Você está na página 1de 10

¡Fuego en el 23!

:
Memória, cultura política e organização popular na Parroquia 23 de Enero
(Caracas/Venezuela)

Mariana Bruce *

Resumo
A música “Fuego en el 23”, composta pelo cubano Arsênio Rodriguez, em NY, depois
de ver seu edifício 23L pegando fogo, foi apropriada e resignificada pela Parroquia 23 de
Enero, de Caracas, como símbolo de sua longa tradição de organização popular e
combatividade.
Nossa proposta é analisar o processo histórico de construção desta representação da
parroquia, a partir de uma reflexão sobre memória e cultura política com vistas a
compreender qual o seu papel atual no âmbito da Revolução Bolivariana.
Palavras-chave: memória, cultura política, Revolução Bolivariana

Abstract
The song "Fuego en el 23," composed by the Cuban Arsenio Rodriguez, in NY, after
watching his 23L building on fire, was appropriated and resignified by the Parroquia 23 de
Enero in Caracas as a symbol of their long tradition of grassroots organizing and militancy.
Our goal is to analyze the historical process of building this representation from a
reflection about the memory and political culture in order to understand what their role
current within the Bolivarian Revolution.
Key words: memory, political culture, Bolivarian Revolution

A música “Fuego en el 23” do cubano Arsênio Rodriguez, na verdade, não possui


qualquer relação com a Parroquia 23 de Enero, de Caracas, Venezuela. Foi escrita em Nova
York, nos anos 50, quando Rodriguez viu seu apartamento no edifício 23 Leste, em Nova
York, pegando fogo. Contudo, a música acabou fazendo muito sucesso na Venezuela e se
tornou um hino na Parroquia 23 de Enero, pois ganhou ali um novo sentido: o fogo passou a
representar o fogo da violência, a qual o 23 de Enero esteve submetido ao longo dos anos e,
ao mesmo tempo, o fogo da resistência, que muitos de seus moradores protagonizaram.
A proposta deste artigo é reconstruir parcialmente a história do 23 de Enero para
compreendermos o processo de formação de uma cultura política marcada por uma
permanente luta e organização popular. Para tanto, o trabalho com a memória de alguns
moradores da parroquia torna-se imprescindível. A partir deste levantamento, visamos
compreender também qual o papel que o 23 de Enero ocupa hoje no interior da Revolução
Bolivariana1.

*
Mestranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), sob a orientação do Prof.
Dr. Daniel Aarão Reis.
2

Um passado presente

O território que atualmente corresponde à Parroquia 23 de Enero fez parte da


parroquia Catedral e parroquia Sucre até 1971 e era composto por vários barrios2. Monte
Piedad foi uma das primeiras barriadas da região, formada na metade do século XIX, na zona
oeste da capital, mais especificamente no setor de Cátia, onde as condições de vida eram as
mais precárias. As casas eram construídas a partir dos exclusivos esforços daqueles homens e
mulheres que chegavam à cidade em busca de uma vida melhor.
As duras condições de vida e de trabalho destes novos trabalhadores urbanos e a
negligência do Estado em atender às suas demandas mais elementares fomentaram a
construção de uma consciência coletiva - não necessariamente classista – que ganhou
expressão na formação de sociedades de auxílio mútuo. Os montepíos ou o “Montes de
Piedad”, fundados em 1855, são um exemplo disso, ou seja, eram cooperativas que
funcionavam como um fundo o qual o trabalhador poderia recorrer em casos de necessidade3.
A ocupação demográfica da cidade começou a se dar de maneira mais intensa a partir
dos anos 20, com a crise dos preços dos produtos agrícolas e a ascensão da atividade
petroleira que provocou um expressivo êxodo rural para a capital.
Ao longo dos anos 30, começaram a surgir agrupamentos políticos mais explícitos,
células do Partido Comunista e outras correntes, num contexto classificado por Pacheco et allí
de conflitivo4. Segundo Manuel Mir et allí,

“surgieron numerosas agrupaciones políticas, cuyo objetivo principal era o de


emprender diversos tipos de luchas; estas actividades de luchas y protestas existentes en
la parroquia la convirtieron en la más conflictiva de todas las parroquias de la Capital” 5.

