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por
Salvador – BA
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CULTURA E SOCIEDADE
por
Salvador – BA
2013
Sistema de Bibliotecas da UFBA
Inclui anexos.
Orientador: Prof. Dr. Djalma Thürler.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e
Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2013.
CDD - 306.4
CDU - 316.72/.73
LEILA DAMIANA ALMEIDA DOS SANTOS SOUZA
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Profº. Dr. Djalma Thürler
Orientador (UFBA)
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marinyze das Graças P. de Oliveira
Examinadora Interna (UFBA)
_____________________________________________
Profº Dr. Paulo César Souza Garcia
Examinador Externo (UNEB)
Salvador - BA
2013
Dedico a você, Kleber Peixoto de Souza,
Mesmo com mil palavras
não há como lhe agradecer pelo companheirismo.
Então economizo nas letras, para engrandecer minha gratidão:
muito obrigada por tudo.
AGRADECIMENTOS
Meus pais Luz José e Dinacy Almeida pelas mãos que cuidam e afagam em todos os
momentos necessários. Os meus irmãos Luiz José, Luiz Carlos e Luciana, aos
sobrinhos Luiz Neto e Lorena, a cunhada Jamile Almeida e o cunhado Caetano pela
corrente de oração e energias positivas que revigoraram e me levaram adiante.
O meu orientador Djalma Thürler, pela confiança, paciência e pelas palavras sempre
doces.
À professora Marinyze Prates Oliveira e ao Professor Paulo César Garcia pelas ricas
contribuições dadas no momento da qualificação. A partir daquele dia a dissertação e
eu fomos outras.
Ce travail s´agit de l´investigation sur les processus identitaires d´un groupe de descendants d
´indigènes de la communauté appelée Missão do Sahy, dans un petit village situé dans la ville
de Senhor do Bonfim, à l´état de Bahia, Brésil. Nous avons fait une description de les plus
importantes moments de cette histoire, oú on a remarqué des aspects qui dénote l´attribution
des caractéristiques culturelles aux descendants d´indigènes. L´étude de l´historiographie,
avec les narratives orales des habitants, a mise-en-relief les premiers contacts des européens
avec les peuples traditionnels brésiliens, notamment sur la situation des indigénes de la región
Nordeste et de l´etat de Bahia. Nous avons utilisé de la pensée épistémologique de la “mixage
des indigènes”, de l´hybridité culturelle et de la diaspora. La base theorique accompagné par l
´étude de cas, a eut le but d´analyser, apartir des narratives, comment les processus d
´attribution de l´identité ont conduit le (non) appartenance éthnique des descendants indigènes
de la Missão do Sahy. Nous utilisons les contributions theoriques de Da Paz, Machado,
Pacheco de Oliveira, Paula Caleffi, Canclini, Homi Bhabha e Stuart Hall, parmi d´autres. La
realisation d´analyses qualitatives de l´étude de cas ont été possible à cause de la relation
dialogique entre la chercheuse et l´objet d´étude apartir d´une valorisation de tous les réponses
reçues. De cette façon, nous avons fait l´imbrication de l´historiographie, de la base théorique
et des narratives orales depuis le premier partie du travail. Les resultats ont revelé que
plusieurs identités étaient attribuée aux indigènes pendant des différentes époques et
contextes. Cette attribution a creé une (dé)constrution des identités à travers d´un processus
de “mixage” et par l´hybridisme culturelle. Par contre, la lutte et l´emergence des groupes
indigenes ont souligné l´existence d´un processus de constitution d´identités au niveau
individuel et collectif; cependant, l´investigation a montré que ce processus est arrivé (et
arrive) aussi dans la Missão do Sahy. Il était à travers des réfléchissements sur la diaspora
que ont a compris que les nouvelles identités au plan culturelle sont construit dans une
dynamique de production e auto-production, oú les descendants affirment pas seulement leur
appartennance, mais ils cherchent aussi des moyens pour s´affirmer comme une communauté
descendent des indigènes Cariri e Paiaiás.
