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Charles Taylor

Identidade, reconhecimento e religião


Comitê Editorial da Série

• Agnaldo Cuoco Portugal, UNB, Brasil


• Alexandre Franco Sá, Universidade de Coimbra, Portugal
• Christian Iber, Alemanha
• Claudio Gonçalves de Almeida, PUCRS, Brasil
• Cleide Calgaro, UCS, Brasil
• Danilo Marcondes Souza Filho, PUCRJ, Brasil
• Danilo Vaz C. R. M. Costa, UNICAP/PE, Brasil
• Delamar José Volpato Dutra, UFSC, Brasil
• Draiton Gonzaga de Souza, PUCRS, Brasil
• Eduardo Luft, PUCRS, Brasil
• Ernildo Jacob Stein, PUCRS, Brasil
• Felipe de Matos Muller, UFSC, Brasil
• Jean-François Kervégan, Université Paris I, França
• João F. Hobuss, UFPEL, Brasil
• José Pinheiro Pertille, UFRGS, Brasil
• Karl Heinz Efken, UNICAP/PE, Brasil
• Konrad Utz, UFC, Brasil
• Lauro Valentim Stoll Nardi, UFRGS, Brasil
• Marcia Andrea Buhring, PUCRS, Brasil
• Michael Quante, Westfälische Wilhelms-Universität, Alemanha
• Miguel Giusti, PUCP, Peru
• Norman Roland Madarasz, PUCRS, Brasil
• Nythamar H. F. de Oliveira Jr., PUCRS, Brasil
• Reynner Franco, Universidade de Salamanca, Espanha
• Ricardo Timm de Souza, PUCRS, Brasil
• Robert Brandom, University of Pittsburgh, EUA
• Roberto Hofmeister Pich, PUCRS, Brasil
• Tarcílio Ciotta, UNIOESTE, Brasil
• Thadeu Weber, PUCRS, Brasil
Charles Taylor

Identidade, reconhecimento e religião

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografia de Capa: Randy Jacob - https://www.randyjacob.com/

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


OLIVEIRA, Juliano Cordeiro da Costa

Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião [recurso eletrônico] / Juliano Cordeiro da Costa Oliveira -- Porto
Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

124 p.

ISBN - 978-65-5917-382-2
DOI - 10.22350/9786559173822

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Charles Taylor; 2. Identidade; 3. Reconhecimento; 4. Religião; 5. Self; I. Título.

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Agradecimentos

Este trabalho é fruto de meu estágio de Pós-doutorado no Programa


de Pós-graduação em Filosofia (PPGFIL), Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Agradeço enormemente à UFPI e ao PPGFIL pela oportunidade de
ministrar grupos de estudo e disciplinas na Pós-graduação dedicados ao
pensamento de Charles Taylor, bem como aos alunos do PPGFIL pelas
conversas enriquecedoras e debates, colaborando, também, para o
resultado deste livro. Agradeço, igualmente, à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela possibilidade
que me foi oferecida de me dedicar integralmente à pesquisa devido à
bolsa de pós-doutorado (PNPD) na UFPI. Sou grato, ainda, aos amigos
Manoel Jarbas e Mayra Carvalho pelas conversas acerca de várias
temáticas deste livro. Agradeço, também, aos Professores Doutores Helder
Buenos Aires de Carvalho, pela supervisão de estágio de pós-doutorado, e
Manfredo Oliveira, pelas conversas enriquecedoras. Este trabalho também
é dedicado à memória de Marcos Luiz, mestre em Filosofia pela UFPI e
professor de direito na Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
Sumário

Introdução 11

1 21
Quadro referencial teórico do comunitarismo de Taylor
1.1 A Polis e o Bem Comum: identidade e Comunidade ............................................................ 21
1.2 A Emergência da Subjetividade Moderna e a Originalidade do Eu ................................ 26
1.3 A crítica heideggeriana à filosofia do sujeito enquanto metafísica da subjetividade ......33
1.4 Taylor e a herança hegeliana. ......................................................................................................... 40
1.4.1 Hegel e a Crítica Dialética da Modernidade ...................................................................... 40
1.4.2 O Reconhecimento e as Fontes Comunitárias do Self: a Dialética do Senhor e
do Escravo ................................................................................................................................................. 48
1.4.3 Hegel e a Dialética entre Religião e Iluminismo .............................................................. 51
1.5 As Fontes Morais e os Imaginários Sociais no Hegelianismo de Taylor......................... 57

2 64
A Religião na Era Secular
2.1 Por uma Redefinição do Secularismo.......................................................................................... 64
2.2 As Críticas de Taylor ao Liberalismo Político de Rawls ........................................................... 70
2.3 Críticas a Taylor .................................................................................................................................... 80
2.3.1 Pós-secularismo versus Comunitarismo: a Querela entre Habermas e Taylor .... 80
2.3.2 Nancy Fraser e a Crítica às Políticas do Reconhecimento ......................................... 101
2.3.3 A Universalidade do Bem em Aristóteles: uma proposta para além da
controvérsia entre liberais e comunitaristas ............................................................................. 108

Conclusão 113

Referências 118
Introdução

Segundo Marcel Gauchet (1985, p. 92), assistimos, nos dias de hoje,


a um duplo processo acerca do religioso na contemporaneidade: de um
lado, a saída da religião do espaço público; de outro, a individualização do
crer. Com a modernidade, houve uma saída da religião do espaço público,
estando ela restrita ao âmbito individual. Para Gauchet, é possível
compreender, assim, tanto a saída da religião do espaço público como
também sua permanência, mas apenas nas esferas individuais. Ele
argumenta que a emergência da democracia no Ocidente só pode ser
compreendida no quadro de um processo de saída da religião. Isso seria
algo irreversível, uma vez que não há como voltar aos fundamentos
incondicionais das religiões em sociedades democráticas, secularizadas e
pluralistas: “Deus está separado. Ele não intervém nos assuntos políticos
dos homens” (GAUCHET, 1998, p. 61). Não podemos falar, porém, no
desaparecimento das religiões nas sociedades modernas. “Isso não
significa que o religioso deva parar de falar aos indivíduos” (GAUCHET,
1985, p. 292). A religião não perdeu, apesar da secularização, sua condição
de reserva de sentido para vários sujeitos, inclusive como parte
constituinte de suas identidades e de suas narrativas de vida.
Há, também, aqueles que defendem uma possível volta do religioso,
inclusive, na esfera pública e na política institucional, não estando mais a
religião restrita ao âmbito do privado, como se pensou no passado. Nos
países do Leste Europeu, nos Estados Unidos e na América Latina,
movimentos religiosos ganharam força e começaram a reivindicar poder
na política (THOMPSON, 2001). Porém, tal qual demonstra Ernst
Tugendhat (1997, p. 14), o crente não poderia mais fundamentar suas
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normas morais unicamente em suas crenças religiosas, caso ele respeite o


não crente ou aquele que possui uma crença diferente da sua: “Como
podemos, como devemos nos posicionar em relação à ética, depois que a
fundamentação religiosa deixou de existir?”, questiona o autor. John
Rawls (2011), por exemplo, argumenta que uma das características do
tempo atual é o fato do pluralismo. Vivemos em um contexto em que
várias doutrinas abrangentes, ou seja, diversas concepções de bens e
orientações morais, reivindicam um lugar de pertencimento e
reconhecimento no mundo, como as religiões. Entrementes, a política
deveria, diz Rawls, pautar-se por valores públicos e políticos, e não
metafísicos.
Todavia, para Peter Berger (2017a), as religiões continuam a ter
relevância como fonte de sentido de vida para vários sujeitos, tal qual uma
instância fundamental para a constituição de suas identidades. Berger
(2018) destaca a redescoberta do sobrenatural na contemporaneidade.
Segundo ele (2017a), se, por um lado, não podemos simplesmente
constatar a volta do religioso na atualidade, como nos tempos pré-
modernos, haja vista o pluralismo entre crentes e não crentes,
característico das sociedades contemporâneas, também não podemos falar
simplesmente de uma secularização no sentido de que as religiões
estariam apenas reduzidas ao espaço privado dos sujeitos, como defendido
no passado. Para Berger, o característico das sociedades modernas não
seria especificamente a ideia clássica da secularização (saída do religioso
do espaço público e seu confinamento à esfera privada), e sim o pluralismo
dos modos de vida, seja dos crentes ou dos não crentes.
Berger propõe um novo paradigma que deva ser capaz de lidar com
dois pluralismos, a saber: a coexistência de diferentes religiões e a
coexistência de discursos religiosos e seculares. “Esta coexistência ocorre
não somente nas mentes dos indivíduos, mas também no espaço social”
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 13

(BERGER, 2017a, p. 9). Há, por isso, uma rearticulação e uma revisão por
parte de vários teóricos, como Charles Taylor, acerca da perspectiva
clássica da secularização, de que a modernidade seria sinônimo de uma
época em que a religião ficaria, no máximo, restrita à esfera privada.
Taylor enfatiza que a religião ainda se relaciona com a formação das
diversas identidades, à medida que exerce, ao mesmo tempo, uma
perspectiva de reconhecimento dos sujeitos, mesmo em sociedades
modernas e secularizadas. A temática da religião sempre esteve presente
na obra de Taylor. Contudo, apenas a partir do fim da década de 90, a
religião passou a ser uma discussão central no pensamento do filósofo
canadense (GARCÍA, 2020).
O objetivo deste livro é investigar como Taylor articula teórica e
filosoficamente a relação entre identidade e reconhecimento, tendo a
religião como uma fonte moral e uma instância essencial para a construção
das identidades. Taylor é um dos nomes fundamentais do chamado
comunitarismo, que defende o papel determinante que a comunidade
exerce em nossa identidade e em nosso reconhecimento. Nesse sentido,
não seríamos um eu originário e desengajado. Em realidade, seríamos
fruto de nossas relações com os outros, de nossa cultura, linguagem e
comunidade. Tais instâncias nos fornecem os elementos essenciais, as
fontes morais, que orientam nossas vidas, constituindo nossas
subjetividades, como as tradições religiosas em determinados contextos.
Taylor defende a tese de que o ponto de partida da reflexão na teoria
ético-moral não deve ser a identidade desengajada, atomística, que
caracteriza boa parte da modernidade e do liberalismo político, e sim a
concepção do sujeito situado, cuja unidade narrativa da vida deve ser vista
no interior do horizonte de uma comunidade. Essa concepção
hermenêutica da pessoa ética é a premissa central da crítica metodológica
de Taylor ao objetivismo neutro nas ciências do espírito, assim como sua
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crítica às concepções morais deontológicas e formalistas da ética de matriz


kantiana. O impulso teórico de Taylor se orienta contra a concepção de um
sujeito solipsista, que, supostamente, encontraria apenas dentro de si as
fontes do agir ético. Para ele, seria ilusória, portanto, uma noção de self
“[...] no sentido de uma identidade que posso definir para mim mesmo
sem referência ao que me rodeia e ao mundo em que estou situado”
(TAYLOR, 2014, p. 26).
Ter uma identidade significa, para Taylor, mover-se em um
horizonte no qual as relações com os outros e a relação com o mundo são
sempre mediadas por meio de uma linguagem que se abre à luz de uma
determinada tradição cultural ou religiosa. A racionalização da
modernidade é descrita, em Taylor, a partir da crítica hegeliana ao
indivíduo moderno, como um processo de cisão, e a articulação desse
processo apela aos sujeitos modernos a reencontrar as fontes do self nas
diversas concepções de bens, como veremos no primeiro capítulo deste
livro. A tentativa de Taylor consiste, à luz de Hegel (um dos nomes
fundamentais para compreendermos o pensamento de Taylor) em
rearticular os horizontes fraturados da eticidade, ou seja, as cisões
provocadas pela modernidade e, com isso, aproximá-las a uma
reconciliação. Diante disso, Taylor defende a importância que o ethos
religioso ainda possui na formação das identidades e do reconhecimento,
mesmo em uma era secular.
Para apreendermos, de fato, a proposta de Taylor, faz-se
determinante, no primeiro capítulo, uma análise do quadro referencial
teórico de Taylor, fundamentado nas premissas do comunitarismo e em
sua hermenêutica hegeliana, como crítica à subjetividade moderna.
Determinante, então, é o conceito de quadro referencial teórico, elaborado
com base no conceito de quadro linguístico (linguistic framework),
introduzido por Carnap. Podemos dizer que todo enunciado teórico,
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argumentação e teoria só podem ser compreendidos e apreciados com


base no quadro teórico em que se situam (PUNTEL, 2008). Sem essa
pressuposição, tudo permanece indeterminado, a saber: o sentido de um
enunciado, sua avaliação etc. Entre os momentos constitutivos de todo
quadro teórico, estão: a linguagem (com sua sintaxe e semântica), uma
lógica e uma conceitualidade (com todos os componentes que
fundamentam um aparato teórico).
As questões referentes à filosofia de Taylor serão articuladas a partir
da proposta teórica do comunitarismo e de sua influência hegeliana, como
veremos ao longo do primeiro capítulo. Por isso, o entendimento do
quadro referencial teórico de Taylor faz-se essencial para refletirmos
acerca das possibilidades e limites de seu pensamento. Nesse capítulo,
explicitaremos as linhas fundamentais da eticidade dos antigos gregos, a
emergência do eu moderno e a moralidade kantiana, assim como a crítica
heideggeriana à subjetividade moderna, tal qual uma grande influência na
crítica à filosofia do sujeito em Taylor, além do próprio Hegel.
O hegelianismo de Taylor, debatido ao longo do capítulo, diz respeito
à consideração que ele faz das influências da vida comunitária na esfera do
reconhecimento como uma instância essencial para o próprio eu e a
identidade. Em Hegel, a subjetividade é um processo relacional, não sendo,
portanto, uma pura identidade consigo mesma, mas mediada por
processos de interação em uma comunidade ou mesmo tradição religiosa.
A teoria do reconhecimento hegeliana é um importante fio condutor para
o pensamento de Taylor. A preocupação do filósofo canadense, à luz de sua
herança hegeliana, é demonstrar que o indivíduo está situado em uma
vivência comunitária que fornece os elementos significativos para a
construção de seu self. Tal conceito pertence a um contexto fundamental,
apontando para o papel essencial da eticidade nesse processo, seja por
meio da teoria hegeliana do reconhecimento ou por meio da análise de
16 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Hegel acerca da relação entre secularismo e religião, como veremos no


decorrer do primeiro capítulo.
Em seus estudos especificamente dedicados a Hegel, publicados em
língua portuguesa, “Hegel e a Sociedade Moderna”, de 2005, e “Hegel:
Sistema, Método e Estrutura”, de 2014, Taylor interpreta a crítica
hegeliana ao conceito moderno de liberdade tal qual uma crítica ao
conceito de sujeito vazio, não situado no contexto formador das
identidades. Embora a influência de Hegel em Taylor seja conhecida, ela
não é trabalhada e articulada nos diversos estudos sobre o filósofo
canadense, como a perspectiva de sua análise da religião e sua importância
para a formação das identidades. Taylor realiza uma hermenêutica da
filosofia hegeliana, tornando-se responsável por uma das principais
recepções do pensamento hegeliano na comunidade filosófica. A influência
de Hegel na obra de Taylor permanece como uma dimensão pressuposta,
mas pouco explorada.
Por conseguinte, ainda no primeiro capítulo, mostraremos, a partir
da influência hegeliana, como Taylor conceitua o que denomina de
imaginário social, como uma instância essencial na formação das
identidades, tal qual um ethos fundamental na constituição das
subjetividades pertencentes a uma comunidade. Quando um bem
constitutivo de uma cultura não é articulado, corre-se o risco de perder as
fontes morais que alimentam a vida dos sujeitos. É necessária, por isso,
uma ontologia moral, isto é, uma teoria do bem. Aqui, identidade e
orientação para uma vida boa relacionam-se diretamente.
Taylor tem como principal conceito a avaliação forte, que irá, ao
mesmo tempo, sustentar e desenvolver todas as suas teses sobre a
construção do self moderno. A avaliação forte traz consigo a possibilidade
de articulação da identidade da pessoa, fazendo com que o indivíduo deseje
elaborar um modo de vida. Na avaliação forte, pergunta-se por uma vida
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 17

significativa em contraposição a uma vida voltada apenas a questões


triviais. Para compreender nosso mundo moral, temos de ver não só que
ideias e quadros descritivos subjazem nosso sentido de respeito pelos
outros, mas também aqueles que alicerçam nossas noções de uma vida
plena.
Ser um self é, em Taylor, inseparável da existência em um espaço de
questões morais, que tem a ver com a identidade e com aquilo que
devemos ser a partir de uma herança formadora de nossas tradições,
linguagens, culturas e imaginários sociais. Logo, seria preciso uma ética
articulada por conceitos ontológicos, assumindo uma noção de bem
socialmente representativa. As religiões, por exemplo, significam mundos
de articulações morais das identidades, tal qual uma comunidade de
pertencimento e de reconhecimento. Em Taylor, a crença em Deus
significa uma articulação daquilo que é crucial para a forma do mundo
moral na melhor descrição de um indivíduo. Ele defende uma redefinição
do secularismo que valorize as religiões como fontes essenciais e
indispensáveis para diversos sujeitos que se formaram a partir de outras
linguagens e tradições, diversas da concepção tradicional de secularismo,
como veremos no segundo capítulo, sempre tendo como horizonte a
herança hegeliana e sua crítica dialética do Iluminismo em diálogo com a
religião.
No segundo capítulo, A Religião na Era Secular, veremos que, para
Taylor, seria ilusória a tentativa secular de estabelecer a prioridade de um
discurso neutro frente ao religioso, no sentido de uma neutralidade ética
de valor, como pretende o liberalismo político. Na era secular, como
argumenta Taylor, a fé passa a ser relegada à esfera privada, havendo, de
acordo com a visão secular de mundo, uma moral independente de
qualquer referência transcendente, bem como a defesa de uma razão sem
auxílio a fontes transcendentes, derivadas da Revelação. Taylor é crítico de
18 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

uma determinada concepção do secular, à qual ele se opõe, por não levar
em conta as religiões como fontes morais fundamentais para
determinados contextos intersubjetivos.
As religiões encontram-se, assim, no âmbito das avaliações fortes,
uma vez que constituem uma noção de self mais profunda e fundamental,
para além do indivíduo atomizado das concepções modernas e liberais.
Um exemplo de postura que Taylor critica, como veremos ao longo do
segundo capítulo, é àquela defendida por John Rawls em seu Liberalismo
Político, uma vez que Rawls defende, a partir da ideia da formulação de
critérios normativos razoáveis em uma sociedade pluralista, uma
separação entre as identidades públicas (não religiosas) e privadas
(religiosas). Para Taylor, ao contrário, seria somente no interior de um
horizonte de valores de uma tradição possível colocar as questões da
justiça. Não se trata, em Taylor, de negar a modernidade e a era secular, e
sim de construir um maior diálogo com as religiões, haja vista a relevância
essencial que elas possuem na construção das identidades e do
reconhecimento. Taylor pretende, com isso, redefinir o ideal da
autenticidade moderna, para além de seu sentido meramente solipsista e
individualista.
Ainda no segundo capítulo, avaliaremos algumas das críticas a
Taylor, como aquelas vindas de Jürgen Habermas. O autor defende que são
fundamentais os procedimentos deliberativos, e não propriamente um
determinado conceito de vida boa ou conteúdos valorativos de uma
determinada tradição ou religião. Ele argumenta que seria injusto
privilegiar uma ou outra noção ontológica de bem, tendo como horizonte
o fato do pluralismo moderno e a necessária construção de normas
validadas por todos (crentes e não crentes). Em Habermas, as religiões
precisariam traduzir, no parlamento, suas intuições éticas para uma
linguagem pública e secular. Não se trata do que é bom para nós como
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membros de uma coletividade (caracterizada por um ethos próprio), mas


sim do que é correto e justo para todos, seculares e religiosos. Habermas
insiste, ao contrário de Taylor, na diferença entre fé e saber, uma vez que
o discurso teológico é dependente das verdades reveladas, ao passo que o
filosófico é fundamentalmente de caráter argumentativo. Essa é a
principal divergência que há entre Habermas e Taylor que debateremos
também ao longo do capítulo.
Há, por exemplo, em Taylor, uma perspectiva de tolerância,
relacionada com a estima, que implica uma ideia de reconhecimento
mútuo entre cidadãos, à medida que a tolerância, no sentido da estima,
não apenas significaria o respeito pelos membros de outras formas de vida
cultural, mas levaria em consideração algum tipo de estima ética, total ou
parcial, por aquelas formas de vida como opções sociais valiosas. No
entanto, para Habermas, a tolerância não deve ser confundida com estima
por uma cultura e forma de vida alheias ou por convicções e práticas
rejeitadas. A base do reconhecimento não deve ser a estima, e sim uma
consciência de pertencer a uma comunidade inclusiva de cidadãos com
direitos iguais.
Nancy Fraser, por sua vez, como também veremos, articula sua
crítica às éticas do bem que se guiam, sobretudo, pela ideia do
reconhecimento, tal qual há em Taylor. Fraser exemplifica dois campos
que tradicionalmente estão em disputa. De um lado, encontram-se os
proponentes da redistribuição. De outro, os do reconhecimento. Membros
do primeiro campo esperam redistribuir a riqueza dos ricos aos pobres;
membros do segundo, ao contrário, buscam o reconhecimento das
distintas perspectivas das minorias étnicas, como Taylor. A orientação
redistributiva tem uma linhagem filosófica distinta da do reconhecimento,
já que as reivindicações redistributivas se orientam com vistas à justiça
social. O segundo grupo, ao contrário, busca desenvolver um novo
20 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

paradigma normativo que coloca o reconhecimento em seu centro, tal qual


há em Taylor. Fraser propõe uma terceira posição, a saber: as lutas por
reconhecimento devem incluir ao mesmo tempo as reivindicações por
redistribuição. Isto tem, como consequência, uma crítica tanto às teorias
da redistribuição, que não levam em conta as lutas por reconhecimento,
como também às lutas por reconhecimento que não levam em
consideração as demandas por redistribuição.
Se, por um lado, Taylor, com razão, conceitua como as religiões,
mesmo em sociedades modernas e secularizadas, ainda possuem uma
relevância determinante no reconhecimento e na constituição das
identidades, por outro, cabe interrogar a Taylor como, mesmo
considerando o pluralismo dos modos de vida, seria possível fundamentar
princípios normativos em um mundo marcado por várias concepções de
bens, e não apenas um bem ou doutrina abrangente em particular. No
último tópico do livro, por exemplo, abordaremos a ética aristotélica, uma
vez que Aristóteles, mesmo remetendo a uma concepção ontológica da
ética, o faz para além do particularismo, sempre tendo como linha de
pensamento, sobretudo, a universalidade, algo não refletido
suficientemente por Taylor. Apesar de grande parte dos livros de Taylor
terem traduções no Brasil, há poucos trabalhos acadêmicos e artigos
dedicados ao pensamento do filósofo canadense. Este livro objetiva,
também, ser uma publicação que colabore com o debate acadêmico
brasileiro em torno do pensamento de Taylor, um dos pensadores
determinantes da filosofia contemporânea, em especial na reflexão acerca
da relação entre identidade, reconhecimento e religião.
1

Quadro referencial teórico do comunitarismo de Taylor

1.1 A Polis e o Bem Comum: identidade e Comunidade

Faz-se determinante a explicitação do quadro referencial teórico de


Taylor, a saber, o comunitarismo, à medida que todas as questões devem
ser refletidas a partir dele. A filosofia de Taylor relaciona-se
profundamente com o legado hegeliano no que se refere à crítica à
concepção atomista de indivíduo moderno. Para ele, uma comunidade, em
seus valores, práticas e instituições forma um horizonte constitutivo para
a identidade de seus membros. Somente assim seria possível colocar as
questões da justiça e, então, responder acerca do que é considerado bom e
o que deve valer para a comunidade. “Nosso relato é moldado o tempo
inteiro por aquilo que compreendemos ser a realidade do caso” (TAYLOR,
2000, p. 169). Segundo Taylor, os homens são seres expressivos, porque
pertencem a uma cultura que é “[...] sustentada, nutrida e transmitida no
interior de uma comunidade” (TAYLOR, 2005, p. 13).
O espírito comunitário dos antigos gregos, uma das referências de
Taylor, elabora uma imagem do homem cuja vida política é a vida humana
por excelência. Na sociedade grega, havia uma perfeita unidade entre
cidadão e sociedade. As aspirações morais e espirituais mais plenas eram
respondidas na vida comum da sociedade. Era somente na polis, que o
sujeito encontrava significado e propósito para a sua vida. Do contrário,
ele definhava. Nos antigos gregos, estava em questão o bem que constituía
os valores e a formação da comunidade. “A polis é a cidade-estado grega;
portanto, não qualquer lugar construído como cidade, mas a comunidade
de cidadão” (OLIVEIRA, 2003, p. 79). No Livro I da Ética a Nicômaco (1094
22 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

b8 – b10), Aristóteles enfatiza que, mesmo que haja um único bem para
cada indivíduo, obter o bem pertencente a um Estado é alcançar um bem
maior e mais completo. Afinal, na perspectiva aristotélica, o bem que um
povo e os Estados obtêm é mais belo e próximo daquilo que é considerado
divino.
O ético, em Aristóteles, só é inteligível a partir do ethos, do costume.
A determinação do que é ético se faz não por normas e valores em si, mas
pelos modos de viver institucionalizados na sociedade, por meio dos
costumes. O indivíduo torna-se justo, corajoso e prudente à medida que
adquire o hábito ao que, em consenso na cidade, é justo. A ação boa e justa
não é, em Aristóteles, a ação moral do indivíduo isolado. Na verdade, é
aquela que se constitui por meio de relações intersubjetivas com outros
homens, algo essencial, como veremos, no comunitarismo de Taylor.
Afinal, como diz Aristóteles (1253a2) no Livro Primeiro d’A política, o
homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em
sociedade. É no ethos que o indivíduo encontra o que ele deve fazer. A lei
pressupõe o costume, mesmo que não exista como lei escrita. O indivíduo,
em Aristóteles, não é uma instância isolada, mas se encontra nas
instituições éticas da cidade. Para Aristóteles, como exemplifica Manfredo
Oliveira (2003), a polis é a obra fundamental do homem, cuja finalidade é
a vida boa. A essência do homem que é, em primeiro lugar, potência,
atualiza-se enquanto comunidade. A ação boa não é, em Aristóteles, a ação
moral do indivíduo isolado da modernidade, mas sim aquela "[...] situada
num feixe de relações” (OLIVEIRA, 2003, p. 57). O homem, por isso, só
atinge seu ser enquanto comunidade política, algo fundamental para a
proposta teórica de Taylor.
No comunitarismo, princípios de justiça que regem a sociedade
resultam, portanto, de um dado contexto, fundamentando as fontes de
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 23

sentido e de identidade dos sujeitos. Por isso, como defende Michael Sandel
(2020, p. 300):

[...] somos seres humanos mais completos quando contribuímos para o bem
comum e conquistamos a estima de nossos companheiros cidadãos pelas
contribuições que fazemos. De acordo com essa tradição, a necessidade
humana fundamental é ser necessário para as pessoas com quem
compartilhamos uma vida em comum.

