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INDICIUM

REVISTA DO SINDICATO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA


FEVEREIRO 2022

Insustentável império
da ilegalidade
Custódia nas delegacias
Entrevista com
de polícia: o insustentável encarceramento: o Brasil
Jesus Pablo Barbosa
império da ilegalidade que deu certo?
p. 41
EDITORIAL

A carreira de Delegado de Polícia se gica e técnica legislativa, em cada uma


tornou cada vez mais preponderante na daquelas legislações, sempre no exercí-
estrutura do sistema de Justiça Criminal cio de uma missão de trabalho voltada
com as recentes evoluções legislativas ao interesse público e da defesa da so-
introduzidas em nossa ordem jurídica. ciedade perante o fenômeno criminal.
Legislações infraconstitucionais
com forte alcance no aprimoramen- "a ampliação do grau de
to da persecução penal , tais como responsabilidade legal do
a Lei 12830/2013; Lei 12850/2013; Delegado de Polícia implica
Lei 13344/2016; Lei 13961/2014; Lei em uma necessidade deste
13441/2017; Lei 13287/2019; Lei vobsantem
13840/2019; Lei 13964/2019, den- aprimorar seus conhecimentos
tre outros diplomas legais trouxeram técnicos e ter uma visão plural
novas e importantes atribuições aos de sua atuação perante o
Delegados de Polícia nas técnicas de Sistema de Justiça Criminal"
obtenção de provas e na condução da
investigação criminal.
E assim continuaremos atuando,
A importância da função do Dele- buscando como próximos desafios a
gado de Polícia neste contexto de- construção com consenso, respeito
termina não apenas considerá-lo uma constitucional e equilíbrio com as de-
autoridade policial estritamente deli- mais instituições de novas legislações
mitada no exercício do poder de polí- que fortaleçam a investigação crimi-
cia em sentido estrito, mas o qualifica nal em conformidade com os parâme-
como uma instância com legitimida- tros de nossa Constituição Federal,
de definida na ordem jurídico-consti- valorizando a aplicação estrita da Lei
tucional para aplicar a legalidade em 13675/2018 que criou o SUSP - Siste-
âmbito pré-processual, permitindo ma Único de Segurança Pública , um
uma aplicação escorreita do princípio marco legal fundamental para o for-
da verdade real e da busca concreta da talecimento das instituições de segu-
justa causa que deverá nortear a lide rança pública no Brasil e infelizmente
penal na fase processual. descumprido sistematicamente desde
sua edição.
Portanto a ampliação do grau de res-
ponsabilidade legal do Delegado de Po- Para pensar criticamente e gerar o
lícia implica em uma necessidade deste necessário valor agregado por parte do
- Delegado de Polícia à Criminologia, à Se-
mentos técnicos e ter uma visão plural gurança Pública e às Ciências Jurídicas,
de sua atuação perante o Sistema de a ADEPOL DO BRASIL, por iniciativa ori-
Justiça Criminal, face as suas relevantes ginada pela sua entidade integrado Sin-
atribuições. dicato dos Delegados de Polícia do Es-
tado da Bahia - ADPEB/Sindicato - apoia
A ADEPOL DO BRASIL atuou histori-
o lançamento e consolidação da Revista
camente, com articulação, visão estraté-
Indicium, a qual terá qualidade acadê-
mica e rigor editorial para corroborar a
importância crescente do Delegado de
Polícia para a sociedade brasileira.

Boa leitura!

Rodolfo Queiroz Laterza

Presidente da
ADEPOL DO BRASIL
Vice-Presidente Regional Sul: Regina Márcia
Rodrigues (MS)
Magnus Praxedes Barretto (RN)
Mozart Manuel Macedo
Felix (TO)
Direção Executiva José Lindomar Costa (MT)
Diretor De Prerrogativas: Marconi Chaves Lima
Presidente: Rodolfo Queiroz Laterza (ES) (MA)
Vice-Presidente: Fábio Daniel Lordello Diretor Cultural: Jayme Berbat Filho (RJ)
Vasconcelos (BA) Diretor De Relações Sociais: José Maria Melonio
Wladimir Sério Filho (MA)
Reale (RJ) Gustavo Augusto M.s.C.
Bruno Bezerra De Pernambuco (CE)
Oliveira (PE) Bruno Taufner Zanotti (ES)
Maria Alice
Barros Martins Amorim (MT) Conselho Fiscal:
Edson José Titulares:
Pereira (MG) Ronaldo Cardoso Alves (MG)
Vice-Presidente Regional Norte: Renê De Marcelo Vargas Lopes (MS)
Almeida (RR)
Francisco Rodrigues Dos Santos (PE)
Vice-Presidente Regional Nordeste: Kássio
Kelinton Viana Dos Santos (SE)
Suplentes:
Vice-Presidente Regional Centro Oeste:
Adriano Garcia Geraldo (MS) Francisco Enaldo (ES)
Vice-Presidente Regional Sudeste: Mario José Marcio Rogério Faria Custódio (MS)
Correia Santos (MG) Diego Barreto Moreira (CE)

Suplentes do Conselhos Diretor: Lorena Braga


Magalhães Muricy, Fábio José Vieira Simões e
Henrique José Silva Morais
Conselho Fiscal: Dermeval Amoedo Martins
Direção Executiva Junior, Elaine Estela Laranjeira F. Souza e José
Marcelo Marques Novo
Presidente: Fabio Daniel Lordello Vasconcelos Suplentes do Conselhos Fiscal: Rosemilia Dias
Vice-Presidente: Élvio Brandão Silveira Tannus, Flávio Luiz Machado Lisboa
Pinheiro e Leonardo Virgílio Oliveira Monteiro
Secretário-Geral: Rusdenil Franco Lima
Conselho de Ética: Cândido Augusto Vacarezza e
Diretora do Departamento Financeiro: Janaína
Tânia Maria Sodré Perreira Santana
Miranda Dore
Suplentes do Conselhos de Ética: Marcos José
Gomes Tebaldi, Carlos Roberto de Freitas Filho e
Charlton Fraga Bortoni
Marta Nunes Rodrigues
Diretora de Assuntos Jurídicos: Sava Verbena
Silva Longuinhos Expediente Boletim Indicium
Diretor de Relações Institucionais e Coordenadores: Luiz Gabriel Batista Neves e
Parlamentares: Pietro Baddini Magalhães Gustavo Ribeiro Gomes Brito
Edição: Luara Lemos - Trevo Azul Comunicação
Mesa de Assembleia: Presidente: Augusto
Revisão: Matheus Conceição dos Santos
Cezar Lima Eustáquio da Silva
Mariana Chagas -
Secretário: Bernado Marques Pacheco Trevo Azul Comunicação

4
Por Elisa Dantas e Thiago Costa
06 Custódia nas delegacias de polícia: o insustentável império da ilegalidade

ARTIGOS

9 Psicopatia e violência doméstica: uma questão de revisão normativa e


implementação de políticas públicas - Helen Baptista e Rafaela Alban

12 Para não esquecer: é preciso cuidar de quem cuida - Maíra Brito

15 Quebra da custódia de provas no processo penal - Gustavo Brito

18 Por que estudar sistemas processuais penais? Por um processo penal


democrático - André Lozano Andrade e Ricardo Fanti Iacono

Lei de drogas, racismo e encarceramento: o Brasil que deu certo? - Daniel


22 Lima Oliveira

“Um preto, um pobre, uma estudante, uma mulher sozinha”: as expressões


26 de uma dosimetria da pena - Natalia Galvão Cunha Lima

O excesso de prazo da prisão cautelar no brasil: elementos dogmáticos -


29 Leandro da Cruz Soares

A (complexa) interpretação da lei de improbidade administrativa em


32 casos envolvendo ordenadores de despesas em saúde publica durante a
pandemia de covid-19 - Luis Eduardo Colavolpe

ENTREVISTA

INDICIUM ENTREVISTA
36 Jesus Pablo Barbosa

ÍNDICE
COLUNA INVESTIGATÓRIO

COLUNA

INVESTIGATÓRIO

CUSTÓDIA NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA: O INSUSTENTÁVEL


IMPÉRIO DA ILEGALIDADE

Na condição de titular do poder puniti- relativas a estabelecimentos prisionais não


vo, é dever do Estado instrumentalizá-lo competem à polícia judiciária1.
mediante o devido processo legal em juí-
zo e, sobretudo, durante a execução da Se a Lei de Investigação Crimi-
pena. Por isso, a Lei de Execução Penal
(Lei 7210/84), insere comandos de trata- atuação do delegado, a LEP incumbe a
mento para o preso em sua condição de atividade estatal de custódia de presos
reeducando, cujo principal desiderato é a ao diretor de estabelecimento penal, car-
readaptação do indivíduo à ordem social.
2
.
Também prescreve os modelos de esta- São, portanto, atribuições distintas, mas
belecimentos penais a serem adotados que durante a manutenção dos presos
pelo Estado de acordo com o regime de -
pena imposto ao custodiado. gura da autoridade policial. O desvio de
função também atinge os investigadores
e escrivães de polícia, que não possuem
“Na condição de titular do poder função de agente penitenciário e passam
a ter contato direto com o preso.
instrumentalizá-lo mediante o
devido processo legal em juízo” Essa miscigenação feita entre Delega-
-
produtividade do sistema penal brasileiro
Nada obstante, a realidade das carcera- e defasa o quadro pessoal da segurança
- pública em todos os estados. O acúmulo
- de serviço dos policiais implica na diminui-
vés de sistemáticas violações à supracitada ção da apreciação de crimes pelo judiciário,
legislação. É possível encontrar uma mis- já que esses viram ‘carcereiros’ quase em
celânea de regimes de penas sendo cum- tempo integral, seja escoltando, alimen-
pridos simultaneamente nas celas preen- tando, retirando da cela para audiência
chidas em conjunto por presos provisórios com advogados ou cuidando da visitação
dos presos. Todas essas irregularidades
Tribunal Federal já decidiu que atividades

2010.
1984.