LISTA DE QUADROS
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 14
Porquês, quereres e fazeres.............................................................................. 14
Caminhos, desafios e descobertas: eis que surgem os elementos da
pesquisa............................................................... .......................................... 18
CAPÍTULO 1
HÃM MÕNÃYXOP HÃ MÕKPUTOX (Terra dos descendentes dos antepassados):
UM ENCONTRO COM A HISTÓRIA DA MISSÃO DO SAHY............................. 28
1.1 Missão do Sahy: entrelaçando a história, narrativas e identidades.......... 31
1.2 Aldeinha: espaço de (re)construção étnica e social.................................. 42
CAPÍTULO 2
MAMÓPA REJU: CAMINHOS E IDENTIDADES DOS POVOS
TRADICIONAIS DAS TERRAS D’ALÉM MAR................................................... 52
2.1 Índios no Brasil: desconstruções e resistências..................................... 61
2.2 Yãykix pupi hãhãm: a atual face dos índios brasileiros........................... 71
CAPÍTULO 3
DESCONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA: EM FOCO OS INDIOS
DO NORDESTE E DA MISSÃO DO SAHY.............................................................. 78
3.1 Uma Compreensão para Além do Local: hibridização cultural dos povos
indígenas.............................................................................................. 87
3.2 Índios na Bahia: percursos, misturas e diásporas..................................... 93
REFERÊNCIAS........................................................................................................... 112
ANEXOS................................................................................................................... 119
14
INTRODUÇÃO
A escolha foi por uma não linearidade de fatos e acontecimentos e isto se deu
pelo entendimento de que as relações entre o global e o local não devem se prender a
uma ordem estática e limitadora, pois, mesmo se tratando de uma cultura local e inscrita
num determinado tempo histórico, pode-se afirmar que: “as disjunturas patentes de
tempo e espaço são abruptamente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos
diferenciais. As culturas, é claro, têm seus "locais". Porém, não é mais tão fácil dizer de
onde elas se originam” (HALL, 2003, p. 36).
No caso da relação colonizador e indígena foi possível demarcar alguns
momentos e formas em que a cultura europeia foi sendo imposta as índios no Brasil, no
Nordeste, especificamente na Missão do Sahy. Isso se deu pelo fato de os integrantes da
cultura ocidental terem dificuldades de aceitar como válida outra cultura e negarem que
outros povos pudessem se organizar a partir de princípios que não os seus, assim,
acabaram agindo de modo a atribuir identidades diversas a esses povos.
Esse processo de generalização da condição indígena em detrimento da
diversidade que envolve esses povos contribui para o que está sendo chamado de
negação do “ser índio”. Essa negação muito se deve ao imaginário construído em torno
desses povos. Os primeiros registros escritos e gravuras acerca dos índios foram
realizados pelos colonizadores, assim, prevalece no imaginário a descrição parcial de
alguns povos dos quais se aproximaram.
Trazer a constituição dessas identidades atribuídas e, ao mesmo tempo, defender
a formulação de uma análise que mostre o caráter produtivo da cultura, bem como sua
permeabilidade para incorporar os conhecimentos, tradições e narrativas dos povos
indígenas me possibilitou, na condição de pesquisadora, encarar desafios e trabalhar
com as descobertas.
já terem contribuído com outros estudos; por fim um jovem presidente da Organização
Não-Governamental Casa do Aprendiz Urupês, que busca identificar os traços culturais
dos antepassados e agrupá-los com expressões culturais de hoje.
Um dado importante a ser destacado foi o incômodo inicial desses sujeitos por
conta de uma busca excessiva de informações acerca da história da comunidade. Isso
muito se deve à emergência do debate nas instituições de ensino básico e superiores
acerca do pertencimento étnico dos moradores da Missão do Sahy. Compreendendo as
angústias, foi tomada a decisão de substituir os nomes reais por nomes fictícios, ou seja,
foram usados nomes de indígenas brasileiros acompanhados dos seus significados.