Taylor explicita que a vida é uma narrativa a ser percorrida, tendo


como pressuposto o ethos e os valores de uma comunidade que formam
nossas projeções e o sentido da vida. Isto, em Taylor, não é uma mera
escolha pessoal, e sim uma necessidade vital que existe em uma instância
anterior ao indivíduo enquanto tal, uma vez que o início é a comunidade,
e não o self isolado e supostamente originário. Para Quentin Skinner
(1999), por exemplo, o conceito predominante de liberdade no ocidente,
que diz respeito à pura ideia de liberdade individual, é apenas uma
definição de liberdade frente a tantas outras. Skinner concentra-se,
sobretudo, no ideal republicano de liberdade, enquanto um ideal de bem
comum, que se perdeu ao longo da história do ocidente.
Em Taylor, a liberdade, ao contrário do liberalismo, teria a ver,
sobretudo, com o ideal do bem comum, predominando uma ideia de
liberdade social e comunitária. Nesse contexto, o filósofo canadense
destaca a crítica hegeliana ao formalismo kantiano, que deslocou o sujeito
da comunidade, da história e da cultura, como uma importante chave de
leitura para entendermos o individualismo moderno, que separou o
sujeito de sua comunidade de sentido e pertencimento, gerando demandas
de reconhecimento.

O individualismo começa, como afirma Hegel, quando os homens deixam de


se identificar com a vida da comunidade, quando eles “refletem”, ou seja,
24 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

quando se voltam para si mesmos, e se veem de modo mais importante como


indivíduos detentores de objetivos individuais (TAYLOR, 2005, p.117).

Na modernidade, a nova instância da vida ética é a autodeterminação


do homem enquanto indivíduo, havendo a emergência da filosofia do
sujeito, da subjetividade e da consciência, que se caracterizam pela noção
de um eu autônomo e independente do contexto comunitário. Ou seja, ser
livre, na modernidade, é ser independente do contexto, pois o sujeito é
aquele que se autodetermina. Nesse sentido, podemos falar de uma
passagem da ontologia para a filosofia moderna da subjetividade e do
sujeito, como uma categoria fundamentalmente moderna. Como esclarece
Manfredo Oliveira (2003, p. 85):

A passagem do pensamento clássico, grego e medieval, para o pensamento


moderno significa a passagem de um horizonte cosmocêntrico-objetal para
um horizonte antropocêntrico-subjetal, e é a partir desta passagem que
poderemos compreender as transformações de fundo na reflexão política
moderna.

Benjamin Constant (2015) denominou a autodeterminação do


indivíduo de liberdade dos modernos, em contraposição à liberdade dos
antigos, ou seja, a da comunidade. O sujeito, na modernidade, emancipa-
se da história, do contexto, da comunidade, como uma instância original.
Já entre os antigos, as pessoas eram membros de uma comunidade sem
precisar sequer dizê-lo. Não era algo que necessitasse ser justificado. “O
objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos
de uma mesma pátria” (CONSTANT, 2015, p. 86). Já o primado do
indivíduo sobre a comunidade social e política é o axioma dos tempos
modernos, que encontra suas fontes morais apenas dentro de si.
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 25

Trata-se do self desprendido, capaz de objetificar não só o mundo circundante


como também suas próprias emoções e inclinações. (...) A razão já não é
definida em termos de uma visão de ordem no cosmo, mas sim de forma
processual, em termos de eficácia instrumental, de maximização do valor
buscado, ou de autocoerência. (TAYLOR, 2013, p.37).

O desprendimento da ordem cósmica significou que o agente


humano não deveria mais ser entendido como elemento de uma ordem
significativa maior. Seus propósitos paradigmáticos devem ser
descobertos dentro dele. Isso gera um quadro de um indivíduo soberano
que, por sua vez, não deve mais obediência à autoridade alguma, a não ser
a si mesmo. Para os antigos, ao contrário dos modernos, a distinção entre
realidade material e espiritual não tem sentido (CARPEAUX, 2012). Não
por acaso, segundo Berger (2017b), a consciência moderna implica um
movimento do destino à escolha. Ou, conforme Taylor (2011b), uma
passagem da honra para a dignidade moderna.
Afinal, o homem pré-moderno viveu na maior parte do tempo em um
mundo do destino. Para Kant, porém, o esclarecimento representou a
saída do homem de sua menoridade. Tal saída é definida como a
incapacidade do homem de fazer uso de seu próprio entendimento. O uso
público da razão deve ser sempre livre. “Sapere aude! Tem coragem de
fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento”
(KANT, 1985, p. 100). A condição de estar sob as ordens de uma
autoridade, na modernidade, é algo que tem de ser criado, um artifício,
como nas teorias políticas do contrato social, que explicitam justamente a
emergência do eu moderno, do sujeito e da subjetividade, onde a política
deixa de ser um modo de vida, tal qual nos antigos gregos, para ser um
contrato a partir de indivíduos isolados, portadores de toda a originalidade
do ser.
26 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

1.2 A Emergência da Subjetividade Moderna e a Originalidade do Eu

As teorias políticas modernas situam-se, ao contrário dos antigos


gregos, no âmbito do indivíduo, uma vez que a questão central para elas
será a da “associação de indivíduos isolados” (OLIVEIRA, 2013, p. 20), tal
qual há em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, ou seja, os chamados
contratualistas. A tradição liberal de Locke, por exemplo, caracteriza-se
pelo princípio da autodeterminação individual e do direito natural à
propriedade privada, bem como no direito de resistência ao Estado, caso
ele descumpra os compromissos estabelecidos pelos indivíduos no ato da
construção do pacto social.

O homem possui direitos naturais que existam antes da constituição de


vínculos sociais ou civis, e, em face desses direitos, a função própria e o
objetivo essencial do Estado consistem em dar-lhes um estatuto na ordem
política, conceder-lhes sua proteção e sua caução. No número desses direitos,
Locke inclui muito particularmente a liberdade individual e o direito de
propriedade (CASSIRER, 1997, p. 334).

Aqui, o indivíduo é pensado independentemente de sua inserção no


todo. Nas palavras de Locke, “[...] cada homem tem uma propriedade em
sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo”
(LOCKE, 1978, p. 45). Nesse sentido, os direitos humanos possuem uma
maior relevância em relação ao ideal da soberania popular, pois há o
destaque da autonomia privada em contraposição à pública. Locke afirma
que cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa, uma vez que
a mesma, através do trabalho, fundamenta também o indivíduo: “O trabalho
que era meu, retirando-os do estado comum em que se encontravam fixou
a minha propriedade sobre eles” (LOCKE, 1978, p. 46).
Kant, por sua vez, também no espírito moderno, fala da autonomia
do homem enquanto uma originalidade do sujeito. Ele mostrará que a
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 27

dignidade do homem se relaciona com sua capacidade de autodeterminar-


se. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant pretende saber
como a razão tira seu ensino a priori, independente dos elementos
empíricos ou das contingências. Desta forma, a lei moral deve ser buscada
numa filosofia pura.
Em Kant, uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não
no propósito que ela quer atingir, mas na máxima que a determina. Não
depende da realidade do objeto, mas do princípio do querer. A
consequência disso é que devo proceder sempre de maneira que eu possa
querer também que minha máxima se torne lei universal. Este é o
chamado imperativo categórico, determinante para a ação moral kantiana.

Ora, a lei moral, na sua pureza, a autenticidade (e é exatamente isto que mais
importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa
filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e
sem ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que
mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de
filosofia (KANT, 1974b, p. 199).

Uma ação, por isso, é objetivamente necessária por si mesma, sem


relação com a finalidade, consequência, utilidade ou contingência. O
imperativo categórico diz respeito à forma do entendimento, da razão em
si mesma, das regras universais do pensar, sem distinção dos objetos.
Assim, Kant inaugura um modelo de ética chamado de formalista, em
contraposição às éticas hegelianas e aristotélicas do bem e do contexto,
como encontramos em Taylor.
O imperativo categórico também pode ser chamado de imperativo da
moralidade. Ele nos prescreve uma certa conduta independente do fim
(teleologia), das consequências, do ethos, da tradição e dos costumes de
um povo. O fundamental para o imperativo categórico são leis objetivas,
28 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

válidas universalmente, que transcendam os contextos, pois partem de


uma concepção de sujeito a-histórica, um eu transcendental
autodeterminante. O eu moderno diferencia-se da perspectiva dos antigos
gregos, uma vez que a comunidade era o lugar essencial da formação da
subjetividade. Na modernidade, o sujeito emancipa-se dos contextos,
como uma categoria originária, que possui um valor em si mesmo.

[...] o sujeito da mediação transcendental é o Eu penso da tradição filosófica e


sua egoicidade transcendental ou em sua subjetividade absoluta enquanto
mediação necessária que se conhece como tal. [...] Portanto, pela mediação
transcendental, o sujeito se mostra como instituidor de um logos no qual ele
dá razão de si mesmo (VAZ, 2006, p. 149-150).

Em Kant (1974b), o homem possuiria um fim em si mesmo, como ser


racional. Ele não é um meio para esta ou aquela vontade. Os seres
irracionais, ao contrário, são meios e os chamamos de coisas; já o ser
racional é chamado de pessoa, porque possui um fim em si mesmo, uma
dignidade própria. O princípio do homem como fim em si mesmo não
deriva da experiência, mas sim de uma lei universal. O imperativo
categórico kantiano apresenta a mais rigorosa reivindicação de dignidade
humana, de intocabilidade da pessoa, marcando, assim, uma das
principais concepções modernas de indivíduo.

Ora, é precisamente isso que constitui, para Kant, a dignidade da pessoa


humana: experimento algo absoluto e, enquanto alguém que tem tal
experiência, experimento-me como absoluto, como possuidor de uma
dignidade intocável, incondicionada. O sentido da existência humana emerge,
a partir daqui, como autofinalidade (OLIVEIRA, 2003, p. 154).

Assim, a vontade não está apenas submetida à lei, mas ela legisla a si
mesma. A vontade obedece à lei de que ela mesma é autora. Este é o mais
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 29

profundo sentido de autonomia kantiana e liberdade do sujeito, que se


relaciona com um ser que é dado a si mesmo, um ser que não é deduzível
de nenhum outro fundamento, exceto o de um poder-para-si. Há a
emergência de um poder de autodeterminação e autonomia do sujeito a-
histórico. A liberdade é, por isso, a capacidade para a auto-legislação, que
independe da polis, da comunidade ou de qualquer outra instância. O
sujeito é portador de um valor enquanto tal, de uma intocabilidade de seu
ser.
Posto isso, em Kant, a boa vontade não é boa por aquilo que promove
ou realiza, ou seja, pela finalidade que pretende, e sim pelo querer, pois ela
é considerada boa em si mesma. A razão não deve produzir uma vontade
boa como meio, mas uma vontade boa em si. Desta forma, o conceito de
dever contém em si o de boa vontade. Portanto, ações que o mundo nunca
viu podem ser ordenadas pela razão. A moral não pode ser extraída da
experiência, pois seu objeto é o ideal, e não o real, o que deve ser, e não o
que é. O dever independe da experiência, pois ele reside na ideia de uma
razão que determina a vontade. Tal lei tem que valer para todos os seres
racionais, absoluta e necessariamente, não estando no âmbito das
contingências, do condicionado, e sim do incondicionado.
Os exemplos, diz Kant, podem até encorajar alguém a seguir algo,
mas nunca fundamentam aquilo que está na razão a priori. Kant diferencia
ações feitas por dever e conforme ao dever. Sobre esta última, Kant diz
que são ações realizadas a partir de inclinações imediatas. Mas ele enfatiza
que os homens devem fazer o correto, não por inclinações, mas pelo dever.
Já fazer o bem por prazer é agir conforme ao dever, mas não por dever.
Assim, quem faz o bem, mesmo sem sentir-se inclinado, possui um valor
moral maior do que aquele que faz por temperamento. O fundamental
para o imperativo categórico são leis objetivas, incondicionais e válidas
universalmente.
30 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Kant, como vimos, diz que o homem possui um fim em si mesmo. Ele
não é um meio para esta ou aquela vontade. Os seres irracionais, ao
contrário, são meios e os chamamos de coisas; já o ser racional é chamado
de pessoa, porque possui um fim em si mesmo. Fazer falsas promessas, por
exemplo, é ter o homem como meio, e não como fim. O princípio do homem
como fim em si mesmo não deriva da experiência, mas sim de uma lei
universal. Por conseguinte, a vontade não está apenas submetida à lei, mas
ela legisla a si mesma. Isto se relaciona com a ideia do Reino dos fins. Neste,
há uma ligação sistemática de vários seres por meio de leis comuns e
objetivas, onde o ser racional não é meio, mas um fim em si mesmo. No
Reino dos fins, há a ideia da dignidade, onde o ser racional é um fim em si
mesmo. Desta forma, o conceito de autonomia é destacado por Kant, à
medida que os homens devem obedecer às leis de que eles mesmos são os
autores: autor de sua própria lei, o homem não tem um preço, um valor
relativo, mas uma dignidade, um valor absoluto enquanto tal.
Oposto à ideia da autonomia é o conceito de heteronomia. Neste, a
vontade busca leis sem que sejam máximas universais. Na heteronomia,
não é a vontade que se dá a lei a si mesmo, e sim o objeto que dá a lei à
vontade pela sua relação com ela, baseado apenas em inclinações, no
condicionado. Na heteronomia, a vontade não se dá a lei a si mesma; ela
seria determinada por um impulso estranho. Todas as leis que se
relacionam com um objeto têm como resultado heteronomia, referindo-se
ao mundo sensível, ao contrário da autonomia, ou seja, do sujeito que
obedece às leis à medida que ele próprio é o seu autor. A ação livre do
sujeito enquanto ser autônomo consiste justamente no instante em que ele
age independentemente da natureza, do empírico e do mundo sensível.
Assim, Kant, substituindo o antigo princípio material aristotélico, deu
um novo significado ao termo autonomia, elaborando uma filosofia moral
pura, depurada de todo o empírico, em substituição ao antigo princípio
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 31

material da eudaimonia de Aristóteles. A originalidade, agora, é a do sujeito


enquanto um ser portador de uma dignidade própria, pois ele é autônomo,
enquanto um ser originário, ao contrário dos antigos gregos em que o
indivíduo só era indivíduo com os outros da polis, dentro de uma ordem
cósmica maior do que a do sujeito isolado. Kant representa, por isso, um
dos pilares fundamentais da concepção autônoma e moderna de sujeito.
Na Crítica da Razão Pura, Kant também, no espírito moderno, afirma
que a representação das coisas como nos são dadas deve regular-se como
fenômenos, e não como coisas em si. Só podemos conhecer aquilo que o
“sujeito pensante toma de si mesmo” (KANT, 1974a, p. 14). Em Kant, não
é possível, no conhecimento, acrescentar aos objetos nada a não ser o que
o sujeito pensante toma de si mesmo, por meio da da intuição sensível.
Novamente, aqui, o sujeito é a instância essencial portadora de todo o
sentido ou significado que se articula nas categorias.

Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto


com objetos, mas com o nosso modo de conhecimento de objetos, na medida
em que ele deva ser possível a priori. Um sistema de tais conceitos denominar-
se-ia filosofia transcendental (KANT, 1974a, p. 33).

Todavia, Kant exemplifica que, se não é possível conhecermos os


objetos como coisas em si mesmas, podemos, contudo, pensá-los, o que
será apontado por Hegel e seus seguidores, como Taylor, tal qual uma
dicotomia entre sujeito e objeto, característica de grande parte da filosofia
moderna.

Isso define uma nova compreensão de sujeito e objeto, onde o sujeito está, por
assim dizer, em oposição ao objeto. Na verdade, poderíamos dizer que as
próprias noções de sujeito e objeto em seu sentido moderno passaram a existir
dentro dessa nova localização. O sentido moderno é aquele em que sujeito e
objeto são entidades separáveis. (TAYLOR, 2013, p. 245).
32 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Trata-se, em Kant, tal qual contextualiza Manfredo Oliveira (2007),


de uma revolução copernicana do pensamento ou uma revolução reflexiva,
uma vez que se efetiva a passagem de uma teoria do ente a uma teoria do
conhecimento, de uma ontologia para uma epistemologia transcendental,
cuja tarefa básica é conhecer o que pode aparecer ao espírito humano a
partir do quadro categorial do qual ele dispõe. As questões essenciais da
metafísica (o problema do fundamento, dos princípios e das categorias)
vão retornar em um quadro teórico novo, ou seja, numa ética
epistemológica, à medida que estas entidades são reinterpretadas como
elementos do próprio equipamento cognitivo humano. Em Kant, a
experiência do mundo é, em última instância, uma criação do sujeito
cognoscente, algo novo no pensamento filosófico, que difere
essencialmente da tradição dos antigos gregos.
A virada radicalmente epistêmica de toda a filosofia moderna, como
no esquema transcendental de Kant, deslocou o sujeito para o centro de
toda a empresa teórica e, desse modo, também da filosofia. A ideia do
indivíduo moderno é, segundo Taylor (2011b), um dos pilares da
civilização moderna, como o direito de escolher, por si mesmo, o destino
da vida, numa saída das antigas ordens cosmológicas, em que o sujeito era
parte de um grande todo, passando, agora, a ter uma autenticidade
própria. “A liberdade moderna surgiu pelo descrédito de tais ordens”
(TAYLOR, 2011b, p. 12). O ideal moral por trás da autorrealização é o de
ser fiel a si mesmo, em um entendimento especificamente moderno do
termo.
Heidegger, um dos autores citados por Taylor em sua crítica à
filosofia do sujeito, critica o privilégio absoluto atribuído à subjetividade
transcendental, portadora exclusiva da função de constituição. Nesse
sentido, a influência de Heidegger no pensador canadense é inegável
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 33

(GARCÍA, 2020). Ele fala de ser, mas não no sentido objetivo, ou seja, como
polo contraposto à subjetividade, mas como aquela dimensão que abrange
ambos. Em Heidegger, é proposta a tematização do ser no sentido dessa
dimensão abrangente e originária, ao contrário da modernidade que
separou sujeito e objeto. Aqui se mostra, como diz Manfredo Oliveira
(2012, p. 71), um elemento decisivo para a compreensão da proposta da
filosofia do ser de Heidegger: “[...] sua confrontação com o pensamento
moderno”. No que concerne a tal elemento, tudo é constituído somente a
partir de um sujeito que configura, manipula e domina o mundo por meio
da técnica. Heidegger chamou isso de metafisica da subjetividade.
Diante disso, Heidegger fala do esquecimento, pela filosofia, do ser,
em sua originalidade. Assim, seria urgente a retomada da pergunta pelo
sentido do ser, que foi silenciada pela metafísica, à medida que ela sempre
se dedicou às condições do ser dos entes, em sua totalidade, e não aos
sentidos do ser enquanto tal: razão pela qual sempre se manteve em um
patamar meramente ôntico, ignorando a diferença ontológica, mais
originária, entre ente e ser. “É nessa acepção que Heidegger interpreta a
metafísica como história do Ser ou, antes, como história do esquecimento
da verdade do Ser” (GIACOIA, 2013, p. 93).

1.3 A crítica heideggeriana à filosofia do sujeito enquanto metafísica da


subjetividade

Heidegger foi o grande pensador que, no século XX, articulou a


filosofia como “filosofia do Ser” e por meio de suas intuições deu um passo
decisivo para a rearticulação da Nova Metafísica, no sentido específico que
aqui se dá, diferindo do uso habitual que identifica metafísica e ontologia.
Em Heidegger, não há uma simples destruição da metafísica, mas uma
tentativa de se apropriar mais originariamente das possibilidades
implícitas na própria pergunta metafísica. Heidegger foi conduzido à
filosofia pela pergunta que constitui a metafísica clássica em sua
34 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

formulação aristotélica: o que é o ente enquanto ente? Essa indagação é,


para Aristóteles, a tarefa própria da “ciência primeira”, posteriormente
denominada de “metafísica”. Essa pergunta, para Heidegger, como
esclarece Manfredo Oliveira (2012, p.56), “[...] manifesta que a metafísica
se move em todos os lugares no espaço da verdade do ser, mas o ser
mesmo permanece o fundamento desconhecido”.
A tese de Heidegger, que influenciou diretamente Taylor, é a de que
toda a metafísica ocidental é uma “onto-teo-logia”, isto é, uma teoria do
ente, que busca o ser do ente; o ser, em seu sentido originário, todavia,
ficou sempre no horizonte e nunca foi tematizado. Em vez disso, apela-se
para um fundamento do ente: o ente supremo que, na modernidade, passa
a ser o sujeito. Isso constitui, em Heidegger, o déficit básico da metafísica:
o esquecimento do ser.

Na entidade do ente pensa a metafísica o ser, sem, contudo, poder considerar,


pela sua maneira de pensar, a verdade do ser. A metafísica se move, em toda
parte, no âmbito da verdade do ser que lhe permanece o fundamento
desconhecido e infundado (HEIDEGGER, 1973a, p. 245).

Daí, podemos dizer que a metafísica tem dois momentos: a metafísica


como teoria dos entes, referente ao ser objetivo, que se pergunta pelo que
há de comum entre os entes, suas características fundamentais (que mais
adequadamente dever-se-ia chamar de ontologia), ou seja, com quais
categorias podemos pensá-los; e, em última instância, uma teoria do ser
propriamente dita, intuída por Heidegger, mas não articulada por ele. Para
Heidegger, era central a diferença entre ser e ente, da qual ele deriva a
objeção contra a metafísica, de que ela teria esquecido o ser (esquecimento
do ser pela metafísica), ao pensar o ser apenas como o “ser-dos-entes” e
como ente, mas não pensar o próprio ser enquanto dimensão originária.
“Pelo fato de a metafísica interrogar o ente, enquanto ente, permanece ela
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 35

junto ao ente e não se volta para o ser enquanto ser” (HEIDEGGER, 1973a,
p.253).
Heidegger critica o privilégio absoluto atribuído à subjetividade
transcendental, portadora exclusiva da função de constituição. Ele fala de
ser, mas não no sentido objetivo, ou seja, como polo contraposto à
subjetividade, mas como aquela dimensão que abrange a ambos, algo
igualmente que será posto por Taylor. Em Heidegger, é proposta a
tematização do ser no sentido dessa dimensão abrangente e originária.
Nesse sentido, há uma passagem bastante esclarecedora de Heidegger
acerca da relação entre homem, ente e ser, essencial para nossa reflexão:

O homem é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do


ser, como a pedra, a árvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda: inserido
no ser. Mas o elemento distintivo do homem consiste no fato de que ele,
enquanto ser pensante aberto para o ser, está posto em face dele, permanece
relacionado com o ser e assim lhe corresponde. O homem é propriamente
esta relação de correspondência, e é somente isto. ‘Somente’ não significa
limitação, mas uma plenitude. No homem impera um pertencer ao ser; este
pertencer escuta ao ser, porque a ele está entregue como propriedade.
(HEIDEGGER, 1973b, p. 380).

A filosofia do sujeito trabalha com uma noção de metafísica muito


restrita, conferindo prioridade absoluta àquilo que o sujeito determina a
partir apenas de si mesmo, como vimos em Kant, afastando-se da
perspectiva de Heidegger, que tematiza o ser em seu sentido originário,
como uma instância que engloba sujeito e objeto.