Esse ambiente conflitivo e combatente pode estar relacionado aos efeitos da parroquia
se localizar em uma posição geográfica estratégica: na interseção entre o centro e o oeste da
cidade, próximo da Avenida Sucre, a principal, que liga as duas zonas; porta de entrada da
capital; na margem esquerda do rio Caroata6; em frente ao Palácio Miraflores, residência
presidencial oficial desde 1900; e aos pés do antigo Ministério da Defesa, alocado no Quartel
Cipriano Castro até 19817.
As crises políticas vivenciadas pela República provocavam duras conseqüências no
interior daquela região e, de alguma forma, influenciaram seus rumos. Durante o golpe de
Estado de 18 de outubro de 1945 sofrido por Medina Angarita, por exemplo, “la Polícia
3

Municipal disparaba sobre Miraflores, al tiempo que atacaba a la Escuela Militar” - esta
última abrigada no Quartel Cipriano Castro até os anos 50, quando se tornou Ministério da
Defesa. A população que vivia ali no meio foi submetida à dura repressão, com toques de
recolher, tiros e invasões.
Foi nesse contexto que houve a formação do Barrio 18 de Octubre na parroquia
conforme lembra Luis Alberto Dugarte Gil, cujo pai construiu uma casa na região:

“Este barrio 18 de Octubre fue tomado así por la gente a raíz de la ‘Revolución de
Octubre’. […] Eso fue cuando al Presidente Medina Angarita lo tumbaron y se formó la
revolución entre los que apoyaban al Presidente Medina Angarita y los que querían
tumbarlo, entonces entre ellos mismos el pueblo y la policia hubo la revolución. Una
vez culminada la revolución, esas personas se adueñaron de esa zona y construyeron sus
casas y sus ranchos”8

Na medida em que sucessivos golpes não permitiam o retorno à estabilidade política, o


grau de violência aumentava. As ações repressivas da Seguridad Nacional/SN serviram para
alimentar a articulação entre os grupos de vizinhos no âmbito de uma resistência coletiva aos
acontecimentos e aumentar a combatividade que crescia em alguns setores:

“la acción clandestina se hace sentir […] muchas de las viviendas sirvieron de ‘cocha’
tanto para gente del Partido Comunista como para la Juventud de AD, organizaciones
que estaban integradas en buena parte por residentes del sector”9

Durante a década de 40, somado ao aumento das tensões, houve também um incremento
ainda maior na explosão demográfica na capital devido ao êxodo e, com isso, a proliferação
de barrios, com a ocupação das áreas verdes. Segundo a Corporación Venezolana de
Fomento, houve um crescimento de 99,9% da população entre 1941 e 1950 e o déficit de
moradia alcançava cerca de 300 mil pessoas, aproximadamente 40% da população de
Caracas10.
Nos anos 50, o ditador Marcos Pérez Jiménez, no âmbito de seu projeto do Novo Ideal
Nacional, almejava modernizar o perfil da capital erradicando as barriadas e garantir a paz
social (leia-se, conter os movimentos sociais). Com as rendas do petróleo11 foi possível
financiar este projeto e, com o apoio da iniciativa privada, realizá-lo em curto tempo.
Dentre as várias obras públicas executadas neste período, a que mais se destaca é o
projeto habitacional da Urbanización 2 de Diciembre que eram grandes blocos habitacionais
inspirados no Unité d'Habitation do suíço Le Corbusier12. A solução de complexos
habitacionais verticais atendia a um aspecto fundamental da geofísica da capital: a falta de
espaço para tamanha densidade demográfica.
4

O processo de desalojamento de muitas famílias para o início das obras da Urb. 2 de