Outros dois sujeitos foram incorporados à pesquisa pela necessidade de se buscarem os
laços da Missão com a comunidade de remanescentes quilombolas de Tijuaçu, esses
tiveram os nomes alterados por nomes africanos. Assim, constituíram-se os sujeitos:
URUPÊS: nome de origem indígena que significa: um tipo de cogumelo ou “orelha de
pau”, também é uma coletânea de contos e crônicas do escritor brasileiro Monteiro
Lobato. Utilizado para designar o jovem líder comunitário.
APOEMA: nome de origem indígena que significa: aquela que vê mais longe. Senhora
de 78 anos que reconhece sua descendência e guarda na memória várias histórias, lendas
e saberes dos seus conterrâneos.
AIYRA: nome de origem indígena que significa: filha. Professora de 42 anos, filha de
uma das senhoras entrevistadas. Defendeu Monografia no curso de Pedagogia da
UNEB, Campus VII, no ano de 2008. Abordou o tema currículos, narrativas e
oralidades em Missão do Sahy, tendo como sujeito da pesquisa sua mãe.
UPIARA: nome de origem indígena que significa: o que luta contra o mal. Tem 54 anos
e trabalha com artesanato de cipó na comunidade conhecida como Aldeinha, fundada
por sua mãe.
IBOTIRA: nome de origem indígena que significa: flor pequena. Tem 13 anos e reside
na Aldeinha.
KUMARI: nome de origem indígena que significa: comadre. Senhora de 72 anos, não
se identifica como descendente indígena, mas guarda muitas histórias e lendas do seu
povo.
ASANTE: nome de origem africana que significa: agradecido, grato. Atribuído a um
21
uma marca que ainda se mantém entre os membros da comunidade. Além dos traços
físicos da organização geográfica, do manejo do solo, do trabalho e da distribuição dos
bens, a Aldeinha acumula histórias que podem contribuir para o autorreconhecimento
dos índios da Missão do Sahy, bem como para um futuro reconhecimento
governamental.
Então, na condição de pesquisadora, a tarefa de reconstituir, por meio das
histórias orais, os laços das atuais comunidades com o seu passado também foi
assumida.
Definidos os sujeitos, caracterizado o local e assumidos compromissos, chegou o
momento de apresentar o percurso metodológico. Não há como negar que “em qualquer
área nova a investigação começa forçosamente pela busca e elaboração do método”.
(VYGOTSKY, 1996, p. 59). Por tornar-se parte de um campo de estudo que ainda não
havia explorado, a área de Estudos Culturais se apresentou de fato como nova, porém,
rica em possibilidades de estudo e análise.
Diante da novidade acadêmica e epistemológica, foi mesmo necessário elaborar
o método de trabalho, pois o objeto acabou requerendo a inserção, mesmo que
perifericamente, em outras áreas de conhecimento, além da educação e dos Estudos
Culturais somaram-se a história e a antropologia. Seria impossível replicar
fidedignamente uma metodologia e procedimentos de investigação prescritos
anteriormente por outros métodos. Essa decisão conduzida pelo objeto de estudo ainda
demonstrou que:
Podemos enunciar como tese geral que todo planejamento novo dos
problemas científicos, conduz inevitavelmente a novos métodos e técnicas de
investigação. O objeto e o método de investigação mantêm uma relação
muito estreita. Por isso, a investigação adquire uma forma e um curso
completamente novos quando está relacionada com a busca de um método
novo, adequado ao novo problema; neste caso a investigação se diferencia
substancialmente daquelas formas nas quais o estudo simplesmente aplica as
novas áreas os métodos já elaborados e estabelecidos na ciência
(VYGOTSKY, 1995, p. 47).
