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ie Paulo Brossard de Souza Pinto O IMPEACHMENT ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE POLITICA DO PRESIDENTE DA REPUBLICA reed QFICINAS GRAFICAS DA LIVRARIA DO GLOBO &. A. PORTO ALEGRE Urrcs MaoupADS Le: PRerTO BIBLIOTHCA Sty A meméria de meus pais , “ Auta Brossarp pz Souza Pinto Francisco’ pg Souza Pirro | I. Preémbulo 1. Este nao é um prélogo, se raxio assistia a Jacinto Freyre de Andrade, para quem “sio og Prologos hum’anticipado remedio aos achaques dos Livros, porque andio sempre de companhia os etros, © as desculpas”. Seguindo seu conselho “eu por hora me desyio do caminho trilhado, no quero pedir perdio de nada: quem achar que dizer, néo me perdoe, (nem sera necessirio encomendallo)”.2 ; Sc em trabalhos da natureza do presente, destinados ao exams académico, quadram bem as palavras do antigo escritor, nZip menos certo & que a les também se-ajusta a adverténcia de D, Francisco Manoel de Melo, ao ilustre nas letras quanto no trato dos negé. cios do Estado: “asi como pede a-cortezia que saiamos a receber & porta de nossas casas, com algtia cortés. demonstragio, a nossos héspedes, manda a urbanidade que, com:algiia adverténcia, vamos @ encontrar nossos leitores ao principio de nossos livros” V4, pois, se no o prélogo, a adverténcia. i i { i rio,. cujas obscuridades, persistentes na i 4 lo, tepercutem na_jurisprudén- doutrina, perturbam_o_sistema_adotad Gags. tefletem-se na legislacéo: e, por nio ter sido objeto de suficiente anilise, desde que- instieufdo em 1891, vem senda inadvertidamente } Feproduzide, cori as ‘mesmas_incongrufncias, -pelas_Cénstituigses que se tém-sueedido, assim-na-Unido,-como-nos Estados, : ._Elegendo o insti inente idade do Presidente da Repiblica, embora-circunscreva o-exame a alguns. dos proble- ; : ® Jacinto Freyre de Andrade, Vida de D. Joi de Castro, Quarto Viso-Rei' da __ India, 1861, Prologo do Author, ““3-D. Francisco Manoel de Melo, Cartes Familases, 1942, p. 1. —s8— mas ue Al esis fl pensamente-do-auros (que com @ste escrito mas 41 4 cuida de satisfazer exigencia legal ao candidatar-se a catedra de Direito Constitucional da Faculdade que cursou), fixar, ainda que brevemente, as-caracteristicas do “impeachment” no_direito_bra- sileizo. _ - ‘Ademais, a matéria ocupa lugar de relévo na érbita juridica dos Estados-membros, a qual pela Constituigio tem a maior ampli- tude, amesquinhada, porém, de modo continuo e progressive; pela doutrina, legislagio e jurisprudéncia. 3. Depois, parece chegado o tempo de verificar que o processo de apu- ragio de responsabilidade oficial, que constitui o “impeachment”, se foi adequado ¢ eficaz, se desempenhou funcdo conspicua no desen- volvimento orginico das instituigées polfticas, se serviu de arfete para conquistas decisivas na democratizagio do govérno, deixou, hi muito, de corresponder as realidades © exig@ncias do Estado con- temporaneo. De duvidesa eficiéneia e.escassa prestanca, é o “impeach- ment” instituto retardatério nos quadros da democracia hodierna. Com efeito, antiquado se revelou o expediente, quando o sistema de govérno evolveu para modalidades mais flexiveis, com a_assimi- lagio de processos majs expeditos ¢ a adocio de estilos mais eficien- tes para assegurar o funcionamento, 2 autocontengio ¢ 0 equilibrio entak os. podéres do Estado. . 