6
COLUNA INVESTIGATÓRIO

o risco de fuga em delegacias de polícia um encargo do Estabelecimento Penal,


é maior que nos presídios, e essas quase o montante dispensado para tanto deve-
sempre se localizam em áreas residenciais. ria ser arcado pela Secretaria de Justiça e
não pela Secretaria de Segurança Pública.
Ainda nessa perspectiva, destacam-se A responsabilidade desse problema sistê-
as características seletivas do sistema mico não pode ser direcionada a apenas
penal, o que potencializa a reprodução uma instituição, a saber, a de menor for-
da violência em Delegacias de Polícia, ça política dentre as demais elencadas no
quando da custódia de presos por perío- Art. 61 da Lei de Execução Penal.
do além do razoável. O fato é que viola-
ções de direitos humanos perpetradas Em casos de inércia do Poder Executivo,
por policiais são muito caras à sociedade. o Poder Judiciário deverá empregar solu-
ções organizacionais através de decisões
A realidade das Delegacias de Polícia estruturais que contemplem toda a multi-
do interior do Estado da Bahia vai na con- plicidade de interesses que o tema afeta.
tramão do estado democrático de direi- O controle judicial deverá ser realizado
mediante políticas públicas, não sendo a
unidades policiais em cidades pequenas -
custodiando presos por anos, em am- nar a questão, visto que cria outro proble-
bientes completamente sem estrutura
e sem segurança, esquecidos a própria
sorte, com aval, muitas vezes, do próprio Não é aceitável que a omissão estatal
Poder Judiciário e do Ministério Público.
do custodiado3, relegando-os a mera
Essas distorções precisam ser solu- condição de objeto, tampouco que im-
ponha indiretamente condições de tra-
balho ainda mais insalubres e perigosas
“A realidade das Delegacias de para os policiais. Lamentavelmente,
Polícia do interior do Estado da todo esse imbróglio institucional caóti-
Bahia vai na contramão do estado co é um degradante jogo de tabuleiro
democrático de direito.” onde todas as peças saem perdendo.

cionadas para que a Polícia Civil retome


a sua missão investigativa, desapegan-
do-se dessas responsabilidades alheias BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.
à sua função, que só fazem instruir e Lei de Execução Penal. Brasília, Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
alimentar essa covarde realidade insti- l7210.htm. Acesso em: 06 fev. 2022.
tucional, que mantem, ao arrepio da lei,
uma verdadeira masmorra interna. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas
Corpus nº 93.596. Relator: Min. Celso de Mello.
O rol de ilegalidades que permeia a Brasília de 2008. . Brasília, 08 abr.
barbárie nas carceragens é extenso e 2008. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.
br/jurisprudencia/14721922/habeas-corpus-hc-
suas razões encontram-se também na -93596-sp. Acesso em: 06 fev. 2022.
má utilização da verba pública aplicada
na manutenção dos presos. Se a função BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta
hoje atribuída à Polícia Civil deveria ser . Relator: Mi-

Brasil, 2008

7
COLUNA INVESTIGATÓRIO

nistro Eros Grau. Brasília, 03 de fevereiro de 2010.


Brasília, 14 maio 2010. Disponível em: https://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc-
TP=AC&docID=610999. Acesso em: 06 fev. 2022.

Thiago de Almeida Costa

Delegado de Polícia Civil do


Estado da Bahia. Pós-graduado
em Segurança Pública.
Elisa Guimarães Dantas

Advogada. Pós-graduada em
Ciências Criminais.

MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução crítica à investigação preliminar. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 91.

8
Artigos

PSICOPATIA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:


UMA QUESTÃO DE REVISÃO NORMATIVA E
IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Por Helen Baptista e Rafaela Alban

A violência doméstica é um tema que conceder efetividade ao combate à vio-


faz parte do cotidiano, visto que, corri- lência doméstica contra a mulher.
queiramente, mulheres são vítimas de
agressões físicas, sexuais, patrimoniais, Dentre as patologias, principalmen-
psicológicas e morais, perpetradas por -
pessoas pertencentes a sua unidade do- xos adotados nos seios de maior con-
méstica, familiar ou com quem detêm,
ou já detiveram, relação íntima de afeto. psicopatia ou sociopatia, caracterizada
tecnicamente como um Transtorno de
Como um problema social que impõe Personalidade Antissocial, segundo o
a criação e implementação de políticas Manual de Diagnóstico e Estatístico de
públicas, a violência doméstica tem sido Transtornos Mentais de 2014 (DSM-5).
analisada sob diversas óticas, inclusive no
que diz respeito à necessária compreen- O diagnóstico do Transtorno de Per-
são das suas causas e das correlações sonalidade Antissocial é realizado, den-
com características individuais dos agres- tre outros fatores, a partir da seguin-
sores. Nesse aspecto, vários estudos e te anamnese: ausência de emoções,
comportamentos indiferentes quanto
patologias ou características da persona- aos sentimentos de outros indivíduos,
lidade que possam vir a ser determinan- ausência de tolerância a frustrações,
tes no envolvimento de sujeitos em com- desprezo por ordem/normas e possi-
portamentos domésticos violentos. bilidade de exaltação de fúria em atos
violentos ou cruéis. O psicopata é, por-
Como resultado desses estudos, é co- tanto, um indivíduo com eloquência e
mum a associação de indivíduos agres- -
sores à diagnósticos de transtornos so, enganador, manipulador e detentor
mentais ou de personalidade, o que im-
-
de de implementação de programas de Embora não apresente indícios clás-
prevenção e intervenção mais adequa- sicos de portadores de doença mental
dos, especialmente diante das discus- (ausência de desenvolvimento cogniti-
sões dogmáticas do Direito Penal quan- vo), o psicopata é capaz de apresentar
to à (in)imputabilidade dos detentores sinais de insensibilidade e de falta de
dessas patologias e ao imperativo de empatia, remorso ou culpa, que caracte-

9
Artigos

rizam a adoção de um comportamento Isso porque, não sendo possível a


socialmente atípico.
“doença mental”, mas havendo afetação
Quando tais características são exa- da capacidade volitiva e necessidade de
minadas no âmbito doméstico e familiar, controle medicamentoso, estar-se dian-
é possível reconhecer atitudes e condu- te de uma discussão dogmática acerca
tas frequentes relacionadas à falta de la- da caracterização de uma situação jurí-
ços afetivos, educação excessivamente dica de imputabilidade, semi-imputabili-
punitiva, exigências irracionais, palavras dade ou inimputabilidade, que pode vir
ou ações violentas, abuso de álcool ou a esbarrar em questões penais relativas
drogas, utilização da mentira, relações à duração máxima da pena privativa de
interpessoais de mero prazer, diversão, liberdade, em discussões éticas relati-
perversão ou status e uma capacidade vas à imposição de tratamento e em as-
de levar uma convivente ao seu limite. pectos médicos associados à ausência
de cura que sirva de parâmetro para a
Até mesmo por isso, é necessário ob-
duração de uma medida de segurança.
servar que o comportamento violento,
doméstico, familiar ou afetivo, do ho- De fato, não havendo que se falar em
mem contra a mulher não deve ser ro- “doença mental”, quiçá em qualquer
tulado como simples fruto de imposição comprometimento – total ou parcial –
de poder, de dominação masculina ou da capacidade intelectiva, de compreen-
submissão feminina, devendo ser estu- são do caráter ilícito do fato (na forma
dado de forma mais ampla, com o esco- do art. 26, CP), parece mais adequada o
po de compreender adequadamente as- tratamento do psicopata como um su-
pectos psicológicos e psicopatológicos jeito imputável (que excepcionalmen-
do agressor, até mesmo para o alcance te depende de tratamento médico) e,
efetividade da Lei Maria da Penha. portanto, passível de responsabilização
através de uma pena e de submissão a
-
qualquer das medidas protetivas de ur-
ples ato de criminalizar as agressões,
gência da Lei Maria da Penha.
de estabelecer medidas protetivas que
obrigam o agressor e que tutelam a in- Entretanto, a questão crucial é ob-
tegridade da ofendida não resolve o -
problema social da violência doméstica cia doméstica de denunciar o agressor
que, em grande parte dos casos, está psicopata (usualmente estrategista e
associado a diagnóstico de uma patolo- manipulador), o raro atendimento das
gia incurável, que possui, dentre as suas obrigações impostas (diante do carac-
principais características, a insensibili- terístico descumprimento de normas)
dade e o desrespeito às regras. e a incompatibilidade das medidas pro-

(que impõe, mais do que o afastamento


do lar e proibição de contado, a inclusão
"o simples ato de criminalizar as
do indivíduo em programas de trata-
mento médico especializado).
protetivas que obrigam o agressor e
que tutelam a integridade da ofendi- Portanto, uma vez já evidenciada o
da não resolve o problema social da grande número de casos de violência
doméstica praticados por portadores

10
Artigos

de transtornos de personalidade, resta


imperiosa agora uma revisão normativa,
para inclusão de Medidas Protetivas re-
lativas a tratamentos medicamentosos,
e, principalmente, a adoção de outras
políticas públicas, até mesmo no senti-
do de implementação de um cadastro
de portadores dessas patologias.