A técnica empregada para obtenção dos dados foi a entrevista, que segundo
Antônio Carlos Gil (1999) consiste numa forma de diálogo assimétrico que possibilita a
interação social e oferece flexibilidade para que os entrevistados possam esclarecer o
significado de uma resposta ou adaptarem-se às circunstâncias da entrevista. Dentre
tantos outros mecanismos que legitimam esse tipo de investigação, ela possibilita a
obtenção de respostas para um determinado objeto de investigação.
Para Marli André e Menga Lüdke (2003, p.33-34), a entrevista constitui um
poderoso instrumento de pesquisa, entretanto, devemos tomar cuidado com as
perguntas, com sua formulação, de modo que não inflijamos o direito e as exigências
que o informante tem ou faz de se resguardar quanto a algum ato invasivo ou pergunta
impertinente. Assim como deve-se ter o cuidado de não elaborar perguntas induzidas
que obrigam o informante a dar a resposta sem que tenha explicitado sua subjetividade e
24
CAPÍTULO 1
históricos capaz de “encher os olhos” de qualquer pesquisador que queira adentrar num
universo onde os fatos do passado ressurgem com uma força renovadora e, ao mesmo
tempo, alimentam diversas incertezas acerca dos seus primeiros habitantes.
Optar pela imersão na história da Missão é ir além de um mergulho nos fatos que
remontam aos tempos da colonização portuguesa no Brasil. Não se trata de apontar as
profundas diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada (HALL, 2006, p. 108),
ou seja, não serão feitas análises direcionadas por um binarismo – passado e presente. A
opção foi por uma retomada histórica onde o ontem e o hoje fossem transpassados por
conceitos como identidade, cultura, hibridismo e outras “formas de transculturação, de
tradução cultural, destinadas a perturbar para sempre os binarismos culturais do tipo
aqui/lá” (HALL, 2003, p. 109).
Focar a Missão do Sahy considerando o “aqui” (presente) não pode estar
dissociada de um olhar voltado para o “lá” (passado). Considerar a Missão enquanto
“local” não exclui a necessidade de uma análise “global” das ações colonizadoras, mas,
por outro lado, é preciso ter claro que as relações entre esses dois pólos se
complementam, de modo que o global e o local se reorganizem e moldem um ao outro
(HALL, 2003, p.109).
Essa perspectiva ampliada de análise possibilitou que o lócus de pesquisa não
fosse apenas descrito, mas, sobretudo, fosse perpassado pelas significações que os
sujeitos têm de si, da sua história, da sua cultura e do seu lugar. Na mesma dinâmica
foram trazidos os aportes teóricos para que os “achados” da pesquisa não se reduzissem
a uma descrição linear. No entanto, o entrelaçamento das citadas significações será feita
no decorrer dos capítulos.
Assume-se então um conceito de análise que não pode ser visto como sinônimo
de descrição, pois, “a análise se converte de fato na explicação cientifica do fenômeno
que se estuda e não só na sua descrição” (VYGOTSKY, 1995, p. 99). Portanto,
promover o entrelaçamento dos sujeitos e suas histórias, juntamente com aspectos
conceituais se torna possível quando a análise-construtiva proposta considera “os
elementos reais objetivamente existentes, e apresenta como tarefa não só a segregação,
mas também, a [tarefa] de esclarecer os nexos existentes e as relações originadas pela
agrupação dinâmica de tais elementos” (VYGOTSKY, 1995, p. 99).
Antes de iniciar a apresentação da Missão do Sahy e seus processos históricos é
preciso contextualizar a cidade e o território de identidade onde o distrito de localiza.
Senhor do Bonfim faz parte do Território de Identidade chamado Piemonte Norte do
30
identidades
Além da corrida pelo ouro e pedras preciosas, outro fator determinante para a
ocupação do território foi a criação e deslocamento do gado. Esses fatores constituíram
o pano de fundo inicial da conquista e colonização das partes norte e nordeste do Brasil.