Kant apreende mais uma vez esse eu como sujeito e, portanto, num sentido
ontológico inadequado. (...) Determinar ontologicamente o eu como sujeito
significa já sempre supor o eu como algo simplesmente dado. O ser do eu é
compreendido como realidade da res cogitans. (HEIDEGGER, 2015, p.404).
36 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Segundo Heidegger (2015, p. 405), o dizer “eu” significa o ente que


eu sempre sou enquanto “eu-sou-e-estou-no-mundo”. Kant, argumenta
Heidegger, não viu o fenômeno do mundo. O eu foi forçado a ser um
sujeito isolado, crítica também realizada por Taylor, como ainda veremos.
Em Kant, não podemos agir segundo a ordem cósmica ou mesmo a ordem
dos fins na natureza humana. Tais ordens não poderiam determinar
nossos propósitos normativos, haja vista que abriríamos mão de envolver
nossa responsabilidade de gerar a lei a partir de nós mesmos.
À luz do princípio moderno da autonomia do eu e da vontade, Kant
deu um passo decisivo para o que hoje chamamos de ética pós-
convencional ou éticas do justo, como há em Jürgen Habermas, Karl-Otto
Apel, John Rawls e Rainer Forst. As éticas kantianas são, portanto, formais
e deontológicas, pois transcendem o contexto, em contraposição às éticas
do bem, que se fundamentam no costume e no ethos de uma comunidade,
tal qual o comunitarismo de Taylor. Já a ideia kantiana de autonomia
vincula o discernimento moral do que é bom para todos com a perspectiva
da liberdade que se exprime na obediência apenas a leis que damos a nós
mesmos.
Em suma, as éticas kantianas defendem a necessidade de critérios de
avaliação moral que independam dos contextos específicos, tendo como
referência o imperativo categórico; já os comunitaristas, como Taylor,
consideram inviável a formulação de critérios isentos da marca da
sociedade, comunidade e tradição. Nas éticas kantianas, não é essencial o
ethos ou o costume para o agir dos homens, como no comunitarismo de
Taylor, e sim a justificação da normatividade de nossas ações por meio do
imperativo categórico ou em suas versões intersubjetivamente articuladas,
que consistem numa ética formal, não consequencialista e sem conteúdo.
No entanto, a formalização kantiana da ética foi entendida por Hegel,
uma referência fundamental de Taylor, como um formalismo vazio, bem
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 37

como uma redução da liberdade à esfera da autonomia subjetiva e


interioridade. “A filosofia kantiana confessa abertamente o seu princípio
da subjetividade e do pensamento formal” (HEGEL, 2009, p. 35). Hegel,
como veremos, tentará um outro caminho entre, de um lado, a
comunidade grega, o cristianismo e o romantismo e, de outro, o
individualismo moderno autoconsciente, por meio de uma síntese dialética
entre ambas as instâncias, constituindo uma grande novidade no
pensamento filosófico. Por isso, como ressalta Taylor,

Hegel é importante hoje porque, de maneira recorrente, sentimos a


necessidade de uma crítica das ilusões e distorções de perspectiva resultantes
das concepções atomistas, utilitaristas e instrumentais acerca do homem e da
natureza. (...) É pelo fato de que Hegel está constantemente empenhado em
fazer precisamente isso, e com uma profundidade e uma penetração de
pensamento excepcionais, que ele tem algo a nos dizer (TAYLOR, 2005, p. 95).

Em seus estudos sobre Hegel, como defende Rainer Forst (2010),


Taylor interpretou a crítica hegeliana ao conceito moderno de liberdade
tal qual uma crítica ao conceito de sujeito vazio, não situado no contexto
formador das identidades. A essa visão estreita de subjetividade, Taylor
contrapôs, inspirado em Hegel, uma versão alternativa de identidade
linguística, histórica, cultural e comunicativamente situada, os seja, uma
identidade que é parte abrangente de uma comunidade que nos forma
enquanto sujeitos.
Como explica Marcos Nobre (2018), Hegel entendia que o exercício
filosófico tinha por alvo a produção do diagnóstico de época mais
abrangente possível, ou seja, a sistematização do conhecimento disponível
em vista de uma conceitualização da época histórica da modernidade. Em
seu diagnóstico de época, como destaca também Axel Honneth (2007),
Hegel viu os perigos de um individualismo crescente, assim como uma
38 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

limitação às liberdades constituídas apenas juridicamente, sem conexão


com o reconhecimento intersubjetivo, a eticidade e a solidariedade social.
Hegel possuía conhecimento suficiente das relações de seu tempo
para ver nas estruturas da “sociedade civil tendências imanentes à
desintegração social” (HONNETH, 2007, p. 139). Hegel mantém-se fiel ao
projeto moderno de autonomia e de esclarecimento, ao mesmo tempo em
que tem clara a insuficiência desse paradigma nos termos em que foi
formulado pelos seus mais destacados expoentes, como Descartes e Kant,
que articularam uma subjetividade descontextualizada, como se o eu puro
fosse o ponto de partida e uma instância essencialmente originária.
Já a concepção hegeliana de filosofia, tal qual explica Lima Vaz
(2006), trabalha a síntese entre o racionalismo, romantismo, a herança
clássica e o cristianismo, sem negar, todavia, o mundo moderno. Em
vocabulário hegeliano, podemos falar sempre de um suprassumir, uma
vez que há, em Hegel (2007, p. 96), um “negar e um conservar em sua
filosofia”. Nele, o homem não é apenas racional, mas igualmente uma
criatura sensível. O ser humano não age apenas com respeito absoluto pela
lei moral, como em Kant, mas, sobretudo, pelas inclinações da
sensibilidade. Ela relaciona-se, por exemplo, com a religião, como veremos
com Taylor, tal qual uma esfera de reconhecimento.
Os homens buscam alcançar a liberdade da autodeterminação moral,
à medida que a razão entra em acordo com a sensibilidade, as paixões e os
desejos, superando qualquer tipo de dicotomia. “[...] o problema não pode
ser resolvido com uma vitória de um lado contra o outro, com uma simples
anulação da separação num espírito de unidade, mas os dois lados devem,
de algum modo, ser levados à unidade” (TAYLOR, 2014, p. 91). Em
realidade, Hegel postula um tipo de modernidade dialética que leve em
consideração tanto a liberdade dos antigos (a liberdade da comunidade),
como a dos modernos (a liberdade individual). Paul Ricoeur, nesse sentido,
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 39

diz que Hegel garante o vínculo entre a autorreflexão moderna, mas com
uma “orientação rumo ao outro” (RICOEUR, 2006, p. 187). Nas palavras
de Hegel, o sujeito não é apenas determinado por ele mesmo, mas sim um
“sujeito singular em relação com outros” (HEGEL, 2018, p. 31).
Como sujeito isolado, em sua liberdade reflexiva, o homem se
mantém separado do mundo exterior. Na ótica hegeliana, a aspiração à
liberdade deixa de ser um elemento da experiência puramente subjetiva, à
medida que o sujeito se encontra com os outros, para além de uma
liberdade meramente reflexiva (Kant) ou negativa (Hobbes). Em Hegel, de
acordo com Honneth (2015), trata-se de uma liberdade social, de caráter
intersubjetivo.
Como sabemos, nos antigos gregos, os homens identificavam-se com
sua vida pública e experiências comuns. Eles viviam inteiramente sua
Sittlichkeit (eticidade). Entretanto, na cidade grega vivia-se uma vida
paroquial, uma vez que a vida se resumia àquela da comunidade e de seus
valores. Ainda com Sócrates, surge o desafio de um homem que não
concorda em basear sua vida no paroquial, no meramente dado, mas exige
uma fundamentação na razão universal. “O próprio Sócrates expressa
uma profunda contradição, uma vez que aceita a ideia da Sittlichkeit, das
leis às quais se deve ser fiel” (TAYLOR, 2005, p. 118). Ele, contudo, não
pode conviver com as leis vigentes em Atenas, sendo condenado.
Surge um novo tipo de homem, que não pode ser identificado com a
vida pública, mas sim, primeiramente, com sua própria compreensão de
ser. As normas que esse homem julga agora obrigatórias não estão
concretizadas no real; elas são ideias que vão além do real. O indivíduo
reflexivo está no âmbito da Moralität que, embora Sócrates seja uma
primeira expressão disso, somente a modernidade criou condições
históricas, sociais e filosóficas para seu pleno amadurecimento. Em Hegel,
os homens recuperariam uma nova Sittlichkeit, identificando-se com uma
40 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

vida mais ampla, algo determinante para Taylor, que pensa sempre o self
a partir da comunidade que o forma. Hegel, nesse sentido, fala da
importância de uma “preservação da vida ética” (HEGEL, 2012, p. 84).
Afinal, tal qual esclarece Honneth, a leitura de Platão e Aristóteles
familiarizou Hegel com uma filosofia que confere à intersubjetividade “[...]
uma importância muito maior do que nas tentativas similares de seu
tempo” (HONNETH, 2003, p. 37).
Faz-se necessária, portanto, uma explicitação da análise hegeliana da
modernidade, haja vista a forte influência de Hegel no pensamento de
Taylor. Como defende o filósofo canadense, “Hegel contribui para a
formação dos conceitos e dos modos de pensar que são indispensáveis se
desejamos compreender determinados problemas e dilemas modernos”
(TAYLOR, 2005, p. 7). Embora a influência de Hegel seja conhecida na
obra de Taylor, ela não é trabalhada ou articulada nos diversos estudos
sobre Taylor. O autor realiza uma hermenêutica da filosofia hegeliana,
tornando-se responsável por uma das principais recepções do pensamento
hegeliano na comunidade filosófica de língua inglesa. A influência de Hegel
na obra de Taylor permanece como uma dimensão pressuposta, mas
pouco explorada (CASTRO, 2018). O propósito de Taylor não está em
defender puramente o sistema hegeliano. Ele utiliza “[...] o pensamento
de Hegel, como motor para a compreensão da modernidade e de seus
vários dilemas, já expressos na obra hegeliana” (CASTRO, 2018, p. 19). No
próximo tópico, veremos o porquê de a influência de Hegel em Taylor ser
determinante nos temas da identidade, do reconhecimento e da religião.

1.4 Taylor e a herança hegeliana.

1.4.1 Hegel e a Crítica Dialética da Modernidade

Aliás, não é difícil ver que nosso tempo é sim tempo de nascimento e trânsito
para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 41

representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se


entregar à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em
repouso, mas sempre tomado por um movimento para frente. [...] Esse
desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido
pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo (HEGEL,
2007, p.31).

O conjunto de obrigações segundo as quais temos de promover e


sustentar uma sociedade é o que Hegel chama de Sittlichkeit (a eticidade),
referindo-se às obrigações morais que temos em relação a uma
comunidade a qual pertencemos. A característica crucial da Sittlichkeit é
nos impelir a realizar aquilo que já é, no sentido de um pertencimento a
uma comunidade como algo fundamental para a constituição da
identidade. “Cada indivíduo também é o filho de um povo em uma fase de
seu desenvolvimento. A pessoa não pode passar por cima do espírito de
seu povo” (HEGEL, 2012, p. 83). Por conseguinte, Hegel argumenta que,
na eticidade, o indivíduo possui um “modo eterno” (HEGEL, 2018, p. 62),
justamente por pertencer a uma ordem mais ampla do que a do mero
individualismo.
Na Sittlichkeit, não há lacuna entre o que deve ser e o que é, entre
Sollen e Sein. Em contraste com a Sittlichkeit, Hegel fala da Moralität.
Nesta, em sentido kantiano, temos a obrigação de realizar aquilo que não
existe. O que deve ser contrasta com o que é. Na Moralität, a obrigação se
impõe a mim, não devido ao fato de que faço parte de uma vida
comunitária mais ampla, mas à medida que sou uma vontade autônoma
individual. A crítica de Hegel a Kant pode ser formulada da seguinte
maneira: Kant identifica a obrigação ética com a Moralität, não indo além
disso, pois apresentaria uma noção abstrata e formal da obrigação moral.
Vale lembrar que Moralität é o termo específico que Hegel utiliza em sua
crítica a Kant que, por sua vez, usou também a palavra Sittlichkeit em suas
42 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

obras a respeito da ética. Já em Hegel a Sittlichkeit, ao contrário da


perspectiva kantiana, nos fornece a obrigação do agir moral em sintonia
com a comunidade, de modo que a lacuna entre o dever ser e o ser é
preenchida. Aqui, Hegel segue Aristóteles e a Sittlichkeit dos antigos
gregos.
Como contextualiza Honneth (2007), Hegel não abriu mão das ideias
aristotélicas, segundo as quais os princípios normativos não devem estar
ancorados em preceitos externos voltados para o comportamento ou mera
leis de coerção, “[...] mas precisam estar atrelados ao exercício prático
presente nos padrões habituais de ação e nos costumes” (HONNETH,
2007, p. 54). Hegel reconhecia que a Sittlichkeit estava perdida para
sempre em sua forma original. Porém, ele aspirava vê-la nascer sob uma
nova forma, por meio de uma síntese entre a chamada liberdade dos
antigos (liberdade da comunidade) e a liberdade dos modernos (liberdade
individual). Essa integração entre a individualidade e a Sittlichkeit é,
sobretudo, uma maneira de Hegel formular a resposta aos anseios de sua
época, unindo a autonomia moral de Kant e a unidade expressiva e
comunitária da polis grega.

Hegel parece estar convencido de que só podemos falar de estruturas éticas,


de relações éticas da vida, onde são dadas ao menos as seguintes condições:
deve existir um padrão de práticas intersubjetivas que possibilite aos sujeitos
se realizarem na medida em que se relacionam mutuamente, de modo a
expressar reconhecimento por meio de sua consideração moral (HONNETH,
2007, p.112).

Hegel pensa a liberdade não somente como uma instância de


interioridade, mas como um processo de efetivação no mundo social,
histórico e comunitário. Ele reconhece o ganho histórico da modernidade,
do princípio, da individualidade e da autonomia do indivíduo. A liberdade
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 43

realiza-se, a partir da modernidade, no contexto em que a pessoa, em sua


singularidade, é respeitada e levada ao pleno desenvolvimento de si
mesma.
Em Hegel, como explica Habermas (2002b), a expressão
subjetividade comporta quatro conotações: a) individualismo: no mundo
moderno, a singularidade infinitamente particular pode fazer valer suas
pretensões; b) direito de crítica: o princípio do mundo moderno exige que
aquilo que deve ser reconhecido por todos se mostre a cada um como algo
legítimo; c) autonomia da ação: é próprio dos tempos modernos que
queiramos responder pelo que fazemos; d) por fim, a própria filosofia
idealista: Hegel considera como obra dos tempos modernos que a filosofia
apresenta a ideia que sabe a si mesma. A modernidade, por isso, não pode
e não quer tomar dos modelos de outra época seus critérios de orientação:
ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade. “A modernidade vê-
se referida a si mesma, sem a possibilidade de apelar para subterfúgios”
(HABERMAS, 2002b, p. 12).
O ato de uma modernidade sem modelos ter de estabilizar-se como
base nas cisões por ela mesma produzidas causa uma inquietude que Hegel
concebe como a fonte da necessidade da filosofia. Quando a modernidade
desperta para a consciência de si mesma, surge uma necessidade de
autocertificação, que Hegel entende como a necessidade da filosofia. Ele vê
a filosofia diante da tarefa de apreender em pensamento a sua época, que,
para ele, são os tempos modernos. Tal qual demonstra Habermas, Hegel
explica simultaneamente a superioridade do mundo moderno e sua
tendência à crise: ele faz a experiência de si mesmo como o mundo do
progresso e ao mesmo tempo do espírito alienado. “Por isso, a primeira
tentativa de levar a modernidade ao nível do conceito é originalmente uma
crítica da modernidade” (HABERMAS, 2002b, p. 25). Se a modernidade
deve se fundar por seus próprios meios, então Hegel tem de desenvolver
44 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

o conceito crítico de modernidade, partindo de uma dialética imanente ao


próprio princípio do esclarecimento.
Em realidade, Hegel procura superar dialeticamente tanto as
posturas cosmocêntricas dos antigos gregos, como ao mesmo tempo o
individualismo moderno. O suprassumir hegeliano apresenta, em seu
bojo, um duplo significado: ele é, de uma só vez, um negar e um conservar,
assim como um conservar e um negar. É verdade que Hegel louva a
reviravolta antropocêntrica da modernidade, por ela ter feito emergir a
subjetividade como mediação de sentido. Porém, a consideração que a
filosofia moderna faz da subjetividade é parcial, pois não existe
subjetividade pura, enquanto pura identidade consigo mesma, como em
Kant. Nas palavras de Hegel, a filosofia kantiana recai “[...]na finitude e
subjetividade absolutas; toda a tarefa e conteúdo dessa filosofia não é o
conhecimento do absoluto, mas o conhecimento dessa subjetividade ou
uma crítica da faculdade de conhecer” (HEGEL, 2009, p. 36).
Já para Descartes, também um dos pilares da filosofia moderna, o
pensar é um atributo que pertence apenas ao eu indivisível: “[...] nada sou,
pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito,
um entendimento ou uma razão” (DESCARTES, 1973a, p. 102). Daí a
famosa sentença cartesiana: “eu penso, logo existo” (DESCARTES, 1973b,
p. 54). Em sua filosofia, há uma compreensão de que existe uma substância
cuja essência consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de
nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material.
A formação da antropologia cartesiana parece acompanhar os
estágios da formação de uma nova ideia de razão que presidirá ao
desenvolvimento da filosofia moderna até Kant (VAZ, 2006). Ricoeur, por
sua vez, exemplifica que o surgimento da filosofia cartesiana constitui o
acontecimento de pensamento mais importante depois do qual pensamos
de um modo diferente, haja vista que a reflexão sobre si foi elevada a uma
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 45

estatura temática sem precedentes. Depois de Descartes, argumenta


Ricoeur, as filosofias transcendentais fizeram do “[...] eu e de sua
reflexividade própria a pedra angular da filosofia teorética” (RICOEUR,
2006, p.106). E Cassirer (1997) explicita, nesse contexto, como o espírito
cartesiano penetrou em diversas áreas do pensamento, não apenas a
filosofia, tal qual a literatura, a moral a política e a teoria do Estado e da
sociedade
Em Hegel, ao contrário das filosofias da consciência e do eu solipsista,
a subjetividade é, essencialmente, uma relação com o todo que o cerca,
nunca uma instância pura independente do contexto, como o eu cartesiano
e mesmo o sujeito transcendental kantiano. A cultura moderna,
entretanto, desenvolveu, segundo Taylor (2013), concepções de
individualismo que retratam a pessoa humana como um ser que encontra
suas coordenadas dentro apenas de si mesmo, sem nenhuma influência de
outras mediações ou redes de interlocução. Ricoeur (2006), nesse
contexto, como vimos, destaca que a novidade moderna foi
fundamentalmente a consciência reflexiva do eu autônomo.
O crescimento da consciência de si leva o indivíduo, na modernidade,
a distinguir a si mesmo de sua comunidade. Esse senso crescente de
individualidade tem como consequência um conflito de interesses entre
ser humano e sociedade. Porém, ao mesmo tempo, o homem é um ser
social, cultural e histórico, dependente da comunidade intersubjetiva como
uma instância determinante para a construção das identidades. A
liberdade, por exemplo, parece exigir tanto independência individual
como integração numa vida mais ampla. A postura hegeliana, segundo
Taylor, será a síntese entre a autonomia da modernidade, com a ideia da
filosofia antiga de uma pressuposição da ordem cósmica ou primazia do
mundo sobre os seres humanos. Nesta tensão, coloca-se a resposta de
46 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Hegel ao problema da modernidade, explicitando na resposta um novo


problema, a saber: a contradição inerente aos tempos modernos.
De um lado, o sujeito moderno é auto-definitório como uma
estrutura cristalizada em si mesmo, ao passo que, em visões anteriores,
ele era definido em relação a uma ordem cósmica. A tentativa kantiana de
derivar o conteúdo do dever da forma necessária da razão é criticada, por
Hegel, como vazia, “[...] porque os seres humanos só podem descobrir o
conteúdo real da vida ética descobrindo-se como parte de um esquema
mais amplo” (TAYLOR, 2014, p. 97). Em uma palavra, a autonomia
centrada no ser humano não pode mais ser o objetivo absoluto.

Por continuar com uma noção puramente formal de razão, ele (Kant) não pôde
prover a obrigação moral de um conteúdo. Por não aceitar o único conteúdo
válido que provém de uma sociedade permanente à qual pertencemos, a sua
ética permaneceu a do indivíduo (TAYLOR, 2014, p. 411).

A autonomia do indivíduo moderno precisa, em Hegel, ser situada


em contextos intersubjetivos, nas relações sociais, culturais e históricas,
preservando, porém, o princípio moderno da autoconsciência e da
autodeterminação dos indivíduos, conquistas da modernidade. Em
realidade, nossa vida individual e coletiva, em intercâmbio com aquilo que
nos cerca, expressa um plano racional mais amplo que o do indivíduo
reflexivo e autônomo moderno.

Assim, Hegel contesta que possamos ser moralmente autônomos ou livres no


sentido kantiano, pois, de seu ponto de vista, os princípios de nosso agir não
podem ser postos do início ao fim somente a partir de si mesmos. Em vez
disso, em nossos juízos e ações morais sempre necessitamos de um
reconhecimento recíproco (HONNETH, 2015, p. 206).
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 47

Como demonstra Taylor, “Hegel reserva o termo ‘razão’ (Vernunft)


para este modo superior, e chama de ‘entendimento’ (Verstand) a visão
das coisas como divididas ou opostas” (TAYLOR, 2015, p. 36). O modo de
viver é, por assim dizer, uma maneira de cumprir as funções necessárias
da vida, como nutrição e reprodução, mas, igualmente, uma expressão
cultural que revela e determina o que somos, nossa identidade, algo
determinante para Taylor e seu comunitarismo. Todavia, como
explicitamos antes, a proposta hegeliana não é apenas uma volta aos
tempos pré-modernos, e sim uma síntese entre a comunidade
intersubjetiva, com o princípio da autodeterminação moderna do sujeito.
Não podemos, portanto, simplesmente abrir mão da autonomia do sujeito,
mesmo com a importância essencial da comunidade e da
intersubjetividade como instâncias fundamentais para a constituição do
self.

Em outras palavras, nossa concepção do espírito e de sua autorrealização deve


reservar um lugar para a razão. [...] Esse foi o insight central que Hegel, como
único de sua geração, teve com toda a clareza e elaborou até sua plena
conclusão. Sem ele, os românticos ou caem no desespero do exílio num mundo
abandonado por Deus ou recuperam a unidade com a natureza (TAYLOR,
2014, p. 71).

Alcançar a unidade com a natureza pela intuição pura, sem a


explicação racional, seria abrir mão da autonomia do sujeito, o que se
torna impossível com a modernidade. Nos termos hegelianos, podemos
falar, a partir da síntese dialética, de uma religião com racionalidade, bem
como de um iluminismo que valorize a comunidade, enquanto
expressividade e sentimento. Isto é, uma razão com o coração; e um
coração com a razão. Taylor, em seu comunitarismo, partirá da crítica
hegeliana ao individualismo moderno.
48 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Para ele, a compreensão do bem, como fonte moral, tem sido


profundamente suprimida da consciência moral moderna. As fontes
morais não estão apenas dentro de nós, as encontramos também no bem
que nos antecede e nos forma enquanto sujeitos gestados em uma
comunidade de pertencimento. A seguir, veremos como Hegel, por meio
da dialética do senhor e do escravo, tematiza o reconhecimento como uma
instância determinante para a formação do self, à luz do pano de fundo da
intersubjetividade, algo essencial para Taylor.

1.4.2 O Reconhecimento e as Fontes Comunitárias do Self: a Dialética do


Senhor e do Escravo

Na Fenomenologia do Espírito, na dialética do senhor e do escravo,


Hegel apresenta a formação do indivíduo radicada no reconhecimento
universal. Primeiramente, o espírito é em si; depois para si; e finalmente
em si e para si. O espírito é em si, dado a sua realidade, embora ainda não
consciente de si: é o espírito imediato, a alma, o espírito-natureza. Em um
segundo momento, o espírito apresenta-se sob a forma de consciência: o
espírito subjetivo reflete-se sobre si mesmo, tornando-se consciente de si
enquanto ser espiritual, emergindo a autoconsciência. Daí, a experiência
da consciência leva os indivíduos a perceber que, em realidade, o ser-para-
si deles é ser-para-o-outro. “Sua construção como autoconsciência
medeia-se pelo face-a-face com outra consciência. [...] O verdadeiro objeto
do desejo da autoconsciência é outra autoconsciência”. (OLIVEIRA, 2003,
p. 189).
Toda autoconsciência deseja ser reconhecida por outra
autoconsciência. Seu desejo é ser desejo de outro desejo. Há, portanto, um
caminho em que as autoconsciências vão percorrer até atingir sua
universalização na forma de um reconhecimento mútuo. A chamada luta
por reconhecimento pode ter, contudo, dois desfechos. Primeiramente,
um dos combatentes pode morrer, o que redunda no fracasso do processo,
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 49

haja vista que o reconhecimento é simplesmente eliminado. A segunda


possibilidade é a relação de dominação entre os sujeitos. Um deles é o
considerado vencido, tornando-se escravo. Porém, só aparentemente
temos aqui o reconhecimento do senhor pelo escravo, pois, na verdade, só
se pode ser reconhecido por um igual, isto é, por outra autoconsciência.
Ora, o escravo é forçado a renunciar a ser sujeito, sendo tratado como
coisa.
Portanto, a autorrealização do senhor como autoconsciência é
ilusória. O senhor não reconhece o escravo como outra consciência de si,
mas apenas como instrumento de mediação de sua ação sobre o mundo.
O senhor se isola, reduzindo o outro à coisa, frustrando o processo de
reconhecimento. Então, ao reduzir o outro à coisa, o senhor igualmente se
reduz. Não há autonomia sem que o outro participe desse processo. Em
Hegel, autonomia é sempre um acontecimento intersubjetivo, nunca algo
apenas de um sujeito isolado e autoconsciente.