Rafaela Alban
ANTONACCI, Andreia Tassiane; NAGI, Valéria
Morini. Aspectos neuropsicológicos dos agres-
sores domésticos e o advento da Lei Maria da
Advogada criminalista e
Penha (Lei 11.340/2006). Revista dos Tribunais, Professora de Direito Penal
v.971. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. e Processo Penal. Doutora e
Mestra em Direito Penal (UFBA).
FOLHA DE SÃO PAULO. ONG alerta para im- Especialista em Ciências Criminais
(UFBA), Direito Penal Econômico
veja estatísticas. Rio de Janeiro: 2021. Dis- (Universidade de Coimbra) e
ponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/ em Teoria Jurídica do Delito
lupa/2021/03/08/ong-alerta-imprecisao-dados-
(Universidade de Salamanca).
-mulher/. Acesso em: 30 jan. 2022.

GARRIDO, V. (2005). El Psicópata: un camaleón


en la sociedad actual. Alzira: Algar Editorial, 2000.

Helen Baptista

Advogada civilista. Especialista


em Direito Público e em Direito
das Famílias e Sucessões. Pós-
graduanda em Direito Imobiliário.

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Artigos

PARA NÃO ESQUECER:


É PRECISO CUIDAR DE QUEM CUIDA
Por Maíra de Deus Brito

Os movimentos sociais formados por Joey, marido de Ana e genro de Vera1.


familiares de vítimas da violência do Es-
tado, sobretudo aqueles formados por O caso da família de Vera ilustra as
- consequências extremas da violência
dos, são essenciais na luta por justiça e do Estado. Em maio de 2018, Vera foi
memória. Entre eles, podemos citar al- encontrada morta em casa ao lado de
guns, como Mães de Acari (RJ), Mães de
2
. Ainda que a causa
Manguinhos (RJ), Mães e Familiares do
Curió (CE) e Mães de Maio (SP).

Essas mães têm costurado uma rede tamanha que desencadeou tal tragédia.
de afeto e cuidado, mas essa rede não
- Outra mãe vítima das consequên-
cias físicas e simbólicas que atravessam cias nefastas do extermínio da juven-
essas mulheres têm deixado doenças tude negra é Janaína Soares, mãe de
(físicas e mentais), chegando até mes- Christian Soares, morto aos 13 anos.
mo a tirar a vida dessas mães. De acordo com a antropóloga Natasha
Neri3, Janaína era moradora de Man-
Entre as fundadoras do grupo Mães -
de Maio, estão Débora Maria da Silva, tian e Caique sozinha após a morte do
mãe de Edson Rogério Silva dos Santos, pai das crianças.
e Vera Lúcia Gonzaga, mãe de Ana Paula
Gonzaga dos Santos. Ana Paula Gonza- Em 2015, Christian foi assassinado, en-
ga estava grávida de 9 meses de Bianca quanto jogava bola, por uma operação da
quando foi morta, em maio de 2006. Am- Divisão de Homicídios e da Polícia Militar
bas foram assassinadas ao lado de Eddie na comunidade carioca4. Desde então, a

1
VERA Lúcia Gonzaga, uma das fundadoras do Mães de Maio, morre em Santos. Cláudia, 10 de mai. 2018. Dis-
ponível em: <https://claudia.abril.com.br/noticias/morre-vera-lucia-gonzaga-maes-de-maio/>. Acesso em: 12 de
dez. 2021.
2
Idem.
3
O Rio não amanheceu: mortes a tiros e uma mãe que tombou. Ponte, 06 de nov. 2018. Disponível em: <https://
ponte.org/artigo-o-rio-nao-amanheceu-mortes-a-tiros-e-uma-mae-que-tombou/>. Acesso em: 12 de dez. 2021.
4
Idem.
Artigos

depressão se instalou na vida de Janaína, locado em pauta sempre que possível


que nos primeiros dias de novembro de porque é um problema grave, que segue
2018 teve seis paradas cardíacas, não re- sem solução.
sistiu e morreu. Nos dias anteriores, ela
viu um adolescente morrer próximo a sua Em “Não. Ele não está”7, dedico uma
casa e o Caveirão (carro blindado usado seção do livro só para abordar os impac-
pela Polícia Militar do Estado do Rio de tos das mortes dos jovens na saúde das
Janeiro) espalhar terror em Manguinhos. mulheres. As duas entrevistadas, Apare-
O coração de Janaína não resistiu tantas cida (mãe de Luciano) e Ana Paula Olivei-
atrocidades. ra (mãe de Johnatha e co-fundadora do
Mães de Manguinhos), relatam proble-
Outras mulheres que não se calaram mas de memória, como o esquecimento
diante das injustiças, mas que infeliz- de episódios passados ou “apagões” em
- situações corriqueiras (não lembrar o
méia da Silva Euzébio, Vera Lúcia Flores que ia dizer, falar, etc).
Leite e Marilene Lima de Souza. As três
– mães dos adolescentes Luiz Henrique Aparecida se tornou hipertensa após
da Silva Euzébio, Cristiane Souza Leite e
Rosana Souza Santos, respectivamente – a doença se agravou depois do assas-
integraram o Mães de Acari, movimento sinato do mais velho, Luciano. A morte
pioneiro na luta por justiça e memória. dele também trouxe diabetes e depres-
são. “Sou uma bomba relógio: hiperten-
Elas se reuniram após o desapareci- sa, diabética e deprimida. Complicado.
mento de 11 jovens, em julho de 1990. O Tomo um catatau de remédio para to-
grupo foi abordado/sequestrado por su- das essas coisas”, desabafou8.
postos policiais em Magé, na Baixada Flu-
minense (RJ). Os corpos nunca foram en- A breve retrospectiva leva a algumas
contrados e, segundo o jornal O Globo5, a -
ausência de provas levou ao encerramen- co o impacto das mortes dos jovens na
to do inquérito em 2010, sem indiciados. saúde das mães. São evidentes as mar-
cas físicas e emocionais que, eventual-
Edméia, que investigava por conta mente, podem chegar a cenários extre-
própria os assassinatos, foi morta no mos como a morte de quem (sobre)vive.
centro do Rio de Janeiro após receber -
informações que poderiam ajudar a so- tiva dessas mulheres tem sido essencial,
lucionar o crime. Marilene e Vera adoe-
ceram e morreram sem ver os responsá- mata e abandona. Além de investir em
veis pelas mortes na cadeia6. uma lógica de segurança pública inte-
ressada em controlar corpos negros e
A saúde das mães que perderam seus periféricos por meio da morte e/ou do
- encarceramento, o Estado escolhe não
cupação pessoal antiga e deve ser co- agir após os assassinatos.

MÃES de Acari inspiram luta por justiça 30 anos após chacina. O Globo, 17 de ago. 2020. Disponível em: <https://
oglobo.globo.com/celina/maes-de-acari-inspiram-luta-por-justica-30-anos-apos-chacina-24584840>. Acesso em
12 de dez. 2021.
Idem.
BRITO, Maíra de Deus. Não. Ele não está. Curitiba: Appris, 2018.
Idem.
Artigos

“São evidentes as marcas físicas e

podem chegar a cenários extremos


como a morte de quem (sobre)vive.

Os familiares de vítimas da violência


do Estado precisam de vários suportes,
como psicológico e psiquiátrico, e até Maíra de Deus Brito

-
Jornalista, mestra e doutoranda
dade de muitas mães em participar dos
em Direitos Humanos e Cidada-
movimentos sociais pela ausência de
nia pela Universidade de Brasília
(UnB). Autora do livro "Não. Ele
mulheres não têm o que comer em casa. não está". Professora de Direitos
A fome impossibilita muitas coisas, en- Humanos e Gênero e Raça no Ins-
tre elas, a militância. tituto Brasileiro de Ensino, De-
senvolvimento e Pesquisa (IDP).
Integrante do Maré - Núcleo de
Estudos em Cultura Jurídica e
Atlântico Negro e do projeto Lélia
Gonzalez Vive.

14
Artigos

QUEBRA DA CUSTÓDIA DE PROVAS


NO PROCESSO PENAL
Por Gustavo Ribeiro Gomes Brito

A coleta de vestígios tanto na fase a cadeia de custódia de prova “cuida de


da investigação preliminar quanto du- detalhar todos os elos que devem compor
rante o processo criminal passou a a história de um elemento probatório, des-
exigir a observância de um rígido pro- de a sua descoberta na investigação até a
cedimento de controle, desde a pro- sua exibição ao magistrado, de modo que
mulgação da Lei Anticrime (Lei Federal possa funcionar como premissa do raciocí-
nº 13.964/2019), denominado de ca- nio que realizará para determinar os fatos
deia da custódia de provas. juridicamente relevantes”.

