault, desde que as aborde sem estes equívocos comuns. A autora propõe que, em Foucault, há uma distinção entre poder e dominação, a partir da ideia de que o poder claramente não se exerce nem se distribui de forma igualitária. “Enquanto o poder é fluido e sempre sujeito a reversão, estados de dominação são estáticos, relações de poder ossificadas” (McLAREN, 2004, p. 220). Mesmo nos estados de dominação há possibilidade de resistência, ainda que esta deva ser localizada, sutil, recalcitrante, pois “mudanças nas relações de poder podem encerrar uma situação de dominação e incrementar possibilidades de liberdade” (Idem, p. 223-224). Pg. 09
Resistir às normas (e também às categorias identitárias fixas) é tarefa que os
movimentos e teorias feministas têm adotado em diversos níveis, modificando assim as maneiras pelas quais o poder é exercido na sociedade contemporânea. E mesmo em situações de dominação é possível reverter de alguma maneira o exercício do poder. Considerando-se o regime teocrático iraniano instaurado por Khomeini como uma dessas situações de dominação (relação de poder ossificada), Richard (1991) propõe o exemplo dos usos particulares que algumas mulheres fazem do chamado casamento provisório, instituição tradicional da religião islâmica xiita e, como tal, presente nos diversos códigos civis iranianos ao longo de seus regimes políticos. Mesmo em uma situação de opressão quase total das mulheres, com pouquíssimos direitos e muitas obrigações de subserviência, o casamento provisório é utilizado como reversão do exercício de poder religioso e masculino, permitindo muitas vezes às mulheres escolherem seus parceiros sexuais, sem obrigações posteriores. Pg.10
BUTLER, Judith. Fundamentos contigentes: o feminismo e a questão do “pós-
modernismo”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 11-42, 1998.