Mas, para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em que o


senhor opera sobre o outro o que o outro operaria sobre si mesmo; e o escravo
faz sobre si o que também faria sobre o Outro. Portanto, o que se efetuou foi
um reconhecimento unilateral e desigual (HEGEL, 2007, p.148).

Uma autonomia apenas de um eu isolado é destruidora da própria


subjetividade. Apenas quando o sujeito experimenta, por meio de sua
essencial correlação com outros sujeitos, que não o único absoluto do
mundo, ele se conquista como tal. “A dialética do senhor e do escravo
mostra com exatidão que o homem só existe verdadeiramente para si
quando sabe que existe para o outro e pelo outro” (OLIVEIRA, 2003, p.
194). A preocupação de Taylor, a partir de sua herança hegeliana, é
demonstrar que o indivíduo está situado em ma vivência comunitária que
fornece os elementos significativos para a construção de seu self, sempre
50 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

pertencente a um contexto fundamental. Portanto, a ideia do bem é


determinante para sermos plenos. O hegelianismo de Taylor diz respeito
à consideração que ele faz das influências da vida comunitária na esfera do
reconhecimento dos sujeitos, como uma instância essencial para o próprio
eu e a identidade. Em Hegel, “[...] a consciência-de-si é em si e para si
quando e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como
algo reconhecido” (HEGEL, 2007, p. 142). A subjetividade é um processo
relacional, não sendo uma pura identidade consigo mesma, mas mediada
por processos de interação no âmbito de uma comunidade.
Afinal, a consciência é, na perspectiva hegeliana, um entrelaçamento
multilateral e polissêmico. Em Hegel, como também nos lembra Honneth,
“[...] um indivíduo só está em condições de identificar-se integralmente
consigo mesmo na medida em que ele encontra para suas peculiaridades
e qualidades aprovação e apoio também de seus parceiros na interação”
(HONNETH, 2013, p. 56). Resulta daí a premissa de que o
desenvolvimento da identidade pessoal de um sujeito está ligado
fundamentalmente à pressuposição de determinadas formas de
reconhecimento por outros sujeitos.

O sujeito só é “livre” quando, no contexto de práticas institucionais ele


encontra uma contrapartida com a qual se conecta por uma relação de
reconhecimento recíproco, porque nos fins dessa contrapartida ele pode
vislumbrar uma condição para realizar seus próprios fins. Desse modo, na
forma do “ser em si mesmo no outro” sempre se pensa numa referência a
instituições sociais, uma vez que somente práticas harmonizadas e
consolidadas fazem que os sujeitos compartilhados possam se reconhecer
reciprocamente como outros de si mesmos (HONNETH, 2015, p.87).

A subjetividade é, por isso, o movimento de saída de si e de retorno a


si pela mediação da alteridade: só no outro e através do outro a
subjetividade se constitui como tal (OLIVEIRA, 2013). Segundo Ricoeur,
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 51

por exemplo, a identidade não implica nenhuma asserção “[...] a um


pretenso núcleo não mutante da personalidade” (RICOEUR, 1991, p. 13). O
homem é, desde o início, um ser inserido numa comunidade com os
outros, em um mundo culturalmente herdado, transmitido de geração a
geração. A vida comunitária, inclusive a religiosa, aparece como horizonte
de possibilidade para os indivíduos elaborarem suas identidades, pois é
nela que eles encontram as bases culturais que sustentam suas indagações
(ARAÚJO, 2004).
Posto isso, partiremos, nesse momento, da análise dialética de Hegel
acerca da relação entre Cristianismo, Iluminismo e Revolução Francesa,
mostrando sua crítica a interpretações unilaterais de tais acontecimentos
ao longo da história, algo determinante para Taylor e sua proposta de um
secularismo que dialogue com as religiões, uma vez que estas ainda
representariam uma fonte de referência para o agir dos homens na
contemporaneidade, bem como uma instância essencial da formação das
identidades. Nesse contexto, Hegel irá refletir sobre o impacto que a
Revolução Francesa teve para os homens, bem como sobre a relação entre
secularismo e religião, algo determinante para apreendermos o quadro
referencial teórico de Taylor.

1.4.3 Hegel e a Dialética entre Religião e Iluminismo

Taylor enfatiza que o Iluminismo de Hegel via na sensibilidade pré-


moderna um elemento importante para os homens, algo bem diferente do
Iluminismo francês e sua crítica radical à religião, havendo uma
supremacia da racionalidade moderna frente à sensibilidade, refletida e
revelada pela fé religiosa. “Nesse tocante, a Alemanha se assemelhou mais
à Inglaterra protestante” (TAYLOR, 2014, p. 31). Já o enciclopedismo
francês “[...] declara guerra aberta à religião, à sua validade, à sua pretensa
verdade” (CASSIRER, 1997, p. 189-190). No contexto da Alemanha de
52 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Hegel, ao contrário, religião e Iluminismo jamais poderiam construir dois


campos opostos, como na França revolucionária. “Hegel não
compartilhava o ponto de vista do Iluminismo francês de que a religião
não passava de superstição” (LILLA, 2018, p.26). O Iluminismo,
inicialmente, teria separado alma e corpo, razão e sentimento, razão e
imaginação, pensamento e sensibilidade. Todas essas dicotomias
distorceram a verdadeira natureza do ser humano, que deveria ser vista
como uma única vida. Hegel é fortemente um crítico dos dualismos,
empenhando-se por superar as dicotomias modernas. Isto se encontra
igualmente em sua análise acerca da Revolução Francesa, do Iluminismo
e da religião.
Hegel propõe uma rigorosa dialética entre Iluminismo e religião,
mostrando a insuficiência de caminhos unilaterais a serem seguidos tanto
pelo cristianismo como pelo Iluminismo. Ele destaca o papel motivacional
das religiões, mesmo em uma sociedade secularizada. A religião, como
saber intuído, diz Hegel, “[...] é o falar da comunidade sobre o seu espírito”
(HEGEL, 2007, p. 446-7). O Iluminismo, então, não pode simplesmente
querer abolir as religiões, isto é, um outro. As religiões, no entanto, não
podem negar a conquista histórica da modernidade e do Iluminismo. Seria
preciso, assim, pensarmos um terceiro caminho que considere, ao mesmo
tempo, o papel motivacional das religiões e sua relevância para a
construção das identidades, como também a conquista histórica da
modernidade, das liberdades individuais, da autonomia da pessoa humana
e do Estado secular.
Na perspectiva hegeliana, coube ao cristianismo, na história da
humanidade, o papel de proclamar que o homem é livre enquanto homem
e que a liberdade é, portanto, específico do ser humano. O acontecimento
de Cristo é, em Hegel, de significação universal, porque nele o ser humano
toma consciência de que seu ser se identifica com a liberdade, pois a
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 53

liberdade subjetiva enquanto consciência de sua transcendência sobre as


condições externas em que o ser humano está inserido fundamenta-se na
unidade entre Deus e o ser humano, que se revelou em Cristo. Este
representa a superação da separação entre Deus e o homem, sendo a
reconciliação entre ambos. “Hegel encontra na afirmação da Encarnação
de Deus o símbolo da identidade do Infinito com o Finito” (STACCONE,
1991, p. 91).
A liberdade do homem revela-se, portanto, possibilitada pela
participação na liberdade absoluta. “A vida do mundo é a manifestação da
vida divina, ou seja, o outro de Deus, o seu Filho que, no Amor, permanece
divindade, é a verdade do mundo finito” (AQUINO, 1989, p. 245). Em
Hegel, há a tematização da relação de Deus com o homem e o mundo,
através do filho de Deus. “Na religião cristã Deus Se revelou, o que significa
que Ele deu ao homem a capacidade de compreender o que Ele é, não
sendo mais oculto e secreto” (HEGEL, 2012, p. 61). Na interpretação
hegeliana, Cristo é a síntese da ética kantiana com o ideal expressivista.
Por um lado, Cristo é um revelador da subjetividade humana, substituindo
a heteronomia pela autonomia. Contudo, ao descobrir a vontade de Deus
no sentimento vivo do seu próprio coração, “Cristo evita a oposição entre
razão e sensibilidade, vivendo a vida moral como expressão integral da sua
humanidade” (TAYLOR, 2014, p. 80). Daí, o indivíduo moderno não poder
ser interpretado como o ponto de fundamento de tudo; ele é parte de um
todo que não se reduz à subjetividade humana. Se o Geist precisou da face
humana para ser revelado, não obstante o indivíduo é, ao mesmo tempo,
parte de um propósito maior que não se reduz à sua consciência solipsista.
Porém, o princípio da liberdade cristã permaneceu interior, não
chegando a se tornar uma liberdade mundana. Como diz Hegel, no
parágrafo 62 da Filosofia do Direito: “Há cerca de mil e quinhentos anos
que a liberdade da pessoa começou a florescer graças ao cristianismo e
54 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

tornou-se princípio universal entre uma parte, aliás, pequena do gênero


humano” (HEGEL, 2010, p. 98). Para Tocqueville, por exemplo, a figura
de Cristo, na religião, representa uma compreensão e um significado de
que todos os membros da humanidade são semelhantes e iguais, pois são
filhos de um Deus único, de um mesmo pai. Há, assim, a ideia de uma
felicidade futura nas mesmas condições de igualdade para todos os
homens.

A ideia da unidade do gênero humano os leva sem cessar à ideia da unidade


do Criador, ao passo que, ao contrário, homens muito separados uns dos
outros e demasiados dessemelhantes chegam facilmente a criar tantas
divindades quantos forem os povos, as castas, as classes e as famílias, e a traçar
mil caminhos particulares para o céu (TOCQUEVILLE, 2014, p. 27).

Em Hegel, só os tempos modernos começaram a tornar efetiva a


significação do cristianismo na história, à medida que a liberdade se fez o
grande programa da modernidade em consequência da Reforma
Protestante. Por isso, Hegel vê uma passagem coerente entre o princípio
cristão da liberdade pela Reforma Protestante e os movimentos
emancipatórios da modernidade, como o Iluminismo e a Revolução
Francesa. Para Karl Löwith, a secularização do cristianismo original não
significa, em Hegel, uma condenável traição de seu sentido original, mas,
ao contrário, a verdadeira explicação dessa origem “mediante sua
realização positiva” (LÖWITH, 2014, p. 41). Não à toa Taylor destaca que,
em Hegel, “[...] o entrelaçamento entre religião e Iluminismo jamais
poderia constituir dois campos opostos, como na França” (TAYLOR, 2014,
p.33).
Para que o princípio cristão da liberdade pudesse perpassar a
realidade sociopolítica, foi necessário que o Estado se libertasse das igrejas
cristãs particulares. Tal cisão permitiu a realização da verdade do
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 55

cristianismo. Hegel aceita, por um lado, a necessária emancipação do


homem a partir da Revolução Francesa. Todavia, diz Hegel, o Iluminismo
criticou também as representações cristãs, reduzindo seu conteúdo a
objetos finitos. “Consequentemente, o Iluminismo distingue claramente e
tem uma visão dos seres humanos como indivíduos, independentes uns
dos outros, mas perde de vista a comunidade em que eles estão situados.
A sua teoria política é atomística” (TAYLOR, 2014, p. 437).
O Iluminismo não percebeu, segundo Hegel, que a negação do
absoluto implica a negação da subjetividade. O elemento positivo do
Iluminismo foi ter feito morrer uma certa concepção de Deus,
manifestando a verdade do cristianismo, para além do cristianismo.
Porém, o Iluminismo não percebeu que a pura negação do absoluto
significa a negação da subjetividade, pois implica seu aprisionamento ao
finito. Em Hegel, uma parte do Iluminismo permaneceu no nível do
Verstand (entendimento), no âmbito em que o pensamento distingue as
coisas e as separa, sem passar para a Vernunft (razão), lugar das conexões
e relações, para além do dualismo moderno entre sujeito e objeto.
Hegel, no parágrafo 270 da Filosofia do Direito, fala não apenas do
caráter negativo do fanatismo religioso, mas também do fanatismo
político, no contexto da Revolução Francesa: “[...] surge então o fanatismo
religioso, que, como o fanatismo político, bane todas as instituições do
Estado” (HEGEL, 2010, p.244). Em Hegel, a liberdade é explicitada como
síntese entre individualidade e sociabilidade, entendida como
institucionalidade. A forma de configuração dessas instituições é que
decide se elas são ou não expressão da autoconsciência dos indivíduos
como seres livre.
Dessa forma, Hegel conserva o elemento positivo do Iluminismo,
recuperando o conteúdo central do cristianismo, a Encarnação do Verbo,
que significa a superação do dualismo abstrato entre Deus e o homem
56 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

livre. Do contrário, Hegel alerta que a sociedade estará sempre sujeita à


tirania semelhante ao Terror Jacobino na Revolução Francesa, haja vista
uma concepção estreita de liberdade, relacionada apenas com a
interioridade. “Portanto, quando a razão fala de um Outro que ela, de fato,
só fala de si mesma; assim não sai de si” (HEGEL, 2007, p.377). Na
perspectiva hegeliana, como enfatiza Taylor, não reconhecendo a si
mesmo no seu adversário, o Iluminismo “entende mal a fé” (TAYLOR,
2014, p. 212). O erro básico do Iluminismo foi rejeitar a transcendência e
tentar alcançar essa meta unicamente a partir do ser humano; “[...] ele
tenta tornar a subjetividade humana dominante de modo exclusivo, em
vez de torná-la participante da dominação do sujeito absoluto” (TAYLOR,
2014, p. 210).
Hegel, como destaca Habermas, “[...]. não é o primeiro filósofo que
pertence aos tempos modernos, mas o primeiro para a qual a
modernidade se tornou um problema e uma questão” (HABERMAS,
2002b, p. 62). Hegel foi um dos pensadores da modernidade que reagiu
contra os ataques do Iluminismo ao Cristianismo, ressaltando o grande
valor da doutrina cristã. “Quando são banidos todos os preconceitos e
superstições, então surge a pergunta: e agora, que resta? Que verdade o
Iluminismo difundiu em lugar dos preconceitos e superstições” (HEGEL,
2007, p. 385)? Em Hegel, a religião é uma grande fonte de motivação que
orienta o ser humano inteiro, além de ser uma instância de
reconhecimento e pertencimento a uma comunidade que forma as
identidades, pois o homem não é apenas racional, mas também uma
criatura sensível. “Por isso, desde o começo, Hegel não assumiu a posição
do austero Iluminismo sobre a religião, de que em nada se pode acreditar
senão naquilo que a razão autoriza” (TAYLOR, 2014, p. 77).
Segundo Hegel, carece de fundamento uma secularização que
pretenda superar pura e simplesmente o cristianismo, suas fontes de
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 57

sentido e mesmo uma comunidade formadora das identidades, algo que


influenciou diretamente o pensamento de Taylor. Este (2010b) conceitua,
seguindo seu comunitarismo, o que denomina de imaginário social, como
uma instância essencial na formação dos sujeitos, tal qual um ethos
fundamental na constituição das subjetividades pertencentes a uma
comunidade. Esta nos fornece as fontes morais e os imaginários sociais,
determinantes para a constituição de nossas identidades. Quando um bem
constitutivo de uma cultura não é articulado, corre-se o risco de perder
fontes morais que alimentam a vida dos sujeitos. É necessária uma
ontologia moral, isto é, uma teoria do bem, a fim de que haja uma conexão
entre sentidos do eu e visões morais, ou seja, entre identidade e bem, algo
determinante para a formação do self.

1.5 As Fontes Morais e os Imaginários Sociais no Hegelianismo de Taylor

Taylor entende a ação moral como o desejo articulado


linguisticamente do agente em busca da realização do bem, a dimensão
existencial que dá dignidade à sua identidade humana. O bem aparece
como meta a ser alcançada pelas avaliações que o agente faz ao agir. O que
está em jogo é a própria identidade do self como agente moral.

Logo, a cultura que vive em nossa sociedade molda nossa experiência privada
e constitui nossa experiência pública, que, por sua vez, interage
profundamente com a experiência privada. De modo que não é uma
proposição extravagante afirmar que nós somos o que somos em virtude de
participar da vida mais ampla de nossa sociedade. (TAYLOR, 2005, p. 113).

Deste modo, Taylor compreende que o homem elabora e expressa


sua identidade por meio, também, de sua linguagem. Ele exemplifica que
a linguagem não pode ser vista apenas como um conjunto de sinais, mas
como o meio de expressão de um certo modo de ver e experimentar e
58 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

mesmo viver. “Logo, não pode haver pensamento sem linguagem, e, com
efeito, as linguagens de diferentes povos refletem suas diferentes visões
das coisas” (TAYLOR, 2005, p. 31). Como destaca Wittgenstein no
parágrafo 23 das Investigações filosóficas, “[...] o falar da linguagem é uma
parte de uma atividade ou de uma forma de vida”. Encontrar uma
linguagem para a diversidade cultural é encontrar uma linguagem para
modernidades alternativas ou encontrar uma forma de compreender a
modernidade que reserve um lugar para essas alternativas. Seria possível,
por isso, compreender “[...] as diferenças com relação às outras culturas”
(TAYLOR, 2000, p. 11-12).
Por conseguinte, os sujeitos têm suas identidades definidas por
algum compromisso moral ou espiritual que se expressa e se forma numa
determinada linguagem e modo de vida. A linguagem é a própria esfera de
expressão e constituição de um modo de ser no mundo, bem como das
identidades. “Estudar pessoas é estudar seres que só existem em certa
linguagem” (TAYLOR, 2013, p. 53). A linguagem serve para instaurar
espaços de ação comum em vários níveis, tanto íntimos como públicos.
“Taylor sustenta que não utilizamos meramente formações de palavras,
somos constituídos como linguagem em sociedade” (CASTRO, 2018, p. 6).
Isso significa que nossa identidade nunca é definida apenas em termos de
nossas propriedades individuais (TAYLOR, 2000). Ela também nos situa
em algum espaço social. “Ninguém adquire as linguagens necessárias para
autodefinição por si mesmo. Somos apresentados a elas através das trocas
com outros que importam para nós” (TAYLOR, 2011b). Com isso, os
sujeitos definem suas identidades pela nação, cultura ou tradição a que
pertencem.

O que as pessoas estão dizendo com isso não é apenas que estão fortemente
ligadas a essa concepção espiritual ou antecedentes, mas que isso oferece a
estrutura dentro da qual podem determinar que posição defendem em
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 59

questões sobre o que é bom, ou válido, ou admirável ou de valor (TAYLOR,


2013, p .44).

Uma crise de identidade é uma forma aguda de desorientação. Aqui,


identidade e orientação para uma vida boa relacionam-se diretamente.
Perder essa orientação ou não a ter encontrado é não saber quem se é. “E
essa orientação, uma vez conseguida define a posição a partir da qual você
responde e, portanto, sua identidade” (TAYLOR, 2013, p. 46). Ela é aquilo
que nos permite definir o que se é e o que não é importante para nós.

Assim sendo, minha descoberta de minha identidade não implica uma


produção minha de minha própria identidade no isolamento; significa que eu
a negócio por meio do diálogo, parte aberto, parte interno, com o outro. [...]
Minha própria identidade depende crucialmente de minhas relações dialógicas
com os outros (TAYLOR, 2000, p.248).

Em Taylor, o indivíduo não age motivado por meras escolhas


quantitativas, mas por avaliações do desejo que permite ao agente decidir
qual a direção a ser tomada no ato de agir. Há uma avaliação entre dois
desejos: uma fraca e outra forte. Na primeira, para algo ser julgado como
bom é necessário somente que seja desejado. Não há, portanto, o
comprometimento com as formas valorativas que podem construir o
próprio desejo. Na avaliação fraca (desejos de primeira ordem), o
julgamento de algo como bom ocorre apenas no plano do desejo
desenraizado de valor, fundado apenas na contingência, sem uma ação
responsável.
Já na avaliação forte (desejos de segunda ordem) há expressões
valorativas da identidade do sujeito humano, caracterizadas como um
modo reflexivo dos desejos. Na avaliação forte, não se trata de uma mera
satisfação contingente e individual, mas daquilo que dá consistência às
diversas formas de concepção humana. Afinal, os desejos de segunda
60 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

ordem não refletem uma instância imediata, mas se relacionam com o


pano de fundo ontológico, que constitui a identidade essencial dos sujeitos,
ou seja, o pano de fundo intersubjetivo e comunitário das instâncias
constituintes do self, como uma esfera que antecede o indivíduo enquanto
tal.
Não à toa que, em As Fontes do Self, Taylor tem como principal
conceito a avaliação forte, que irá, ao mesmo tempo, sustentar e
desenvolver todas as suas teses sobre a construção do self moderno. A
avaliação forte traz consigo a possibilidade de articulação da identidade da
pessoa, fazendo com que esta deseje elaborar um modo de vida (ARAÚJO,
2004). Na avaliação forte, pergunta-se por uma vida significativa em
contraposição a uma vida voltada apenas a questões triviais (TAYLOR,
2013). Para compreender nosso mundo moral, temos de ver não só que
ideias e quadros descritivos subjazem a nosso sentido de respeito pelos
outros, mas também aqueles que alicerçam nossas noções de uma vida
plena.

Nossas distinções qualitativas, na qualidade de definições do bem, oferecem


antes razões no seguinte sentido: articulá-las é articular o que está na base de
nossas escolhas, inclinações e intuições éticas. É determinar de maneira
precisa aquilo que apreendo vagamente quando vejo que A é certo, ou que X é
errado ou que Y é valioso e merece ser preservado, e assim por diante. É
articular o sentido moral de nossas ações (TAYLOR, 2013, p. 108).

Para Taylor, o reconhecimento e a constituição dos sujeitos


encontram-se, portanto, em uma tradição específica, portadora de uma
pré-compreensão concreta da realidade, radicada na nacionalidade, na
língua, na cultura e na história de um povo, dimensões presentes naquilo
que Taylor (2010b) denomina de imaginário social. Este não se expressa
apenas em termos teóricos, mas apoia-se em imagens e narrativas que nos
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 61

guiam coletivamente e nos formam enquanto sujeitos pertencentes a uma


comunidade, cultura e tradição.
Uma teoria, ao contrário do imaginário social, é algo apenas de posse
de uma minoria, ao passo que o imaginário social é partilhado por grandes
grupos sociais, como um horizonte de sentido de vida e reconhecimento
social, essenciais para a formação dos sujeitos: “[...] o imaginário social é
a compreensão que possibilita práticas comuns e um sentido de
legitimidade amplamente partilhado” (TAYLOR, 2010b, p. 31). A
subjetividade seria uma instância sempre pertencente a uma comunidade
e a um imaginário. Ela nunca pode ser pensada como uma categoria
neutra ou deslocada do sentido primeiro que funda seu pertencimento a
uma tradição. A modernidade, também, é apenas um imaginário social
frente a tantos outros, assim como sua suposta concepção neutra de
indivíduo.

Deveras surpreendente é que tenha sido possível chegar ao individualismo


moderno, não apenas ao nível da teoria, mas também através da
transformação e da descoberta do imaginário social. Dado que este imaginário
se coligou com sociedades de um poder sem precedentes na história humana,
parece impossível e irracional tentar resistir. Mas não devemos cair no
anacronismo de pensar que sempre foi assim (TAYLOR, 2010b, p.27).

Segundo Taylor, os sujeitos atuam no imaginário social muito antes


de teorizarem acerca de si mesmos. O imaginário social incorpora
expectativas que temos uns dos outros, por meio de imagens normativas
profundas, relacionando-se com práticas coletivas que constituem a vida
social, tal qual uma esfera de reconhecimento e um reservatório de sentido
de vida partilhado conjuntamente. Do contrário, Taylor alerta para uma
possível perda de horizonte de sentido de vida, tal qual um aniquilamento
da existência. Encontrar um sentido para a vida depende, sobretudo, da
62 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

construção de expressões significativas e adequadas para sujeitos plenos


de relações que o constituem, à luz de uma vida comunitária, visando o
bem comum.
De acordo com Taylor, somos, portanto, um self, à medida que certas
questões nos importam. O que sou enquanto self, minha identidade,
define-se essencialmente pela maneira como as coisas têm significações
para nossos imaginários sociais: “[...] a questão de minha identidade é
resolvida apenas mediante uma linguagem de interpretação que vim a
aceitar como articulação válida dessas questões” (TAYLOR, 2013, p. 52).
Portanto, somos um self quando nos movemos em certo espaço de
indagações e imaginários, porque buscamos e encontramos uma
orientação para o bem.

Como não podemos prescindir de uma orientação para o bem, e como não
podemos ser indiferentes à nossa posição relativamente a esse bem, e como
esse lugar é algo que deve sempre mudar e tornar-se, tem de surgir para nós
a questão da direção de nossa vida (TAYLOR, 2013, p. 70).

