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| ERICH Era WSIS) estudos estudos estudos 4) EDITORA PERSPECTIVA Titulo do original: Pe. | Mims ~ Dargesellte Wirklchkete in der abendizendischen teratay © Copyright 1946 A. Francke AG Verlag Berna F edigio Direitos reservados em lingua Portuguesa EDITORA PERSPECTIVA S.A. ‘Avenida Brigadeiro Luis Antonio, 3025 $1401-000 ~ Sto Paulo - SP — Brasil ‘Telefone: Pr: 8.60079 4 1. A Cicatriz de Ulisses Os leitores da Odisséia lembrar-se-do, sem divida, da bem preparada e emocionante cena do canto XIX, quando Ulisses Tegressa 4 casa e Euricléia, sua antiga ama, o reconhece por uma Gicatria na coxa, O forasteiro havia granjeado a benevolencia de Penélope; atendendo a desejo de seu protegido, ela ordena a go: Femnanta que lave os pés do viandante fatigado, segundo ¢ usual as velhas estorias como primeiro dever de hospitalidade. Euricleia Comeca a procurar agua e a misturar a agua quente com a fria, cnquanto fala tristemente do senor ausente, que poderia ter a ide do hospede, que talvez também estivesse agora va- pobre forasteiro — nisto ela observa a assom- tre o hospede € o ausente — ao mesmo tempo Ulisses se lembra da cicatriz e se afasta para a escuridio, a fim de cultar, pelo menos de Penélope, o reconhecimento, ja inevitavel, pars ands indesefavel para ele. Logo que a ancid apalpa a cicatriz, Jeixa cair 0 pé na bacia, com alegre sobressalto; @ agua transbor- Ga ele quer prorromper em jubilo; com silenciosas palavras de Tisonja e de ameaca Ulisses a contém; ela cobra animo e reprime o ‘sea movimento. Penélope, cuja atengfo tinha sido desviada do scontecimento, gracas a previdencia de Atenéia, nada percebe. mesma ida gueando como um brosa semelhanca en MIMESIS v . com exatiddo e relatado ade it a ado © Huei, ambas as mae Num discurso vos Seus sentimentos; no obstante tratar-se gg dio a conhecer pouco mesclados a consideracdes muito gerai sentimentos, um i nomens, @ ligacdo sintatica entre as pines acerca do destino coe nhum contorno se confunde. Hé, também: fetamente & abundantes para a descri¢a0 bem ordenada, uni, espago e cempe inada, dos utensils, das manipulacdes © dog fermersanda fuss 36 aticulasbes sini; mesmo ng @eamatico instante do reconhecimento nao se deixa de comunicar Grartitor que é com a mao direita que Ulisses pega a velha pelo fescoge, para impedir-the que fale, enquanto a aproxima de si com ‘aoutra mao. Claramente circunscritos, brilhante e uniformemente jluminados, homens € coisas estdo estaticos ou em movimento, dentro de um espaco perceptivel; com ndo menor clareza, expres. sos sem reservas, bem ordenadbs até nos momentos de emoczo, aparecem sentimentos ¢ idéias. 7 Na minha reprodugao do incidente, omiti até agora 0 con- teido de toda uma série de versos que 0 interrompem pelo meio. | Sao mais de setenta — 0 incidente em si compreende cerca de quarenta versos antes e quarenta depois da interrupgao. A inter- upg, que ocorre justamente no momento em que a governanta reconhece a cicatriz, isto €, nd momento da crise, descreve a origem da cicatriz, um acidente dos tempos da juventude de Ulisses, durante uma caca ao javali por casio de uma visita 20 seu av Autélico. Isto dé, antes de mais nada, motivo para infor- mar o leitor acerca de Autélico, sua moradia, grau de parentesco, cariter, e, de maneira tio pormenorizada quo deliciosa, seu com- portamento aps o nascimento do neto; segue-se a visita de Ulis- ses, ja adolescente; a saudaco, o banquete de boas-vindas, 0 sono 0 despertar, a saida matutina para a caga, 0 rastejo do animal, a uta, o ferimento de Ulisses por uma presa, 0 curativo da ferida, 0 restabelecimento, o regresso a Itaca, 0 preocupado interrogat6rio dos pais; tudo é narrado, novamente, com perfeita conformagio de een deixando nada no escuro e sem omitir ne Saruie retorna lagdes que as ligam entre si. E s6 depois ° reconhecido « ea aposento de Penélope, e Euricléia, que tinha ea cot, iz antes da interrupcdo, s6 agora, depois dela, Gin Bsoustada, 0 pé na bacia. primeiro pensamento que acode ao leitor moderno, de que 4 tensio, @, se nao totalmente falso, explicago do processo homérico- muito débil nas poesias homéricass »-€m todo 0 seu estilo, a manter em suspens? ara tanto seria necessirio, antes de mais fosse ‘“distendido”” pelo meio que procu tamibee, ¢stamente isto 0 que acontece Mul O camnt.caso em apreco ocorre isto. O eps” com amplidio; ‘amorosa e sutilmente CO™ oe A CICATRIZ DE ULISSES 5 truido, com todo o seu elegante deleit sions ilinss, ad's paler o ay cane ae quanto 0 ouve — a fazé-lo esquecer 0. itor totalmente para si, en- durante 0 lava-pés. O nao ’ que acontecera recentemente, parte_de_uma_interpolacio_ Gfise por cuja solucdo “ Gocrutr 2 suspensio do este pp eee Roope nekoes re eel le lees Sa gis TI omnera'e ts emcs de pein ante teem eros planos. O que ele nos narra é . no conhece segundos D que ele nos narra ¢ sempre somente present = che completame mtg, presente, © Pree acontece ma passgein cits, Quando a jorem ures pie © recém: lisses no colo do avé Autélico, 2pés 0 banquete (v. 401 ss.), a velha Euricléia, que poucos versos antes tocara 0 pe do viandante, desaparece por completo da cena e da nossa cons- tO tae Sl : ¢ e Schiller, que em fins de abril de 1797 se : diam, so capeciicamente sobre © eyiseBo xii 0 ata. Tas sobre 0 ‘‘elemento retardador"’ na poesia homérica_em_geral. opunham-no diret 20 principio da “‘tensio™ — termo esse ‘o-propriamente utilizado, mas claramente aludido, quando o processo retardador é posto. como processo épico propriamente dito, em oposica0 ao tragico (cartas de 19, 21 ¢ 22 de abril). O elemento retardador, o “‘avancar e retroceder"* mediante interpolag®es. > bem a mim parece estar, na poesia Tiomérica, em contraposi¢30 20 tenso impulso para uma meta. Decerto Schiller tem raz0 quando diz que Homero descreve ‘*meramente a tranqnila existéncis ¢ $630 Gas coisas segundo a sua natureza""; 2 sua finalidade estaria ““pre- Sente em cada um dos pontos do seu movimento’’. So que tanto Schiller quanto Goethe, elevam 0 processo homérico & categoria de ici da poesia épica em geral,e as palavras de Schiller, acima Gitadas, deven vigorar para o poeta épico em geral, em contrasts fom © co. Contudo ha, tanto nos tempos antigas como nos moderne, itas sem qualquer “‘elemento retar- wragi obras épicas