14, Assim clocado_o_problem, bem pago ficaria o autor se, com esta dissertagio, lograsse restabelecer a exata fisionomia do “im- Beachinent 4: natyecza entido,aleance e oBjeSina, ss Wee na 6 federal e na dos Estados. Se, ao cabo, porém, ficasse apu- rada a obsoléncia do instituto analisado e entre nés vigente, ainda apresentaria utilidade se viesse a contribuir, através de. reforma oportuna, para a melhoria das instituig6es governamentais, F fiel teria sido a0 voto de yelho publicista e politico, o Visconde do Uruguay: “he preciso pensar, meditar, trabalhar seriamente para melhorarmos as nossas instituigdes e estado”. 4 Visconde do Uruguay, Ensaio sbbre “@ Direito™ Administrativo, 1862, v. 1, Preimbulo, p. XXIL- II. Democracia e Responsabilidade 5. A Constituicto, — proclama seu preimbulo? — foi_elaborada pelos representantes do povo brasileiro “para organi gime_demoerétieo” = Sdbre base que nao muda, o conceito de democracia se enri- quece com o tempo.’ Em verdade, a despeito de tédas as mudan- cas, histdricamente verificadas, h4 elementos que permanecem, Assim, embora possa_haver eleig¢io_sem_quehaja_democracia, parece certo que no hd democracia sem eleicio,’ Mas a $6 eleigio, ainda que isénta, periddica e lisamente apurada, ndo_esgota_a_rea- lidade_demacrética,pois, além de mediata ou imediatamente: resul- fantes de sufrégin_popular,as_autoridades designadas, para exercitar © govérno-devem-responder-pelo_uso-que-dale fizerem, uma ver que “govérno-irresponsivel~embora_origindria_de_eleicao-pepular,_pode ser_tudo, menos-govérno-democratico”.® —” Desde que as autoridades polfticds desempenham fungées, nao por direito proprio, mas como agentes e servidores da nacio, — “Officers of the government are-the trustees or servants of the peo ar um re- 5. Sobre o valor, do predmbulo nayhermenfutica da Constituicao, v. Ruy Barbosa, © Dircito, v. 114, p. 576 ¢ sécgs.; -Maximiliano, Comentérios 4 Constituicto Brasileira, 1929, n.° 90; Story, Commentaries on the Constitution of the United States, 1891, v, I, § '459; Farrar, Manual of the Constitution, 1872, 5 5.%, p. 31; Black, Handbook on the Construction and Interpretation of the Laws, 1896, n; 77; Watson, The Constitution of the United States, 1910, v. I, p-92 ¢ 93. 6 Darcy Azambuja,'Teoria Geral do Estado, 1942, cap. XVII, p. 204 ¢ segs; Joiio Mangabeira, A Oracio do Paraninfo, 1945, p. 19 © segs. 7 Institutos € modalidades de democracia’ direta ‘convivem, residualmente, com © regime representativo, Cf. Constituigéo, artigo 2°; Constituigio dor Rio Grande ‘do Sul, artigos 45, XII e XTH-e 56, Darey Azambuja, op, cit segs.; Pinto Ferreira, Teoria Geral do’ Estado, 1957, v. IL,’n% 205; Fay de Asavedo, Anais da Astembléa Consttuinte do’ Estado do ‘Rio Grande do Sul, v. I, p. 181; Mauricio Cardoso, idem, v. Il, p. 159 e 160; Constituigio do Estado do Rio Grande do-Sul, anctads| por M. C. (Mauticie Cardoso); 1935, p45 e 8 Raul Pilla, Presidencialismo, Parlamentarismo e Democracia, 1946, p. 5. —10— ple”,° — da qual derivam seus titulos para o exercicio dos, cargos politicos, seja por eleig¢ao, seja por outra forma legal de provimen- to; desde que se nao admita a irresponsabilidade outrora consagra- da nas antigas monarquias, quando os grandes servideres eram an- tes ministros da coroa que do pais, e apenas perante 0 rei respon- diam,!° como éste respondia sémente perante Deus, tinico juiz a que prestaya contas; desde que 0 povo passou a ter existéncia po- ciea,f2_disciplina da responsabilidade do govérno converteu-se num dos problemas bisicos da_organizacZo: estatal, néo_tendo—taltado mesm6 quem vise _na_possibilidade de aplicar-se aos governantes o principio da-tesponsabilidade o trago distintivo do lo moderno.