Ser um self é inseparável da existência em um espaço de questões


morais, que têm a ver com a identidade e com aquilo que devemos ser a
partir de uma herança formadora de nossas tradições, linguagens, culturas
e imaginários sociais. “É ser capaz de encontrar sua própria posição nesse
espaço, conseguir ocupá-lo, ser uma dentro dele” (TAYLOR, 2013, p.150).
Logo, seria preciso uma ética articulada por conceitos ontológicos,
assumindo uma noção de bem socialmente representativa. Entretanto, diz
Taylor, o liberalismo político advoga o ideal da neutralidade no que diz
respeito a questões sobre o que constitui uma vida boa, banindo toda
discussão acerca disso.
As fontes morais, por exemplo, podem ser encontradas nas mais
diversas noções de bem, como as religiões. Porém, Taylor (2011b) destaca
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 63

uma perda do significado dos horizontes morais a partir da modernidade


e de sua noção de sujeito atomista, sem vínculos comunitários. Isto
ocorreu, sobretudo, como vimos antes, com a virada para a subjetividade
moderna, inaugurando uma nova maneira de interioridade, na qual
chegamos a pensar em nós mesmos como seres com profundidade
interior. Taylor (2011b) defende um ideal da autenticidade moderna que
dialogue com as fontes morais que nos formam profundamente, ao
contrário da perspectiva atomista e solipsista de parte da modernidade.
Nesse contexto, Taylor fala acerca da existência de múltiplas
modernidades, uma vez que culturas não ocidentais foram modernizadas
à sua maneira (OLIVEIRA, 2018b). A modernidade ocidental seria apenas
um imaginário social frente a tantos outros: “[...] as diferenças entre as
múltiplas modernidades de hoje hão-de entender-se sob o ponto de vista
dos divergentes imaginários sociais implicados” (TAYLOR, 2010b, p.11). As
religiões, por exemplo, significam mundos de articulações morais de suas
identidades, tal qual uma comunidade de pertencimento e de
reconhecimento.
Nas palavras de Taylor, a crença em Deus significa uma articulação
daquilo que é crucial para a forma do mundo moral na melhor descrição
de alguém. “Ela apresenta uma razão antes como eu faço quando descrevo
minhas preocupações mais básicas a fim de fazer os outros entenderem o
sentido que tem minha vida” (TAYLOR, 2013, p. 106). Taylor defende uma
redefinição do secularismo que valorize as religiões como fontes essenciais
e indispensáveis para diversos sujeitos que se formaram a partir de outras
linguagens e tradições, diversas da concepção tradicional de secularismo,
sempre tendo como horizonte a herança hegeliana e sua crítica dialética
do Iluminismo em diálogo com a religião. “Que relação tem, então, o
imaginário social moderno com a moderna sociedade secular”? (TAYLOR,
2010b, p. 177). É o que veremos no próximo capítulo.
2

A Religião na Era Secular

2.1 Por uma Redefinição do Secularismo

Há muita discordância entre os analistas de nosso tempo quanto à


determinação do lugar ocupado ou a ser ocupado pelo fenômeno religioso
no mundo contemporâneo. Algo, contudo, como enfatiza Manfredo
Oliveira (2013, p. 10), parece deter grande aprovação por parte de muitos
intérpretes: “[...] a afirmação de que a análise do fenômeno religioso é um
elemento imprescindível para uma compreensão adequada das sociedades
da modernidade tardia”. Para Taylor, seguindo sua interpretação
hegeliana, seria ilusória a tentativa secular de estabelecer a prioridade de
seu discurso frente ao religioso, no sentido de uma neutralidade ética de
valor, como pretende o liberalismo político e seu ideal de secularização
moderna, que defende uma separação estrita entre a esfera pública
secularizada e as instâncias privadas do crer, em que as religiões estariam,
no máximo, restritas às esferas individuais. “Concorda-se geralmente que
as democracias modernas devem ser ‘seculares’: [...] um certo
etnocentrismo está entrelaçado a esse termo” (TAYLOR, 2012, p.166).
Sobre o secularismo, Taylor explica que a maneira secular de ver o mundo,
separando algo terreno e deste mundo de algo transcendente, é parte
apenas do nosso modo de ver as coisas como ocidentais: “Tendemos a
aplicá-la universalmente, embora nenhuma distinção tão rígida tenha
existido em qualquer outra cultura humana na história” (TAYLOR, 2010a,
p. 31).
Para Mircea Eliade (2001, p. 18), a era pré-moderna, ao contrário da
secular, tinha o sagrado como uma realidade por excelência: “O sagrado
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 65

está saturado de ser”. Segundo ele, a manifestação do sagrado funda


ontologicamente o mundo, revelando a realidade absoluta. Já para Berger,
“[...] a religião supõe que a ordem humana é projetada na totalidade do
ser” (BERGER, 1985, p. 49). A religião, no âmbito do sagrado, legitima as
instituições infundindo-lhes um status ontológico de validade suprema,
isto é, situando-as em um quadro de referência sagrado e cósmico.
Contudo, diz Eliade, o homem moderno sente um profundo mal-
estar diante das inúmeras manifestações do sagrado. Este é tido como um
obstáculo à liberdade moderna. A dessacralização, na perspectiva de
Eliade, caracteriza a experiência total do homem não religioso das
sociedades modernas. O cosmos totalmente dessacralizado, diz Eliade,
seria uma descoberta recente na história do espírito humano.
Para Karen Armstrong (1995), por exemplo, o secularismo atual é
uma experiência inteiramente nova, sem precedentes na história humana.
O ideal ético secular tem suas próprias disciplinas da mente e do coração,
oferecendo “[...] às pessoas os meios para encontrar o sentido último da
vida humana outrora proporcionado pelas religiões mais convencionais”
(ARMSTRONG, 1995, p.9). Nenhuma sociedade, desde então, havia
eliminado a religião, tida como realidade essencial da vida, sem a qual o
homem jamais poderia se orientar no mundo e viver. Nas sociedades
antigas, a religião estava em toda parte; já na era secular a fé em Deus é
apenas uma opção entre outras (TAYLOR, 2010a). Ou, como defende Terry
Eagleton (2016, p. 11), “[...] as sociedades não se tornam seculares quando
descartam totalmente a religião, mas quando já não são particularmente
mobilizadas por ela”.
Nos séculos XVI e XVII, a palavra ateu, por exemplo, como
contextualiza Armstrong, era considerada uma ofensa. “[...] os pagãos do
Império romano haviam chamado os judeus e cristãos de “ateus” porque
a opinião deles sobre o divino diferia da sua” (ARMSTRONG, 1995, p. 290).
66 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Todavia, no início do século XIX, os avanços na ciência e na tecnologia


criaram um novo espírito de autonomia que levaram alguns a declararem
sua independência em relação à ideia de Deus. O ateísmo começava a ser
assumido como uma visão autêntica de mundo. A ideia de Deus
apresentada por séculos no Ocidente cristão parecia, agora, desastrosa e
inadequada para uma modernidade cada vez mais independente do
religioso.
Nesse sentido, como contextualiza também Taylor, o secular tem a
ver com o “século”, isto é, com o tempo profano, contrastando com o
eterno e o sagrado. Há um significado de secularização que data da
sequência da Reforma, a partir do momento em que certas funções,
propriedades e instituições foram transferidas do controle eclesiástico
para o dos leigos. Do século XVII em diante, argumenta Taylor, uma nova
possibilidade aparece gradualmente, a saber: uma concepção de vida social
na qual o secular era tudo o que havia, sem qualquer referência ao sagrado.
Na era secular, afirma Taylor, torna-se inaceitável qualquer forma de
religião pública:

[...] a chegada da secularidade moderna, a meu ver, foi coincidente com o


surgimento de uma sociedade na qual, pela primeira vez na história, um
humanismo puramente autossuficiente tornou-se uma opção amplamente
disponível. Quero dizer com isso um humanismo que não aceita quaisquer
objetivos finais além do próprio florescimento humano, nem qualquer
lealdade a nada além desse florescimento. Isto não ocorreu com nenhuma
outra sociedade. (TAYLOR, 2010a, p.31).

Na era secular, a fé passa a ser relegada à esfera privada, havendo, de


acordo com a visão secular de mundo, uma moral independente de
qualquer referência transcendente, bem como a defesa de uma razão sem
auxílio a fontes transcendentes, derivadas da Revelação. Outrora, segundo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 67

Taylor, Deus estava ligado às únicas fontes morais que os homens podiam
conceber. “Uma “era de crença” é uma era em que todas as fontes morais
dignas de confiança envolvem Deus” (TAYLOR, 2013, p. 402). Na pré-
modernidade, relacionávamos com Deus, portanto, “enquanto sociedade”
(TAYLOR, 2010b, p. 60) Porém, com a secularização, Deus perdeu o
monopólio no que diz respeito a ser o único combustível que alimentaria
as fontes morais. “A cultura moral moderna é uma cultura de fontes
múltiplas. [...] O fato de as direções serem múltiplas contribui para nossa
sensação de incerteza” (TAYLOR, 2013, p. 409).
Taylor é crítico de uma determinada concepção do secular, à qual ele
se opõe, por não levar em conta as religiões como fontes morais
fundamentais para a constituição das identidades (OLIVEIRA, 2019).
Afinal, tal qual nos lembra Berger (1985), há uma íntima relação entre
religião e solidariedade social, algo outrora refletido por teóricos sociais
clássicos como Durkheim. O autor considera a religião como uma instância
eminentemente social, uma vez que a religião seria uma representação
coletiva que, ao mesmo tempo, forma nossa interioridade, estabelecendo
um vínculo social entre o indivíduo e a sociedade. A religião aspira
igualmente a um “reconhecimento intersubjetivo” (HÖSLE, 2002, p. 568).
Em outras palavras, a religião é um sistema solidário, isto é, um sistema
de noções por meio das quais os indivíduos compreendem a sociedade de
que são membros. O ideal coletivo, expresso pela religião, é idealizado pelo
indivíduo “com base nas exigências da vida coletiva” (Durkheim, 2008, p.
500).
Juan Antonio Estrada (2004), por exemplo, fala de um núcleo ético
presente nas religiões que ainda alimentam a solidariedade humana; e
Francis Schüssler Fiorenza enfatiza que as religiões também fornecem um
local para a discussão das esferas afetivas e expressivas da vida humana:
“Neste contexto, a igreja mantém viva a dimensão utópica que tem sido
68 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

fundamental para a teoria crítica” (FIORENZA, 1992, p. 87). Já Johann


Baptist Metz (2013, p. 17) defende que os textos apocalípticos da Bíblia são,
acima de tudo, documentos literários de uma percepção de mundo em que
se revelam as faces das vítimas: “O apocalipse bíblico ‘desvela’ a trilha dos
sofredores na história da humanidade”. Podemos afirmar, portanto, que
as religiões são instâncias de articulação das fontes morais para vários
indivíduos, que se formaram em contextos diversos da visão tradicional de
secularismo, que relega a religião a uma dimensão apenas privada.

De facto, excluir a dimensão religiosa não é uma condição necessária do meu


conceito de secular, nem mesmo suficiente. Uma associação secular baseia-se
tão-só na acção comum, que exclui qualquer fundação divina para essa
associação, mas nada impede as pessoas assim associadas de prosseguirem a
sua forma religiosa de vida (TAYLOR, 2010b, p.100).

A ideia tradicional do secular diz respeito à saída completa da religião


do espaço público. Todavia, a era secular não pode, segundo Taylor, ser
reduzida ao seu significado europeu moderno:

Este imaginário social moderno é, pois, de forma bem patente, o fim de um


certo tipo de presença da religião ou do divino no espaço público. É o fim da
época em que a autoridade política, bem como outros agentes comuns
metatópicos, eram inconcebíveis sem referência a Deus ou a um tempo
superior; em que eles estão de tal modo inseridos nas estruturas da autoridade
que esta se não pode entender separadamente do divino, do mais elevado ou
do numinoso. Esta transição foi descrita por Marcel Gauchet como “fim da
religião” (TAYLOR, 2010b, p. 178).

Taylor propõe um novo entendimento da era secular que abra espaço


para um maior diálogo com as religiões, a partir da existência de múltiplas
modernidades, e não apenas a modernidade europeia. As religiões podem,
por exemplo, figurarem nas identidades políticas da modernidade, como
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 69

no caso da democracia americana que, embora moderna e secular, nunca


excluiu a religião como parte de seu próprio ethos, como exemplifica
Taylor: “Deus ou a religião não estão precisamente ausentes do espaço
público, mas são essenciais às identidades pessoais dos indivíduos ou
grupos e, por isso, são sempre uma possível componente definidora de
identidades políticas” (TAYLOR, 2010b, p.185). A modernidade secular,
argumenta Taylor, não pode ser reduzida à perspectiva de que a religião
deva ser excluída do espaço público, como uma não componente das
identidades políticas. Como defende Sonia E. Rodríguez García (2020), a
secularização, em Taylor, não pode ser tida como uma consequência lógica
da modernização. Como vimos, Taylor chega a falar da possibilidade de
modernidades múltiplas, diversas do significado da laicidade francesa, que
restringiu a religião à esfera privada. A religião e suas temáticas, em
determinados contextos e imaginários sociais, inspiram diversos sujeitos
na esfera pública (GARCÍA, 2020). Taylor insiste na necessidade de
repensar a perspectiva da secularização. Para ele, é possível, em diversos
contextos, propor uma secularidade em que a religião pode ocupar um
determinado lugar, compatível com o tempo profano das democracias.

Quer isto dizer que, finalmente, estamos a ultrapassar a visão da modernidade


como um processo único e singular de que a Europa é o paradigma; que
compreendemos o modelo europeu como o primeiro, decerto, como o objeto
de alguma imitação criativa, naturalmente, mas também como, no final do dia,
um modelo entre muitos (TAYLOR, 2010b, p. 188).

As religiões encontram-se, em Taylor, no âmbito das avaliações


fortes, como vimos, uma vez que constituem uma noção de self mais
profunda e fundamental, para além do indivíduo atomizado das
concepções modernas e liberais. A própria etimologia da palavra religião,
como sabemos, significa uma religação do ser humano com o sagrado, por
70 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

meio dos ritos (BENKENBROCK, 2019). Assim, como vimos ao longo deste
livro, a religião aponta também para uma dimensão comunitária que
fornece sentido para a construção das subjetividades em diversos
contextos. Nas palavras de Taylor, “[...] o erro dos modernos consiste em
tomar esta compreensão de indivíduo como de tal modo garantida que,
“naturalmente”, se encara como a nossa primeiríssima autocompreensão”
(TAYLOR, 2010b, p.70).
Um exemplo de postura que Taylor critica é aquela defendida por
John Rawls em seu Liberalismo Político, uma vez que Rawls defende, a
partir da ideia da formulação de critérios normativos razoáveis numa
sociedade pluralista, uma separação entre as identidades públicas e
privadas nos crentes, como veremos a seguir, algo que Taylor, por meio
da defesa de um vínculo fundamental entre religião, identidade e
reconhecimento, pensará ser problemático na tradição do liberalismo
político de Rawls.

2.2 As Críticas de Taylor ao Liberalismo Político de Rawls

A tarefa determinante do pensamento rawlsiano, em sua última fase,


em 1993, no Liberalismo Político, é o da justificação de uma concepção
autônoma ou independente da justiça política em sociedades pluralistas
(RAWLS, 2011). Porém, Rawls, em Uma Teoria da Justiça (obra de 1971),
não distinguia claramente entre o que seria uma concepção política, de um
lado, e uma doutrina abrangente, de outro, possuindo elementos desta
última sob a forma de uma concepção filosófica e moral ampla, projetada
no domínio do político, o que a tornava incompatível com o fato do
pluralismo e com sua proposta de um construtivismo político que pudesse
ser distinguido de uma doutrina abrangente (RAWLS, 2008).
Segundo o próprio Rawls, Uma Teoria da Justiça tenta desenvolver,
a partir da ideia do contrato social, uma perspectiva que se torne a melhor
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 71

aproximação de nossos “[...] juízos ponderados de justiça e, portanto,


forneça a base moral mais adequada para uma sociedade democrática”
(RAWLS, 2011, p. 582). A proposta normativa rawlsiana é apresentada,
ainda, na Teoria da Justiça, como uma doutrina liberal abrangente,
embora o termo “doutrina abrangente” não seja usado no livro. “Este tipo
de sociedade contradiz o fato do pluralismo razoável e, em vista disso, O
Liberalismo Político considera impossível essa sociedade” (RAWLS, 2011,
p. 582).
O Liberalismo Político examina, por assim dizer, uma questão
distinta da Teoria da Justiça, qual seja: como é possível para os que
afirmam uma doutrina abrangente, religiosa ou não, sustentar uma
concepção política razoável de justiça que forneça apoio a uma sociedade
democrática institucional? Em Uma Teoria da Justiça, a razão pública é
dada por uma doutrina liberal abrangente, enquanto no Liberalismo
Político é proposta uma maneira de argumentar sobre valores políticos
compartilhados por cidadãos livres e iguais, levando em conta suas
doutrinas abrangentes, desde que estas sejam compatíveis com uma
sociedade democrática.
No Liberalismo Político, Rawls se abstém de fazer afirmações acerca
das doutrinas abrangentes. Estas não podem rejeitar, contudo, os
elementos essenciais de um regime democrático. Em Rawls, podemos falar
de doutrinas abrangentes irreconciliáveis, mas que sejam razoáveis, no
sentido de respeitarem um mesmo sistema democrático. Rawls pretende
estabelecer, em seu Liberalismo Político, a ideia de que é possível obter
princípios de justiça válidos, aceitáveis para todos, à luz de um
procedimento estruturado com base em certas ideias de uma sociedade
democrática, independentemente de qualquer doutrina abrangente
(religiosa ou secular).
72 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Segundo Rawls, uma doutrina abrangente razoável é aquela que não


rejeita os princípios fundamentais de um regime democrático. Ele defende
que, exceto no caso do fundamentalismo, as diversas religiões podem dar
apoio a um regime democrático constitucional. “Isto é verdade para o
catolicismo e para grande parte do protestantismo, do judaísmo e do islã”
(RAWLS, 2011, p. 520). Rawls explica que uma concepção política deve ser
compartilhada por todos, enquanto as doutrinas abrangentes não.
Precisamos distinguir entre uma base pública de justificação sobre
questões políticas fundamentais, que seja aceitável aos cidadãos em geral,
e as muitas bases de justificação que não tem o caráter de públicas, que
pertencem exclusivamente a diversas doutrinas abrangentes e, por isso, só
são aceitáveis para os que subscrevem tais doutrinas.

A união social já não se funda em uma concepção do bem tal como dada por
uma fé religiosa comum ou por uma doutrina filosófica, e sim em uma
concepção pública e compartilhada de justiça apropriada à concepção dos
cidadãos como pessoas livres e iguais em um Estado democrático. (RAWLS,
2011, p. 360).

Para Rawls, os elementos da concepção política de justiça devem se


diferenciar dos elementos análogos das doutrinas abrangentes. O
Liberalismo Político distingue a chamada razão pública das não públicas.
Porém, não é suficiente que as doutrinas abrangentes aceitem um regime
democrático somente como um modus vivendi. Antes, é preciso que o
aceitem como participantes de um consenso sobreposto razoável. Rawls
enfatiza que seu liberalismo político não é uma forma de liberalismo
iluminista, isto é, uma doutrina liberal abrangente, de caráter secular. Ou
seja, o liberalismo rawlsiano não professa o secularismo propriamente
dito como uma visão de mundo ou ideologia.
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 73

O liberalismo político não tem tais objetivos. Considera como dado o fato do
pluralismo razoável de doutrinas abrangentes. [...] O problema do liberalismo
político é o de formular uma concepção política de justiça para um regime
democrático constitucional que uma pluralidade de doutrinas razoáveis, tanto
religiosas quanto não religiosas, possa livremente subscrever, e, assim, de
maneira que possam ser livremente praticadas em conformidade com essa
concepção e compreender suas virtudes. (RAWLS, 2011, p. 42).

Rawls diferencia, portanto, racional de razoável. O primeiro se aplica


a um agente único que busca realizar fins e interesses particulares, dizendo
também respeito à escolha de meios eficazes para obter um determinado
fim. Já a razoabilidade relaciona-se com uma cooperação equitativa, sendo
fundamentalmente algo público. Por meio da razoabilidade, afirma Rawls,
entramos no mundo político. Ele trabalha com a ideia de uma justificação
pública para um regime constitucional, e não com a ideia de uma verdade
moral ligada a uma doutrina abrangente particular.
Forst, nesse sentido, fala de um “princípio da justificação pública”
(FORST, 2010, p. 153). Para ele, “[...] uma teoria deontológica tem como
cerne, portanto, um princípio procedimental de justificação” (FORST,
2010, p. 217), como há em Rawls, que afirma que os cidadãos possuem
dois pontos de vista: um abrangente (privado) e outro político (público).
A visão de um indivíduo poderia ser dividida em duas partes. Rawls
destaca que é preciso embasar os elementos constitucionais essenciais e as
instituições básicas de justiça unicamente nesses valores políticos,
entendendo-os como a base da razão e da justificação pública, e não em
doutrinas abrangentes específicas e particulares.

O liberalismo político, então, aspira a uma concepção política de justiça


entendida como uma visão que se sustenta por si própria. Ele não propõe
nenhuma doutrina metafísica ou epistemológica específica que vá além
daquilo que está envolvido na própria concepção política. Como uma
74 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

interpretação de valores políticos, uma concepção política que se sustenta por


si própria não nega a existência de outros valores que se aplicam, digamos,
aos âmbitos do pessoal, do familiar ou da vida associativa; tampouco afirma
que os valores políticos são separados de outros valores ou que estão em
descontinuidade com outros valores (RAWLS, 2011, p. 12).

Devemos, para Rawls, distinguir entre o modo como uma concepção


política é formulada, da possibilidade de ela ser parte ou poder ser
derivada de uma doutrina abrangente. Porém, uma concepção política
“[...] não envolve nenhum compromisso mais profundo com qualquer
outra doutrina” (RAWLS, 2011, p. 15). Rawls, assim, desenraiza o
indivíduo, que precisa ser “arrancado” de dentro de sua doutrina
abrangente e compreensiva, bem como trazido ao terreno do público e do
razoável, sem sua tradição ou costume.
Rawls, portanto, enfatiza que os cidadãos devem votar com base na
ordenação de valores políticos, e não metafísicos. Quando, diz ele, os
cidadãos se convertem a outra religião ou não professam mais uma fé
religiosa, não deixam de ser, no que diz respeito a questões de justiça
política, as mesmas pessoas de antes. Segundo Rawls, não há nenhuma
perda de suas identidades públicas ou institucionais. Eles continuam
conservando os mesmos direitos e deveres, podendo fazer as mesmas
demandas de antes. Sobre isso, Rawls cita o seguinte exemplo: no caminho
para Damasco, Saulo de Tarso transforma-se em Paulo, o Apóstolo. No
entanto, tal conversão não implica nenhuma mudança na identidade
pública ou institucional. De acordo com Rawls, para os propósitos de uma
vida pública, Saulo de Tarso e o Apóstolo São Paulo são a mesma pessoa:
“A conversão é irrelevante para nossa identidade pública ou institucional”
(RAWLS, 2011, p. 38).
Ele destaca que os próprios cidadãos, voltando-se para suas doutrinas
abrangentes, podem relacionar a concepção política como derivada de
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 75

outros valores seus, ou congruentes com eles, ou pelo menos não


contraditórios com tais valores. Contudo, ele esclarece que uma concepção
política de justiça é formulada como uma visão que se sustenta por si
própria, o que não significa que uma concepção política não possa coincidir
com doutrinas abrangentes ou mesmo não as contradizer, como vimos
antes. Rawls destaca que, na razão pública, é possível permitir que se
introduza na discussão política nossa doutrina abrangente, religiosa ou
não, contanto que ofereçamos razões adequadamente públicas para apoiar
os princípios e as políticas que se acredita que nossa doutrina abrangente
sustente. Embora a visão ampla da cultura política pública permita
introduzir, por exemplo, uma parábola do Evangelho, a razão pública
exige que justifiquemos nossa proposta com base em valores políticos
adequados.
Rawls afirma que, diante de impasses na ordem do político, os
cidadãos não podem recorrer às razões mais fundamentais de suas
doutrinas abrangentes. Ele destaca que os cidadãos deveriam votar com
base numa ordenação de valores políticos, e não metafísicos. Rawls
ressalta ser desejável que as diversas doutrinas abrangentes, como as
religiosas, sejam deixadas de lado na razão pública, o que Taylor critica,
porque isso violentaria as identidades dos sujeitos. Em sua crítica a Rawls,
Taylor defende que não se pode exigir que todos deliberem numa
linguagem secular, deixando suas visões religiosas de fora, tal qual Rawls
explicita, ao propor a separação entre identidades religiosas das não
religiosas na razão pública. Sobre isso, Taylor argumenta:

A questão de Rawls ao sugerir essa restrição era a de que todos deveriam usar
uma linguagem com a qual poderiam razoavelmente esperar que seus
concidadãos concordassem. A ideia parece ser algo assim: a razão secular é
uma linguagem que todos falam e podem argumentar a ser convencidos. As
linguagens religiosas operam fora desse discurso, introduzindo premissas
76 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

irrelevantes que só os crentes podem aceitar. Então, vamos falar a linguagem


comum. (TAYLOR, 2012, p. 184).