significativas escri Sador’” no sentido de Schiller, mas de maneira claramente car- ‘sem divida, ‘roubam a nossa liberda- exclusivamente 20 regada de tens4o, obras que, de emocional’*, 0 que Schiller quer conceder i poeta trigico. Além do mais, parece me improvavel e inverossimil ) que no processo citado da poesia homérica tenham tido papel ) preponderante as consideragdes estéticas OU mesmo um sentimento | admitido por Goethe € Schiller. O efeito é, sem | descrito, e daqui se deduz | estético do tipo divida, exatamente aquele por eles ; k que eles proprios, assim } nfeito, 0 conceito do epico, como todos as escritores decisivamente influenciados pela Antigui- | ‘ade clissica possuem. Mas a verdadeira causa da impressio de | preci samente, Na | fetardamento pareceme residir em outra coisa; homérico de ndo deixar nada do que é | necessidade do estilo Mmencionado na penumbra ov inacabado, v 4 “primeira vez, sto descritos -p cespicie € ofigem, ainda _que i daquéles outros onde se informa, a de = peat onde estivera recentemente, que fizera or Por qual cee, chegara; até os préprios epitetos Parecem-me ser ate inky tltima andlise, a mesma necessidade de exteriorizacag qu”®is, em nos. Aqui, € a cicatriz que aparece no a possivel para o sentimento hi decorrer da a, 5 k ‘omeérico deixt-la emergir simpleg ¢ da escuridao de um p ssado obscuro; ela deve Sair claramengso™€ € com ela, um pouco da juyentude do herd, da te a lug © primeiro terior no seu discurso; 0 ‘que nao 40S outros, falam para si, , de modo a Acontecem muitas coisas espant itosas nas i icas, ‘nunca tacitamente; Polifemo fala com Uliss fendmenos s4o postos sempre em cl 40 miitua; um niimero considerdvel de Conjungdes, adverbos, Particulas e outros instrumentos sintéticos, todos claramente deli mitados e sutilmente Braduados na sua significacio, deslindam as Personagens, as coisas e as partes dos acontecimentos entre si, ca simultaneamente, em Correlaco mitua, ininterrupta e — fe; tal como os préprios fendmenos isolados, também as a OS entrelacamentos temporais, locais, causais, finsis, as, Secutivos, comparativos, concessivos, antitéticos € conti trimer Peeitamente acabadas; de meade aoe hd ut a ininterrupto, Titmicamente movimentado, dos fendmenos, rae ealnett8s em parte alguma, wane forma fragmentiria 08 Galmente ilumin, ishumbre , » uma lacuna, uma fenda, um vislum Profundezas inexplotadas A CICATRIZ DE ULISSES 5 E este desfile dos fendmenos < sempre em pleno presente espataletempock Pee ee tas interpolacées, 0 fr io das interpolactes, fica que ¢ familiar a todo leitor de Homers Construcdo sintée trecho, é também encontravel em interpolagte nuilizado em nosso A palavra ‘‘cicatriz” (v. 393) segue se imediatamenie uma orsga0 relativa (‘‘que outrora um javali.."), a qudl ee ere ee utrora um javali...""), a qual se expande amplo paréntese sintético; neste introdus-se, inesperadamente, uma oracio principal (v. 396: ‘‘um deus dewlhe..), 2 qual vat a livrando silenciosamente da subordinagio sintitica, até swe, camo ica, até que, com 0 verso 399, comega um novo presente, uma insercio também si ticamente livre de novos conteidos; este novo vam s 5 presente reina sozinho até que, com o verso 467 (“‘esta era agora tocada pela ancid...’*), retoma-se aquilo que antes se interrompera. E claro que, em interpolagdes to longas como a presente, dificilmente seria possivel levar a cabo uma ordena¢o sintitica; bem mais ficil seria uma ordenagio em perspectiva, dentro da’ acio principal, mediante uma disposi¢Zo dos contetidas que tivesse isto em mira; se se apresentasse, por exemplo, a estéria da cicatriz. como lembranga de Ulisses, tal como ela aparece neste momento na sua consciéncia, isto teria sido muito facil: teria sido necessério comeyar simples- mente com a narragio da cicatriz dois versos antes, quando da primeira mencio da palavra “‘cicatriz"*, onde ja esto disponiveis os motivos ‘Ulisses”” e ‘‘lembranga’. Mas um tal processo subjetivo-perspectivista, que cria um primeiro e um segundo pla- nos, de modo que o presente se abra na diregio das profundezas do passado, é totalmente estranho 20 estilo homérico; ele s conhece 0 primeiro plano, sé um presente uniformemente iluminado, unifor~ memente objetivo; e assim, a digressio comeca sb dois versos depois, quando Euricléia ja descobriu a cicatriz — quando a possibi- Tidade da ordenacdo em perspectiva nio mais existe, € a estoria da cicatriz torna-se um presente independente e pleno. ’A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nitida quando se Ihe contrapde um outro texto, igualmente antigo, igual- Mente épico, surgido de um outro mundo de formas. Tentarei a ‘comparagZo com 0 relato do sacrificio de Isaac, narra¢30 inteiramen- te redigida pelo assim chamado Eloista. Na versio King James, a introdugio vem assim traduzida: “‘Depois disto, Deus provou ‘Abrato. E disse-lhe: Abraiio! — Eis-me aqui, respondeu ele." J& este principio nos deixa perplexos, quando viemos de Homero, Onde estio os dois interlocutores? Isto nio é dito. Mas 0 leitor sabe muito bem que normalmente nio se acham no mesmo lugar terreno, que um deles, Deus, deve vir de algum lugar, deve itromper de alguma altura ou profundeza no terreno, para falar com ‘Abraio, De onde vem ele, de onde se dirige a Abratlo? Nada disto & em MIMESIS 6 dio, Hl ao ver, como Zeus ou ae 48 Btiopias, onde egozijara com um holocausto, Na 4 8e diz, também, da Causa o movera a tentar Abrato to terivelmente. Tle wa a dine gue ome Zeus, com outros deuses, niuma assembléia, em orden tit curso; também no nos & comunicado © que ponerara mena Sea esperada e enigmaticamente penetra na ne prio coragilo; desconhecid ° Cena, chepa. de de sou pound descn elas € cham A ese que sto se exlica partir da singular nora A al to diferente da dos. gregos. Isto € correto, ma: ni objeco, Pois, como se explica a nocio judaica de Deus? Jé 0 sen primitivo Deus do deserto nao contava com forma ou Tesideni fas, ¢ era soto; sua falta de forma e resdencig Solidag no sé se reafirmaram, finalmente, na luta com 05 deuses do Oriente proximo, relativamente bem mais inteligiveis, mas também, se desenvolveram de manira mais intense. A nots ne nio ¢ somente causa, mas antes, sintoma do seu particular ver ¢ de representa. Isto fica ainda mais claro, 2 voltmes para outa intrieutor, Abra. Onde eae 