Diciembre não foi encarado por todos como a redenção para um futuro melhor. Ao contrário,
provocou resistências. Segundo Frederico Pernia, “había gente que se oponía a que le
tumbaran su casa y le cortaban el agua, la luz, cuando no, metían el tracto y le tumbaban la
casa, vimos varias personas que les tocó vivir esa situación”13.
O espaço de tempo entre a derrubada das moradias populares e a construção dos blocos
foi muito difícil, pois as condições de vida se tornaram ainda mais precárias, já que tudo era
improvisado. Anibal Viloria, também morador do 23 de enero nos anos 80, ratifica: “el
desalojo o el desplazamiento de las personas de las viviendas hechas por ellos mismos no fue
voluntario; y no fue en principio aceptado por la inmensa mayoría de la gente”14
Ramon Delgado, outro morador, em entrevista, lamenta a execução do projeto, pois,
para ele, destruiu tudo aquilo que havia sido construído segundo os próprios esforços dos
moradores da região: “[…] después de la dictadura comenzaron […] a tumbar [todo] lo que
teníamos hecho, comenzaron a destruir todo lo que habíamos mejorado. Dimos un salto
atrás”15.
Todos os protestos foram reprimidos com violência. Não havia espaço para diálogo. O
projeto não foi discutido com a população. Esta última era avisada que deveria sair de suas
1
Quando falamos em “23 de Enero” e “cultura política do 23 de Enero” não queremos ignorar que exista uma
pluralidade de posicionamentos e posturas, muitas vezes divergentes entre si. Porém, o que queremos chamar
atenção neste artigo são os aspectos comuns pelos quais a parroquia ficou conhecida como um reduto de
organização popular e militância política. Sobre o conceito de “cultura política”, ver BERSTEIN, Serge. “A
Cultura Política”. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean François (Orgs.). Para uma história cultural.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
2
Barrios são o equivalente às favelas.
3
GOSEN, Alfredo et allí. El 23 de Enero. Caracas: Fundarte, 1990, p. 12.
4
PACHECO, M.; RAMOS ALVAREZ, E. R.; RANGEL ROMAN, M. E. Aproximación al Estudio de la
Parroquia 23 de Enero. Monografia de Serviço Social. Caracas: UCV, 1987, p. 13.
5
MIR, M.; TORRES, N. VALOR, H. Politica de Desarrollo Habitacional del Estado Venezolano Durante el
Período 1952-1970: Parroquia ’23 de Enero’ de Caracas. Monografia de História. Carcacas: UCV, 2000, p. 59-
60.
6
Atualmente, o rio se transformou em linha metroviária (V. GOSEN, A et allí. Op Cit. p. 16).
7
V. GOSEN, A et allí. Op Cit. p. 10.
8
GIL, L. A. D. “Entrevista”. In: PACHECO; ALVAREZ; ROMAN. Op Cit. p. 475-476.
9
PACHECHO; ALVAREZ; ROMAN. Op. Cit. p. 20.
10
V. CORPORACIÓN VENEZOLANA DE FOMENTO apud MIR; TORRES; VALOR. Op. Cit., p. 51 e
GOSEN et allí. Op. Cit. p. 44.
11
Note-se que a década de 50 foi de expressiva bonança petroleira, haja vista que eventos internacionais – tais
como a Guerra da Coréia, em 1951, e o fechamento do Canal de Suez no Egito, em 1956 – provocaram um
aumento dos preços dos barris e a Venezuela, que vivia um período de certa estabilidade, se tornou o alvo de
muitos investidores (MIR; TORRES; VALOR. Op. Cit. p. 79).
12
Tratava-se de reunir em um só espaço, moradia (para o maior número de famílias possível) e acesso a todos os
tipos de serviços como mercados, creches, escolas, quadras poliesportivas, unidades de atendimento hospitalar,
etc.
13
PERNIA, F. “Entrevista”. In: PACHECO; ALVEREZ; ROMAN. Op. Cit. p.760.
14
VILORIA, A. “Entrevista”. In: PACHECO; ALVEREZ; ROMAN. Op. Cit. p. 35.
15
DELGADO, R. “Entrevista”. In: PACHECO; ALVEREZ; ROMAN. Op. Cit. p. 381-382.
5

casas num prazo previsto pelo Banco Obrero. “La idea era ‘destruir’, ‘tumbar’ y ‘construir’”,
recorda Viloria, que viu todo o barrio Los Eucaliptos vir abaixo16.
À população dos barrios só restava aceitar as quantias oferecidas pelo Banco Obrero
pelo imóvel, sem qualquer garantia que seriam realocadas no bloco. Deste modo, por mais
que não concordassem, não tinham outra opção, pois não detinham a propriedade da terra.
Aqueles que não aceitavam sair eram expulsos a força. O Estado não assumiu qualquer
compromisso com o futuro das famílias desalojadas. Elas deveriam encontrar uma solução
por elas mesmas: seja construindo novos barrios em outros lugares, seja voltando para o
interior.
Segundo Pacheco et allí, os principais partidos da época que haviam se organizado na
Junta Patriótica de oposição à ditadura – Partido Comunista de Venezuela/PCV, Union
Republicana Democrática/URD, Acción Democrática/AD e Comité de Organización Política
Electoral Independiente/COPEI – tinham centros de operações dentro da Urb. 2 de Diciembre
e foram protagonistas na resistência à derrubada de muitos barrios. Para Pacheco et allí,