A tese rawlsiana destaca sempre o seguinte aspecto: os cidadãos


possuem uma identidade pública e outra privada. Na razão pública, as
justificações devem ser guiadas por argumentos da ordem da identidade
pública. Entrementes, não seria possível, em Taylor, uma separação
rigorosa no mesmo sujeito entre uma identidade privada (de um crente),
de uma pública (não religiosa), como defende Rawls. Para Taylor (2010a),
as identidades políticas podem ser tecidas em torno de definições
religiosas ou confessionais. Segundo Taylor, nem todas as sociedades
passaram por processos de secularização, em que as identidades não
foram formadas apenas a partir de uma visão de mundo secular: “Eu não
concordo, particularmente, com a distinção entre ética e religião1”. Para
Taylor, a democracia requer que todo cidadão utilize, no debate público, a
linguagem que seja mais significativa para todos. Em alguns casos,
argumenta Taylor, é inevitável a formulação nos parâmetros da religião:

Os compatriotas seculares de Martin Luther King foram incapazes de


compreender o que ele estava defendendo quando expressou a questão da
igualdade em termos bíblicos? Mais pessoas teriam entendido a questão se ele
tivesse invocado Kant? (TAYLOR, 2012, p. 187).

Por conseguinte, a linguagem religiosa é também aquela em que as


pessoas consideram significativo codificar sua experiência moral e política.
Em Taylor, a secularização teria que se abrir às argumentações e
linguagens religiosas que formam as identidades, tal qual uma fonte de
sentido de vida e uma esfera de articulação das fontes morais, para além

1
“I don’t agree, particular, about the distinction between ethics and religion” Ver em: TAYLOR, C. Why We need a
radical redefinition of secularism. In: MENDIETA, E.; VANANTWERPEN, J. (Ed.). The power of religion in the public
sphere. New York: Columbia University, 2011a, p. 62.
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 77

do mero individualismo e do sujeito desengajado. Somente no interior de


um horizonte de valores de uma tradição seria possível colocar as questões
da justiça e, assim, responder sobre o que é bom e o que deve valer para a
comunidade, considerando o pano de fundo de suas avaliações e de sua
autocompreensão.

Não estou defendendo nenhuma tese ‘pós-moderna’ no sentido de que cada


um de nós está aprisionado em seu próprio ponto de vista e nada pode fazer
para convencer racionalmente o outro. Pelo contrário, penso que podemos
apresentar argumentos para induzir outros a modificar seus juízos e (o que
está estritamente ligado a isso) a ampliar suas simpatias. Porém, essa tarefa é
muito difícil e, o que é mais importante, jamais estará completa. Nós não nos
decidimos de uma vez por todas deixar nossos valores. Eles não contam
apenas como premissas conscientes que podemos descontar. Eles continuam
a moldar nosso pensamento em um nível mais profundo, e somente um
intercâmbio franco continuado com quem tem pontos de vista diferentes nos
ajudará a corrigir algumas distorções que eles engendram. (TAYLOR, 2010a,
p. 502).

Para Taylor, o projeto do secularismo de justificar uma moralidade


independente das tradições culturais e religiosas fracassou. Seria preciso,
segundo ele, repensar um novo sentido do secularismo que considere as
tradições e religiões como fontes essenciais na formação e constituição das
identidades.

Agora, a noção de que a neutralidade do Estado é basicamente uma resposta á


diversidade tem dificuldade para fazer progresso entre as pessoas “seculares”
do Ocidente, que permanecem curiosamente fixadas na religião como algo
estranho e talvez até ameaçador. Essa postura é alimentada por todos os
conflitos, passados e presentes, dos Estados liberais com a religião, mas
também por uma distinção especificamente epistêmica: o pensamento
religiosamente informado é de algum modo menos racional do que a reflexão
puramente “secular”. A atitude possui um fundamento político (religião como
78 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

ameaça). Mas também epistemológico (religião como uma modalidade


deficiente de razão) (TAYLOR, 2012, p. 187).

As religiões, como fontes morais, ofereceriam às pessoas


determinados critérios, conceitos e juízos que colocam os indivíduos em
relação com o todo da sociedade, e assim o que se anula é toda e qualquer
visão atomista radical de construção das identidades. “As fontes religiosas
abrem as vidas das pessoas para as experiências com a transcendência e
possibilitam assim que se possa pensar em categorias muito mais
expansivas do que o ego solipsista e individualizado em sua racionalidade
particular atomizada” (JÚNIOR, 2018, p. 232). Não se trata, em Taylor, de
negar a modernidade e a era secular, e sim de construir um maior diálogo
com as religiões, haja vista a relevância essencial que elas possuem na
construção das identidades e do reconhecimento. “Porém, a história que
nos interessa não é simplesmente uma história de declínio, mas também
de uma nova determinação do lugar do sagrado ou espiritual na vida
individual e social” (TAYLOR, 2010a, p.513). A crença numa religião
significa, em outros termos, uma articulação crucial para uma
determinada forma de um mundo moral, no sentido de uma descrição de
um modo de vida. Taylor propõe um tipo de modernidade que dialogue
com as religiões, entendendo-as como fontes fundamentais que
constituem as subjetividades dos diversos indivíduos.
Como explica Joel Decothé Junior (2018), a posição de Taylor, em face
da insistência da presença das religiões na esfera pública, não indica a
intencionalidade de se objetivar um retorno à distinção anterior entre
Estado e Igreja. Taylor reconhece que em determinadas esferas a
neutralidade estatal precisa manter uma linguagem laica.

Quando trata disto o filósofo canadense indica que a linguagem legislativa e


judiciaria têm de ser mantida neste patamar isenta de influência direta de uma
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 79

linguagem religiosa no que concerne a tomada de posições deliberativas


(JUNIOR, 2018, p. 227).

Nenhuma doutrina abrangente, seja religiosa ou laica, pode ser


oficializada em termos estatais, porque é a igualdade entre pessoas livres
e cidadãs que deve ser garantida. O poder estatal tem de assegurar a
oportunidade de participação nos processos deliberativos, tanto para
religiosos como para não religiosos, sem nenhum tipo de privilégio para
ambos. Em Taylor, portanto, é fundamental a manutenção da separação
entre Igreja e Estado, como uma garantia da pluralidade na democracia
moderna, o que não significa que a era secular não deva estabelecer um
diálogo com às diversas tradições e doutrinas de fé. “Pensamos que o
secularismo (ou laïcité) tem a ver com a relação entre o Estado e a religião,
quando na realidade tem a ver com a resposta (correta) do Estado
democrático à diversidade” (TAYLOR, 2012, p. 169). Daí, Taylor conclui
que a grande questão deveria ser a de evitar favorecer ou desfavorecer não
apenas orientações religiosas, mas qualquer posição básica, religiosa ou
não, à luz do pluralismo e da diversidade cultural e dos modos de vida. O
Estado, diz Taylor, não pode conceber um reconhecimento especial em
detrimento de outras formas de vida.

Isso não é fácil fazer; as linhas são difíceis de traçar, e devem ser traçadas
sempre de novo. Mas tal é a natureza do empreendimento que é o Estado
secular moderno. E que melhor alternativa existe para democracias diversas?
(TAYLOR, 2012, p. 186).

Se, por um lado, Taylor, com razão, conceitua como as religiões,


mesmo em sociedades modernas e secularizadas, ainda possuem uma
relevância determinante nas constituições das identidades e na esfera do
reconhecimento, por outro lado, cabe interrogar a Taylor como, mesmo
80 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

considerando o pluralismo dos modos de vida, seria possível fundamentar


princípios normativos num mundo marcado por várias concepções de
bens, e não apenas um bem ou doutrina abrangente em particular. No
próximo tópico, avaliaremos algumas das críticas a Taylor, como aquelas
vindas de Jürgen Habermas e seu pós-secularismo, bem como as críticas
de Nancy Fraser e o debate sobre reconhecimento e redistribuição. Além
disso, investigaremos a possibilidade de articularmos uma ética universal,
sem dispensar o contingente, pois entendemos que o debate entre as
chamadas éticas do bem e as do justo é por demais unilateral, como se o
contexto e a universalidade fossem instâncias a priori antagônicas, e não
conciliáveis.

2.3 Críticas a Taylor

2.3.1 Pós-secularismo versus Comunitarismo: a Querela entre Habermas e


Taylor

Habermas (2007) defende que as religiões possuem intuições morais


que podem colaborar no debate público acerca das mais diversas questões,
havendo, inclusive, uma virada pós-secular em sua filosofia, que veremos
no decorrer deste tópico, numa tentativa de propor um diálogo entre
religião e secularismo na democracia. Ele argumenta que, numa teoria
política que trabalha com fundamentos normativos e com as condições de
funcionamento de Estados de direito democrático, a oposição unilateral
entre secularismo e religião coloca em risco a coesão de uma sociedade
multicultural e pluralista. O Estado democrático alimenta-se de uma
solidariedade de cidadãos que se respeitam reciprocamente como
membros livres e iguais de uma comunidade política.
Habermas destaca que é preciso encontrar uma forma de colocar o
privilégio cognitivo das ciências institucionalizadas socialmente, bem
como a precedência do Estado secular e da moral social universalista, em
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 81

consonância com os religiosos, numa sociedade pluralista que se


autodetermina. Ele diz que não pretende apenas colocar em pauta o
fenômeno da persistência da religião nas sociedades contemporâneas,
como se fosse um mero fato social. A filosofia, diz ele, tem de levar a sério
tal fenômeno a partir de dentro, isto é, como um desafio cognitivo.
Habermas (2007) enfatiza que a constituição do Estado liberal obtém
sua legitimação de modo autossuficiente, através de argumentos não
dependentes das tradições religiosas nem metafísicas. Isso não significa,
porém, que as religiões sejam deixadas de lado nos debates públicos. Ele
propõe o conceito de pós-secularismo, como ainda veremos, à medida que
a religião e o secularismo devem participar de um processo de
aprendizagem complementar nos debates públicos. Assim, ele evita
leituras reducionistas que esvaziem qualquer possibilidade de diálogo ou
discussão pública com doutrinas religiosas, mesmo advogando a
neutralidade de visão de mundo das instituições do Estado democrático de
direito.
Ele explica que a interpenetração histórica entre cristianismo e
metafísica grega não produziu apenas a figura da dogmática teológica, ela
promoveu também uma apropriação, por parte da filosofia, de conteúdos
genuinamente cristãos, a saber: responsabilidade, autonomia, justificação,
história, recordação, recomeço, inovação, retorno, emancipação,
completude, renúncia, incorporação, internalização, individualidade e
comunidade. Habermas (2007) cita conceitos bíblicos que foram
traduzidos, ao longo do tempo, para um público em geral de crentes de
outras religiões e de não crentes, ultrapassando os limites de uma
comunidade religiosa particular. Um exemplo seria a tradução da ideia de
que o homem é semelhante a Deus para a ideia da “dignidade do homem”,
de todos os homens, a ser respeitada de modo igual e incondicionado
(fundamento dos Estados democráticos de direito). Outro exemplo seria o
82 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

conceito religioso de tolerância, que, no decorrer dos séculos XVI e XVII,


“[...] passa a ser um conceito do direito” (HABERMAS, 2007, p. 279). Em
Kant, afirma Habermas (2007), a tradução da ideia do Reino de Deus sobre
a Terra para o conceito de uma república de leis virtuosas diz respeito a
uma relevância cognitiva de conteúdos conservados nas tradições
religiosas.
Habermas, então, defende que o pensamento pós-metafísico deve
incluir as tradições religiosas e metafísicas em sua genealogia. Seria
irracional, diz ele, colocar de lado tais tradições por considerá-las um
resíduo arcaico. Que razão, pergunta ele, impediria as religiões de
continuar mantendo potenciais semânticos inspiradores? Habermas
explica que as tradições religiosas não são simplesmente irracionais e
absurdas. Pelo contrário, as grandes religiões mundiais carregam consigo
intuições racionais e momentos instrutivos de exigências legítimas.
O pensamento pós-metafísico de Habermas (2007, p. 162) assume,
portanto, uma dupla atitude perante a religião: “[...] ele é agnóstico e
está, ao mesmo tempo, disposto a aprender”. Para Habermas (2007), as
religiões mantêm viva a sensibilidade para o que falhou no mundo secular,
preservando, na memória, dimensões de nosso convívio pessoal e social,
nas quais os processos de racionalização social e cultural provocaram
danos irreparáveis. Habermas (2007, p. 116) destaca que as ordens liberais
dependem da solidariedade de seus cidadãos e que suas fontes podem “[...]
secar no caso de uma secularização descarrilhadora da sociedade em seu
todo”. Segundo ele (2007), as Escrituras Sagradas e as tradições religiosas
possuiriam intuições sobre a falta moral e a salvação, sobre a superação
salvadora de uma vida tida como sem salvação, as quais são mantidas e
interpretadas durante milênios. Portanto, a formação da opinião e da
vontade não pode censurar a linguagem religiosa, mesmo havendo a
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 83

necessidade de uma fundamentação pós-metafísica e discursiva das


normas, como defende Habermas.
Enquanto a linguagem religiosa trouxer consigo conteúdos
semânticos inspiradores, que não podem ser jogados fora, a filosofia,
mesmo em sua figura pós-metafísica, não poderá desalojar ou substituir a
religião; enquanto não se encontrar no meio da fala argumentativa
palavras melhores para caracterizar aquilo que as religiões sabem dizer, a
existência delas será legítima, mesmo no contexto de um pensamento pós-
metafísico. Habermas insiste, no que diz respeito à política institucional,
na distinção entre a fala discursiva secular, a qual pretende ser acessível a
todos, e a fala discursiva religiosa, dependente das verdades reveladas. As
religiões precisam, no parlamento, traduzir para uma linguagem acessível
suas contribuições sobre as questões da vida. Sem essa tradução, o
conteúdo das vozes religiosas não consegue entrar nas agendas das
instituições.
Tal exigência apenas poderá ser dirigida aos políticos que assumem
mandatos públicos ou pretendem assumir. Eles “[...] são obrigados a
adotar a neutralidade no que tange às visões de mundo” (HABERMAS,
2007, p. 145). Portanto, os religiosos devem reconhecer que o princípio do
exercício do poder é neutro do ponto de vista das visões de mundo. Eles
precisam saber e aceitar que, nas instituições, parlamentos, tribunais e
ministérios, apenas contam argumentos seculares.
No parlamento, diz Habermas (2007), deve-se retirar da ordem do dia
posicionamentos ou justificativas religiosas. Isso não significa que a religião
não possa orientar os indivíduos. Entretanto, deve-se traduzir, como
explicitamos antes, as intuições religiosas para argumentações seculares no
parlamento. Habermas defende que a tradução do idioma religioso para o
secular não implica uma separação rígida entre identidade religiosa e não
religiosa, privada e pública. Sobre isso, Forst (2010, p. 56) comenta:
84 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Essa concepção de justificação não implica que as pessoas, como ‘bons


cidadãos’, tenham de abdicar de sua identidade ética, mas mantém que a
validade universal e obrigatória dos demais valores e das normas que deles
seguem está sujeita a um critério mais amplo – a saber, o consentimento
racional de todos os atingidos.

As normas consideradas justas precisam ser tanto imanentes ao


contexto quanto transcendentes a ele. Precisam reivindicar validade para
uma comunidade particular e suas autocompreensões e instituições
específicas, mas, ao mesmo tempo, devem se apresentar como um espelho
crítico para essas autocompreensões e instituições (FORST, 2010). Trata-
se, em Habermas, como esclarece Delamar Volpato Dutra (2003, p. 227),
de um mesmo mundo da primeira pessoa do plural, da perspectiva do
nós, da universalidade:

Esse mesmo mundo moral inclusivo, igualitário, de justiça, de universalidade,


é uma projeção a partir das condições de possibilidade da comunicação que
estão na base da argumentação. [...] Conforme vai ocorrendo a passagem das
formas de vida convencionais às pós-convencionais, a justiça vai perdendo
substancialidade até se converter num conceito procedimental, no sentido
daquilo que é bom para todos, incluindo todos os afetados.

Para Habermas (2002a), o que está em jogo é a legitimidade de


expectativas e reivindicações que nós impomos não somente como
participantes da situação específica, mas também como alheios a ela, isto
é, para além das grandes distâncias geográficas ou históricas, culturais ou
sociais. Não se trata do que é bom para nós como membros de uma
coletividade (caracterizada por um ethos próprio), mas sim do que é
correto e justo para todos, seculares e religiosos. Diante disso, Forst (2010,
p. 65) nos explica que:
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 85

[...] a neutralidade ética não significa que o direito é inteiramente livre de


valores éticos ou que as comunidades políticas não possam ter ‘avaliações
fortes’. Contudo, impõe determinadas condições para a ‘eticização’ do direito.
Isso não implica uma relação dicotômica entre ética e direito; a separação
entre regulações que devem ser justificadas universalmente em sentido estrito
ou restrito não pode ser determinada em termos de conteúdo.

Uma vez que o princípio da neutralidade se refere primeiramente ao


critério de validade de normas universais, ele não implica uma
neutralidade do processo de justificação no sentido de que argumentos
éticos seriam dele excluídos. O que importa é que os argumentos, quando
propõem valores como fundamentos para regulações universais, possam
ser traduzíveis em argumentos universais, como no caso da religião em
diálogo com o secularismo. Por isso, os argumentos têm de ser compatíveis
com o princípio da justificação pública (FORST, 2010). Eles não se
desvinculam completamente do pano de fundo ético do qual se originam,
como igualmente sugere Forst (2010, p. 66): “Os critérios de
universalidade estrita e limitada não desvinculam de seus contextos sociais
as argumentações nem as normas justificadas”. A defesa de princípios
neutros e imparciais não significa que as relações existentes apareçam
como justificadas no sentido de uma “neutralidade de status quo” e que o
Estado, à medida que não as modifica, permanece “neutro”. Razões
“neutras” devem ser justificadas universalmente, quer falem a favor ou
contra, por exemplo, das/as instituições existentes.
Para Habermas, faz parte das convicções religiosas dos crentes o fato
de que eles devem basear suas decisões de acordo com suas convicções
religiosas. Eles não podem ver isso como uma opção qualquer entre fazer
ou não fazer certas coisas. Do ponto de vista do crente, há um esforço para
atingir a completude e a integridade em suas vidas, através da palavra de
Deus, do ensino da Torá, dos mandamentos e exemplos de Jesus etc. Isso
86 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

configura a existência dos crentes, tal qual um todo incluído, bem como a
existência social e política. Habermas (2013) argumenta que o conflito
sobre a autocompreensão secular da sociedade não pode ser deslocado
apenas para os religiosos. O senso comum não é singular, uma vez que se
estabelece numa esfera pública plural. Portanto, os seculares não devem
chegar a conclusões nos diversos temas, “[...] antes de dar ouvidos à
objeção dos oponentes que se sentem lesados em suas convicções
religiosas” (HABERMAS, 2013, p. 16). Os cidadãos religiosos, na esfera
pública, podem manifestarem-se em sua própria linguagem. Do contrário,
os concidadãos religiosos, nas deliberações públicas, seriam
sobrecarregados de modo assimétrico em relação aos secularizados.
É preciso lembrar que Habermas separa as dimensões da esfera
pública e do parlamento. Em Direito e democracia, ele (1997) diz que a
esfera pública é um “fenômeno social elementar”. Ela é descrita como uma
rede de comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, em
sintonia com a prática comunicativa cotidiana. Habermas argumenta que
a sociedade civil contemporânea se compõe de organizações e associações
que captam os ecos dos problemas sociais ressonantes nas esferas
privadas, transmitindo-os para o sistema político, bem como colocando as
questões à luz da discussão pública. A estrutura comunicacional da esfera
pública possibilita que a sociedade civil reflita sobre os problemas,
conseguindo captá-los e identificá-los antes mesmo do que o sistema
político. Não é o aparelho do Estado nem as grandes organizações,
argumenta Habermas, que geralmente questionam os problemas
existentes na sociedade civil, e sim as iniciativas vindas das esferas
públicas comunicacionais.
A esfera pública forma uma estrutura intermediária que faz a
mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do
mundo da vida, de outro. Habermas explica que, em sociedades complexas
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 87

e pluralistas, aquilo que poderia ser uma esfera pública, como nos moldes
de outrora, ramifica-se em diversos números de arenas internacionais,
nacionais, regionais, comunais e subculturais, que se sobrepõem umas às
outras. Essas redes se articulam objetivamente, de acordo com pontos de
vista funcionais, temas, círculos políticos etc. Assumem também a forma
de esferas públicas “mais ou menos especializadas”, porém ainda
acessíveis a um público de leigos, por exemplo: esferas públicas literárias,
eclesiásticas, artísticas, feministas, entre outras. Além disso, a esfera
pública ramifica-se, na atualidade, em três outras modalidades, levando-
se em consideração a densidade da comunicação, a complexidade
organizacional e o alcance comunicacional, são elas: esfera pública
episódica (bares, cafés, encontros na rua), esfera pública da presença
organizada (encontros de pais, público que frequenta teatro, concertos de
rock, reuniões de partidos ou congresso de igrejas) e esfera pública
abstrata, produzida pela mídia (leitores, ouvintes e espectadores
singulares, espalhados globalmente).
Em Habermas, o sistema político deve estar ligado às redes
periféricas da esfera pública política, por meio de um fluxo de comunicação
que parta das redes informais da esfera pública, institucionalizando-se no
parlamento. Neste, há a ressalva da tradução do idioma religioso para o
secular. O fardo da tradução é compensado pela expectativa normativa,
segundo a qual os cidadãos seculares se abrem a um possível conteúdo de
validade vindo das religiões. Apesar de não passarem por uma censura na
esfera pública, as contribuições religiosas dependem de trabalhos
cooperativos de tradução para poderem entrar na pauta de discussão do
parlamento.
Contudo, Habermas reforça a ideia de um Estado de direito neutro
do ponto de vista das imagens de mundo, pois somente ele está preparado
para garantir a convivência tolerante entre crentes das mais diversas
88 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

religiões e não crentes: a crítica ao secularismo não deve “[...] abrir as


portas para revisões que venham a anular a separação entre Igreja e
Estado” (HABERMAS, 2007, p. 140). Habermas, por meio de seu pós-
secularismo, propõe um diálogo entre tradições seculares e religiosas na
democracia, mantendo, ao mesmo tempo, o caráter secular das
instituições, o que não significa dizer que os seculares tapem seus ouvidos
para as vozes das religiões na esfera pública.
Primeiramente, Habermas (2015, p. 1) ressalta que, para definir-se
como pós-secular, “[...] uma sociedade deve primeiro ter sido secular”.
Para ele, começa a prevalecer na sociedade pós-secular, e não mais apenas
secular, a ideia de que tanto as mentalidades religiosas quanto as seculares
precisam modificar-se de forma reflexiva, aprendendo as contribuições de
uma e de outra para os diversos temas. Nesse sentido, Habermas (2007,
p. 126) explica o porquê do termo pós-secular:

A expressão ‘pós-secular’ foi cunhada com o intuito de prestar às comunidades


religiosas reconhecimento público pela contribuição funcional relevante
prestada no contexto da reprodução de enfoques e motivos desejados. Mas não
é somente isso. Porque na consciência pública de uma sociedade pós-secular
reflete-se, acima de tudo, uma compreensão normativa perspicaz que gera
conseqüências [sic] no trato político entre cidadãos crentes e não crentes.