5 sabemos. Ele diz, contudo: “Eis-me aqui” ~~ sa," palavea hebraica significa algo assim como “‘vedesme’™ ou yt tradi Gunkel, “ougo" em qualquer caso, nto quer indices 6 og real Po. dual Abrato se encontra, mas 0 seu lugar morale srg " Deus que o chamara: estou aqui, & espera das tas ones Nio é Sounicado, contudo, onde ele se encontra praticamenre: Net eerSheba ou em outro lugar, se em casa ou a0 ar Were Me interessa 20 natrador; 0 leitor'nio 0 fica sabendo, ¢ forse ceupacio a qual se dedicava, quando Deus 9 chao hen Feats. Lembre-se, para bem perceber a diferenga, que me wana. Hermes a Calipso, onde a incumbéncia, a viagem, recepcto do visitante, a si estendem ao longo de mui que 08 deuses Seja para auxiliar os seus um dos seus odiados mi itos versos; favoritos, seja para confundir ou perder ‘ortais, sempre ¢ indicada claramente a sua vezes, 0 meio da sua chegada e do seu , porém, Deus aparece carente de forma (e, Sa ude> aparece”), de algunn lugar, 6 ouvimos a sua vor, ee no chama nada além do nome: sem adjetivo, sem asibur 3 pest itterrelada um epiteto, como seria O can on qualquer apéstrofe ica. E também de Abraio nada ¢ tornado sensivel, afora # oom que ele replica a Deus: Hinne-ni, ‘Eis-me aq = improgltts evidentemente, & sugerido. um gesto extrema gqante que exprime obediéncia e prontidao — cu : we deixado, contudo, ao ee Assim, nada dos incesees ce Sinanilesto, SXet0. as palavras, reves, abruptas, w-# Feptesen dramente, ‘sei Preparagdo alguma; quando mult escuro, it de um gesto de total entrega; tudo o mals fa ‘eataren) 4 AN Junta 0 tno ee i incerlocuo mum mesmo plang; podemos imaginar, aum Pt desaparecimento, Aqui A CICATRIZ DE ULISSES 7 plano, Abraio, sua figura prostrada ou ajoelhada, inclinando-se de bragos abertos ou olhando para o alto mas Deus nao esté ai: as palavras e os gestos de Abraio dirigem-se para o interior da imagem ou para o alto, para um lugar indefinido, escuro, em nenhum caso para um lugar situado no primeiro plano, de onde a voz lhe chega. Apés esta introdugio, Deus dé a sua ordem, e tem inicio a narracao propriamente dita. Todos a conhecem: sem interpolagdo alguma, em poucas oracdes principais, cuja ligacdo sintatica é extremamente pobre, desenvolve-se a narracdo, i - vel descrever um apetrecho que €wtlizado, a até mesmo, a ocasiio em material dé que Sto feitos; : ser descritos com admiracdo; eles nem suportam um adjetivo; sio servos, burro, lenha e faca, @ nada mais, sem epitetos; tem de cumprir a finalidade que Deus lhes indicara; 0 que mais eles sio, foram ou serdo permanece no escuro. Uma viagem é feita, pois Deus indicara 0 local onde se consumaria o sacrificio; mas nada é dito acerca dessa viagem, a nio ser que durara trés dias, e mesmo isto & expresso de forma enigmitica: Abraio e sua comitiva partiram ‘‘dé manha cedo”’ e se dirigiram ao lugar do qual Deus lhes havia falado; ao terceiro dia elevou os olhos e viu o lugar de longe. O levantar dos olhos € o unico gesto, é propriamente a tinica coisa que nos é dita acerca da viagem, e ainda que ele se justifique pelo fato de o local se encontrar num lugar elevado, aprofunda, pela sua propria singeleza, a impressio de vazio da caminhada; & como se, durante a viagem, Abraio nio tivesse olhado nem para a direita nem para a esquerda, como se tivesse reprimido todas as manifesta- ges vitais, assim como as dos companheiros, exceto o andar dos. seus pés. Desta forma, a viagem é como um silencioso andar através do indeterminado e do provisbrio, uma contencio do f6lego, um acontecimento que nio tem presente e que esta alojado entre o que passou e o que vai acontecer, como uma duragao ndo preenchi- da, que é, todavia, medida: trés dias! Esses trés dias reclamam a interpretacZo simbélica que mais tarde obtiveram. Comegaram ‘*de manha cedo’’. Mas a que hora do terceiro dia levantou Abraio os olhos e viu a sua meta? Nao hé no texto nada a respeito. Evidente- mente nao ‘‘tarde na noite’’, pois restou-lhe, ao que parece, tempo suficiente para subir a montanha ¢ preparar o sacrificio. Portanto, ‘de manha cedo’’ no est empregado em fun¢do de uma demarca- go temporal, mas em fungto de um significado moral; deve gxprimir o imediato, 0 pontual ¢ a exatidio da obediéncia do desafortunado Abrado. Amarga é para ele a manha em que sela 0 seu jumento, chama os servos e 0 filho Isaac e parte; mas ele obedece, caminha até 0 terceiro dia, quando levanta os olhos e vé 0 lugar, De onde vem, nfo o sabemos, mas a meta é indicada claramente: Jeruel, na terra de Morié. Nao foi estabelecido que Jugar é este, pois ¢ possivel que ‘“Moria”” tenha sidd introduzido ‘ MIMESiS posteriosmente como corresto a uma ouerg Paleveg todo caso, 0 local estava indicado; trataya 5, sem iv, as, lugar de culto, a0 qual deveria ser comlerida uma wi ig expecial em conextlo com a oferenda de Abrato, Do mete que "de manhit cedo" no tem a functo de fixar ug ae | temporal, ‘'Jeruel, na terra de Morid”” nig pat uma qi espacial, pois, em nenhum dos dois casos, Conhiecenmog 2 posto do mesmo modo que nfo sabemos a hora Mm que. ‘Tevantou os olhos nem o lugar de onde partiy Seruel jit Abra, fanto como meta de uma viagem terrena, na sug rela poy com outros lugares, mas por sua especial leigfo, por sua Pica om Deus, que o determinara como eendrio dst, ly precisa ser nomeado, Por ig A natraciio aparece uma terceira. personagem in Isaac, Enquanto Deus © Abratio, servos, burror e Utensflios 4h simplesmente chamados pelo nome, sem mencto de qualidade 2 de qualquer outra especificagao, Isaac obtémn, uma Ved, uma apo sto; Deus diz: *'Toma teu filho, teu dnico filho amas, Isaac.’ Isto, contudo, nfo & um, como pessoa fora da sua relacio com o pai _ um desvio, i , inteligente ou tolo, alo — nada disto ¢ dito. So aquilo que Speito aqui € agora, dentro dos limes — para salientar quao terrtvel ¢ a consciente & Deus desse fato. Obser: ‘etico qual é a significacao dos adjetivos ‘va-se com este exemplo antit descritivos e as digressdes da Poesia homérica; com a sua alusto 4 existencia restante da personagem descrita, aquilo que ndo ¢ tol Mente apreendido pela situacdo, a sua existéncia, por assim diet, absoluta, eles impedem a concentracdo unilateral de leitor na erie Presente; impedem, mesmo no mais espantoso dos acontecimento, Surgimento de uma tensao opressiva. Mas no caso da oferenda de brado, a tensdo opressiva existe. O que Schiller queria reservar wig POC? ‘dgico — roubar-nos a nossa liberdade de animo, irigir numa s6 direcdo e concentrar as nossas forgas interiores hiller diz ‘a nossa atividade’") — ¢ obtido neste relato bblco Grramente, deve ser considerado épico, . neontramos © mesmo contraste quando comparamos 0 em: PF discurso direto. No relato biblico também se fala; mas 0 Scurso_nJo tem, como em Homero, a fungao de manifest of id nat Pensamentos. Antes pelo contréno: tem « intengio Ce pair algo implicito, que permanece inexpresso. Deus dé 3 sut discurso direto, ‘mas cala seus motos io ordenade e*" 4 Ordem, emudece, ¢ age da maneifa que he suented* COMVersa entre brads lease no caminho al do sacrificig Nilo é senag do pesado siléncio, € Pata tomndcle oo, interrupt do pe ‘ois’, Iss0¢ '© mais opressivo. ‘Juntos os A CICATRIZ DE ULISSES 9 gando a lenha e Abraio, o fogo e a faca, ‘‘caminhavam”’ atreve-se a perguntar, hesitante, acerca da ovelha, e Abraio It a resposta que conhecemos. Ali repete 0 texto: ‘“E ambos, | juntos, continuaram o seu caminho."” Tudo permanece inexpresso, © Nio ¢ facil, portanto, imaginar contrastes de estilo. mais marcantes do que estes, que pertencem textos igualmente antigos épicos. De um lado, fenémenos acabados, uniformemente ilumi- . definidos temporal e éspacialmente, ligados entre si, sem rStICiOs, num _primeiro plano; pensamentos € sentimentos_ex- ecimentos que se desenvolvem com muito vagar € S40. Do outro lado, so ¢ acabado formalmente aquilo que | estacdes_interessa a meta da aco; o restante fica na) @scuridio. Os pontos culminantes e decisivos para a aclo s4o os} ! inicos a serem salientados; o que ha entre eles é inconsistente; tempo e espaco sdo indefinidos e precisam de interpreta¢do; os pensamentos e 0s sentimentos permanecem inexpressos: 36 sio ridos pelo siléncio e por discursos fragmentirios. O todo, dirigido com maxima e ininterrupta tensio para um destino e, por isso mesmo, muito mais unitario, permanece enigmatico e carregado de segundos planos. Acerca desta iltima expressio, quero’ expri- mir-me com maior clareza, para que ela nao seja mal compreen- dida. Falei mais acima do estilo homérico como sendo de ‘‘primeiro plano’’, porque, apesar dos muitos saltos para trés ou para diante, ixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente tinico e sem perspectiva. A observagio do texto elolsta mostra-nos fe 4 expressio pode ser emprégada mais ampla ¢ profundamente. ‘idencia-se que até a personagem individual pode ser apresentada mo carregada de segundos planos: Deus sempre o é na Biblia, vols nao é, como Zeus, apreensivel na sua presenca; sO ‘“algo’* Bele aparece em cada caso, ele sempre se estende para as profundi- fos, Mas os proprios seres humanos dos relatos biblicos sto mais planos do que os homéricos; eles tém_mais “a0 destino e a consciéncia. Ainda ue estejam quase sempre ‘envolvidos num acontecimento que os scupa por completo, ndo se ‘entregam a tal acontecimento a ponto perderem a permanente consciéncia do que Ihes acontecera em jutro tempo e em outro lugar; seus pensamentos e sentimentos tém remdas e sa0 mais intrincados. O modo de agit de Abrato case nao sO a partir daquilo que Ihe acontece momentinte, te ou do seu cardter (como o de Aquiles por sua ousadia € Gulho, o de Ulisses por sua astiicia ¢ prudente previsdo), mas a Brie da sua historia anterior. Ble se lembra, tem permanente tire edo que Deus Ihe prometera e do que 8 cumprire = 1u interior est profundamente excitado, entre a indignacdo deses- Ia e a esperanca confiante; a sua silencios® obediéncia ¢ rica em imadas e em planos — ¢ impossivel para_as figuras homéricas, > destino esté univocamente determinado, ¢ que acordam todo mo se fosse o primeiro, cair em situagdes internas t&o smaticas. As suas emogoe 's sdo violentas, convenhamos, mas MIMESIS . ‘ de imediato. Quanta também simple © Caracteres de Saul ou de Davi quae pi em contrast®s is sto as relacdes humanas, como a a. _ das Fase Davi e Joab! Em Homero seria inimaginnae™® Absalio Glade de planos nas situagdes psicoldgicas coma eu multiplicidave (que expressa na historia da morve de bulge a etlogo (2 Sam. 18 ¢ 19, do assim chamado javista), is ai nao apenas de acontecimentos psiquicos carregados de sega) os, de profundezas, talvez, abissais, mas também de uma p plano puramente espacial. Pois Davi esté ausente do camo de atalha mas as irradiagdes da sua vontade © dos seus senting m efeito constante, agem até sobre Joab que resiste ¢ aye ideragio; na grandiosa cena com os dois emissarios, taxa” ggundos planos espaciais quanto os psiquicos atingem uma eae? © perfeita, sem que os Ultimos sejam expressos. Confronte-se com a maneira como Aquiles, que envia Patroclo primer, oberta e depois & luta, perde quase toda presenca, enquante mn ¢ materialmente. O mais importante, contudo, é a multipli- de de camadas dentro.de cada_homem; isto & difclinony 4 quando muito na forma da divida 0 s_modos de agir; em tudo o mais a vida psiquica mostra-se nele sb na Sucessio, nn mento das paixdes; enquanto que os autores judeus conse. gm exprimir as camadas simultaneamente sobrepostas da cons Acia e 0 conflito entre as mesmas. Os poemas homeéricos, cuja cultura sensorial, linguist tudo, sintatica, parece ser tanto mais elaborada, sua imagem do } competi¢des e lavatorios — para que obset- os herdis na sua maneira bem propria de viver e, com } Pos alegremos ao vé-los gozando o seu presente saboroso, inserido em costumes, paisagens e necessidades quotidianss.