3
A Casa da Torre de Garcia d'Ávila, também referida como Castelo de Garcia d'Ávila, Torre de Garcia
d'Ávila, Forte de Garcia d'Ávila ou simplesmente Casa da Torre, localiza-se no atual município de Mata
de São João, no litoral norte do estado da Bahia. Constitui-se no centro de um expressivo poder militar no
período colonial, assim, teve um importante papel no desbravamento do sertão nordestino e na evolução
territorial do Brasil.
32
4
Alguns textos de autores regionais serviram de fontes históricas, dentre estes, dois livros de Paulo
Batista Machado: Cartilha Histórica sobre as Origens de Senhor do Bonfim (1993) e Notícias e Saudades
da Vila Nova da Rainha, alias, Senhor do Bonfim (2007).
5
Como alguns dos sujeitos solicitaram a preservação de suas identidades, que não foi o caso do
coordenador, a decisão foi usar nomes fictícios para todos. Assim, chamaremos o sujeito em questão de
Urupês, palavra Tupi que significa um tipo de cogumelo ou orelha de pau. As fontes orais serão escritas
em itálico ao longo do trabalho.
33
Por outro lado, estudos apontam indícios da existência desses povos na região.
Jacionira Coêlho Silva (2003), ao tratar dos índios, vaqueiros e missionários, apresenta
um quadro onde são mapeadas as povoações indígenas e núcleos urbanos na área de
influência da Casa da Torre. Abaixo são destacadas apenas as duas localidades mais
próximas da Missão do Sahy.
34
eu ouvia falar porque minha mãe contava mais meu pai...que meu pai nasceu
6
As construções sobre identidade cultural serão aprofundadas no capítulo 3.
7
Significa flor pequena. Nome atribuído a uma menina da Missão do Sahy entrevistada neste estudo.
35
na Saúde, mas foi quase criado aqui na Missão também e minha mãe
também....a minha mãe, era caboca..sabe o que que é caboca? A minha vó,
mãe da minha mãe, foi caboca pegada na Saúde...botaro os cachorro pa
pegar ela no mato, ela mocinha com 14 ano, pegaro ela levar o pa saúde, os
caboco foro lá pa pegar ela de volta e o pessoal num deixara e criaro ela
(KUMARI8 apud DA PAZ, 2004, p. 108.)
Raimunda Carvalho contou que sua mãe, a avó materna e a bisavó foram
pegas a laço, a cachorro, na cabeceira do rio Azul (MONTAGNER, 2007, p.
78).
8
Significado: Indígena comadre. Nome fictício. No estudo original o nome também foi preservado.
36
9
Hoje, não se tem registros do que foi feito com tais bens.
37
teguixin teguixi).
Trata-se de uma comunidade negra rural, localizada a 12 km de Senhor do
Bonfim e a 25 km de Missão do Sahy. Os registros de costumes e tradições revelam que
os primeiros negros habitaram a região ainda na primeira metade do século XIX.
Figura 05 – Distância entre Missão do Sahy e Tijuaçu
10
Manifestação cultural de africanos, essencialmente rural. Influenciou a formação do Samba, segundo os
jongueiros, o Jongo é o "avô" do Samba.
39
danada, teve muitos fios e foi espaiando eles por aqui e acolá. Quando viu já
tinha gente chegando em Antonho Goncarves (ASANTE11, 2011.)
Esta geração é todo mundo parente de Maria Rodrigues... Então, ela teve
vários filhos. Essas terras eram todas abandonadas. Então, ela para ter
posse das terras, pegava um filho e colocava, como no caso colocou em
Quebra Facão, colocou em Barreira, um aqui, um em Lajinha para ter posse
da terra (2001)12.
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1515118
(Harisson Souza)
11
Nome africano que significa agradecido, grato. Atribuído na pesquisa a um remanescente quilombola
de Tijuaçu.