{t /(@) Visando a tomar efetiva a responsabilidade do Poder Execu- i ~” tivo, a Constituiggo adotou um processo parlamentar, fiel ao | Principio de que téda autoridade deve ser responsavel ¢ responsa- \pilizdvel.2 Por le, depois que a Cimara_dos Deputados, pelo voto da maior 2 absoluta dos seus membros, declara_procedente a acusa- sto). idente da Republi suas fungdes,4 é-sub- ® Pkizfomy The ‘Law of the Federal and State Constitution of the United States, 1908, »p. 49, 30 Bernardo Pereira de” Vasconcellos, Annaes do Parlamento Brazileiro. Primeiro Anno ‘da Primeira Legislatura, Sessio de 1826. 1874, v. II, p. 167: “afirmou-se que. a mola real dos governos absolutos era a irresponsabilidade dos. ministros de estado. ... A diferenea esti ‘tio-sdmente na forma porque respondem pelos t atos do, seu poder, e a pessoa moral ou fisica, para com quem sao responsivei nos governos absolutos respondem 20. monarca, nos constitucionais tis 0 caso"; Vergueiro, Annaes citados, v. II, p. 174: “obravam em nome do soberano, a’ quem se atribufa o bem ou o mal, que resultava de seus at nao tinham crimes para com 2 nagio, que se julgava mera paciente, mas para com 0 soberano, que reitnia todos os’ podéres politicos.. Pela sua alta represen- tacdo ninguém se animava-2 formar contra @les queixas; portanto era-lhes per- mitido obrar a seu salvo, e neste sentido se podiam chamar tio invioléveis, como os monarcas. Porém. logo que se proclamou a Constituicio, logo que a ago recobrou os seus. inauferiveis direitos, e se reconheceu a necessidade da divisio dos podéres majestitices, ficaram os ministros responséveis para com a mesma nacio por todos os abusos de seu poder”; Costa Aguiar e Cunha Matos, Annaes citados, v. Il, p. 171 e 174. 11. V,-E. Orlando, preficio a Vittore ‘Teixcira de Mattos, Accusa Parlamentare e Responsabiliti Ministeriale, p. IX. 32 Gonzalez, Calderon, Derecho Constitucional. Argentino, 1923, v, III. p..343; Joaquim V. Gonzalez, Manual de la Constitucién Argentina, 1951, n. 357, ‘p. 36 18 Constituigo, artigo 59, I, e artigo 88. 14 Constituicio, pardgrafo tinico do artigo 88. ee ) ido_a_juleamento perante © Senado Federal nos crimes de 49 gh5250,) ponsabilidade.15 ite (F 8) 0 ) Este_poder4 itni-lo do cargo e inabiliti-to, wcities a, ) Para_o exercicio de _qualquer_tunsio publica; 6 0 fara, porém, pelo voto de dois tergos dos seus membros ¢ em sua presidéncia fencio. ) nar4-o Presidente. do’ Supremo Tribunal. Federal.6 ) Este € 0 modo dis ela iui assegurar a responsabilidade_d idente da Republica, que—o juizo @ de 9 Anibal Freire —“€ substancial no sistema brasileiro” 7 ) Pelo que se vé dos textos constitucionais, 0 processo estabele- ) cido € © que, originario da Inglaterra e adaptado pelos. Estados ) Unidos, se denomiria “impeachment”, na terminclogia do Direito Constitticional. > : 7. Atigor, porém, por “impeachment” se entende, apenas, a acusa! ) si0_formu a_pela_representacio popular,!® ou seja,_a_p ) meira fase do processo de_responsahil que, no sistema brasi. iro, termina com o afastimento provisério da autoridaile process. , da, o-que nao ocorre, por exemple, nos Estados Unides ¢ na Angen- ) tina, | , ; Contudo, pelo mesma vocibulo, anglicismo incorporado a ossa Hingua,!