£) os encantam e cativam de tal maneira que realmente comps" oS 0 seu viver. Enquanto ouvimos ou lemos a sus 6 absolutamente indiferente saber que tudo nio p: ms A hentira’’. A exprobragdo frequentemente leva s .Omero de que ele seria um mentiroso nada tira rs a Gias ele nao tem necessidade de fazer alarde da verde Hs = do seu relato, a sua tealidade é bastante forte; marathi ene sc Sua rede, e isto the basta, Neste mundo ue te por si mesmo, no qual somos introduzidos por ao tampouco outro conteudo a nfo ser ele proprio; 9 ent t cultam,_neles nao ha nenhum ensitii op ido dculto. E possivel analisar Home acs NAO & possivel interoreté-lo. A CICATRIZ DE ULISSES i posteriores, orientadas no sentido do alegérico, tentaram aplicar as — _ Suas artes exegéticas também a Homero; mas isso a nada levou. Ele resiste a um tal tratamento. As interpretagdes sto forgadas ¢ estranhas, e nio se cristalizam numa teoria unitaria, As considera- des de carater geral que se encontram ocasionalmente ~ em nosso episddio, por exemplo, 0 verso 360: ‘pois na desgraca os homens logo envelhecem"’ — revelam uma tranquila aceitagdo dos dados da existéncia humana, porém nilo a necessidade de cismar sobre o assunto, ¢ menos ainda, um impulso apaixonado, seja de se levantar contra isto, seja de se submeter com abandono extatico. \ Tudo i iferente nos relatos biblicos. O. encantamet Igo, € se, ndo obstante, deve ao fato de que os sucessos éticos, religiosos, interiores, que s4o ‘os nicos que Ihes interessam, se concretizam no material sensivel da vida. Porém, a intencio religiosa condiciona uma exigéncia absoluta de verdade historia. A historia de Abraao e de Isaac nao esta melhor testificada do que a de Ulisses, Penélope e Euricléia; ambas so lendarias. SO que o narrador biblico, o Eloista, tinha de acreditar na verdade objetiva da historia da oferenda de Abraao — a persisténcia das ordens sagradas da vida repousava na verdade desta historia e de outras semelhantes. Tinha de acregitar nela apaixona- damente — ou entdo, deveria ser, como alguns exegetas iluministas admitiram ou, talvez, ainda admitem, um mentiroso consciente, “no um mentiroso inofensivo como Homero, que mentia para agradar, mas um mentiroso politico consciente das suas metas, que mentia no interesse de uma pretensio 4 autoridade absoluta. Esta "visio iluminista parece-me psicologicamente absurda, mas mesmo se a levarmos em consideragio, a relagio entre o nartador biblico ‘a verdade do seu relato permanece muito mais apaixonada, muito ‘mais univocamente definida, do que a de Homero. Tinha_de rever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua {¢ 1 dade da tradicio, ou, do ponto de vista racionalista, por seu teresse na sua verossimilhanga — seja como for, @ sua fantasia wentiva ou descritiva estava estreitamente delimitada, Sua ati devia limitar-se a redigir de maneira efetiva a tradigdo devota. ique ele produzia, portanto, nio visava, imediatamente, “reali: “ uando a atingia, isto era ainda um meio, nunca um fim mas 4 verdade. Ai de quem no acreditasse nela! Pode-se ‘gar muito facilmente objecbes historico-criticas quanto & guerra Treia © quanto aos errores de Ulisses, ¢ ainda assim sentir, na 1 de Homero, 0 efeito que ele procurava; mas, quem no cré ‘olerenda de Abraio no pode fazer do relato biblico o uso para o ial fo1 destinado, & necessario ir mais longe ainda, A pretensto de de da Biblia ¢ nfo 46 muito mais urgente que a de Homero, ‘chega a ser tistnica; exclui qualquer outra pretensto, O mundo relatos das Sagrada Escrituras nilo se contenta com a pretenslo ‘imu realidade bistoricamente verdadeira ~~ pretende ser 0 mundo verdadeiro, destinado ao dominio exclusivo. Qualquer ON ip MIMESIS tro cendrio, quaisquer outros desfechos oy ; Ordens ireito algum a se apresentar independentemente dele, ¢ esté og ue todos eles, a historia de toda a humanidade, s¢ intogearaetilo bordinario aos seus quadros. Os relatos das Sagray S220 ey, procuram 0 nosso favor, como os de j¢iam para nos agradar ¢ encantar — 0 que querem Eno Se fos negamos a isto, ento somos rebeldes, bjetar que isto ¢ ir demasiado longe, que a religiosa que apresenta estas pret. justamente nao so, como os de Homero, . Neles encarnam-se doutrina ¢ promes: lidas; precisamente por isso t¢m um cai itém um segundo sentido, oculto. ente a intervenco de Deus no prin s elementos fatuais e psicolégicos no Homero, gett lensdes, pois mera “realidade' a indssoluvelmene ter recondito © ob” Na historia de Isaac nag, ae cipio e no fi mio ¢ im, mas tambien ue permanecem, SeguNdoS plang ¢ Wvestigacdo profunds Que Deus tente até o mis lue a obediéncia incondicional ite Ele, mas que também a sua Seu interior bscuros, tocados apenas de leve, carregados de Hjustamente por isso que ndo s6 precisam de in interpretacdo, mas até o exigem. doso da maneira mais terrivel, q eja a unica atitude possivel peran | Mas, por sua causa, 0 texto fica tao pesado, mitetido, ele contém em si ainda tantas ‘Deus ¢ da atitude do homem pied tivado a se aprofundar uma e outra vez no texto e a procurar em Os 0s seus pormenores a luz que possa estar oculta, E como, de 0, ha no texto tanta coisa obscura e inacabada, e como ele sabe que 5 € um Deus oculto, 0 seu afa interpretative encons Foro ee alimento. A doutrina e 0 zelo na procura da i Hacdo esto indissoluvelmente ligados ao cardter do relato — € mais do que mera ‘‘realidade’? — e esto, naturalmente, &n + td carregado de alusdes acerca da esséncia. loso, que o crente se vé por © real. Se, desta forma, o texto do relato biblico necesita tant de Sade ca, Patti do seu préprio contetido, sua pretenio l dade absoluta leva-o ainda mais longe por este eaminho. ‘ Quer nos fazer Esquecer_a_nossa propria realidade durant ' 0, mas suplanta-la; devemos A OSeu_mundo, sentirmo-nios membros da universal. Isto se torna cada vez mas dic mundo vital se afasta do mundo das Eset le, & ima eesat de tudo, mantém em pé a sua feet cdo PTS que ele proprio se adapte, atra ito Fda erretatva. Ite foi relaivamente fac 90 Pe oe et Idade lia européia era posstvel, vidianos ™tecimentos biblicos ‘Como sucessos quotich da que o nosso A CICATRIZ DE ULISSES 13 5 ado deixado | de lado, os relatos biblicos convertem-se em fg lendas e 2 doutrina, desmembrada dos mesmos, torna-se E: incorpérea que nao mai: ic He oc olaiicn na Coles meats MH rated sented _ Como conseqiiéncia da pretensdo a autoridade absoluta, o s, simulténeos e posteriores. O Velho Testamento, ia_universal; comeca_comi_o_ principio _dos tempos, indo, e quer acabar com_o fim dos tempos, com 0 mundo devera encoi ece no mundo s6 pode ser Sentado como membro desta estrutura; tudo 0 que disto fica conhecido, ou até interfere com a historia dos judeus, deve embutido na estrutura, como parte constitutiva do plano divino; mo isto também sO € possivel pela interpretagio do novo erial afluente, a necessidade exegética se estende além dos primitivos da realidade judeu-israelita, por exemplo, a assiria, babil6nica, persa, romana; a interpreta¢do num © determinado torna-se um método geral de apreensio da de; o mundo estranho, penetrando constantemente como