- Neste momento é imperioso fazer


nido no Art. 158-A do Código de Proces- uma ponderação. Como bem ressalta
so Penal (CPP), dispositivo que ressalta a GERALDO PRADO , a cadeia de custó-
relevância da documentação da “história
cronológica do vestígio coletado”, sendo probatória, e, portanto, não se confunde
aplicável nas provas digitais, provas peri- com a sua valoração, já que representa a
ciais, coleta de DNA, dentre outros. “comprovação (demonstração) da corre-
ção do procedimento de obtenção e pre-
A regulamentação legal engloba as servação dos elementos probatórios”.
etapas de reconhecimento do vestí-
gio até o seu descarte, passando pelo É que, cuidando o procedimento de
- -
dicionamento, transporte, recebimen- presenta um mecanismo de “controle de
to, processamento e armazenamento. entrada” do vestígio, acreditando e de-
Outrossim, estipula que deve ser feito
o registro cronológico de todas essas para que, então, posteriormente possa
etapas, com a respectiva indicação de ser valorado devidamente pelo julgador.
quem teve contato com os vestígios e Em outras palavras, a cadeia de custódia
como ele se deu. representa a etapa de admissibilidade
do ingresso do elemento probatório.
BADARÓ e MATIDA1 asseveram que

Exame da cadeia de custódia é prejudicial a todas as decisões sobre fatos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2021-ago-13/limite-penal-exame-cadeia-custodia-prejudicial-todas-decisoes-fatos. Acesso em 20/01/2022.
2
PRADO, Geraldo. A cadeia da custódia da prova no processo penal, 2ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2021, p. 146.
Artigos

Segundo o professor português JOSÉ -


BRAZ3 a cadeia de custódia de provas neidade e mesmidade do seu conteúdo.
“constitui, por assim dizer, um protoco-
lo contínuo, que assegura a memória de Portanto, a observância do rito pro-
todas as fases do processo, a sua perma- cessual afasta eventual exclusão de
nente reconstituição e demonstração, elementos extremamente relevantes
sendo, por isso, fundamental para ga- para investigações e processos crimi-
rantir a integridade do vestígio e o seu nais. Uma consequência da sua inobser-
correspondente valor probatório”. vância seria a exclusão dos elementos
colhidos, ocorrida, por exemplo, após
A intenção do legislador, ao promo- equivocada manipulação e extração
ver a citada alteração normativa, segue de dados de telefones celulares, ainda
uma tendência de diversos outros paí- que estes tenham sido devidamente
ses preocupados em garantir uma maior apreendidos com respaldo em prévia
qualidade das decisões judiciais em decisão judicial.
processo penal, criando um método de
“controle de entrada”, o qual promove- O que a cadeia de custódia atesta
rá uma verdadeira “prova sobre a prova” é a credibilidade e admissibilidade do
elemento colhido, cuja análise se res-
tringe do momento da identificação
GERALDO PRADO4 considera que a do vestígio até o seu ingresso para
cadeia de custódia de provas represen- submissão ao contraditório, ampla de-
ta um consectário lógico do princípio fesa e valoração judicial.
da legalidade, já que o “processo penal
condenatório é antes de mais nada um Bem é de ver que durante muitos
processo probatório”, no qual a prova anos foram noticiadas situações de con-
necessita ser “acreditada”, legitimada taminação da coleta de DNA que impli-
e valorada desde a coleta até a produ- caram na condenação de falsos suspei-
ção durante a instrução processual, pois tos5, decorrente da falta de cuidado no
nem tudo que ingressa nos autos possui manuseio, coleta e arquivamento deste
valor probatório. meio prova, o que também pode ser ve-

-
A cadeia de custódia, nesse prisma,
adulteração nem contaminação, para é um procedimento que visa à garantia
- da segurança e idoneidade do conteúdo
tente declinar qual a capacidade que este probatório, motivo pelo qual é tão im-
tem de lhe promover o convencimento. portante observar os rigores legalmen-
te exigidos e evitar que ela seja quebra-
Outrossim, é necessário não apenas da ou maculada.

vestígio, como também realizar todo o Segundo o Superior Tribunal de Justi-


registro das etapas ocorridas desde a sua ça (STJ), “a quebra da cadeia de custódia
descoberta até a sua exposição nos autos, diz respeito à idoneidade do caminho que

3
BRAZ, José. Ciência, tecnologia e investigação criminal. Coimbra: Edições Almedina, 2016, p. 350.
4
Apud. LOPES JR., Aury; DA ROSA, Alexandre Morais. Processo Penal no Limite, 1ª ed. Florianópolis: Empório do
Direito, 2015, p. 39.
5
INNOCENCE PROJECT BRASIL. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/casos. Acesso em: 20/01/2022.

16
Artigos

deve ser percorrido pela prova até sua


análise pelo magistrado, sendo certo que
qualquer interferência durante o trâmite
processual pode resultar na sua impres-
tabilidade” (AgRg no HC 615.321/PR,
Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, Quin-
ta Turma, julgado em 03/11/2020, DJe
12/11/2020).

Por estas razões é que todos os atores


do sistema de justiça que trabalham com Gustavo Ribeiro Gomes Brito

probatórios devem observar estritamen-


te o procedimento estabelecido no CPP, Advogado criminalista, membro
até mesmo para garantir a qualidade de do IBCCrim – Instituto Brasi-
leiro de Ciências Criminais, do
futura decisão judicial cujo convencimen-
IBADPP – Instituto Baiano de
to poderá se embasar naquele elemento
Direito Processual Penal e mes-
colhido, como forma de reduzir a possi- trando em ciências criminais na
bilidade de serem decretadas prisões ou Faculdade de Direito da PUC/RS.
– mais que isso – proferidas sentenças
condenatórias equivocadas, pois em face
de pessoas inocentes.

17
Artigos

POR QUE ESTUDAR SISTEMAS


PROCESSUAIS PENAIS? POR UM PROCESSO
PENAL DEMOCRÁTICO
Por André Lozano Andrade e Ricardo Fanti Iacono

Há dois sistemas processuais penais: tão democrático quanto a Constituição.


inquisitório, com viés autoritário, com a Maior estranhamento ainda nos causa
gestão da prova incumbida ao juiz, sem que o STF tenha, por meio da ADI nº.
-
- 3-A do CPP, que explicitava a opção de-
dor se confundem; e o acusatório, com mocrática pelo processo penal acusató-
viés democrático, com a gestão da prova rio, tema que retornaremos posterior-
incumbida à acusação e defesa, regras mente. Apesar de parecer óbvio que o
regime democrático trazido pela CF/88
e acusador. A teoria dos sistemas pro- não comporta um processo penal inquisi-
torial, não é o que ocorre de fato, quando
sua formulação legislativa e práticas ju- não há uma explicita a opção processual.

da imparcialidade, valoração da prova, O CPP brasileiro possui inspiração no


paridade de armas, contraditório, ônus CPP italiano. As mudanças legislativas
da prova e teorias das nulidades, medi- não superaram a ideologia trazida pela
das cautelares etc. inspiração fascista ao código e à práti-
ca processual, fruto de interpretações
O sistema acusatório tem inclinação doutrinárias, presas a um direito ma-
democrática, o acusado não é mero ob- nualesco, e uma prática judicial acrítica
jeto do processo, mas parte ativa no jogo na qual a doutrina, por vezes, apenas re-
processual, devendo seus direitos serem produz uma jurisprudência autoritária1,
respeitados. Já o sistema inquisitório criando-se um ciclo vicioso no qual a fal-
possui viés autoritário, o acusado não é ta de análise crítica alimenta uma práxis
parte, mas objeto do processo na busca tendente ao sistema inquisitório.
da verdade, as garantias são vistas como
obstáculos e a forma é formalismo banal. que cabia
2

ao STF não foi feita da forma devida.


Causa estranheza a demora em expli- O Poder Judiciário caminha com olhos
citar que nos cabe um processo penal voltados ao passado, não readequando

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no pro-
cesso penal brasileiro., vol. 1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 193.
2
LOPES JR, Aury. Direito processual Penal. 15ª edição: São Paulo: Saraiva, 2018, p. 49.

18
Artigos

as decisões aos ditames acusatórios, ticrime” (Lei nº. 13.964/19), acrescentou


como se a mera opção política pela de- -
mocracia fosse capaz de afastar práticas da. Apesar da disposição legal, surge o
autoritárias do processo penal. Ao não medo da mudança, medo de “perder”
se comprometer com um processo pe- poder, aliado ao mito popular que acre-
nal acusatório naturalizam-se práticas dita que o juiz deve ser um ator ativo no
autoritárias3, muitas delas de claro viés combate ao crime. Apesar de promulga-
inquisitorial. da a nova legislação, a decisão proferi-
da pelo Ministro Luiz Fux, em Medida
O sistema inquisitório é célere, pois a Cautelar na ADI 6299/DF, suspendeu a
forma, se existe, não precisa ser seguida,
- vez, olhar para o processo pelo retrovi-
portante do que os direitos do acusado. sor do que implementar mudanças de-
- mocráticas.
cia se confundem, o sistema inquisitório
seduz pela praticidade condenatória, -
mantendo a opinião pública satisfeita so penal. O juiz é visto como agente de
com o seu sentimento vindicativo. segurança, dotado de amplos poderes,
quase ilimitados, para manter a “integri-
A renúncia ao estudo dos sistemas dade do ordenamento jurídico, para atin-
processuais, permite a implementação gimento da paz social, o juiz deve desen-
acrítica de elementos do sistema inqui- volver todos os esforços para alcançá-lo.
sitivo no sistema acusatório4, reduzindo Somente assim a jurisdição atingirá seu
espaços democráticos no processo pe- escopo social”6. Ignora-se a função con-
nal. Isso se dá menos por opção ideo- tramajoritária7 do Poder Judiciário, dan-
lógica, do que por fatores emocionais, do-lhe viés político ao defender-se como
intuitivos e subconscientes5 a que o ma- legítimo “o sistema processual na medi-
gistrado está imbuído. Trazer a cognição da em que conquista maiores graus de
e a decisão para o campo da racionali- aceitação social”8. Não cabe ao juiz bus-
dade é fundamental não contaminar o car aceitação social. Quando os direitos
processo com elementos autoritários. humanos se afastam da opinião pública
o primeiro deve prevalecer, sob pena se
Se a faltava à norma trazer a expres- se guiar por sentimentos vindicativos e
so qual é o sistema processual penal impulsos policialescos.
adotado no Brasil, compatibilizando o
processo penal com a CF/88 com o CPP, Ao se alinhar o pensamento de que
a última reforma intitulada “pacote an- o juiz possui amplos poderes e que a

3
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Metástases do sistema inquisitivo. In GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Sistemas
processuais penais. 2ª ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2012. 11-34 p. 12.
4
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2017, p. 64/65
5
ROSA, Alexandre Moraes da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 5ª ed. Florianópolis: EMais,
2019. p. 40
6
GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa do juiz no processo penal acusatório. In GRINOVER, Ada Pelegrini. A mar-
cha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 80
7
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2017, p. 79
8
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1990. p. 140.