“aquí se encuentra un antecedente del espíritu de lucha que existe en la gente de la


actual Parroquia 23 de Enero. Desde el momento de los desalojos la gente ve la
necesidad de unirse y organizarse en función de la defensa de sus derechos, asumiendo
una posición política. En la población circulaban manifiestos, volantes, comunicados
clandestinos de los partidos AD, URD y del PCV. Comienza en esta época la práctica
de tirar piedras, aunque todavía tímidamente”17

Portanto, gradativamente a região foi se tornando um poderoso foco de resistência à


ditadura, estudantes e partidos refugiavam-se ali para realizar suas atividades subversivas.
Murais de “abaixo a ditadura” ou “abaixo Pérez Jiménez” eram pintados durante madrugada.
Da mesma maneira, a repressão tornava-se cada vez mais aberta até a tomada quase completa
da região pela Seguridad Nacional e Policia Metropolitana – muitos quadros dessas
instituições, inclusive, ganharam apartamentos nos blocos.
Ainda assim, as ações clandestinas sobreviviam e atendiam ao chamado da Junta
Patriótica, divulgando seus manifestos, apoiando as greves e outras medidas. Em 23 de
janeiro de 1958, Pérez Jiménez foi, finalmente, derrubado – pelo povo. Segundo o historiador
Augustín Blanco Muñoz, “fueron los barrios carraqueños los que acabaron con la dictadura
perejimenista”18.

16
VILORIA, A. “Entrevista”. In: PACHECO; ALVEREZ; ROMAN. Op. Cit. 32.
17
PACHECO; ALVAREZ; ROMAN. Op. Cit. p. 51-52.
18
MUÑOZ, A. apud PACHECO; ALVAREZ; ROMAN. Op. Cit. p. 57.
6

Sem dúvida, à frente do movimento que, de fato, retirou Pérez Jiménez do poder, estava
uma coalizão formada, principalmente, pelos três partidos já citados – AD, COPEI e URD.
Ainda assim, sem a efervescência social dos barrios caraqueños, talvez, o desfecho tivesse
sido diferente.
Com a queda de Pérez Jiménez, houve um movimento expressivo por parte da
população que habitava os barrios no sentido da ocupação dos blocos que ainda não estavam
habitados. Segundo Juan Contreras, “para el año de 1959, se encontraban invadidos un total
de 4000 apartamentos”19.
Diante deste quadro, seria complicado desalojar todas essas pessoas. Além do mais,
havia um movimento organizado por parte daqueles novos moradores para defenderem a
ocupação.
A tomada dos blocos não representou imediatamente uma melhoria radical nas
condições de vida, pois como a maior parte deles estava recém-construída ou mesmo sequer
finalizada, havia muitos problemas: “ [...] los apartamentos estaban por terminar, faltaban
puertas, instalaciones sanitarias, eléctricas” 20. Além disso, os elevadores não funcionavam e
havia uma carência de serviços (luz, água, gás, etc.).
Como mencionamos, neste ínterim, começou a surgir uma série de organizações
comunitárias com o objetivo de defender as ocupações e resolver um conjunto de problemas
que afligiam os novos moradores.
Diosdado Caballero, líder comunitário, conhecido como “el Hombre de la Chaqueta
Negra”, foi um dos fundadores da Junta Representativa del 23 de Enero. Esta última foi
construída, a princípio, com o objetivo de canalizar a explosão popular daqueles dias que
antecederam à queda do ditador e pressionar o Governo Provisório que assumira após Pérez
Jiménez. A Junta acabou refugiando-se na então Urb. Dos de Diciembre, onde se dedicou a
expurgar da comunidade muitos moradores que estavam vinculados de alguma forma aos
órgãos repressivos da ditadura, tais como o corpo da Seguridad Nacional, da Judicial e da
SIFA (Servício de Información de las Fuerzas Armadas):

“[…] Después que hicimos esa protesta [contra a composição da Junta de Governo] en
Miraflores (éramos un grupo bastante grande de aquí de la parroquia ’23 de enero’, yo
vivía en Monte Piedad), nos trasladamos aquí al ’23 de Enero’ y la finalidad del trabajo
nuestro aquí, fue detener a unos cuantos miembros de la Seguridad Nacional, de la
Judicial y del SIFA […] veníamos a cazar esbirros, esa es la palabra” 21.