No pós-secularismo, impõe-se a ideia de que a modernização da


consciência pública abrange, em diferentes fases, tanto mentalidades
religiosas como profanas, transformando-as reflexivamente. Habermas
argumenta que a secularização cultural e social deve ser entendida como
um processo de aprendizagem complementar, que obriga tanto as
tradições do Iluminismo quanto as doutrinas religiosas a refletirem sobre
seus respectivos limites. A consciência religiosa, por sua vez, precisa
assimilar cognitivamente o contato com outras visões de vida: ela deve
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 89

abrir-se às premissas do Estado constitucional, que se fundamenta em


uma moral profana.
A compreensão pluralista da tolerância em sociedades pós-seculares
exige dos crentes e não crentes a compreensão razoável de que eles têm de
contar com a permanência de um dissenso. A neutralidade, em termos de
visões de mundo do Estado secular, garantidora de iguais liberdades éticas
para cada cidadão, não diz respeito, contudo, à generalização política de
uma visão de mundo secularista. Esse é um aspecto novo no pensamento
de Habermas. Ele defende que, embora o caráter secular do Estado seja
uma condição necessária, ainda não é algo suficiente.
A expressão pós-secular, tal qual explica Luiz Bernardo Leite Araújo
(2013), não é uma alternativa ao horizonte pós-metafísico da
modernidade. O pós-secularismo permanece secular a despeito do prefixo
pós, correspondendo a uma mudança de mentalidade ou a uma alteração
crítica do autoentendimento secularista de sociedades que se tornaram
conscientes da persistência da religião, de sua relevante contribuição para
a vida política. A tradução cooperativa de conteúdos religiosos remete a
uma ética da cidadania cuja realização depende de enfoques epistêmicos
mediante os quais as dissonâncias cognitivas sejam tratadas como
desacordos razoáveis entre todas as partes engajadas em processos de
aprendizagem complementares. Segundo Habermas, o pensamento pós-
metafísico deve adotar uma atitude simultaneamente agnóstica e receptiva
diante da religião, que se oponha a uma determinação estritamente
secularista das razões publicamente aceitáveis, sem comprometer,
entretanto, sua autocompreensão secular.
Habermas (2007) não abdica, como mostramos antes, da
autocompreensão secular da modernidade, a qual é derivada da
reconstrução racional de uma lógica do desenvolvimento, na qual a
racionalização das imagens religiosas de mundo, como processo de
90 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

aprendizagem, desempenha um papel de considerável relevância. Ele, por


outro lado, questiona, sem deixar de estar em consonância com seu projeto
teórico, a leitura secularista do processo de modernização.
O pensamento pós-secular reconhece a importância das tradições
religiosas no trato de intuições morais profundas e na articulação daquilo
que falta ou que se perdeu, não pretendendo despi-las de possíveis
conteúdos racionais, nem as desvalorizar como resíduos arcaicos de uma
figura do espírito superada pelas ciências. Habermas propõe uma
reavaliação da tese tradicional da secularização a partir do
questionamento do secularismo ou laicismo como visão de mundo.
Habermas (2015, p. 2-3), assim, diferencia o conceito de secular/laico de
secularista/laicista, em artigo publicado no jornal La Repubblica:

Aqui eu gostaria de fazer uma distinção entre laico e laicista, entre secular e
secularista. A pessoa laica, ou não crente, se [sic] comporta com agnóstica
indiferença em relação às pretensões religiosas de validade. Os laicistas, ao
contrário, assumem uma atitude polêmica em relação àquelas doutrinas
religiosas que (embora cientificamente infundadas) têm grande relevância na
opinião pública. Hoje, o secularismo se apoia frequentemente em um
naturalismo hard, justificado em termos cientificistas. Pergunto-me se – para
os fins da autocompreensão normativa de uma sociedade pós-secular – uma
mentalidade laicista hipoteticamente generalizada não acabaria sendo
igualmente pouco desejável em comparação com um desvio fundamentalista
dos crentes. Na realidade, o processo de aprendizagem deveria ser prescrito
não só para o tradicionalismo religioso, mas também para a sua contrapartida
secularizada. [...] é preciso que o Estado não reduza preventivamente a
complexidade polifônica das diversas vozes públicas. Se, em relação aos seus
concidadãos religiosos, as pessoas laicas tivessem que pensar que não podem
levá-los a sério como autênticos contemporâneos da modernidade – por causa
da sua atitude religiosa, então se deslizaria de volta para o plano do mero
modus vivendi e se perderia aquela ‘base do reconhecimento’ que é
constitutiva da cidadania.
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 91

Habermas (2015), porém, preserva o ganho histórico da


secularização das instituições e da separação entre Igreja e Estado, sendo
algo, para ele, inegociável e de absoluta importância. No pós-secularismo,
o Estado continua sendo neutro em termos de concepção de mundo, mas
não seria secularista ou laicista, no sentido de defender uma ideologia que
excluísse a religião (ROUANET, 2010). Habermas (2012a, p. 324) critica o
que denomina de “Aufklärungsfundamentalismus”, ou seja, um tipo de
visão secularista ou laicista de mundo que coloca as religiões em segundo
plano ou as trata como algo puramente irracional e sem valor.
A palavra secularização teve, a princípio, explica Habermas (2013), o
significado jurídico de uma transferência dos bens da Igreja para o poder
público secular. Esse significado foi transmutado para o surgimento da
modernidade cultural e social como um todo. Desde então, diz ele,
apreciações opostas têm sido associadas à secularização, a saber: uma de
caráter plenamente otimista, com o modelo progressista de uma
modernidade desencantada; e outra pessimista, vinda de religiões
fundamentalistas, que consideram a modernidade como uma época
desamparada. Para Habermas, as duas explicações cometem o mesmo
erro. Elas consideram um jogo de soma zero entre, de um lado, as forças
produtivistas da ciência e da técnica, liberadas pelo capitalismo, e, de
outro, os poderes conservadores da religião. Essa imagem não é adequada
para uma sociedade pós-secular e pluralista que se ajusta à sobrevivência
de comunidades religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante.
Como lembra Habermas (2002a), a unidade da razão fundamenta-se
na pluralidade de suas vozes, na inclusão de todos no debate público, sejam
crentes ou não. Para ele, é intrínseca a ideia de uma razão que una, sem
reduzir o que é distinto ao denominador comum, que entre estranhos torne
reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua particularidade.
Todavia, não há, nas éticas do bem, uma resposta satisfatória que mostre
92 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

como uma determinada visão de bem seria capaz de abrigar o pluralismo de


nosso tempo. A crítica a posturas como a de Taylor é a de que legitimam a
ideia de que todas nossas valorações são fundamentalmente dependentes de
uma tradição cultural determinada. Como, então, estabelecer critérios de
julgamento para uma determinada cultura, à luz de uma sociedade
pluralista?
Apesar de Habermas reconhecer a importância das intuições
religiosas nos debates públicos, desde que traduzidas para uma linguagem
pública e secular, ele preserva o não nivelamento entre fé e saber,
distinguindo entre discursos religiosos enquanto específicos das diferentes
confissões de fé, que pressupõem apenas uma determinada visão de
mundo mesmo que com pretensões universalistas (em se tratando das
grandes religiões), de discursos válidos para todos à luz de argumentos
seculares ou traduzidos para uma linguagem pública e secular. “A filosofia
não pode apoderar-se daquilo que é tratado no discurso religioso enquanto
experiência religiosa” (HABERMAS, 2001, p. 127).
Habermas insiste na diferença entre fé e saber, uma vez que o
discurso teológico é dependente das verdades reveladas, ao passo que o
filosófico é fundamentalmente de caráter argumentativo. Essa é a
principal divergência que há entre Habermas e Taylor sobre o tema da
religião e do secularismo, claramente exposta num debate entre os dois
(MENDIETA; VANANTWERPEN, 2011). Habermas reforça a ideia de que o
pensamento pós-metafísico não necessita recorrer a um Deus ou a um
absoluto. Já para Taylor (2011), como vimos, seria ilusória a tentativa de
estabelecer uma prioridade de um discurso (secular, por exemplo) frente
a algum outro, mesmo Habermas destacando o papel positivo que as
religiões podem desempenhar na democracia, quando traduzem suas
intuições fundamentais para uma linguagem pública e secular.
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 93

Taylor é crítico da exigência de argumentações secularizadas nos


debates públicos, pois nem todas as sociedades passaram por processos de
secularização, em que as identidades de tais sujeitos não foram formadas
à luz de uma visão de mundo secular. O que está subjacente a Habermas,
critica Taylor (2012, p. 185), é algo como uma distinção epistêmica,
havendo supostamente, nas éticas do justo, uma razão secular que todos
pudessem usar e tirar conclusões, tal qual uma esfera neutra: “Portanto, a
razão religiosa ou chega às mesmas conclusões da razão secular, mas então
é supérflua, ou chega a conclusões contrárias, e então é perigosa e
perturbadora. É por isso que ela precisa ser deixada de lado”.
Sobre Habermas, Taylor diz que, apesar de ele reconhecer o papel
e a importância das intuições religiosas nos debates públicos, sendo uma
mudança significativa na obra de Habermas, este ainda conferiria
vantagem ao modelo secular de ética, na sua forma de argumentação e
justificação pública. Dessa forma, o modelo pós-secular de Habermas
seria, para Taylor, tão secular como qualquer outro. Segundo Taylor, a
democracia requer que todo cidadão utilize, no debate público, a linguagem
que seja mais significativa para todos. Já para Habermas, é essencial a
tradução do idioma religioso para o secular, em busca de uma forma de
justificação pública e deliberativa. Isso, para Taylor (2010, p. 626), constitui
uma “[...] imposição intolerável à fala cidadã”. Taylor (2012) destaca que
Habermas reserva uma posição especial para a razão secular, como se
apenas em tal esfera fosse possível resolver problemas de legitimidade
normativa entre culturas e visões de mundo diversas.
Para Taylor (2012), a proposta de Habermas, ao escolher um
determinado conjunto de condições a serem preenchidas para a validade
das normas morais, estaria se vinculando, ela mesma, a um ethos
particular. A reflexão habermasiana estaria permeada de valores
constituídos historicamente por um tipo de sociedade cujas práticas não
94 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

seriam, de fato, universais, mas sim resultado também de uma


determinada cultura. Taylor afirma, como vimos ao longo deste livro, que
o contexto de justiça deve ser o de uma comunidade que, em seus valores,
práticas e instituições, forma um horizonte constitutivo para a identidade
de seus membros.
Em Taylor (2012), somente no interior desse horizonte de valores
seria possível colocar as questões da justiça e, assim, responder sobre o
que é bom e o que deve valer para a comunidade, considerando o pano de
fundo de suas avaliações e de sua autocompreensão. Dessa forma,
princípios de justiça resultariam de um dado contexto comunitário, como
uma religião que forma as identidades e valores de uma comunidade.
Todas as tentativas de fundamentação deontológica de normas fundadas
em procedimentos formais, como em Habermas, diz Taylor,
permaneceriam externas e estranhas aos contextos, sendo uma imposição
do modo de vida secular, violentando a autocompreensão de sujeitos que
se formaram a partir de um horizonte religioso.
Afinal, Taylor defende uma ontologia moral, isto é, uma teoria do
bem, a fim de que haja uma conexão entre sentidos do eu e visões morais,
ou seja, entre identidade e bem. Assim, a distinção entre questões morais
e de boa vida, como igualmente a prioridade do justo sobre o bem,
destinadas a estabelecer os limites entre as exigências de validade
universal e os bens variáveis segundo as culturas, tornam-se, para Taylor,
distinções contraditórias, pois elas seriam motivadas por fortes ideais,
como liberdade, altruísmo e universalismo, que estão entre as aspirações
morais modernas e seculares, portanto também contextuais. Nessa
perspectiva, qualquer tentativa de apelar para princípios universais seria
algo sem sentido, assim como defender uma prioridade do justo sobre o
bem, tal qual Habermas o faz. Para Taylor, o projeto do secularismo de
justificar uma moralidade independente fracassou. O que está em jogo,
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 95

contudo, para Habermas, é a questão de como justificar normas a partir


do fato do pluralismo moderno e simbólico.
A teoria de Taylor, porém, não oferece nenhuma saída para o
problema colocado por Habermas, a saber: como fundamentar normas
numa modernidade pluralista e diferenciada? Taylor, apesar de apontar
para uma dimensão determinante, qual seja, os contextos intersubjetivos
formadores das identidades coletivas (as religiões, inclusive), não
consegue propor uma saída para os dilemas do relativismo cultural, ou
seja, como fundamentar normas num mundo plural. Ele não explica como
seria o procedimento de definição da concepção de bem mais valiosa para
uma sociedade caracterizada pelo pluralismo de valores e crenças. A nosso
ver, não há, em Taylor, uma resposta satisfatória que mostre como uma
determinada visão de bem seria capaz de abrigar o pluralismo de nosso
tempo. Tal qual explicita Sonia E. Rodríguez García (2020), Taylor não
realiza uma exposição detalhada acerca de uma democracia capaz de
propor condições de legitimidade à luz de um pluralismo.
A crítica a posturas como a de Taylor é a de que esta legitima a ideia
de que todas nossas valorações são fundamentalmente dependentes de
uma tradição cultural determinada. Como, então, estabelecer critérios de
julgamento para sociedades pluralistas e diferenciadas na perspectiva de
Taylor? Ou como comparar as diferentes tradições culturais? São
indagações às quais Taylor não responde.
Habermas defende que são fundamentais os procedimentos
deliberativos, e não propriamente um determinado conceito de vida boa ou
conteúdos valorativos de uma determinada tradição ou religião. Para Seyla
Benhabib (2006), há, em Taylor, uma ideia de cultura como algo fixo e
homogeneizado a partir da perspectiva de uma unidade no interior das
culturas. Habermas aponta que seria injusto privilegiar uma ou outra
noção ontológica de bem (porque como transcendental qualquer ontologia
96 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

é impossível), tendo como horizonte o fato do pluralismo moderno e a


necessária construção de normas validadas por todos (crentes e não
crentes). Segundo ele, a concessão de iguais liberdades éticas exige a
secularização do poder do Estado em termos de secularização das
instituições. Entretanto, isso não significa, como vimos antes, uma
generalização política de uma visão de mundo secularista, tal qual uma
ideologia.
Na perspectiva habermasiana, o comunitarismo de Taylor não pode
defender um tipo de preservação de culturas e identidades, pois a
manutenção de um contexto cultural permanece, no pluralismo moderno,
uma opção para as pessoas, não uma obrigação, como Taylor parece
defender com as avaliações fortes, como vimos antes. Tal qual ressalta
Forst, “[...] a pertença a uma forma de vida tradicional deve permanecer
voluntária” (FORST, 2010, p.104). Ele argumenta, seguindo Habermas,
que Taylor coloca exigências muito elevadas sobre a homogeneidade de
uma população que, no entanto, são muito difíceis de conciliar com o fato
de sociedades ética, étnica e culturalmente pluralistas. Forst, defende que
não “[...] seria adequada uma filosofia social que se apoiasse em conceitos
éticos de vida boa, sem expô-los mais uma vez à autoridade de justificação
dos concernidos” (FORST, 2018, p.20). Taylor, portanto, segundo Forst,
sobrecarregaria eticamente a ideia da cidadania. Uma comunidade não
pode afirmar sua história sem questioná-la, pois, ela é também a história
da exclusão com base em critérios sociais, de condição de classe e de
especificidade de gênero.
Há, por exemplo, em Taylor, uma perspectiva de tolerância,
relacionada com a estima, que implica uma ideia de reconhecimento
mútuo entre cidadãos, à medida que a tolerância, no sentido da estima,
não apenas significaria o respeito pelos membros de outras formas de vida
cultural, mas levaria em consideração algum tipo de estima ética, total ou
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 97

parcial, por aquelas formas de vida como opções sociais valiosas. Tal
concepção permite a Taylor (1994) afirmar que o não reconhecimento ou
o reconhecimento errôneo podem causar danos e formas de opressão,
aprisionando alguém em ma modalidade de ser falsa, distorcida e
redutora, de modo que o devido reconhecimento não é uma mera cortesia
que devemos conceder às pessoas. É, em realidade, uma necessidade
humana vital, como já explicitamos ao longo deste livro.
No entanto, para Habermas (2002a) e Forst (2009), a tolerância não
deve ser confundida com estima por uma cultura e forma de vida alheias
ou por convicções e práticas rejeitadas. A base do reconhecimento não
deve ser a estima, e sim uma consciência de pertencer a uma comunidade
inclusiva de cidadãos com direitos iguais, pois cada um é responsável
perante os outros. Crenças ou práticas que devem ser “[...] toleradas
continuam sendo vistas pelo tolerante como eticamente erradas. Tolerá-
las por respeito não é compreendê-las ou nutrir algum tipo de estima por
elas” (FORST, 2009, p. 25). Nesse sentido, Habermas (2004, p. 53) destaca
que devemos tolerar as crenças de outras pessoas “[...] sem aceitar a sua
verdade, e tolerar outros modos de vida sem apreciar o seu valor
intrínseco”.
A concepção de tolerância, como respeito, apresentada por Forst
(2009) e adotada por Habermas, é aquela na qual as partes tolerantes
reconhecem umas às outras como sujeitos pertencentes a uma
intersubjetividade: embora difiram em suas convicções éticas a respeito
do bem e do modo de vida legítimo e em suas práticas culturais,
sustentando em muitos aspectos visões incompatíveis, elas se respeitam
mutuamente como moral e politicamente iguais.

É necessário haver tolerância, caso se pretenda que permaneça intacto o


fundamento do respeito recíproco das pessoas do direito uma pelas outras.
O preço por ‘suportar’ diferenças éticas desse tipo também é juridicamente
98 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

exigível, desde que se assegure o direito a uma coexistência de diferentes


formas de vida. (HABERMAS, 2002a, p. 312).

Em Habermas, a tolerância como respeito relaciona-se com a


prática discursiva dos sujeitos que deliberam acerca do que pode ou não
ser aceito conjuntamente. No pós-secularismo, a tolerância não pode ser
concedida exclusivamente por uma autoridade religiosa nem por uma
secular em particular. Em realidade, crentes e não crentes devem
participar conjuntamente das deliberações no Estado democrático de
direito. Não é à toa que Goethe e Kant, como demonstra Forst (2009),
rejeitavam uma determinada concepção de tolerância, no sentido de uma
benevolência desdenhosa. O primeiro considerava a tolerância um
insulto; o segundo, uma ideia arrogante. Para Habermas, que entende a
tolerância como respeito, os sujeitos têm de levar em conta a perspectiva
de todos os outros, caso pretendam chegar a um acordo razoável que
contemple crentes e não crentes. Nesse contexto, diz Forst (2009, p. 21):

[...] a concepção como respeito é aquela na qual as partes tolerantes


reconhecem uma à outra em um sentido recíproco: embora difiram
notavelmente em suas convicções éticas a respeito do bem e do modo de
vida legítimo e em suas práticas culturais, e sustentem em muitos aspectos
visões incompatíveis, elas se respeitam mutuamente como moral e
politicamente iguais, no sentido de que sua estrutura comum de vida social
deve – na medida em que questões fundamentais de reconhecimento de
direitos e liberdades e de distribuição de recursos estejam envolvidos – ser
guiada por normas que todos possam igualmente aceitar e que não
favoreçam uma ‘comunidade ética’ específica, por assim dizer.

Para Habermas, seguindo Forst, os sujeitos (crentes ou não) são livres


à medida que participam das construções das normas. A tolerância como
respeito, em Habermas e Forst, ao contrário da tolerância enquanto
estima, como há em Taylor, deve ser entendida como a expressão do
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 99

sentido de inclusão simétrica de todos os cidadãos. Assim, o secular não


necessariamente tem obrigação de ter estima pela visão religiosa do
crente, e sim respeito. O reconhecimento tem de ser pressuposto, caso se
pretenda institucionalizar corretamente a tolerância com pessoas que
seguem outras crenças ou que pensam de modo diferente. Na tolerância
habermasiana, devemos continuar respeitando o outro, mesmo quando
avaliamos a sua fé ou seu pensamento como falso ou rejeitamos a
correspondente conduta de vida como ruim.

Inclusão não significa aqui confinamento dentro do próprio e fechamento


diante do alheio. Antes a ‘inclusão do outro’ significa que as fronteiras da
comunidade estão abertas a todos – também e justamente àqueles que são
estranhos um ao outro – e querem continuar sendo estranhos. (HABERMAS,
2002a, p. 8).

A tolerância, em Habermas (2002a), deve preservar uma


comunidade política de se dilacerar em meio a conflitos oriundos de visões
de mundo diferentes. Por isso, para ele, a tolerância não tem a ver com a
indiferença, uma vez que há sempre a perspectiva de se colocar no lugar
do outro, mesmo mantendo-se o dissenso em termos de visões de mundo.
A tolerância, segundo ele, é apenas possível quando os participantes das
deliberações apoiam uma não concordância que possa ser prosseguida de
modo razoável, em uma perspectiva de justiça procedimental ou, como diz
Forst (2010), no princípio de justificação da justiça.
Como lembra Habermas (2002a), a unidade da razão fundamenta-se
na pluralidade de suas vozes, na inclusão de todos no debate público, sejam
crentes ou não. Para ele, é intrínseca a ideia de uma razão que una, sem
reduzir o que é distinto ao denominador comum, que entre estranhos torne
reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua particularidade.
100 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Em sociedades multiculturais, a constituição jurídico-estatal só pode tolerar


formas de vida que se articulem no medium de tradições não-
fundamentalistas [sic], já que a coexistência eqüitativa [sic] dessas formas
de vida exige o reconhecimento recíproco das diversas condições culturais
de concernência ao grupo: também é preciso reconhecer cada pessoa como
membro de uma comunidade integrada em torno de outra concepção
diversa do que seja o bem, segundo cada caso em particular. (HABERMAS,
2002a, p. 253).

É com base na tolerância como respeito, e não necessariamente como


estima, que devemos pensar a relação entre secularismo e religião no pós-
secularismo de Habermas. A nosso ver, as éticas do bem, tal qual vimos
em Taylor, apesar de apontarem para uma dimensão determinante, a
saber, os contextos intersubjetivos e culturais formadores das identidades
coletivas, não conseguem conferir normas imparciais dos conflitos morais
que transcendam um determinado contexto específico (religioso, por
exemplo) nem propor uma saída para os impasses do relativismo cultural.
Como avaliar, por exemplo, se uma determinada tradição é benéfica ou
não? Nancy Fraser, por sua vez, articula uma crítica às éticas do bem, que
se guiam, sobretudo, pela ideia do reconhecimento, como há em Taylor.
Fraser fala de dois campos que tradicionalmente estão em disputa.
De um lado, encontram-se os proponentes da redistribuição.
“Apoiando-se em antigas tradições de organizações igualitárias,
trabalhistas e socialistas, atores políticos alinhados a essa orientação
buscam uma alocação mais justa de recursos e bens” (FRASER, 2007a, p.
101). De outro lado, estão os proponentes do reconhecimento. “Apoiando-
se em novas visões de uma sociedade “amigável às diferenças”, eles
procuram um mundo em que a assimilação às normas da maioria ou da
cultura dominante não é mais o preço do respeito igualitário” (FRASER,
2007a, p. 102).
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 101

Membros do primeiro campo esperam redistribuir a riqueza dos


ricos aos pobres; membros do segundo, ao contrário, buscam o
reconhecimento das distintas perspectivas das minorias étnicas, como
Taylor. A orientação redistributiva tem uma linhagem filosófica distinta da
do reconhecimento, já que as reivindicações redistributivas se orientam
com vistas à justiça social. O segundo grupo, por sua vez, busca
desenvolver um novo paradigma normativo que coloca o reconhecimento
em seu centro, tal qual há em Taylor. Fraser tenta articular uma terceira
posição. Sua tese é de que as lutas por reconhecimento devem incluir ao
mesmo tempo as reivindicações por redistribuição. Isto tem como
consequência uma crítica tanto às teorias da redistribuição, que não levam
em conta as lutas por reconhecimento, como também às lutas por
reconhecimento que não levam em consideração as demandas por
redistribuição, como veremos a seguir.

2.3.2 Nancy Fraser e a Crítica às Políticas do Reconhecimento

Fraser destaca que os dois campos (redistribuição e reconhecimento)


vivem atualmente uma polarização. Os proponentes da redistribuição
entendem as reivindicações de reconhecimento das diferenças como uma
falsa consciência, um obstáculo ao alcance da justiça social. Inversamente,
os defensores das políticas de reconhecimento, como Taylor, rejeitariam as
políticas redistributivas por identificarem que outras esferas são
fundamentais para a formação das identidades dos sujeitos, como a
eticidade, não podendo ser reduzidas às demandas por redistribuição.
“Nesses casos, realmente estamos diante de uma escolha: redistribuição ou
reconhecimento? Política de classe ou política de identidade?
Multiculturalismo ou igualdade social”? (FRASER, 2007a, p.103). Todavia,
segundo Fraser, essas são falsas antíteses. A justiça, hoje, requer tanto
redistribuição quanto reconhecimento; nenhum deles, sozinho, é suficiente.
102 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

A questão, para Fraser, é como combinar ambas as perspectivas. Ela


sustenta que os aspectos emancipatórios das duas problemáticas precisam
ser integrados em um modelo abrangente e singular, a saber: um projeto
capaz de acomodar tanto as reivindicações por igualdade social quanto as
de reconhecimento. Daí, Fraser entra na disputa, discutida anteriormente,
entre as chamadas éticas do bem e as do justo, ou seja, entre a eticidade
hegeliana e a moralidade kantiana. Segundo ela, a maioria dos filósofos
partidários da redistribuição alinham-se com o campo conceitual da
moralidade kantiana; já os do reconhecimento com a eticidade hegeliana,
como Taylor. “Esse contraste é, em parte, uma questão de perspectiva”
(FRASER, 2007, p. 104). Pensadores de matriz kantiana insistem que o
justo deve ter prioridade sobre o bem. Para eles, as demandas por justiça
estão acima das reivindicações identitárias.
Já para os comunitaristas a noção de uma moralidade,
independentemente de qualquer ideia do bem, seria incoerente. Eles
rejeitam, como vimos, um suposto formalismo vazio das abordagens
distributivas. A ética, para comunitaristas como Taylor, seria uma questão
relacionada à vida boa e à eticidade. “Por detrás do problema da
desigualdade e da justiça reside algo de mais profundo, que diz respeito ao
que hoje chamaríamos de “identidade” dos seres humanos naquelas
sociedades mais antigas” (TAYLOR, 2010b, p. 61).
A perspectiva de Taylor, segundo Fraser, complica o problema de
integrar redistribuição com reconhecimento. A redistribuição pertenceria
ao campo da moralidade deontológica, enquanto o reconhecimento à
eticidade hegeliana. Não por acaso muitos teóricos deontológicos rejeitam
as reivindicações por reconhecimento como violações à neutralidade
liberal, por defenderem que a justiça distributiva esgota a moralidade
política; enquanto os partidários do reconhecimento concluem que as
demandas morais vindas das comunidades intersubjetivas excedem as
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 103

capacidades dos modelos distributivos. Ambos os lados, assim, nunca se


encontrarão. Para Fraser, porém, é possível integrar os dois lados. Ela
articula uma política do reconhecimento que não se vincule
prematuramente à eticidade. Ela entende que as lutas por reconhecimento
são reivindicações por justiça, a partir de uma noção ampla de justiça. O
reconhecimento não poderia ser sinônimo apenas de identidade cultural
específica de um grupo. O modelo do reconhecimento pautado pela
identidade seria, para Fraser, problemático, pois ele destaca a estrutura
psíquica em detrimento das instituições sociais e da interação social.