19
Artigos

aceitação social deve ser meta da ju-


risdição com o princípio da prevenção
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalida-
geral negativa, que dita que a função de do processo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
da pena é prevenir delitos pela da apli-
cação da pena, trazendo a ideia de que GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo
e processo penal: uma genealogia das ideias
atuando severamente9, cria-se um pro- autoritárias no processo penal brasileiro., vol. 1.
Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018
blema para qualquer sistema que bus-
que limitar o poder do magistrado, pois ______. Metástases do sistema inquisitivo. In
entender-se-á que o processo penal é GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Sistemas pro-
o instrumento para combate ao crime, cessuais penais. 2ª ed. São Paulo: Tirant Lo Blan-
retirando a racionalidade e impedindo ch, 2012.
que seja instrumento de contenção da ______. Nulidades no processo penal. 3ª ed.
violência estatal e de vingança. São Paulo: Saraiva. 2017

Se o objetivo do processo for a pu- GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa do juiz


nição aos infratores, o sistema inquisi- no processo penal acusatório. In GRINOVER,
tório parece ser desejável, na medida Ada Pelegrini. A marcha do processo. Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária, 2000.
em que retira limites à atuação judicial,
garantindo um processo mais ágil, sem HASSEMER, Winfried. Prevención general y
o necessário respeito às regras proces- aplicación de la pena. In NAUCKR, Wolfgang;
suais, sendo a instrumentalidade enten- HASSEMER, Winfried; LUDERSEN, Klaus. Princi-
pales problemas de la prevención general. Bue-
dida como meio para “diminuir as for-
nos Aires: Julio Cécas Faria editor, IBdeF, 2006.
mas processuais”10, esquecemo-nos que 45-82.
o respeito à forma prescrita em lei é ga-
rantia de imparcialidade do julgador11. LOPES JR, Aury. Direito processual Penal. 15ª
edição: São Paulo: Saraiva, 2018

ROSA, Alexandre Moraes da. Guia do processo


penal conforme a teoria dos jogos. 5ª ed. Flo-
rianópolis: EMais, 2019.

https://www.conjur.com.br/dl/fux-liminar-jui-
z-garantias-atereferendo.pdf - acessado em
21/02/2022.

9
HASSEMER, Winfried. Prevención general y aplicación de la pena. In NAUCKR, Wolfgang; HASSEMER, Winfried;
LUDERSEN, Klaus. Principales problemas de la prevención general. Buenos Aires: Julio Cécas Faria editor, IBdeF,
2006. 45-82. p. 47.
10
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no
processo penal brasileiro., vol. 1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 559.
11
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2017, p. 33.
Artigos

André Lozano Andrade Ricardo Fanti Iacono

Mestre em Direito Penal pela PU- -


C-SP, advogado criminalista to pela PUC-SP, advogado crimi-
nalista
Artigos

RACISMO E ENCARCERAMENTO:
O BRASIL QUE DEU CERTO?
Por Daniel Lima Oliveira

Qualquer abordagem minimamente ou pelas entidades independentes da


ética sobre o sistema penal brasilei- sociedade civil, que há décadas vêm
ro perpassa pela discussão acerca da demonstrando as consequências ain-
questão racial, a partir do reconheci- da presentes do colonialismo. Não há
mento do racismo como a base fundan- dúvidas, pois, que o “Brasil nunca lidou
te de um país forjado na escravidão e bem com seu passado escravista” (OLI-
que violentou – e continua violentando VEIRA e RIBEIRO, 2018).
– os corpos negros, produzindo dois re-
sultados possíveis: a morte física e/ou Talvez este seja um dos motivos para
a morte social, sendo esta última uma tantos(as) intelectuais negros(as) - ao
espécie de “morte-em-vida ”. As auto- ingressarem na academia e se apodera-
rem de um espaço branco acostumado
que, por meio de escritos acadêmicos, a silenciar vozes dissidentes - se colo-
não corroborem a imprescindibilidade carem, costumeiramente, em primeira
desse tratamento, representarão uma pessoa do plural, porque o Outro, sem-
face do pacto narcísico da branquitude pre tratado como objeto de estudo au-
(BENTO, 2002), que não se constrange sente de qualquer tipo de humanidade,
ao exercer uma “ginástica teórica, im- passa a ser encarado como sujeito co-
parcial e descomprometida ”, jogando letivo que fala a partir do acúmulo de
para debaixo do tapete os resultados pessoas negras, carregando histórias de
e dados estatísticos - sobre encarcera- luta e, sobretudo, de resistência. Trata-
mento e mortes violentas contra pes- -se da escrita que “interromperá silên-
soas negras cios” (AVELAR, 2020), responsável por

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.


Ana Flauzina (2017, p.17) fala em “pacto social racialmente fundamentado”, ressaltando que as elites “nunca
abrirão mão”, até porque, no Brasil, a suposta harmonia racial legitimou as bases de sustento do processo coloni-
zador. Quem está disposto a perder seus privilégios históricos?
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. – 1. ed. – São
Paulo: Editora Perspectiva, 2016.
A cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil (ONU, 2017), mas ainda continuam negando o racismo exis-
tente em solo brasileiro.
Como exemplo, podemos citar as(os) intelectuais Maria Beatriz Nascimento, Vilma Reis, Ana Luiza P. Flauzina,
Luciano Góes e Laís da Silva Avelar.
Artigos

denunciar o projeto estatal genocida di- potencializando a criminalização da


recionado à população negra brasileira, pobreza e o encarceramento da popu-
lação negra. No âmbito da prolação de
existente desde o Brasil colônia e que decisões judiciais, os marcadores de
persiste no contexto atual, mas com no- gênero, classe e raça são fatores deci-
sivos que influenciam na aplicação da
lei penal . O julgamento de processos
O encarceramento em massa – so- criminais dessa natureza caracteri-
bretudo de pessoas pobres e negras – za-se pela presença de depoimentos
é expandido, em grande medida, pelas prestados quase exclusivamente por
prisões cautelares em face da suposta policiais. Este órgão estatal, confor-
prática dos delitos previstos na Lei nº me apontado por Maria Gorete Mar-
11.343/2006; esta legislação, oriunda do ques de Jesus10, desempenha o papel
de oferecer o vocabulário para a de-
a seletividade penal, além de expor um finição do tipo penal (uso ou tráfico
cenário que legitima a militarização de de drogas), sendo responsável pelo
territórios historicamente marginaliza- preenchimento das lacunas legislati-
dos mediante o atravessamento da cha- vas11 quanto à distinção objetiva en-
mada “guerra às drogas”, cujas forças de tre “usuário” e “traficante”, com atua-
segurança estão presentes de uma for- ção decisiva nessa diferenciação.
ma mais ostensiva. O Brasil, atualmente,
é o terceiro país com a maior população Pautando-se em presunções de ve-
carcerária no mundo , estimando-se que racidade dos relatos policiais e na des-
30% dessas pessoas estejam presas em
face da aplicação da Lei de Drogas. Além do réu (JESUS, 2018), as condenações
disso, de acordo com o Anuário Brasilei- vão sendo construídas e lapidadas. As
ro de Segurança Pública (2020), 66,7%
da população carcerária é composta por acabam sendo re-
12

pessoas negras. forçadas em juízo, o que motiva a exis-


tência de uma lógica de validação das
A busca por entorpecentes decor- narrativas policiais sem questionamen-
re, em grande medida, de prisões em to por parte dos julgadores. E, aqui,
flagrante de pequenos traficantes , vale questionar: Qual o papel consti-

6
Juliana Borges aponta que “a pobreza no Brasil tem cor”, expondo que “negros são pobres porque são negros
no Brasil. E não são negros porque são pobres.” In: BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa? Belo

7
Consoante dados do INFOPEN, referentes ao ano de 2019, são mais de 770 mil pessoas presas no Brasil.
8
A busca da verdade não é apanágio de abusos: a decisão do HC 598.051/SP. Disponível em: <https://www.conjur.
com.br/2021-mar-16/tribuna-defensoria-busca-verdade-nao-apanagio-abusos>. Acesso em: 22 dez. 2021.
9
ALVES, Dina. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na pro-
dução da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali, Colombia: Facultad de Derecho y
Ciencias Sociales, Universidad Icesi, 2017.
10
-
tora D’Plácido, 2018.
11

acerca da ausência de parâmetro objetivos para tal, o que acaba sendo delimitado pelo julgador no momento em
que analisa o caso penal. Todavia, este não é o objetivo do presente trabalho.
12
JESUS, op. cit., 2018.
Artigos

lombia: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales,


magistratura que julga esses casos pe- Universidad Icesi, 2017.
nais? Quem são as pessoas acusadas da AVELAR, Laís da Silva.
: o controle ra-
drogas? Quais são os locais onde comu- cializado das bases comunitárias de segurança
mente elas são presas? E isso teria rela- pelas narrativas dos jovens do Grande Nordes-
ção com o racismo? te de Amaralina. Belo Horizonte/MG: Casa do
Direito, 2020.
Um pequeno escrito não é capaz de BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísi-
trazer soluções – e seria até um ex- cos no racismo: branquitude e poder nas orga-
cesso de autoestima – à uma questão nizações empresariais e no poder público. Tese
que ultrapassa qualquer debate pau- (doutorado). 169 p. Departamento de Psicolo-
tado em individualidades. O interesse gia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da
Personalidade. Instituto de Psicologia da Uni-
versidade de São Paulo: São Paulo, 2002.
incipientes, sobre um diálogo necessá-
rio e quem vem sendo travado há dé- BORGES, Juliana. O que é encarceramento em
cadas pelo movimento negro e outras massa? Belo Horizonte – MG: Letramento: Justi-
entidades que atuam na defesa, sobre-
tudo, da população negra13. Reconhe- FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caí-
cer a relação visceral e totalmente es- do no chão: o sistema penal e o projeto genoci-
tabelecida entre o racismo e o sistema da do estado brasileiro. Dissertação (Mestrado
penal no Brasil é o mínimo. Os dados em Direito), 145 p., Universidade de Brasília,
DF, 2006. Disponível em: http://repositorio.unb.
br/bitstream/10482/5117/1/2006_AnaLuizaPi-
números!) nos mostram a face de um nheiroFlauzina.pdf. Acesso em 05 fev. 2022.
país que dorme em berço esplêndido
enquanto pessoas negras seguem sen- FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLI-
do massacradas, encarceradas e assas- CA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública:
2020. São Paulo: FBSP, 2020. Disponível em:
sinadas. Admitindo-se a ideia de que <https://forumseguranca.org.br/wp-content/

Brasil deu muito certo, mas nunca é pdf>. Acesso em 20 jan. 2022.
tarde para buscar horizontes que per-
meiam a luta incansável contra o que JESUS, Maria Gorete Marques de. A Verdade ju-
. Belo
está posto, sendo importante reforçar Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
o óbvio: “enquanto houver racismo,
não haverá democracia14”. MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Pau-
lo: n-1 edições, 2018.