* se designa, e comumente, o processo politico que comesa ; ¢ designs 2 processo politico que « 15 Constituisao, artigo 62, 1, ¢ artigo 88, ' 15 Constituicao, artigo 62'¢'$$ 192° e 3.0 17 Anibal Freire, Do Poder Ei itive na RepGblica Brasileira, 1916, p: 119. M8 Mathews, The American Constitucional System, 1940, p. 112 «IL; Young, , The New American Government and its work, 1947, p.'47° 18 Lauro Nogucira, O “Impeachment” especialmente’ no Direito Brasliro,_1947, } Riel? 2,19 Gabriel Luiz, Ferreira, Instituto de Ordem dos Advogatos’ Bras leitos,: Congresso Jurldico? Americano, v. II Dissertagdes._ (Direito Pablico), ) Gabe, b. 241: “a palavra ‘impeachment’ no foi ainda inttoduzida na lingeace, ie nosszs leis, mas € certo que pastando da jurisprudtncia inglésa para see ) Uoeit universal do dirito ptblico, tem ‘uma significasdo.gerslmente cont, ESeEe P2a designar 0 processo especial, a que slo sujeitor or altos tepresste ) Zantes do Poder Pablico pelos erimés e'abusos que cometem, io exerci de Supe funsdes ‘governamentais, Nao caracterizam ‘precisamente Sse institute, jus 3 idico, tal coma apatece em nosso direito patrio, 26 definiggee dos pablicares Giranstiros, porque, sio formuladas segundo o ponto de vista’ partiedan dar , Constitigses' que: les: comentam, catas:variain, ‘quer em relagtoris pesos ? sujitas ‘20 respectivo processo, eas penas que thes podem set impostas, act em relagio 20 modo por que & constitufdo © tribunal competente para jalgto™ ax e termina _no seio do Pi jslativo. Instaurado na Camara dos Deputados, cla decreta 2 acusagao do Presidente da Repiblica (€ eventualmente de Ministros. de Estado) pelo voto de sua_maicfia absolut, ‘@ © submete a0 julgamento do Genado Federal; @ste, sob 4% directo do Presidente do Supremo ‘Tribunal Federal e mediante * gufrégio condenatério, e irrecorrivel, de dois tergos de seus mem- pros, despoja definitivamente do cargo © afasta transitdriamente do poder a autoridade considerada inconveniente ou prejudicial 20 Go- Memo e que em relagzo ao Govérno se mostion incompatibilizada, vy atos ou omissoes entre nés denominados “crimes de responsabi- lidade”2° No direito estadual, por “impeachment” se entende, em sentido egtrito, a acusagio peli Assembléia Legislativa, objetivando afastar do Govérno 0 chefe do Poder Executive (e, conforme os éasos, al- guns de seus auxiliares); mas s° entende também o proceso in- Teiro, iniciado na Assembléia e nela conclutdo2? ou encerrado por deciedo do Tribunal de Justica*® ou de tribunal misto2? le é inseparavel_do_cone: ito de de- sat” constituiu, eficaz_instrumento de conseguinte, de, aprimoramento 0 Nao mereceria,o nome de ‘“jqapeachment” “9 procesto ue, conta ‘08 Ministros Mie vcemo, Tribunal Federal eo Procurador ‘Geral da Repiblica, nos crimes do Supromilidade, se deveneola, exclusivamente; Tote ‘0 Senado Federal Xe igo G2, Il, da Constitusio),¢ muita, mene proceso 2 que, perante. 0 Gore Tribunal, responde 0 Ministre. de ‘Estado, por ctime de, responsabill- Sunr(artigo 101, 1, letra ¢ e artigo. 92). . i de empregada com. certa latitude, Pontes de Minands, Comentirios & Constitaisao, 1953, v1 TL, p. 257, chama de “im- de mene’ a cassacio de mandato perlamences, Pe alta ‘de decdro, hipdtese Drevista no 9 2, do artigo, 48, da rSramtituigde. Em. contrario, Tucker, The previats oa of the United Stats, 1699, ¥. & 99, p, 4152-416, ensina que Conapalaso de congressista ‘pelo voto: da seqpectiva’ Cimara nada tem a ver com o “impeachment”. 23 am aaunae do Amazonas, aitigg 38, do Cea, artigo 35, de Goids, artigo 40, cone erabata, artigo 31,, do, Mato Grosso, 32ha8 38, de’ Minas Gerais, artigo Fe Go Parks artigo 46, da Paralba, arvign 3g de Pernambuco, artigo 70, do Rr ‘Grande’ do Norte, artigo 47, de Sante Cazarina, attign 53, de Sio Paulo, repo 45 © de Sergipe, artigo SB. : do Te Aico das Alagoas, artigo §7,¢ do Rio Grande do Sul, artigo 97. Bees ta Baten, sui 5%, doy Beniain ky ‘artigo 34, do Maranhio, cones Gls do Parangy artigo 50, do Piaul, artigo {67 e do Rio de Janeiro, artigo 41. II. Antes da Independéncia. A Lei de 1827. 