ino horizonte e que, tal como se apresenta de forma imediata, n geral, totalmente impraticavel para 0 seu uso No contexto judeu, deve ser interpretado de tal maneira que se encaixe pre isto repercute sobre o contexto que carece pliacdo e de modificagdo. O trabalho interpretativo mais mecionante desta espécie ocorreu nos primeiros séculos do smo, como conseqléncia da missio entre: pagios, € foi do por Paulo e pelos Pais da Igreja; eles re-interpretaram tradigdo judaica numa série de figuras a prognosticar a ro de Cristo, € indicaram ao Império Romano 0 seu lugar G do plano divino da salvagio. Portanto, enquanto, por um tealidade do Velho Testamento aparece como verdade plena, tensdes @ hegemonia, estas mesmas pretensdes obrigam-na ‘Constante modifica¢a0 interpretativa do seu proprio conted- sofre durante milénios um desenvolvimento constante € ’a vida do homem na Europa. ensto 4 universalidade historica ¢ a insistente relag20 ¢ redefine em conflitos — com um Deus mecalto, porém aparente, que dirige a historia universal, mando e exigindo, confere aos relatos do Velho Testamento ‘va totalmente diferente daquela que Homero poderia S Velho Testamento é incomparavelmente menos unitario jas quase sem} MIMESIS 14 , 1e os poemas homéricos, & mais ey: on sum compost me Os cat um eles pera ete mente feito ‘universal € interpretativo da histérig univer contexto hist ham recebido alguns elementos, dificilmente ml Anda que femdssim estes so apreendidos pela interpretacgt* xiveis, “itor sente a cada instante a perspectiva religiosg © historico-universal que confere a cada um dos relatos o seu ctf histOrico-'eta globais. Quanto mais isolados e horizontalme: © fesendentes s40 05 relatos € 0s grupos de relatos, se compara in ree da Mada ¢ da Odisséia, tanto mais forte & a sue gas vertical comum que os mantém todos juntos sob um mesmo signo, co que falta totalmente a Homero. Em cada uma das grandes figuras do Velho Testamento, desde Adio até os Profetas, encama-se ya momento da mencionada ligacdo vertical. Deus escolheu moijen estas personagens para o fim da encarnacao da sua esséncia eda sey vontade — masa eleicdo e a modelagem nto coincidem; esta iltims realiza-se paulatinamente, de maneira historica, durante a vida terrena dos escolhidos. Na historia do sacrificio de Abraao vimoe como isto ocorre, que terriveis provas envolve uma tal modelagem, Dai decorre 0 fato_de_as_grandes figuras do Velho Testament ‘serem mais plenas de desenvolvimento, mais carregadas da sus pr6pria historia vital e mais cunhadas na sua individualidade do que ‘os herdis homéricas. Aquiles e Ulisses so descritos magnificamen. ‘We; por meio de muitas e bem formadas palavras, carregam uma série de epitetos, suas emogdes manifestam-se sem reservas nos seus discursos e gestos — mas eles nao tém desenvolvimento algum ea historia das suas vidas fica estabelecida univocamente. Os hersis homeéricos esti tZo_pouco apresentados no seu desenvolvimento -Dresente e passado que, na sua maioria — Nestor, Agamemnon, Aquiles — aparecem com uma idade pré-fixada. O proprio Ulisses que dé tanta margem a um desenvolvimento historico-vital, gracas a0 longo tempo narrado e aos muitos acontecimentos que nele correm, quase nada mostra disso tudo. E claro que Telémaco cresceu enquanto isto, do mesmo modo que toda crianga chega 4 adolescéncia; durante a digressdo acerca da cicatriz, conta-se tam- bém idilicamente a infancia e adolescéncia de Ulisses. Mas Penélo- Pe pouco mudou nesses vinte anos; no caso do proprio Ulisses, 0 Envelhecimento meramente fisico é velado pelas repetidas interven- Ses de Atenéia, que o faz apa er velho, ou jovem, segund Fal itt situagio, Para além do fisico, nem sequer se fez aluso mesmo que ake Lunde, Ulisses é, quando regressa, exatamente 0 tho, ea aa indonara Itaca duas décadas atras. Mas, gue cam a Bengt do no Se intenpse entre o Jaco que obteve andlosamente despedacady sor noetnito € 0 anciio cujo filho mais ama ie pelo citime de ra fera — entre Davi, © harpista, perses\s 3 apaixonadas ae » € 0 velho rei, circundado de intrises a NO seu leito por Abisai, a Sunamita, sem 46 de quem sabemos como chegou @ Sef © Mente na nossa consciéncia, € mals A CICATRIZ DE ULISSES 5 : "pa aeata do que 0 jovem; pois 3 no decorrer de em lances de fortuna os homens se diferenciam até @ feeructerisagto; ° pas Testamento nos oferece este card ‘ia das personalic elager sac para deme pape ep, Darane velhidas pelo seu desenvolvimento as vezes ate a decomposi- } elas apresentam um cunho individual que ¢ totalmente estra- s herdis homéricos. A estes, 0 tempo s6 pode afetar exte- ente, € mesmo isto ¢ evidenciado o menos possivel;_em te, as figuras do Velho Testamento esto constantemente dura férula de Deus, que nio sé as criou ¢ escolheu, mas finua a modcli-las, dobri-las ¢ amass4-las, extraindo delas, sem ira sua esstncia, formas que a sua juventude dificilmente va prever. A objegio de que o historico-vital do Velho Testa- surgi, muitas vezes, da sintese de diversas personagens as, no nos atinge; pois esta sintese faz parte do surgimento exto. E quifo mais ampla ¢ a oscilacio do péndulo do seu destino .quela dos herdis homéricos! Pois eles sto os portadores da adé dlivina, ¢ mesmo assim, sto falivels, sujeltos a. desgraga ¢ hasta —< em meio A desgraga ¢ & humilhagdo manifstase és e palavras, a sublimidade de Deus. Dificil-~ @ um deles no sofre, como Adio, a mais profunda humilha- ¢ dificilmente um deles nao ¢ agraciado pela intervencdo ¢ Jo pessoais de Deus. Humilhacdo e exaltagio_si0_muito rofundas ou elevadas do que em Homero. e, fundamental- pendam sempre juntas. O pobre mendigo Ulisses nto ¢ senilo srarcé, mas Adio ¢ real e totalmente expulso, Jacb ¢ realmen- ‘fagitivo e Jos¢ é realmente langado num pogo e, mais tarde, ente vendido como escravo. Mas a sua grandeza, que se eleva ria humilhacao, & proxima do sobre-humano e é, também, da grandeza divina. Percebe-se_claramen oa ota oscilagio pendular esté em relacio com a intensidade sr pessoal — justamente as situagBes extremas, as quais bandonados ou lancados ao desespero extremo, nas alice, Eroda medida, nos sentimos {elizes ou exaltados, confe- quando as superamos, um cunho pessoal que se_reco~ 5 dea tado de um intenso desenvolvimento, de uma rica E este cardter evolutivo confere, alids, quase sempre £08 | Velho