MUNIZ, Gina Ribeiro; SOUBHIA, Fernando An-


tunes; TELES, Lara. A busca da verdade não é
ALVES, Dina. brancos: uma apanágio de abusos: a decisão do HC 598.051/
análise da interseccionalidade de gênero, raça SP. Revista Consultor Jurídico: Tribuna da De-
e classe na produção da punição em uma prisão fensoria, 16 de março de 2021. Disponível em:
paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali, Co- <https://www.conjur.com.br/2021-mar-16/tri-

13
Vale citar como exemplo a importância da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, que é uma or-
ganização da sociedade civil que atua, desde 2015, pela construção de uma agenda de justiça racial e econômica
promovendo ações de advocacy em Direitos Humanos e propondo reformas na atual política de combate às drogas.
14
Tratou-se do lema do Manifesto da Coalizão Negra por Direitos (2020), exigindo a erradicação do Racismo como práti-
ca genocida contra a população negra. Disponível em: <https://www.abpn.org.br/post/manifesto-da-coaliz%C3%A3o-
-negra-por-direitos-enquanto-houver-racismo-n%C3%A3o-haver%C3%A1-democracia>. Acesso em 29 jan. 2022.
Artigos

buna-defensoria-busca-verdade-nao-apanagio-
-abusos>. Acesso em: 22 dez. 2021.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro


brasileiro: processo de um racismo mascarado.
– 1. ed. – São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.

OLIVEIRA, Nathália Oliveira; RIBEIRO, Eduardo.


O massacre negro brasileiro na guerra às dro-
gas -
trole de psicoativos a partir da construção de
uma experiência negra. São Paulo: Revista Inter-
nacional de Direitos Humanos - v.15, n.28, 2018. Daniel Lima Oliveira

Advogado. Pós-graduando em
Ciências Criminais e Segurança
Pública pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Bacharel em Direito pela
Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Monitor do Patronato de
Presos e Egressos da Bahia (PPE/
BA). Associado ao Instituto de
Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Artigos

UMA MULHER SOZINHA”: AS EXPRESSÕES


DE UMA DOSIMETRIA DA PENA
Por Natalia Galvão Cunha Lima

Um homem negro. Uma condenação vistas à individualização da pena, de-


por furto, roubo e organização crimino- veria ser interpretado como elemen-
sa. Uma análise da “conduta social” do to de ponderação. Dialoga, em tese,
agente, nas circunstâncias judiciais. A com critérios de proporcionalidade e
menção à “raça” do acusado entre os necessidade. Mas se assim o diz uma
critérios valorativos. Esta foi a combina- cuidadosa análise doutrinária, a opção
ção que pôs em evidência, nas últimas jurisprudencial tem transitado, ao me-
semanas, uma das faces mais problemá- nos por ora, pelo caminho inverso. É
ticas da dosimetria da pena no Brasil. deste modo que a análise de circuns-
tâncias, muito mais que um elemento
O caso, recebido com o espanto e individualizador, transforma-se em
fúria que lhe são devidos, não inova. meio de exasperação de penas, pauta-
Em verdade, escancara e lança olhares do por uma perigosa e excessiva sub-
para condenações, diariamente pro- jetividade como via de reprovação.
duzidas, nas mais diversas regiões do
país, em que uma das mais clássicas O privilégio a essa subjetividade,
confusões na temática se faz presen- com amparo na jurisprudência, invaria-
te: a absoluta arbitrariedade, na expe- velmente se liga à pessoa do acusado,
riência prática, para determinação dos sua suposta “periculosidade” e, em
elementos que integram as circuns- particular, à “personalidade” do agen-
tâncias judiciais. te. A ausência de critérios específicos,
gerada pela incorreta interpretação do
princípio da individualização da pena,
compõe mais uma irracionalidade do
gerada pela incorreta interpretação sistema, transformando garantia em
do princípio da individualização da espaço arbitrário. Arbitrariedade que,
- sabe-se, é prato cheio para as mani-
festações de estigma, ainda quando
garantia em espaço arbitrário.” inconscientes para o próprio julgador.

Valendo-nos dos conceitos de Er-


ving Goffman, o estigma se dá quando
É certo que o Art. 59, do Código o outro, por características que o di-
Penal, ao elencar circunstâncias com ferenciam de determinada identidade
Artigos

social, passa a ser reduzido, diminuído tas, em qualquer fase da engrenagem


ou tratado como menos desejável. É punitiva, dialoga com os aspectos mais
atributo depreciativo, gerado na ca- antidemocráticos e seletivos do já ir-
tegorização de pessoas que se realiza racional sistema criminal. É, em suma,
em sociedade, por pré-concepções. legitimar um “punir-se pelo que se é”.

Esta relação, em outros termos, Na temática aqui tratada, logra-se


pode ser bem delimitada também nas este absurdo: diuturnamente, profe-
explicações de Alvino Augusto de Sá, rem-se sentenças em que a indevida
ao expor que: participação da arbitrariedade se ma-
nifesta em avaliações da vida pregres-
sa do acusado, de seu comportamento
“A relação entre duas pessoas ou en- no seio da sociedade, de sua perso-
tre uma pessoa e um objeto por ela nalidade inatingível, de elementos de
percebido e analisado é sempre um alma. Avaliações sobre o que não é es-
caminho por onde passam projeções timável, mas que se transformam em
de conteúdos internos. Consequen- penas – estas sim, estimáveis e reais
temente, a “valorização” (avaliação) para quem as suporta.
que uma pessoa faz da outra ou do
objeto é permeada pelos conteúdos Afastando o mito da neutralidade
internos de quem avalia”. do julgador, a excessiva carga moral
que, ao longo dos anos, tem orientado
a análise das circunstâncias judiciais,
É possível compreender, posto isso, em face da acentuada subjetividade,
o espaço que se construiu, historica- se mostra como um dos pontos nevrál-
mente, para que pré-concepções – que gicos da dosimetria da pena no Brasil.
se manifestam em desfavor de classes,
aspectos socioculturais, orientação A linguagem moralizante – tal como
sexual, modo de condução de vida, a utilizada no caso inicialmente ex-
dentre outros -, incorporadas nos que posto, que reacendeu este debate – é
detém o poder, ocupassem tão fre- parte desta tendência. Se deseja-se
quentemente o espaço da dosimetria. contê-la, em atenção à racionalidade
mínima da aplicação da pena, é preciso
É que esta, quando compreendida voltar os olhos para o ponto de dese-
como valoração do indivíduo, e não de quilíbrio: o descolamento progressivo
um fato penal – o que se dá, inclusive, e histórico da determinação de pena
com a possibilidade de valoração ne- ao injusto culpável.
gativa de malfadados critérios, como
personalidade do agente e conduta
social -, não poderia se assemelhar
mais a um Direito Penal do autor.
GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Ma-
Uma aceitação de que o ius puniendi nipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Ja-
estatal possa ligar-se a status e condi- neiro: Zahar Editores, 1980
ções pessoais, e não apenas às condu-

1
A respeito disso, sugere-se, como leitura aprofundada, a análise de pesquisa realizada por Tatiana de Oliveira

dos Tribunais, 2014, da mesma autora.


Artigos

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e


a execução penal: proposta de um modelo de
terceira geração. São Paulo: RT, 2011.

STOCCO, Tatiana de Oliveira. Personalidade do


. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014.

TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individua-


lização da pena. Em Cem anos de reprovação.
Uma contribuição transdisciplinar para a crise da
culpabilidade. Rio de Janeiro: Renavan, 2011.
Natalia Galvão Cunha Lima

Mestranda em Direito Penal na


Faculdade de Direito da USP.
Especialista em Direito Penal e
Processo Penal pela Academia
Brasileira de Direito Constitucional.
Graduada em Direito pela UFRN.
Pesquisadora em Ciências Criminais
vinculada à UFRN e coautora das
obras “Direito e Linguagem nas
Decisões Criminais” (OWL) “Pacote
Anticrime: Temas Relevantes”
(OWL), dente outras.
Artigos

O EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO


CAUTELAR NO BRASIL: ELEMENTOS
DOGMÁTICOS
Por Leandro da Cruz Soares

Sabe-se que a Emenda Constitucional direito da União tenham sido violados


n.º 45, de 30 de dezembro de 2004 criou, tem direito a uma ação perante um
explicitamente, no ordenamento jurídico tribunal. Toda a pessoa tem direito a
brasileiro, a garantia da duração razoável que a sua causa seja julgada de forma
do processo1. Essa emenda foi imposta equitativa, publicamente e num prazo
pelo legislador constituinte através do in- razoável, por um tribunal indepen-
ciso LXXVIII, do artigo 5º da Constituição dente e imparcial, previamente esta-
Federal: “[...] a todos, no âmbito judicial e belecido por lei. Toda a pessoa tem a
administrativo, são assegurados a razoá- possibilidade de se fazer aconselhar,
vel duração do processo e os meios que defender e representar em juízo.
garantam a celeridade de sua tramitação”.