9. Dispondo sdbre a apuragao da responsabilidade presidencial, a Constituicio de 1946 conservou, mutatis mutandis, 0 modélo estabelecido em 1891. Q “impeachment”, porém, nio_nasceu_com a Repiblica. Na Constituigao de 25 de marco de 1824 encon configuragao entre nés.4 sontrou_@le suia_primeira 10. Era-natural que se nao falasse em responsabilidade do Govér- no antes que as idéias liberais rompessem a crosta do absolutis- mo, em que “absorvia o Executive em si todos os podéres, ou, para dizer melhor, havia um s6”25 Porque, se razio assistia 20 2° Visconde de Santarém 20 es- crever que “quase todos os povos da Europa nao haviam ainda fi- xado os seus Direitos Civis no meado do XII século, nem gozado da sombra da Representagao Nacional na participagao da confecgao das Leis, quando j4 de mujto tempo antes haviam existido as Cér- tes de Lamego, e as de Goimbra do Senhor Rei D, Afonso II”, e se “nas matérias tratadaz nas nossas antigas Cértes se encerram muitos, ¢ importantes principios de Direito Péblico, e das garan- tias individuais tao° reglamadas pelos Publicistas Modernos”,?* se 24 Aurclino Leal, Teoria e Pritica da Constituicgo Federal, 1925, v. I, p. 4825 Raul Chaves, Crimes de Responsabilidade, 1960, n. 15, p. 33.0, 25 Viseonde do Uruguay, op. cit., ¥. 1, p. 135. 26 Memorias © Alguns Documentos para a Hist6ria ¢ Teoria das Cértes Gerais que em Portugal sé celebraram pelos trés Estados do Reino, ordenadas ¢ com- postas em 1824 pelo 2° Visconde de Santarém, 1924, Adverténcia Preliminar, PIV ¢ V; J. J. Lopes Penge, Coleco de Leis’ e Subsidios para 0 Esrudo do Direito Constitucional Portugues, 1893, v. I, p. VI. oe A € certo que as Cortes de Lisboa, de 1641, convocadas por D. Joao IV apés a restauracao, assentaram como principio do direito pi- blico lusitano “que o poder dos reis provém originariamente da na- so: a qual compete... até recusar-se & obediéncia, quando o rei pelo seu modo de governar se torne indigno e tirano”;2” se é exato que “nas Cértes seguintes, de 1642, 08 procuradores dos povos fize- ram uso mais enérgico de suas atribuigdes: propuseram a acusagao contra os ministros do Rei, principalmente contra o secretario Fran- cisco de Lucena, argitido de traidor, o qual foi por éste crime me- tido em proceso e decapitado”; se nas Cdrtes de 1668 foi deposto D. Afonso VI, por set “incapaz de governar”; n’o menos cxato é que a partir de 1697 as Cértes nio mais se reuniram nem foram convocadas ** até 1820, quando voltaram a reunir-se, mas ao toque da revolugio que nesse ano estalou, e 20 sdpro do liberalismo, que mudava a face da Europa ¢ do mundo; ¢ decretaram a Constitui~ ao de 23 de setembro de 1822, jurada por e-rei D. Joao VI ¢ por téda a nagio.” . Caindo em recesso, a partir de 1698, 0 Monarca reconhecia- Ihes a princfpio o direito de influirem no Govérno. D. Pedro I, que “dispoe tudo para excluir as Cértes, inteiramente, da ingeréncia no Govérno”, prometia “convocilas, logo que as circunstancias o permitam’®° e D, Joao V “nfo se atreveu a negar aquela prerro- gativa dos povos, mas entreteve-os com desculpas ¢ esperancas”.