Testamento um carter histérico, ‘mesmo n05) m_que se trata de tradigdes meramente lendarias. | mero permanece, com todo O seu assunto, no lendario, B que o assunto do Velho Testamenio, 4 medida que 0 nga, aproxima-se cada vez. mais do historico; na narragao ja predomina o relato histOrico. Ali também ha ainda Sono. por exemplo, os relatos de Davi e Golias; dizer o essencial, consiste em coisas que os por experigncia propria ou através de tes- Ora, na maioria dos casos, @ diferenga_entre ao leitor um pouco. experiente, facil de imediatos. oria ¢, pal . om / . MIMESIS) huteua ¢ tndeo ificil distinguir, dentro de um relato bie... Se in peclalmente Diriueae istic, «| eine do rmaclo historico-lologica, & fee 8° rege) i formagao historic ica, + €M pera) Bis culdadoss nisticia, A sua estratura & diferente. MQ oa ee pi ge demuncia diedistaments Pela presen eos ‘naravilhosos, pela repeticao de Botivos Conhecidos” a \ fesleixo na localizacao espacial ou temporal, ou, por Cutras coisas nantes, pode sec reconhecida apidamente, o mais da Penn estratura. Deservolverse de maneira excessivament jo 0 que correr transversalmente, todo atrito. ya Ps dino, que se insinua nos acontecimentos e Motivos pring? todo 0 indeciso, quebrado e vacilante, tudo 0 ques 5 curso da a¢ao e a simples dire¢a0 das personagens, Udo isso & A historia que presenciamos, ou que con! atraves temunhos de contemporéneos, transcorre de mang, Muito uniforme, mais cheia de contradigbes e confusions quand zona determinada, ela jé produziu resultados, podem’ com, ajuda, ordend-los de algum modo; e quantas Vezes a ordem que achamos ter obtido, torna-se novamente duvidess quanta, Gos perguntamos se aqueles resultados no nos leat ordenagdo demasiado simplista do originalmente acontecido! enda ordena o assunto de modo univoco e decidido, desea a festante conexo com o mundo, de odo que este nio pode de maneira perturbadora; ela so conhece homens univo- ente fixados, determinados por poucos e simples mauiae caja Bridade de sentimentos e acdes nao pode ser Prejudicada, Na a dos mértires, por exemplo, vemos como se enfrenten obst- € faniticos perseguidos e um perseguidor no mene teimoso e ‘uma situagdo tao complicada, isto &, to verdadeiramente ey ne aduela em que se encontra o “*perseguidor™ Pio a Carta que escreve a Trajano acerca dos cristios, nlo poi em lenda alguma. E este caso ainda é relativamente linear Festante, dividuos e dos grupos nacional-socialismo da Alemanha, ou 0 Povos e Estados antes e durante a atuil 2), sentiré como sdo dificilmente Tepresentaveis 0s icos em geral, e como sdo impréprios para a lenda; 0 fo contém em cada individuo uma pletora de motivos con- Os, em cada grupo uma Vacilagdo e um tatear ambiguo; so te (como ag ‘Ora, com a guerra) aparece tima situagio fortui- univoca que pode ser descrita de maneira relativamente de cTeSM0 esta & subterraneamente graduada, € a svt ace est4 quase Constantemente em perigo, ¢ os motivos - Earticipantes tém tantas camadas que os slogans propasit: no nxistit gragas & mais grosseira simplifics!0 ©oMO consequéncia que amigos ¢ inimigos A CICATRIZ DE ULISSES 19. a maioria dos historiadores vé-se obrigada a fazer concessdes & cnica do lendirio. : E claro que uma boa parte dos livros de Samuel contém list6ria, e ndo lenda. Na rebelido de Absaléo, ou nas cenas dos timos dias da vida de Davi, o contraditério e o entrelacamento motivos nos individuos e na trama total tornaram-se tdo retos que no se pode duvidar do carater autenticamente rico do relato. Até que ponto possam ter sido desfigurados os Eontecimentos por parcialidade isto é uma outra questi que no gs interessa agora; de qualquer forma, aqui-comeca a passagem do lério_para_o_relato_histérico_que_falta totalmente A fa méricas. Ora, as pessoas que redigiram as partes, ‘os de Samuel sdo, em grande parte, as mesmas que redigiram além disso, sua peculiar concep¢do, § partes lendarias do Velho Testamento, seja freqiiente a apariclo truturas histOricas; naturalmente ndo no sentido de que a 0 seja examinada quanto a sua credibilidade de maneira ntifico-critica; mas meramente de tal forma que ndo predomina do lendério do Velho Testamento a tendéncia para a moniza¢ao aplainante do acontecido, para a simplificacao dos tivos e para a fixacdo esttica dos caracteres, evitando conflitos, cées e desenvolvimento, como é proprio da estrutura lendari Jacé ou até Moisés, tem um efeito mais concreto 1 € historico do que as figuras do mundo homérico, no por melhor descritos plasticamente — pelo contrério — mas fe a variedade confusa, contraditéria, rica em inibigdes dos Atecimentos internos ¢ externos que a historia auténtica mostra est desbotada na sua representac4o, mas esta ainda nitidamen- ervada. Isto depende, em primeiro lugar, da concepcao ‘ca do homem, mas também do fato de os redatores nao terem “bardos, mas historiadores, cuja idéia da estrutura da vida "a se formara no campo do historico. Com isto fica, também, ‘laro de que forma, como conseqléncia da unidade da ra religiosa-vertical, nao podia surgir uma divisdo consciente ‘eros literérios. Todos eles pertencem a mesma ordem geral; {que ndo pudesse ser nela encaixado, ainda que fosse median- jnterpretacdo, ndo tinha lugar algum. Aqui interessa-nos t d4, nos relatos davidicos, a transigdo impercep- ‘s6 reconhecivel pela critica cientifica posterior, do lendario historico; e como, jé no lendério, se apreende apaixonada- © problema da ordem e da interpretacao do acontecer iim problema que, mais tarde, explode os limites da riografia, sufocando-a por inteiro na profecia. Assim, 0 Velho oN MIMESIS to, enquanto se ocupa do acontecer_ humano, d Sos trés Ambitos: lenda, relato historico © teologia ‘hig tica. ~—USt6ricg Com isto que acabamos.de_snalisar relacionae « €- texto. gFego_ parecer também mais limitagg 2M 8 com relerénca a circulo das personagensatuantes je ade politica. No processo do reconhecimento, do se} parece, além de Ulisses e de Penélope, a ama Euriteg! | comprada outrora pelo pai de Ulisses, Laerte. Ta) 1° de porcos Eumeu, ela passou a vida a servigo da fanny ; tal como Eumeu, esta estreitamente unida ao seu destino, e compartilha 0s seus interesses e sentimentos. Mas ida nem sentimentos proprios mas s6 0s dos seus senhore. Eumeu, nao obstante ainda se lembre de ter nascido ling ido quando