19
CONTRERAS, Juan. La Coordinadora Simón Bolívar: Una Experiencia de Construcción del Poder Local en
la Parroquia 23 de Enero. Monografia de Serviço Social. Caracas: UCV, 2000, p. 19.
20
CASADIEGO, A. Entrevista. In: PACHECO; RAMOS; RANGEL. Op. Cit. p. 199.
21
CABALLERO, D. “Entrevista”. In PACHECO; RAMOS; RANGEL. Op. Cit. p. 246-247.
7

Vale considerar que para aquelas pessoas, a invasão era considerada “un acto de
reivindicación popular”22.
Muitos membros da junta se encontravam armados, prontos para um confronto se
necessário. O clima era de tensão, pois demorou até o que o Estado reconhecesse que se
tratava de uma situação que não tinha mais volta. Os blocos serviam de esconderijo e posição
estratégica para atacar as forças policiais do Estado. Os rebeldes subiam no terraço dos blocos
e jogavam bombas, pedras e atiravam.
A Junta acabou dissolvida devido a uma série de problemas, entre eles, o desgaste de
suas lideranças, como o próprio Diosdado Caballero, acusado de vender apartamentos a altos
preços, além da própria repressão do Estado (Caballero chegou a ser preso). Porém, antes de
se dissolver, a Junta mudou o nome da então Urbanización Dos de Diciembre para 23 de
Enero, condição que, no entanto, só seria oficializada pelo Conselho Municipal em 1967,
depois de várias tentativas de abaixo-assinados.

“[...] recogimos 5.700 firmas en 1958 y en 1959 […] Fuímos los primeros que
utilizamos ese nombre para la parroquia. Lo utilizamos y lo insistimos en que debería
llamarse así ’23 de Enero’ ante los organismos oficiales y ante la comunidad en
general”23.

Tempos de democracia na Venezuela e luta armada no 23 de Enero (1958-1990)

Para os moradores do 23 de Enero, até hoje, a vida é um pouco mais complicada que a
dos moradores de outras regiões da capital, pois sua imagem é frequentemente associada à
violência, mortes e desaparecimentos. Por muito tempo, ouvia-se falar dos encapuchados, da
luta armada, mas seus fundamentos e objetivos eram obscurecidos pelos enfrentamentos com
a polícia. O 23 de Enero, em síntese, era um símbolo de perigo e poucas pessoas tinham a
coragem de atravessar suas fronteiras.
José Roberto Duque, por exemplo, ao chegar no 23 de Enero, depois de emigrar de uma
pequena cidade do interior do Estado de Lara, ficou impressionado com a violência
protagonizada por jovens que naquela época tinham a sua idade.

“En al año 81, entonces, yo tengo 16 años y me vengo a Caracas estudiar… con
la idea fija de estudiar periodismo. […] Yo pasé de un pueblo donde raras veces se
escuchaba una explosión de algo, de repente fuegos artificiales, a una parroquia, a un
lugar, donde los muchachos andaban con armas de fuego, andaban con pistolas. […]
22
Idem, ibidem, p. 250.
23
Idem, ibidem, p. 264-265.
8

Uno de los mis primeros encuentros con la violencia política tuve lugar seguramente
unas pocas semanas o meses de llegar al 23 de Enero. Recuerdo que había una
manifestación que tenía que ver seguramente con el transporte o con el agua, con falta
de agua, allí en el barrio, y había una cuantidad de muchachos poniendo barricadas en la
calle, ¿sabe?, levantando la alcantarilla, poniendo tacos en la vía, echando basura en la
calle y quemándolas… […] esa fue la primer cena que yo vi de activismo relacionada
con la violencia política… eran muchachos muy jóvenes. Es decir, después me enteré
que había mucha herencia de violencia política y de lucha armada en el 23 de Enero,
pero ver muchachos de mi edad haciendo esta clase de activismo fue una cosa que me
impresionó mucho”24.