* Fortalecido, porém, 0 poder real, no reinado de D. José, do qual foi Ministro 0 Marqués de Pombal, “o despotismo nao se dis- © fargou: foi piblica e sistematicamente proclamado... Nos documen- tos do Govérno nfo se falou mais em prerrogativas dos povos nem em Cértes; © os escritores viram-se forcados a menciond-las como assembléias meramente consultivas, desnecessdrias, ¢ até incompa- tiveis no estado atual da administragio. Nao 0 concurso das or dens, nem a opiniio dos povos, que ocupa os pomposos predmbu- los das leis déste tempo; mas sim a alta e independente soberania, 2 Coelho da Roche, Ensaio sbbre a Histéria do Govérno e da Legislagko de Por- ugal, 1896, § 220, p, 168, 28 Coelho da ‘Rocha, op. cit, §§ 221, 217 © 218, p. 169, 165 © 166, 29 Goslho da Rochia, op. cit, $$ 225’ e 226, p. 172 e segs. 30 Coelho da Rocha, op. cit, § 222, p. 169 © 170, 31 Coclho da Rocha, op, 225, p. 170, =e que o rei recebe imediatamente de Deus, pela qual manda, quer e decreta a seus vassalos, de ciéncia certa ¢ poder absoluto”.®? 11. Nao era de estranhar, portanto, o que ensinava um contempo- r4neo de D, Maria, em livro dedicado a D. Joao, Principe do Brasil: “hé certo, que aos Monarchas na accepcio generica com- pete a auctotidade de governarem ¢ regerem a Monatchia a seu arbitrio, sem outra norma, que o fim da mesma Sociedade”, Assim doutrinava Franeiseo Coelho de Souza ¢ S. Paio, desembarga- dor da Relagio do Porto e desde 1787 Lente na Universidade de Coimbra.#* Isto porque, “hé Monarchico aquelle Imperio, cujo go- verno hé administrado por huma s6 pessoa, em quem se acha jure proprio radicado 0 Summo Império. Hé plena aquella Monarchia, cujo Monarcha ‘exerce todas as partes integrantes do Summo Im- perio... O Imperio Portuguez hé governado, e dirigido por Kuma 85 pessoa, em quem jure proprio se aicha radicado 0 Summo Im: perio, sem que as Leis Fundamentais Ihes prescrevessem limitagio”.%4 E prosseguia: “estes direitos (do Rei) em si mesmo muito vastos ¢ abundantissimas, se podem commodamente reduzir a cinco capi- tulos:’ Legistativo, Inspectivo, Policiative, Judiciativo, e Executivo. Destes Direitos essenciais, e inabdicdveis da Suprema Magestade, uso, effectivamente os Monarchas Portuguezes”.* £m relagio a tantos ¢ tais direitos, “vastos, e abundantissi- mos”, compreende-se que 140. féssem menores os devetes dos stidi- tos, ¢ déles se nao olvidou .o autor 20 encerrar as suas Prelegdes: “A vista dos Direitos, que?competem aos Soberanos, facilmente se conhece por hum effeito Shecessario da obrigacio correlativa, quais devem ser os nossos offigios, e a nossa obediencia as Leis dos nossos Soberanos, ¢ que jamaig as podemos transgredir, semi nos constituir- + Mos reos, € metecedores de castigo na presenca de Deos, que ex- Pressamente nos manda obedecer as Leis dos Princepes scus Lu- 82 Coelho da Rocha, op. cit., § 224, p. 171. 88 Prancisco Coctho ‘de Souza e S. Paio, Preleges de Dircito Pétrio Pablico ¢ Particular, 1793, $ LX,.p. 7. 84 Branciseo Coetho de Souza 6 $. Paio, op. cit, § XXV, p. 41. , 35 Francisco Coelho de Souza e S. Paio, op. cit., § LXI, p. 72, — 16 — gar-Tenentes, ou seja0 bons, ou méos; nio sé pelo temor das pe- nas externas, mas pelo vinculo da consciencia”.*® ‘Aliés, mais do que a doutrina do lente coimbrao falavam as Ordenagées do Reino: “o Rey he Lei animada sobre a terra, ¢ pode fazer Lei, e revoga-la, quando vir que convem fazer-se assi”, éle “& sobre a lei” “porque nenhuma Lei por o Rei feita o obriga, se- nao enquanto elle, fundado em razio, e egualdade, quizer a ella sometter seu Real poder”.