crianca), fem, nem na prética, nem nos sentimentos, vida preps inteiramente atado a dos seus senhores. Estas duas peso. $40, porém, as tinicas que Homero anima para nés e que icem a classe senhorial. C¢ se desenvolve na classe — tudo 0 que porventura viva além dela s6 participa de ial ¢ ainda tao patriarcal, tio famil lianas da_vida_economica,_que i carater_de classe. SO que ainds é ie de aristocracia feudal, cujos ho vida entre a luta, a caca, as deliberacdes no mercado tins, enquanto as mulheres vigiam as criadas em casa. Como. r este mundo é totalmente imével; as hs 6 liferentes grupos das classes senhoriais; de bait®, Be. Mesmo quando se consideram os acontecimentos 0 Canto da Ihada, que terminam com o episédio de Térsites ido um movimento popular — e duvido que isto possa ser entido sociologico, pois trata-se de guerreiros de categorit » Portanto, de pessoas que sio também membros da classé ida que membros de condico inferior — 0 que estes demonstram diante do povo reunido ndo & sendo st8 ia de independencia e incapacidade de terem inicati¥® a contatos Patrsticas do Velho, Testamento. predomi Sola edo, patriarcal, mas como se trata de ches & ‘ados, OU Semindmades, o quadro social ee S€_sente_a formacao_ em classes. Jest Parece, isto ¢, apos a saida do Epito, © mobilidade, amixide borbulhando ing” ENLE, © povo a ons que Iados ou como personasens tanente; 48 Otigens da profecia parecer 8 1 ncidade politico-religiosa do povo- oro et vimento, em profundidade, 40 P A CICATRIZ DE ULISSES 19 el-Juda deve ter sido de uma espécie muito diferente e muito pA Nistoricidade © mobilidade social mais profundas dos textos o > Testamento relacionam-se, finalmente, com mais uma a diferenca significativa: delas surge um conceito de estilo ado e de sublimidade diferente do de Homero. Este certamente receia inserir 0 quotidiano e realista no sublime e trigico; tal o seria estranho a seu estilo e inconcilivel com ele. Vé-se no sso episodio da cicatriz, como a cena caseira do lava-pés, pintada velmente, é entretecida na grande, significativa e sublime da volta ao lar. Isto esti longe, ainda, daquela regra da acdo dos estilos que mais tarde se imporia quase por completo, estabelecia que a descrico realista do quotidiano era inconci com o sublime, e sé teria lugar no cémico ou, em todo caso, \dosamente estilizado, no idilico. E contudo, Homero esta mais dela do que o Velho Testamento. Pois os grandes e sublimes ontecimentos ocorrem nos poemas homéricos muito mais exclu- e inconfundivelmente entre os membros de uma classe senho- estes so muitos mais intatos na sua herdica sublimidade do as figuras do Velho Testamento, que podem cair muito mais fundamente na sua dignidade — pense-se, por exemplo, em dio, Noé, Davi, Jd —; e, finalmente, 0 ‘realismo caseiro, a presentaco da vida quotidiana, permanecem sempre, em Home- "no idilico-pacifico — enquanto que, ja desde 0 principio, nos os do Velho Testamento, o sublime, trigico e problematico se am justamente no caseiro € quotidiano: acontecimentos como fe ocorre entre Caim e Abel, entre Noé e seus filhos, entre Sara e Hagar, entre Rebeca, Jacd e Esai, ¢ assim por concebiveis no estilo homérico. Isto resulta do fundamentalmente diferente como se originam os conflitos. Frelatos do Velho Testamento, 0 sossego da atividade quotidia- casa, nos campos e junto aos rebanhos € constantemente do pelos ciimes em torno a eleico e a promessa da béngio, € em complicagdes inconcebiveis para umn herdi homérico. Para se necessirio um motivo palpavel, claramente exprimivel, {que surjam conflito ¢ inimizade, que resultam em uta abert nto que naqueles, 0 lento e constante fogo dos citimes © a Mio do doméstico com o espiritual, da béngio paterna com @ © divina, conduzem a uma impregnacdo da vida quotidiana tiva e, freqlentemente, ao seu envenenamen- .ze to profundamente sobre 0 {\ diano que os dois campos do sublime e do quotidiano sto nio ) as efetivamente inseparados mas, fundamentalmente, | dois textos e, ao mesmo tempo, os dois ‘obter um ponto de partida para os tagdo literdria da realidade na cultu- = Comparamos 0s 5 que encarnam, para ensaios sobre a represent 20 MIMESIS ra européia. Os dois estilos representam, na sua oposico, tipos basicos: por ‘tm Tado, descri¢ao modeladora, iluminacao unit rme, |Tigacao sem intersticios, locugao livre, predominancia do primeito ' plano, univocidade, limitacao quanto ao desenvolvimento histérico | ‘e quanto ao humanamente problematico; por outro lado, realce de | certas partes e escurecimento de outras, falta de conexio, efeito), Supestivo do técito, multiplicidade de planos, multivocidade e ne | cessidade de interpretacio, pretensio a universalidade hist6rica,|) idesenvolvimento da apresentagdo do devir historico e aprofunda-|| :/mento do problematico. YO realismo homérico néo pode ser equiparado, certamente, a0 ‘classico-antigo em geral; pois a separacdo de estilos, que se desenvolveu s6 mais tarde, ndo permitia, nos limites do sublime, uma descricdo tao minuciosamente acabada dos acontecimentos quotidianos; sobretudo na tragédia nao havia lugar para isto; além disso, a cultura grega logo encontrou os fendmenos do desenvolvi- mento historico e da multiplicidade de camadas da problematica humana e os atacou 4 sua maneira; no realismo romano aparecem, finalmente, novas e peculiares maneiras de ver as coisas. Quando a ocasiao o exigir, trataremos das modificagdes posteriores da antiga representagdo da realidade; em geral, e apesar destas ultimas, as tendéncias fundamentais do estilo homérico- por nés apontadas vigoram até a mais tardia Antiguidade. ‘Uma vez que tomamos os dois estilos, o de Homero e 0 do Velho Testamento, como pontos de partida, admitimo-los como acabados, tal como se nos oferecem nos textos; fizemos abstracao de tudo o que se refira as suas origens e deixamos, portanto, de lado a questo de saber se as suas peculiaridades Ihes pertencem original- mente, ou se sao atribuiveis, total ou parcialmente, a influéncias estranhas ¢ quais seriam elas. A consideracdo desta questo nao é necessdria nos limites da nossa intencio; pois foi em seu pleno desenvolvimento alcancado em seus primérdios que esses_estilos exerceram sua influéncia constitutiva sobre a representacao euro- g .Péia da realidade. _.

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