12
Valmir dos Santos. Tijuaçu, 20 abr. 2001. Entrevista concedida a Carmélia Aparecida Silva Miranda,
In.: (MIRANDA, 2010, p. 4).
13
Edista Maria de Jesus. Povoado de Barreiras, Tijuaçu, 08 de abril de 2000. Entrevista concedida a Car-
mélia Aparecida Silva Miranda, In.: (MIRANDA, 2007, p. 1).
40
A minha avó dizia que o meu avô era indio, não bisavô né. Que minha vó
mim falava, inté incrusive ela foi pegada a troco de cachorro. Era essa
históra que minha vó contava, tá entendeno. Eu não vou contar essa históra
bem profunda porque vai sai pela boca da minha irmã mais velha. Ela sabe,
a mais veia sabe. Essa históra vai passando de geração para geração, mas
dize que minha vó, bisavó, era uma índia, isso era (THEMA14, 2011).
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1515118
(Harisson Souza)
Nos cantos tradicionais que são relembrados pelos nativos da Missão do Sahy
não é raro identificar a prenseça da interpenetração das duas culturas. Em entrevista, a
descendente AIYRA15 (2011) busca na memória trechos de dois cantos das religiões de
matrizes africanas onde são misturados elementos da cultura indígena:
Caboco do mato, porque que come folha?
dim, dim, dim, aruanda16.
Caboco do mato pra que joga flecha?
dim, dim, dim, aruanda.
14
Nome fictício que significa na língua africana: Rainha. Nome escolhido por se tratar de uma
remanescente de quilombolas, Tijuaçu/BA. Também pela proximidade com seu nome de batismo.
Entrevista completa no link acima.
15
Nome indígena que significa: Filha. Atribuído a uma jovem descendente de índios da Missão do Sahy.
16
Nome dado pela Umbanda a uma cidadela de luz etérica que orbitaria a ionosfera do planeta Terra, em
uma dimensão espiritual de transição.
41
dentre outros.
Assim, pensar a realidade da Missão do Sahy requer muito mais do que analisar
os aspectos históricos da sua constituição política, social e econômica, é preciso
adentrar nas memórias, narrativas e lendas que levam os indivíduos a negarem em
alguns momentos a condição indígena e em outros se afirmarem como parte de uma
história de descendência.
o Cemitério Missão do Sahy que além de alguns túmulos lá que tem hoje
cem, cento e cinqüenta anos de construção, nós temos ainda ruínas do muro
que era do convento franciscano, ainda temos algumas ruínas, conservadas
(URUPÊS, 2011).
Figura 08 – Cemitério de Missão do Sahy Figura 09 – Muro que separa cemitério e convento
Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza
OLIVEIRA, 2012) voltadas para Missão dos Sahy pouco ou nada mencionam sobre a
Aldeinha.
Em artigo científico de Santos e Gonçalves (2011), apresentado no VI Congresso
Brasileiro de História da Educação – VI CBHE/ Vitória-ES, as autoras trazem uma
afirmação que explica os momentos de sonegação de informações por parte de
moradores da Aldeinha:
Alguns destes fragmentos foram obtidos através das narrativas de sua
matriarca, que a princípio contava com desenvoltura e orgulho como tinha
criado aquele lugar onde reside com a sua família, mas hoje devido a procura
de muitos curiosos sobre o assunto, a família e ela mesma não se dispõem
mais a fornecer informações; os motivos alegados são os mais diversos, e vão
desde a necessidade de preservação da intimidade coletiva da família, até a
questão de obtenção de algum ganho extra com essas narrativas (SANTOS e
GONÇALVES, 2011, p. 5).
Por outro lado, as poucas informações que existem sobre a origem da Aldeinha
são de domínio público, assim, em uma das entrevistas essas reminiscências vieram à
tona. Ao entrevistar Apoema19 (2011), compreendemos o processo de formação da
localidade e tivemos como entender a relação dos nativos com o artesanato de cipó.