Para Alexandre Morais da Rosa, a ga- Para Alexandre Morais da Rosa “Na
rantia da duração razoável do processo verdade, prometer-se a duração razoável
consagrada na Emenda Constitucional sem medidas compensatórias é o mesmo
nº 45 não se trata de algo inédito, onde que se prometer amor. Para além do Di-
podemos destacar a Carta dos Direitos reito (ao amor ou à duração razoável do
Fundamentais da União Europeia e pela processo) é preciso estabelecer-se as ga-
Comissão Europeia de Nice, em 7 de de- rantias” . Nestes dois casos, perante da
zembro de 2000 :
algumas vezes o Direito não se concre-
tiza. A luta para que o processo possa
Artigo 47. Direito à ação e a um Tri- acontecer em padrões que reduzam o
bunal Imparcial. Toda a pessoa cujos sofrimento, entretanto, varia conforme
direitos e liberdades garantidos pelo a posição subjetiva do ator processual .

1
BARBOSA, Ruchester Medeiros. Investigação criminal também deve cumprir prazo de duração razoável, 2015.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-investigacao-criminaltambem-cumprir-
-prazo-duracao-razoavel#_edn2, acesso em 27/06/2017.
2
ROSA, Alexandre Morais da; FILHO, Sylvio Lourenço da Silveira. Medidas Compensatórias da demora jurisdicio-
nal: a efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo penal. RJ: Lumen Juris, 2014, p. 15.
3
ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor, 2014.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartidaigual-prome-
ter-amor, acesso em 27/06/2017.
Artigos

Alexandre Morais da Rosa nos explica No Brasil, não existe limite para a du-
que existem dois sistemas para assegu- ração do processo penal, e o mais grave
ainda é que não há limite para a prisão
um prazo razoável e que implicam em cautelar10
diferentes formas de analisar e declarar em quase todas as decisões acima.
-
xos e o sistema do não prazo. Entendo primeiramente que deve-
ria ter em nossa Constituição ou até
mesmo no Código de Processo Penal o
de forma objetiva o prazo de duração prazo já previamente estipulado sobre
dos processos, compreendendo-se que o a duração do processo. E quando esse
direito ao processo sem dilações indevi- prazo anteriormente estipulado não
das engloba o direito das pessoas sabe- fosse cumprido deveria ter uma sanção
rem exatamente o prazo máximo de du- por seu descumprimento.
ração de um processo no caso concreto .

Para Aury Lopes Jr., em que pese, o


Código de Processo Penal faça menção
BARBOSA, Ruchester Medeiros. Investigação
a diversos limites de duração dos atos criminal também deve cumprir prazo de dura-
(arts. 400, 412, 531 etc.), infelizmente ção razoável, 2015. Disponível em: http://www.
não retira a crítica, pois, são prazos sem conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-in-
nenhum tipo sanção6. Ou seja, quando vestigacao-criminaltambem-cumprir-prazo-du-
fala-se em não prazo é o mesmo que di- racao-razoavel#_edn2, acesso em 27/06/2017.
zer: ausência de prazos processuais com ROSA, Alexandre Morais da; FILHO, Sylvio Lou-
uma sanção pelo descumprimento7. renço da Silveira. Medidas Compensatórias da
demora jurisdicional: a efetivação do direito
Sem contar que essa garantia cons- fundamental à duração razoável do processo
titucional, consagrada agora no orde- penal. RJ: Lumen Juris, 2014.
namento jurídico brasileiro, vem men-
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo
cionada na Convenção Americana dos penal. Abordagem conforme a Constituição Fe-
Direitos Humanos (CADH) do qual o deral e o Pacto de São José da Costa Rica. Cases
Brasil ratificou e assumiu o compro- da Corte Interamericana, do Tribunal Europeu e
misso de cumprir em todo território do STF. SP: Atlas, 2014.
nacional, bem como todas as institui-
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª
ções, poderes, todos os agentes públi- ed. SP: Saraiva, 2014.
cos e os cidadãos .

ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor, 2014.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavelcontrapartida-igual-prome-
ter-amor, acesso em 27/06/2017.
5
ROSA, Alexandre Morais da; FILHO, Sylvio Lourenço da Silveira. Medidas Compensatórias da demora jurisdicio-
nal: a efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo penal. RJ: Lumen Juris, 2014, p. 38.
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 188.
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 188.
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 187.
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo pemal. Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto
de São José da Costa Rica. Cases da Corte Interamericana, do Tribunal Europeu e do STF. SP: Atlas, 2014, p. 07.
10
LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 193.
Artigos

LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais. http://


www.conjur.com.br/2014-nov14/limite-penal-
-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-
-motivado acesso em 18/07/2017).

ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável


do processo sem contrapartida é como pro-
messa de amor, 2014. Disponível em: http://
www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-
-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prome-
ter-amor. Acesso em 27/06/2017.

Leandro da Cruz Soares

Advogado. Pós-Graduado em Pe-


nal e Processo Penal. Mestrando
em Ciências Criminais na PUCRS
E-mail: leandro@leandrosoare-
sadv.com.br
Artigos

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA EM CASOS


ENVOLVENDO ORDENADORES DE DESPESAS
EM SAÚDE PÚBLICA DURANTE A PANDEMIA

Por Luis Eduardo Lopes Serpa Colavolpe

Este trabalho tem como objeto es- ministrativa, visando a contextualização


tabelecer limites interpretativos para do problema.
aplicação da lei de improbidade admi-
nistrativa, em especial quando em face Em seguida, serão discutidas as bali-
de ordenadores de despesas de saúde zas necessárias para a recepção da de-
em tempos de pandemia de COVID-19. núncia por improbidade administrativa
Isto porque, o momento que se atra- e os impactos que o momento de pan-
vessa impõe cautelas no que se refere demia proporciona no Estado-juiz, tanto
- na aferição da justa causa, como na afe-
nos ao erário e até mesmo do que se rição da culpabilidade. Em sequência,
caracterizaria negligência ou omissão propõe-se a implementação de alguns
do gestor.
a apreciação de denúncias de improbi-
Para isto, iniciaremos este trabalho dade administrativa associada a orde-
realizando uma breve análise de con- nadores de despesas em saúde pública
juntura, com foco especial nas situações neste período de exceção.
excepcionais ocorridas em razão da pan-
demia de coronavírus, bem como discu- 1. Análise conjuntural da pandemia
tindo o lugar e a situação em que o or- de covid-19 na administração pública
denador de despesa de saúde pública se
Desde fevereiro de 2020, ainda quan-
insere, em meio a esta fase atípica.
do surgiam os primeiros casos de coro-
Ultrapassado este momento inicial, navírus no Brasil, já se tinha noção que
seguiremos o presente estudo explo-
rando de forma perfunctória o conceito iniciaria para os gestores públicos, em
(e os limites) do ato de improbidade ad- especial os responsáveis por adminis-

1
VERA Lúcia Gonzaga, uma das fundadoras do Mães de Maio, morre em Santos. Cláudia, 10 de mai. 2018. Disponí-
vel em: <https://claudia.abril.com.br/noticias/morre-vera-lucia-gonzaga-maes-de-maio/>. Acesso em: 12 de dez.
2021.
Idem.
2

3
O Rio não amanheceu: mortes a tiros e uma mãe que tombou. Ponte, 06 de nov. 2018. Disponível em: <https://
ponte.org/artigo-o-rio-nao-amanheceu-mortes-a-tiros-e-uma-mae-que-tombou/>. Acesso em: 12 de dez. 2021.
Idem.
4
Artigos

trar a saúde pública no país, indepen- sobre os contratos realizados na saúde,


dentemente da esfera de governo. fato que chegou a ocasionar o afastamen-
to e até mesmo a prisão de diversos agen-
A imprevisibilidade da situação epi-
demiológica e a falta de estrutura de- do governo brasileiro, até o mês de julho
corrente de anos de descaso com a saú- de 2021, apenas a Policia Federal realizou
de pública, elevaram o Brasil a condição mais de cem operações relacionadas a
de “bomba relógio biológica” mundial, fraudes no enfrentamento da pandemia,
ao passo que, em uma velocidade nun- totalizando 175 prisões e mais de 1500
ca vista anteriormente na história, se mandados de busca e apreensão.
instalava uma verdadeira situação de
calamidade pública. Dentro do contexto aqui retratado,
considerando o momento pandêmico
Esta circunstância impôs uma neces- vivenciado e o procedimento das agên-
sária mudança na forma de contratar cias de controle, a ameaça de ser denun-
do poder público, uma vez que não se ciado e/ou processado por improbidade
dispunha de tempo hábil para as forma- administrativa, desponta como um risco
eminente ao ordenador de despesas da
este dispensado, nos termos do Art.4º saúde pública, contudo, a aferição da con-
da Lei 13.979/2020 (Lei da pandemia) e duta dita improba exige grande cautela
do próprio Art. 24, da Lei 8.666/93 (Lei
de Licitações). para o intérprete jurídico no pós-pande-
mia, de modo que melhor conhecer a re-
ferida conduta torna-se imprescindível.
puderam recorrer diretamente ao mer-
cado para adquirir suprimentos como -
equipamentos de proteção individual ceitos e controversias
(máscara, gorro, luva...), medicamentos,
Em primeira análise a expressão “im-
atuar na linha de frente, e até mesmo probidade administrativa” tende a ser
respiradores, sem necessariamente ter associada a ideia de desonestidade, con-
que pagar o menor preço. tudo tal questão não pode ser analisada
de forma perfunctória. Emerson Garcia,
Nesta senda, abre-se uma vereda profí- compreende que o agir de forma ímpro-
cua para a ocorrência de atos ilícitos, uma ba se conectaria, em verdade, com o co-
vez que a ausência do processo licitatório rolário da injuridicidade e não pode ser
favorece também a compra de produtos avaliado sob o signo da legalidade es-
com sobrepreço, práticas de atos de cor- trita, ou seja, há que se observar o fato
rupção e suborno de agentes públicos e praticado a luz dos princípios, sobretudo
outras formas de favorecimento. o da proporcionalidade, evitando assim
a sua subsunção a condutas pouco rele-
Esta situação fez com que os órgãos
vantes para a administração pública.