°7 12, Tais_eram_as_idéias_dominantes-na-metsépole-quando-ganhou consisténcia o Estado no Brasil. E se os Regimentos ¢ Cartas Re gias, Alvaris e Provisdes, tedricamente, pouca margem deixavam para os abusos, em verdade, arbftrio e prepoténcia nao faltaram aos delegados da Coron lusitana, embora ficassem éles, apés dei- xarem.os cargos, sujeitos ao “juizo de residéncia”, perante 0 Con- selho Ultramarino.2® Se_as_Cimaras_ muni ipais possufam fran- quias, protegidas pelo Rei distante, ¢ "ali, lei, as mais das vézes Fundadas_no costume, mer a garam a oferecer queixas contra vice-reis, capitaes-generais, ir a ¢ jar autoridades-a-el-rei-e-até-a-depd-las — assim fizeram, por exemplo, a Camara do’ Rio de Janeiro, a de Sao Vi- cente; a de Vila” Rita, a de Belém —, a. verdadé. ‘é-gue--a—situacio da coléinia, — dos governos gerais, dos governos.duais,do. vice-reino te do reino,—sob o_prisma da liberdade c_da_responsabilidade ofi- tial, nao era melhor, nem-tinha-por-que-#é-lo;-do-que-2 vigente na métrépole.®® © Principe era “stbre_a le”, na linguagem das Ordenasies, ¢ de tals © tantos dircitos titular, que o dever dos povos era obede- cere, segundo 2 liga desembargatéria, “ou sejam bons, ou maus”, porque era tle af viv) que tudo pode, “lex viva qui removetur 36 Francisco Coelho de. Souza e S. Paio, op. cit,, Titulo Nono, capitulo ttnico, p: 201 ¢ 202, 81 Ordenagoes Filipinas, L. IIL, t. 75,5 195 ¢. 66, pr3 L. I, «35, § 21, 38 tia Faogues, O Estado do Brasil no Século XVIII, 1950, p. 43 © 56, 29 Paulino Jacques, op. cit., p, 60 ¢ sexs. 40 Caldas Pereira, parecer de 20 de setembro de 1583, apud José Camara, Subsi- dios para a Historia do Direito Parris, 1954, p. 97. — Th 13. Quando as Cértes de Lisboa se reuniram, desta ver com_a_pre- senga ruidosa de deputados brasileiros, estavam difundidas as m_com,.a_Revolugao. Francesa, Do seu influxo nao se livraram os constituintes brasileiros de 1823, »- Ea Constituigéo de 25 de marco, elaborada pelo Conselho de _ @Bstado” © aprovada. pelas cimaras_municipais do mpério,*®_nao cou imune “a n@aGvacd) operad: cul ox€ons) ficou _imune 3 e@iGras§) operada no século que se. chamon_dqct6hap delegado privativamente 0. po- remo da nacio e seu_primeito repre- sentante”y“pira~que stmcessar velasse “‘sObre a_manutengio da independéncia, equilfbrio ja dos_mais_podéres__ politicos” (artigo 98), era também “o chefe ita 10, &..0_exercita pelos seus Ministros de Estado” (artigo 102). Certo, “a_pessoa do Imperador é inviolével e sagrada: éle nao estd_sujeito_a_responsabilidade alguma” (artigo 99). Mas os Mi- nistros de Estado, pelos quais 0 Imperador exercita o poder executivo; is “por_traicio, por peita, subérno_ou_concussio, por _ sao responsdveis “por_tr: abuso de poder, pela falta da_observanci; i,.pelo_que obrarem contra a_liberdade, seguranga_ou_propriedade dos cidados, ¢ por qualquer.dissipagao-dos_bens_pfiblicos” (artigo 133). O poder de acus4-los competia 4 CA: ados: “é da acusacio dos Ministros de Estado e Conselheiros de Estado” (arti- g0 38). Como agora, o julgamento cabia ao Senado: “é da atribuicao 2 ; 41 Aurelino Leal, Historia Corititucional ‘do Brasil, 1915, Primeira Conferénc Varnhagen, Histéria da Independéncia do Brasil, p. 91'a 95, 105 a Ill; Olic veira Lima, O Movimento ‘da Independ&ncia. 1821-1822. 1923, cap. VI, p. 115 e segs; Gomes de.Carvalho, Os Deputados Brasileiros nas Cdrtes Gerais de 1821, 1912, passim. f . 42 0 Conselho de Estado levou em conta 0 projeto de Anténio Carlos oferecido A Constituinte ‘dissolvida, Afonso Arinos, Curso de Direito Constiicional Brasileiro, 1960, v. TI, n. 82 e 83, p. 67 € 68, especialmente o de Martim Brancisso, que foi aprovsitado quase na integra, Relisbelo Freire, Distio do Congresso Nacional, 1° de outubro de 1914, p. 2019 a 2023; Maximiliano, op. cit, n, 20, p. 26, nota 2; Aurelino Leal, Histéria, p. 106 ¢ segs; Paulino Facques, Curso de Direito Constitucional, 1962, p. 51. 48 Maximiliano, op. cit., n..20; p, 26; Afonso Arinos, op.

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