Já pudemos observar que a história do 23 de Enero desde longa data esteve relacionada
a um gradativo índice de organização política e social. A luta armada não ganhou vida por
tantos anos naquela região à toa. É importante mencionar também que ao passo em que a luta
armada se desenvolveu na parroquia, surgiram e se consolidaram um conjunto de associações
de vizinhos, grupos culturais, desportivos, religiosos, em suma, continuou havendo um
crescimento significativo da organização política e social e do trabalho comunitário - muitas
vezes ofuscado pelos altos índices de violência gerados pelos enfrentamentos da política com
os grupos políticos mais radicais.
Para compreendermos este quadro, acreditamos que, em primeiro lugar, é importante
destacar que a opção pela luta armada não é uma especificidade da Venezuela ou do 23 de
Enero. Nos anos 60, em particular, sob a influência da vitoriosa Revolução Cubana, milhares
de homens e mulheres, em vários países latinoamericanos, tentaram reproduzir a fórmula que
havia tido sucesso naquela pequena ilha do Caribe: a guerrilha urbana e rural. Apesar do
contexto na Venezuela ser relativamente peculiar, pois à diferença de seus pares de Nuestra
América, que estavam imersos em ditaduras civil-militares, ali se vivia uma democracia. No
entanto, esta “democracia”, consagrada pelo regime puntofijista, tinha uma face obscura e
repressora, a qual muitos moradores do 23 de Enero conheceram de perto. Portanto, no 23 de
Enero, resistia-se a esta democracia e lutava-se por um projeto revolucionário.
Um dos maiores símbolos da luta armada desses anos são os capuzes. Eram utilizados
pelos jovens que se dedicaram a causa da guerrilha urbana na parroquia e atuavam na
clandestinidade sob um permanente estado de confronto com a polícia, razão pela qual suas
identidades eram mantidas anônimas. Muitos vizinhos, moradores da parroquia, se opunham
às ações desses grupos armados, considerados responsáveis pelos freqüentes embates com a
polícia. Portanto, o aval da parroquia para essas ações deve ser relativizado. Quando
observamos a parroquia como um reduto de resistência e luta política, não significa dizer que
todos os moradores, ou mesmo a maioria, concordassem com o encaminhamento das coisas.

24
DUQUE, J. R. Entrevista. Arquivo da autora. Coletado em março de 2010.
9

Vale notar que o partido do governo, AD, eleição após eleição angariava gradativamente
maior número de votos, muitos dos quais perdidos dos partidos de esquerda.
Os Tupamaros talvez tenham sido um dos grupos mais radicais, armados, que surgiu no
bojo da luta contra a polícia e contra o tráfico de drogas na parroquia25. Os Tupamaros do 23
de Enero não são uma extensão dos Tupamaros do Uruguai, apesar de alguns de seus
membros terem vindo se refugiar na parroquia nos anos 70 e 8026. Esta denominação foi
dada, inicialmente, pela polícia e pela mídia aos agrupamentos políticos que estavam se
reunindo e se organizando nos anos 70, no 23 de Enero. Posteriormente, esses ativistas se
apropriaram do nome, que serviu para dar uma unidade à luta contra repressão e ao
narcotráfico, como podemos observar no depoimento de Oswaldo Canica, membro do
Movimiento Revolucionário Tupamaros/MRT:

“nosotros comenzamos a llamarnos Tupamaros, cuando sale un documento, que


empiezan a llamarnos los Tupas, esos son los Tupas, los Tupas de aquí, los Tupas de
allá; porque siempre dentro de la jerga del pueblo hay un decir no…. , siempre hay un
decir, en aquel tiempo en los años 60’s, 70’s lo llamaban ñángara; todo el que era un
luchador social, que luchaba y que tenía planteamiento de ideología revolucionaria, lo
llamaban ‘ñángara’. […] en este tiempo empezaron a llamarnos los Tupas, bueno esos
son los Tupas, lo Tupas de tal sitio, lo Tupas del, lo Tupas del 23 de Enero. […] Y con
un documento empezamos a llamarnos nosotros los Tupamaros. Entonces en ese
momento comenzamos nosotros a fusionarnos, a integrarnos dentro de un planteamiento
revolucionario”27.