O modelo agrava esses riscos, ao posicionar a identidade de grupo como o


objetivo do reconhecimento. Enfatizando a elaboração e a manifestação de
uma identidade coletiva autêntica, auto-afirmativa e auto-poética, ele submete
os membros individuais a uma pressão moral a fim de se conformarem à
cultura do grupo. Muitas vezes, o resultado é a imposição de uma identidade
de grupo singular e drasticamente simplificado que nega a complexidade das
vidas dos indivíduos, a multiplicidade de suas identificações e as interseções
de suas várias afiliações. Além disso, o modelo reifica a cultura. Ignorando as
interações transculturais, ele trata as culturas como profundamente definidas,
separadas e não interativas, como se fosse óbvio onde uma termina e a outra
começa. Como resultado, ele tende a promover o separatismo e a enclausurar
os grupos ao invés de fomentar interações entre eles (FRASER, 2007a, p.107).

Então, para Fraser, o modelo da identidade se aproxima de formas


repressivas do comunitarismo. Ela prefere um outro caminho para tratar
o reconhecimento, a saber, a perspectiva do status social ou modelo de
status. Em Fraser, o reconhecimento não é a identidade específica de um
grupo, mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais
na interação social. O não reconhecimento, por conseguinte, não significa
depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário, ele
significa subordinação social no sentido de ser privado de participar como
104 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

um igual na vida social. Segundo Fraser, reparar a injustiça certamente


requer uma política de reconhecimento, mas isso não significa uma
política de identidade.

Geralmente, o reconhecimento é entendido como um problema da boa vida.


Essa é a perspectiva tanto de Charles Taylor quanto de Axel Honneth, os dois
teóricos contemporâneos mais proeminentes do reconhecimento. Para ambos,
ser reconhecido por um outro sujeito é uma condição necessária para a
formação de uma subjetividade integral e não distorcida. Negar a alguém o
reconhecimento é privá-lo dos pré-requisitos fundamentais para o pleno
desenvolvimento humano (FRASER, 2007a, p. 111).

No modelo de status, proposto por Fraser, uma política de


reconhecimento visa a superar a subordinação, fazendo do sujeito
falsamente reconhecido um membro integral da sociedade, capaz de
participar com os outros membros como iguais. Portanto, entender o
reconhecimento como uma questão de status significa examinar os
padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus efeitos
sobre a posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais padrões
constituem os atores como parceiros, capazes de participar como iguais,
como os outros membros, na vida social, aí nós podemos falar de
reconhecimento recíproco e igualdade de status. Assim, o não
reconhecimento aparece quando as instituições estruturam a interação de
acordo com normas culturais que impedem a paridade de participação.
Em suma, o reconhecimento não se prenderia a um vínculo
identitário específico de uma comunidade, e sim à perspectiva de ser um
parceiro na interação social, como iguais com os demais. O sujeito, antes
de tudo, é um parceiro integral na vida social, capaz de interagir com os
outros como um par. O modelo proposto por Fraser evita, por exemplo,
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 105

que possamos entender a identidade cultural como uma essência,


valorizando a interação entre grupos, em oposição a um enclausuramento.
Daí, Fraser argumenta que a questão do reconhecimento não pode se
restringir à eticidade, como parece ser o caso de Taylor. O reconhecimento
seria, acima de tudo, uma questão de igualdade de status, definido como
paridade participativa. Fraser, por isso, afirma que sua proposta de
reconhecimento se vincula a uma “abordagem deontológica do
reconhecimento” (FRASER, 2007a, p.109-110). Tal modelo tenta se
desvincular de uma dependência direta a um específico e substantivo
horizonte de valor. Fraser, então, ressalta que seu modelo é compatível
com a prioridade do justo sobre o bem, alinhando-se à moralidade, em
contraposição à eticidade. Ela, com isso, tenta relacionar o
reconhecimento, não com a identidade, e sim com a redistribuição e a
chamada igualdade de status. “Alargando a noção de moralidade, evitarei,
então, voltar-me prematuramente para a ética” (FRASER, 2007a, p.110).
Assim, Fraser questiona que, em Taylor, o reconhecimento se reduz a um
problema de reconhecimento das identidades culturais.
Ela defende que sua teoria, por se filiar a um padrão deontológico,
permite que as reivindicações por reconhecimento se justifiquem como
moralmente vinculantes sob condições modernas do pluralismo
valorativo. Sob essas condições, Fraser diz que não há nenhuma concepção
de vida boa que seja universalmente compartilhada. “Desse modo,
qualquer tentativa de justificar reivindicações por reconhecimento que
apele para uma concepção de boa vida será necessariamente sectária”
(FRASER, 2007a, p.112). Segundo ela, o modelo de status é deontológico e
não sectário, pois sustenta que cabe aos sujeitos e grupos definir para si
próprios o que conta como uma vida boa, criando, para eles mesmos, uma
forma de alcançar uma determinada forma de vida.
106 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

A paridade participativa de Fraser advoga que reivindicações por


reconhecimento sejam justificadas como normativamente vinculantes
para todos aqueles que concordem em seguir os termos justos da
interação, sob condições do pluralismo valorativo. O reconhecimento,
portanto, deve ser tratado como uma questão de justiça, e não apenas de
valorização de identidades. Fraser fala acerca de um combate às
desigualdades distributivas, em que as lutas por reconhecimento devem se
filiar às demandas por redistribuição, não se isolando apenas em
reivindicações de identidades. Uma teoria da justiça deveria ir além dos
padrões de valorização cultural, examinando a estrutura do capitalismo.
Ela deve considerar se os mecanismos econômicos impedem a paridade de
participação na vida social.
É preciso que uma teoria do reconhecimento não assuma apenas a
defesa de uma política cultural das identidades pertencentes a uma
comunidade, haja vista que uma luta por reconhecimento mais ampla deve
incluir, como vimos, uma “política social da igualdade” (FRASER, 2006, p.
231). Somente integrando reconhecimento com redistribuição é que
podemos chegar a um quadro conceitual adequado às demandas de nossa
época. Fraser (2007b) ressalta que, por exemplo, houve um relativo
desprezo pelas questões de redistribuição de setores do movimento
feminista e de movimentos progressistas. Isso favoreceu setores
conservadores na conquista do eleitorado popular. “Muitos observadores
notaram que a direita teve algum sucesso em mostrar as feministas dos
Estados Unidos como profissionais de elite e humanistas seculares que
desprezam as mulheres comuns, especialmente as trabalhadoras e
religiosas” (FRASER, 2007b, p. 301). O fato é que, para Fraser, o
feminismo falhou ao tentar alcançar estratos das mulheres trabalhadoras
e de classe baixa, atraídas, nas últimas décadas, pela religião evangélica.
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 107

Segundo Fraser, a religião evangélica, nos Estados Unidos, e podemos


dizer no caso do Brasil, responde à emergência de um novo tipo de
sociedade, denominada por Fraser de “sociedade da insegurança”
(FRASER, 2007b, p. 302). Essa sociedade é a sucessora da “sociedade da
seguridade”, que estava associada à social democracia. Diferentemente
desta, a nova sociedade institucionaliza uma crescente insegurança nas
condições de vida da maioria das pessoas. “O resultado é uma grande
sensação de insegurança, à qual o cristianismo evangélico responde”
(FRASER, 2007b, p. 302). A religião evangélica forneceria às pessoas um
discurso e um conjunto de práticas através das quais elas podem gerir a
insegurança, fornecendo-lhes um sentido à vida. Fraser explicita a
dificuldade que o movimento feminista e setores progressistas têm de se
comunicar com mulheres pobres e evangélicas, ao mesmo tempo em que
não se consegue dizer o que o feminismo os pode oferecer em troca. Seria
preciso, afirma Fraser, como vimos antes, integrar as políticas de
reconhecimento com as de redistribuição. Dessa forma, Fraser defende
uma concepção ampla da justiça, orientada pela paridade participativa,
incluindo tanto redistribuição quanto reconhecimento, sem reduzir um ao
outro. A redistribuição e o reconhecimento seriam duas dimensões
mutuamente irredutíveis.
Apesar das críticas relevantes de Habermas, Forst e Fraser a Taylor e
à tradição comunitarista, não seriam também tais leituras e interpretações
das éticas do bem limitadas, à medida que eles não consideram o caráter
universal das éticas ontológicas? A nosso ver, o debate entre a eticidade e a
moralidade, assim como entre comunitaristas e liberais, é, em grande
parte, limitado por interpretações unilaterais, seja na crítica ou na defesa
do comunitarismo. As éticas de matrizes aristotélicas e hegelianas são
interpretadas puramente como éticas contextuais, sem universalidade.
Como pensar um outro caminho para além da controvérsia entre liberais e
108 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

comunitaristas2? Habermas, Forst e Fraser concebem o bem num sentido


rigorosamente particularista. Eles não mencionam que os éticos gregos e
medievais sempre defenderam uma ética do bem, sem reduzi-la a uma
avaliação pura e simplesmente contingente da comunidade histórica
específica. A leitura deles do bem é tão unilateral como a de Taylor, que
interpreta igualmente o bem como dimensão estritamente identitária e
comunitária. Em Aristóteles, é possível articularmos tanto uma ética
ontológica, do bem, como, ao mesmo tempo, uma universalidade para
além dos contextos específicos, como veremos a seguir.

2.3.3 A Universalidade do Bem em Aristóteles: uma proposta para além da


controvérsia entre liberais e comunitaristas

No Livro I da Ética a Nicômaco, Aristóteles (1094 b8 – b10) enfatiza


que, mesmo que haja um único bem para cada indivíduo, obter o bem
pertencente a um Estado é alcançar um bem maior e mais completo. Afinal,
na perspectiva aristotélica, o bem que um povo e os Estados obtêm é mais
belo e próximo do que é divino. Sabemos que quando Aristóteles (OLIVEIRA,
2003) se perguntava pelo bem do ser humano, ele não pensava
simplesmente no bem que as diferentes comunidades humanas
determinavam historicamente, mas sim no bem que expressa uma esfera da
constituição ontológica específica do ser humano, portanto, uma estrutura
universal do ser humano como tal. Também os medievais articularam a tese
de que o bem é um momento, uma característica do ente como tal,
destacando sua universalidade. Isso diz respeito a qualquer realidade como
realidade. Habermas, por exemplo, aceita a concepção de bem como algo
apenas particularista, mesmo que numa perspectiva crítica.

2
Em meu primeiro livro, iniciei essa discussão, tentando pensar uma alternativa para além da controvérsia entre
liberais e comunitaristas. Ver, sobretudo, em: OLIVEIRA, J. Secularismo e Religião na Democracia Deliberativa de
Habermas: da pragmática ao déficit ontológico e metafísico. Porto Alegre, Editora Fi; Teresina, EDUFPI, 2018a, p.177-
190. Livro disponível em: https://www.editorafi.org/346julianooliveira
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 109

O ético, em Aristóteles, só é inteligível a partir do ethos, do costume.


A determinação do que é ético se faz não por normas e valores em si, mas
pelos modos de viver institucionalizados na sociedade, através dos
costumes. O indivíduo torna-se justo, corajoso e prudente à medida que
adquire o hábito ao que, na cidade, é justo. A ação boa e justa não é, em
Aristóteles, a ação moral do indivíduo isolado. Na verdade, é aquela que se
constitui por meio de relações com outros homens. Afinal, como diz
Aristóteles (1253a2) no Livro Primeiro d’A política, o homem é
naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade. É no
ethos que o indivíduo encontra o que ele deve fazer. A lei pressupõe o
costume, mesmo que não exista como lei escrita. O indivíduo, em
Aristóteles, não é uma instância isolada, mas se encontra nas instituições
éticas da polis.
O direito, por isso, tem como sujeito o indivíduo, mas não o indivíduo
em seu “ser-para-si” singular, e sim nas instituições do ethos. Vale lembrar
que a ética em Aristóteles, que trata da práxis humana, divide-se em duas
etapas: 1) a práxis individual, que ele denomina propriamente de “ética”;
e 2) a práxis social, que ele denomina de “política”. A ética, em Aristóteles,
como reflexão sobre a práxis humana, não se restringe aos indivíduos
isolados, mas é reflexão sobre o mundo institucional, onde o indivíduo está
inserido e através do qual ele se eleva a indivíduo universal. Não se trata
apenas de conhecer o mundo institucional humano, mas de melhorá-lo,
possibilitando a práxis de cidadãos livres. Nesse contexto, o problema da
universalidade e de sua necessária dimensão não é posto claramente por
Taylor (que se inspira em Aristóteles e Hegel).
Em um primeiro momento, a ação dos homens é acrítica, porque os
indivíduos se encontram num ethos específico, historicamente criado.
Porém, como ser racional, o homem tem possibilidades de distanciar-se
criticamente de qualquer fato, até do fato de si mesmo em sua vida
110 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

histórica e comunitária, exigindo legitimação. A reflexão ética é o ato


mediante o qual o homem rompe o caráter opressor de todo ethos,
transformando sua vida. Da reflexão ética não resulta necessariamente a
destruição do ethos vigente, e sim a legitimação racional da ação humana.
Não por acaso, Aristóteles (1332b7), no Livro Sétimo d’A política, destaca
que o homem, como ser da racionalidade, utiliza a razão para fazer muitas
coisas contrárias ao hábito e à natureza, convencendo-se de que é melhor
fazê-las, mas de outra forma. Em Aristóteles, não é apenas o ethos que
legitima a ação, mas a razão como critério do agir ético, algo não refletido
por Taylor, que interpreta sempre o bem num sentido comunitário, sem
possibilidades de transcender o costume.
Em Aristóteles, há uma unidade originária entre um fato e uma
exigência moral. Trata-se de um “dever-ser” que é historicamente situado,
pois nele há sempre uma referência à situação histórica. Nas palavras de
Lima Vaz (2006, p. 35), “Aristóteles celebra também no homem a
capacidade de passar além das fronteiras de seu lugar no mundo”. No
Livro Sexto da Ética a Nicômaco, Aristóteles (1141 b10-b15) destaca que o
bom deliberante é quem atinge o melhor dos bens alcançáveis através das
ações humanas, já que ninguém delibera acerca daquelas coisas que são
impossíveis de ser de outra maneira. O fim é um bem que tem de ser
realizável pela ação humana.
Em suma, em Aristóteles, ninguém delibera sobre o que é eterno,
como, por exemplo, sobre a ordenação do universo ou sobre o fato de a
diagonal e o lado do quadrado serem incomensuráveis. Nós deliberamos
sobre aquelas coisas que nos dizem respeito e que dependem de nós, a
saber sobre as ações que podem ser praticadas por nós. Enfim,
deliberamos sobre todas aquelas matérias que acontecem através de nós e
que não acontecem sempre do mesmo modo. O deliberar é a respeito das
situações que ocorrem o mais das vezes, mas relativamente às quais é
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 111

incerto qual será o seu resultado. Isto é, a respeito das situações em que
há indeterminação. Portanto, em termos de sabedoria prática, Aristóteles
enfatiza sempre a perspectiva de que deliberamos acerca das coisas que
podem ser de uma outra forma, como na política e na ética. O bem, na
perspectiva aristotélica, como um sentido comum por referência a uma
única ideia, não existe.
Na Política, Aristóteles ressalta que uma cidade não se compõe
apenas de indivíduos reunidos em maior ou menor número; ela se forma
ainda de homens especificamente diferentes; os elementos que a
constituem não são absolutamente semelhantes. Em Aristóteles, uma
cidade deve estar acima de um povo. Nas palavras de Marcelo Perine
(2006, p. 78-9):

a afirmação segundo a qual existe um bem supremo para a ação humana não
exclui, mas, ao contrário, exige o reconhecimento de uma variedade de bens
que sejam objetos de deliberação, de decisão e de ação racional. Nisso
justamente consiste a tarefa própria dos seres humanos, que, por sua condição
de seres racionais, não podem ser compreendidos fora de seu contexto social,
dado que a cidade é o lugar próprio do exercício da racionalidade.

Posto isso, o bem é um conceito relacional, algo cuja determinação


material se faz através da reflexão e decisão, no âmbito de um quadro
sócio-histórico específico. O bem não é algo eternamente idêntico a si
mesmo, melhor dizendo, não é uma idealidade nem identidade ideal. A
posição aristotélica não é nem fixa ou dogmática, muito menos relativista.
Mesmo que se parta do contexto, ela igualmente transcende o contexto,
porque se pergunta sempre pela validade das normas. Ora, isso marca
essencialmente o homem como ser racional. Portanto, podemos falar, em
Aristóteles, de uma normatividade aberta às situações históricas, um
“dever-se” historicamente situado. O bem, então, também possui um
112 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

sentido aberto à universalidade. O bem é, em Aristóteles, uma dimensão


do próprio ente como tal. Seria preciso, assim, articularmos uma ética que
não desprezasse o caráter universalista do bem, algo que Taylor não
aprofunda em seus escritos, mesmo se remetendo aos antigos em suas
reflexões.
Ora, podemos tematizar o caráter universal do bem, uma vez que este
não é algo particularista, indo de encontro à interpretação comunitarista
do bem, como podemos ver por muitas vezes em Taylor. Apesar de ele
colocar em questão os problemas do individualismo moderno, mostrando
o reconhecimento intersubjetivo como uma categoria primordial para a
formação das identidades, ele não consegue explicar como julgar as
diversas tradições que nos formam, sejam elas positivas ou negativas.
Conclusão

Vimos como Charles Taylor articula a relação entre identidade,


reconhecimento e religião, a partir das premissas fundamentais de seu
quadro referencial teórico, com base no comunitarismo. Assim, no
primeiro capítulo, analisamos as influências determinantes que
constituem o pensamento de Taylor, como os antigos gregos, a crítica de
Heidegger à filosofia da subjetividade e, principalmente, Hegel e sua
reflexão acerca da modernidade, do reconhecimento, da religião e do
secularismo. Hegel, como sabemos, é certamente o paradigma
predominante que orienta Taylor e sua crítica a uma determinada
concepção de modernidade, fundamentada no indivíduo isolado e numa
perspectiva de secularismo que limita a religião à esfera privada. A
eticidade hegeliana relaciona-se, em Taylor, como o lugar da religião na
teoria do reconhecimento, em contraposição à moralidade kantiana de
uma concepção neutra de indivíduo.
O conjunto de obrigações segundo as quais temos de promover e
sustentar uma sociedade é o que Hegel chama de Sittlichkeit (a eticidade),
referindo-se às obrigações morais que temos em relação a uma
comunidade a qual pertencemos. A característica crucial da Sittlichkeit é
nos impelir a realizar aquilo que já é, no sentido de um pertencimento a
uma comunidade como algo fundamental para a constituição da
identidade. Hegel pensa a liberdade não somente como uma instância de
interioridade, mas como um processo de efetivação no mundo social,
histórico e comunitário, algo fundamental para Taylor. Este, como vimos,
argumenta que somos um eu, mas a partir das diversas relações que nos
114 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

formam enquanto indivíduos, tendo o reconhecimento intersubjetivo


como uma categoria central.
A religião, segundo o filósofo canadense, seria uma dimensão
determinante que a modernidade e a era secular não podem desprezar.
Somos, essencialmente, resultado das relações com os outros e com o
mundo que nos cerca. As fontes morais que nos alimentam não estão
originalmente em nós, como se defendeu na modernidade; elas são
instâncias que nos antecedem e nos formam, denominadas por Taylor de
avaliações fortes. Estas são encontradas numa comunidade, tradição,
cultura e religião. Daí Taylor defender que a religião é ainda uma fonte
moral essencial que alimenta e forma as subjetividades em determinados
contextos, como narrativas que orientam os indivíduos em suas vidas. A
religião, para Taylor, é uma instância de reconhecimento.
As religiões significam mundos de articulações morais das
identidades, tal qual uma comunidade de pertencimento e de
reconhecimento. Em Taylor, a crença em Deus significa uma articulação
daquilo que é crucial para a forma do mundo moral na melhor descrição
de alguém. Ele defende uma redefinição do secularismo que valorize as
religiões como fontes essenciais e indispensáveis para diversos sujeitos
que se formaram a partir de outras linguagens e tradições, diversas da
concepção tradicional de secularismo.
A ideia clássica de secularismo, segundo Taylor, não pode restringir
a religião à sua dimensão privada ou mesmo desqualificá-la. Afinal, para
Taylor, a religião é ainda, mesmo numa sociedade secular e moderna, uma
perspectiva fundamental que orienta a vida dos sujeitos, formando suas
identidades. Por conseguinte, no segundo capítulo, vimos, sobretudo,
como Taylor propõe uma nova ideia da era secular, que dialogue com as
religiões. Estas são instâncias fundamentais na constituição das
subjetividades. De pano de fundo, encontramos uma crítica de Taylor a
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 115

uma determinada concepção predominante do secular, que restringe a


religião a uma esfera privada. Nesse sentido, explicitamos a crítica de
Taylor a Rawls e seu liberalismo político. Rawls defende que os valores das
doutrinas abrangentes, como as religiões, sejam deixados de lado na
política.
Afinal, em Rawls, a predominância deve ser do político, e não do
metafísico. Para Taylor, ao contrário, é impossível separarmos nossas
identidades das tradições que nos formam, enquanto um pano de fundo
de nossos valores. Taylor argumenta que a era secular não deve excluir as
religiões. Ele defende que a modernidade não pode ser reduzida ao sentido
presente apenas nos imaginários sociais do secularismo francês; seria
possível pensarmos e articularmos outras modernidades múltiplas,
abrindo espaços para as vozes das religiões em colaboração com o
secularismo.
O diálogo com Jürgen Habermas se fez também essencial no segundo
capítulo, uma vez que Habermas, ao contrário de Rawls, defende que os
religiosos se expressem em sua própria linguagem na esfera pública, mas
que traduzam suas intuições éticas para uma linguagem pública e secular
no parlamento, sendo este justamente o ponto de divergência entre
Habermas e Taylor, a partir da controvérsia do justo versus o bem na
filosofia contemporânea. O primeiro se fundamenta numa concepção
kantiana de ética (formalista e deontológica); e o segundo numa
perspectiva aristotélica e, no caso de Taylor, também hegeliana.
Apesar de Taylor apontar para o papel crucial que a religião possui
na formação das identidades em determinados contextos, ao mesmo
tempo ele, a nosso ver, não consegue propor como fundamentar critérios
normativos a partir de um horizonte pluralista, em que há não apenas uma
noção ontológica de bem, mas várias. Essa é justamente uma crítica vinda
de Habermas. Uma outra crítica enfatizada neste livro foi aquela vinda de
116 | Charles Taylor: identidade, reconhecimento e religião

Nancy Fraser. Ela defende que qualquer teoria do reconhecimento deve,


ao mesmo tempo, ser acompanhada de reivindicações redistributivas. Para
Fraser, tradicionalmente o reconhecimento e a redistribuição são
pensados de forma antagônica; seria preciso articular conjuntamente
ambos os paradigmas, como propõe Fraser em crítica a Taylor.
Por fim, propomos com Aristóteles uma forma de pensar uma ética,
mas que não se reduza ao reconhecimento comunitário das identidades,
numa perspectiva de pensarmos para além da dicotomia entre liberais e
comunitários, ou seja, entre aqueles que defendem a universalidade e o
formalismo, por um lado, e entre aqueles que, de outro, são obcecados pelo
contexto comunitário, não levando em consideração a universalidade.
Em Taylor, há a ideia de que o bem é o horizonte cultural específico
de uma comunidade determinada. Porém, uma ética do bem não pode ser
reduzida aos valores de uma comunidade específica. Há outras concepções
de éticas ontológicas, fundadas numa proposta de filosofia universalista
como vimos com Aristóteles. A ontologia de Taylor, a nosso ver, se
reduziria às comunidades históricas, deixando em aberto ou não
suficientemente esclarecido o problema da universalidade, apesar de
Taylor apontar para o aspecto determinante do contexto comunitário e
religioso na formação das identidades e do reconhecimento, como vimos
ao longo deste livro.
Taylor, à luz de seu comunitarismo, sempre conceitua o lugar que as
religiões ainda possuem na modernidade; porém, não há, em sua filosofia,
como estabelecer critérios normativos para uma sociedade pluralista, de
não apenas uma concepção de bem, e sim várias. Isto é, que razões e
discursos poderiam ou não ser validados no âmbito da política? Em suma,
Taylor aponta para uma questão essencial, a saber: o papel que as religiões
possuem no reconhecimento, mesmo em sociedades seculares. A vida
comunitária, inclusive a religiosa, aparece como horizonte de possibilidade
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 117

para os indivíduos elaborarem suas identidades, pois é nela que eles


encontram as bases culturais que sustentam suas indagações.
Todavia, não é suficientemente esclarecido como tais discursos e
razões religiosas poderiam ser validados numa sociedade pluralista, de
crentes das mais diversas orientações de fé e não crentes. Não está claro,
em Taylor, como estabelecer uma universalidade à luz de um pluralismo
dos modos de vida. Numa palavra, o filósofo canadense, apesar de
conceituar o papel que as religiões possuem numa era secular, sendo este
o grande mérito do Taylor na rearticulação da era secular, não deixa claro
como, em termos políticos, se deveria articular um discurso entre crentes
e não crentes ou mesmo que razões deveriam ser validas ou não.
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