1
Policia Federal Completa mais de 100 operações contra Fraudes Relacionadas as ações de enfrentamento a
pandemia. Disponivel em: < https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2021/07/policia-federal-com-
pleta-mais-de-100-operacoes-contra-fraudes-relacionadas-as-acoes-de-enfrentamento-a-pandemia> Acesso em
30 jul. 2021.
2
GARCIA, Emerson. Improbidade é sinônimo de desonestidade: Disponível em: < https://www.conamp.org.br/publica-
coes/coluna-direito-em-debate/5107-improbidade-e-sinonimo-de-desonestidade-5107.html > Acesso em 30 jul. 2021
Artigos

Dito isto, a melhor forma para cons- blica, é, seguramente, um dos pontos
truirmos um conceito acerca do que mais delicados e de maior fragilidade no
seria improbidade administrativa, per- espectro da gestão pública, quando se
passa pela compreensão das ofensas fala em responsabilização por improbi-
dade administrativa.
pela legalidade em seu sentido amplo,
capazes de produzir um dano a adminis- A compra sem licitação de produtos
tração pública e/ou enriquecimento ilí- de alto custo, de insumos com preço
cito para aquele que pratica. mais elevado do que os normalmente
praticados, ou aqueles julgados supos-
Em que pese a improbidade de fato tamente desnecessários, pode direcio-
não se confundir (ou limitar), a ideia de nar o interprete do fato a inferir que o
desonestidade, conforme já colocado ordenador de despesas, não agiu com a
anteriormente, esta não pode abranger conformidade que deveria.
todo e qualquer desvio de conduta na
administração pública. Dizer que um indi- No entanto, o cenário posto com-
víduo não zelou pela probidade nas suas preendeu momentos de escassez global
ações cobra um ato comissivo, o que não do mínimo necessário para o adequado
enfrentamento ao vírus; sequer consen-
cabe destacar a lei 14.230/2021 (nova lei -
de improbidade), que explicita a necessi- -
dade de a conduta praticada ser dolosa. de na tomada das decisões.

- Por outro lado, a prática de atos de


dade administrativa e sua concepção corrupção relacionados a saúde públi-
nos tempos de pandemia ca também é algo muito frequente, em
razão da relevância do bem jurídico tu-
Pode-se pensar que para o exame da telado, altos valores dos suprimentos
justa causa para uma ação, seja ela da
natureza que for, não exige uma análi- para o setor de saúde, em especial no
se tão cuidadosa acerca dos fatos nar- que se refere a contratação de pessoal.
rados, uma vez que integra o juízo de
prelibação, e não aprofunda nas ques- A cognição para a formação da justa
tões probatórias. Contudo, aqui não se causa em ações que versam sobre direi-
comunga deste pensamento. Tratar a to sancionador, deve ser realizada com
justa causa de forma mecanizada, com- cautela em razão do impacto que o pro-
preendendo-a através de uma análise cesso em si mesmo é capaz de causar na
- vida de quem o responde, por vezes, su-
cios de autoria e materialidade, podem perior a própria sanção a que se propõe.
proporcionar uma injusta persecução,
capaz de provocar danos irreparáveis. A
imposição de uma adequada percepção A pandemia da COVID-19, impõe tan-
acerca da justa causa é: Nem toda causa to ao julgador como aos membros das
merece ser apreciada pelo judiciário. agências persecutórias, uma condição
social completamente anômala que
Em tempos de exceção, como o viven-
não pode ser desconsiderada tanto na
ciado pela pandemia de COVID-19, a in-
avaliação da proposição de uma possí-
segurança jurídica que permeia as ações
vel denúncia, quanto na sua apreciação
do ordenador de despesas de saúde pú-
pelo julgador.
Artigos

Sugere-se que sejam adotados stan-


dards probatórios mínimos para a acei-
tação/rejeição da denúncia por impro-

um caso de acusação por improbidade


administrativa por danos ao erário em
razão da compra de respiradores com
sobrepreço, deverá o Ministério Público,
desde a proposição da demanda, acostar
documentos que comprovem a disponi-
bilidade para compra de equipamento Luis Eduardo Serpa Colavolpe

menor a época dos fatos. Da mesma for-


Mestrando em Administração
ma, em relação a compra de medicamen-
pública pelo IDP/DF, advogado
- criminalista
sas para o enfrentamento da COVID-19,
deverá o órgão ministerial demonstrar a

na época dos fatos, do contrário a de-


núncia não poderá ser recebida.
indicium entrevista

indicium entrevista: Jesus Pablo Barbosa

2) Por sua prática cotidiana, quais


os principais pontos que necessitam

polícia judiciária?

Resposta:
-
ganizou e hoje não conhece fronteiras.

-
cia das polícias judiciárias seja a carência
de investimentos. Investir em seguran-
ça não tem sido prioridade no Brasil. É
preciso que se realizem investimentos
Jesus Pablo Barbosa - Delegado de Polícia
polícias judiciárias se empoderem, que
passem a contar verdadeiramente com
recursos tecnológicos (que auxiliem na
1) Na sua visão, qual a importância elucidação de delitos e na otimização
da polícia judiciária para o sistema de recursos), que uniformizem as suas
de justiça criminal? estruturas e procedimentos e que pas-
sem a operar com estreita comunicação
Resposta: entre si, promovendo cooperação mú-
tua, que permita uma ação integrada no
A função de Polícia Judiciária, exercida combate à criminalidade.
pelas Polícias Civis dos Estados e pela
Polícia Federal, bem como a função de
polícia investigativa, é essencial ao es- "Investir em segurança não tem
tado democrático de direito, pois seu sido prioridade no Brasil. É preciso
exercício permite a responsabilização
aos delitos, notadamente crimes e con-
que se realizem investimentos signi-
- ficativos, que permitam que as po-
le social. A sua importância é tamanha lícias judiciárias se empoderem, que
para a justiça criminal, notadamente por
promover a efetividade das decisões ju-
passem a contar verdadeiramente
diciais, a responsabilização dos infrato- com recursos tecnológicos..."
indicium entrevista

3) Qual a realidade da polícia polícias judiciárias - a vontade de me-


judiciária no Estado da Bahia? lhorar a ação das polícias, tem de ser
traduzida em medidas reais, que para
seu implemento tem de ser custeadas,
Resposta:
e para tanto sugerimos que haja uma
A Polícia Civil da Bahia, titular da função dotação orçamentária significativa e
de polícia judiciária no âmbito estadual, precisa, para que as iniciativas pos-
está sucateada, em decorrência de anos sam sim ter a efetividade pretendida.
sem que lhes sejam destinados investi-
Uniformização e federalização das
mentos transformadores. A criminali-
polícias judiciárias estaduais - para ter
dade no estado avançou sobremaneira,
uma atuação que permita uma maior
a violência na Bahia recrudesceu, mas
coordenação entre as as polícias, per-
o estado não soube destinar recursos
mitindo um enfrentamento efetivo da
que permitissem que a PCBA se moder-
criminalidade, que se aproveita bas-
nizasse e pudesse enfrentar com efeti-
tante da falta de diálogo entre as po-
vidade os problemas galopantes de se-
lícias para o exercício de suas ações.
gurança pública da Bahia.
Investimentos em gestão, planeja-
Hoje, o que se tem é uma polícia enve-
mento, correição e inteligência, como
lhecida, com um efetivo muito aquém
maneira de otimizar os recursos a se-
-
rem empregados, possibilitando um
cação, com uma estrutura orgânica ina-
maior uso de tecnologia no combate
propriada à sua missão, em que faltam
direto à criminalidade.
elementos básicos como instalações
salubres e equipamentos de serviço,
como computadores e viaturas em con-
dições de pleno emprego.
Jesus Pablo Barbosa
É Delegado de Polícia, atua na Repres-
legislativas podem contribuir para são ao Crime Organizado (DRACO)
melhorar a estrutura da polícia
judiciária? Especialista em Gestão da Segurança
Pública (UFBA), em Inteligência Estra-
Resposta: tégica (ESG) e em Análise de Inteligên-
cia (UFRJ). Possui outras formações
O descompasso das polícias judiciá- técnicas em nas áreas de inteligência,
rias com a contemporaneidade é ta- ações táticas e planejamento de se-
manho, que poderíamos citar uma gurança pública, no Brasil e em Israel.
centena de ações que consideramos Mestrando em Ciência da Informação.
necessárias as quaisquer melhoras de
sua ação. Assim sendo, cito aqui ape-
nas três ações que consideramos es-
senciais e de maior relevância para tal

Missão:

1) Criação de um fundo nacional de


modernização e aparelhagens das
http://www.adpeb.com.br/
administrativo@adpeb.com.br
comunicacao@adpeb.com.br
@adpeb_sindicato
@adpebsindicato

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