Sobre esse processo de fusão dos movimentos sociais da parroquia, Canica cita
algumas dessas organizações que desembocaram nos Tupamaros:

“Dentro de esas corrientes bueno se encuentran: compañeros del MRT, Movimiento


Revolucionario de los Trabajadores, compañeros que vienen de Bandera [Bandera Roja]
[sic], compañeros que vienen de Venceremos; compañeros que vienen también, si se
quiere de las luchas populares, centros culturales, desportivos, de agrupaciones que de
alguna o otra manera contribuyeron al planteamiento de lo que hoy en dia es
Tupamaro”.28

25
Segundo alguns relatos, além da repressão e do controle das organizações sociais havia uma outra política de
Estado com o objetivo de desmantelar os movimentos sociais no 23 de Enero: o apoio – ou no mínimo a
conivência - na difusão do narcotráfico. Por outro lado, por se tratar também de uma zona de conflito
permanente entre movimentos sociais e polícia, era difícil sustentar uma política de Estado voltada para uma
suposta proteção da comunidade do avanço dos bandos de narcotraficantes.
26
Os Tupamaros do Uruguai foram os protagonistas da guerrilha urbana naquele país nos anos 60 e 70 e durante
a ditadura civil-militar (1973-1985). Foram duramente reprimidos pelo Estado, mas sobreviveram e voltaram à
vida pública com a redemocratização formando um partido.
27
CANICA, O. apud FERNÁNDEZ, Maryori C. P. Movimiento Revolucionario Tupamaro (MRT): Un Actor en
la Polarización Política y Social de la Venezuela Actual. Monografia de Sociologia. Caracas: UCV, 2006, p.
119-120.
28
Idem, ibidem, p. 113.
10

O desgaste provocado pelas ações violentas, tanto da polícia, quanto desses grupos
armados defensores da parroquia, provocou uma mudança substancial no caráter das
organizações políticas e sociais durante os anos 90. Os Tupamaros acabaram implodindo em
vários coletivos políticos e grupos culturais, somando-se às demais organizações que
sobreviveram às margens da luta armada na parroquia e que continuavam exercendo algum
tipo de trabalho comunitário. Apesar das mudanças, esses grupos continuaram sendo
hostilizados pela mídia que sustentava uma imagem do 23 de Enero, como zona de risco e
foco guerrilheiro na Venezuela.

O 23 de Enero e a Revolução Bolivariana

Atualmente, existem cerca de 30 coletivos na Parroquia 23 de Enero que variam desde


aqueles que concentram suas atividades para trabalhos mais culturais (dança, pintura, teatro,
etc.), outros mais voltados para o trabalho comunitário (asfaltando e reflorestando ruas,
fornecendo ambulância, estando à frente de rádios comunitárias, recuperando espaços
públicos, como praças, igrejas, quadras poliesportivas, museusetc.) até outros, armados, que
se encarregam de garantir a segurança do bairro e de combater setores remanescentes do
narcotráfico.
Em tempos de Revolução Bolivariana, a Parroquia é tida como bastião chavista. Não à
toa, o próprio presidente escolheu o Liceo Manuel Palacio Fajardo para ser sua zona
eleitoral. O liceo, localizado na zona central, desde que foi criado em 1959, foi palco de
vários protestos estudantis e de dura repressão. É, portanto, outro grande símbolo de toda essa
combatividade e organização popular característicos do 23 de Enero.
Depois de tantos anos de repressão, com a eleição de Hugo Chávez, houve uma
mudança substancial nas relações entre a parroquia e o Estado. Muitas iniciativas de poder
popular que tinham vida não apenas ali, mas em todo o país, foram, finalmente, reconhecidas
e ampliadas. De flanco de resistência, a parroquia passou a ser uma base de sustentação da
Revolução Bolivariana.
É por essa razão que a dissertação da autora sobre a “democracia participativa e
protagônica” proposta pelo governo, sob a expressão última dos Consejos Comunales,
encontra nesta parroquia um espaço fértil para se fazer um estudo de caso, mas cujos
desdobramentos apresentaremos em uma outra oportunidade.

Você também pode gostar