Quem cumeçô tudo na tribo foi Edite20. Lá num tinha nada, era só mato. Mas
dispôs que ficou sem marido levou seus fios tudo prá lá. Então fez umas
taperazinha e foi arrumando, dispôs começo a fazer cesta e bonecas de
palhinha pra pode vender e dá de cumé pra todo mundo (APOEMA, 2011).
– É verdade que quando se casa com alguém de fora não pode ficar na
Aldeinha? Por que isso?
Tem uma meia verdade ai. Se se juntar com arguém de fora, pode ser que
essa pessoa já tenha casa, trabalho e tudo mais, como é que vai largá tudo
pra morar na Aldeinha? O que acontecia bem antes era que não tinha espaço
aqui, intão se casasse fora fosse morar fora também. Mas sou da opinião que
se puder casá com os daqui melhor. É gente nossa, gente que a gente conhece
(UPIARA, 2011).
– Mas essa decisão com relação aos casamentos é por uma questão cultural?
Não, eu acho que não. As pessoas até fala que é para num misturar mais o
sangue com quem não é índio, mas num é bem assim não. É mais pela coisa
da moradia e do trabaío (UPIARA, 2011).
21
UPIARA: nome de origem indígena que significa: o que luta contra o mal.
22
Termo utilizado por Maria do Rosário Carvalho, 1988 e João Pacheco de Oliveira, 1999.
47
Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza
que essa pessoa já tenha casa, trabalho e tudo mais, como é que vai largá tudo pra
morar na Aldeinha?” A investigação proposta não se pauta na defesa de uma
territorialização ou desterritorialização cultural, mas sim, em apresentar os resultados de
uma pesquisa que intentou contribuir para afirmação das memórias e das tradições dos
povos que viveram na Missão do Sahy, por isso nos capítulos seguintes serão retomadas
as reminiscências da Aldeinha, do seu artesanato com cipó e a apresentação das suas
lendas, fatos e festas, permeado pelos Estudos Culturais. Lembrando ainda que, mesmo
os fatos históricos não serão tratados como verdades tácitas, ademais, serão
compreendidos como uma possibilidade de autorreconhecimento, de recursivamente
produzir a todos num plano cultural, transformando novos tipos de sujeito. Por esse foco
é que se entende a verdade acadêmica entremeada pela verdade poética de Carlos
Drummond de Andrade:
Verdade23
23
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 35. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. 276 p.
52
CAPÍTULO 2
MAMÓPA REJU: CAMINHOS E IDENTIDADES DOS POVOS
TRADICIONAIS DAS TERRAS D’ALÉM MAR
A expressão guarani Mamópa Reju que significa “de onde você vem” remete aos
53
processos históricos dos povos tradicionais que habitavam as Terras D’além Mar, como
também possibilita questionamentos acerca da constituição identitária dos povos que
foram denominados índios. Denominação que se vale da mesma lógica que Cristovão
Colombo utilizou para caracterizar os habitantes do continente americano descoberto
em 12 de outubro de 1492.
Apesar das nuances que envolvem as caracterizações dos povos encontrados por
Colombo, o interesse parte de um recorte histórico voltado aos povos da Terra de Vera
Cruz avistados pela tripulação de Pedro Álvares Cabral em 23 de abril de 1500. A
propósito, é importante destacar que os registros do escrivão da frota – Pero Vaz de
Caminha – nomeiam a nova terra de diferentes formas e descrevem minuciosamente a
chegada e o encontro:
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira
das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de
terra, estando da dita Ilha, segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670
léguas. (...) E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam
furabuchos. Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra!
A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de
outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos;
ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A
Terra de Vera Cruz! E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos
em direitura à terra, indo os navios pequenos diante (..). E chegaríamos a esta
ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. E dali avistamos homens que
andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos
que chegaram primeiro. (CARTA, 1963. grifos nossos)
Com relação ao nome das novas terras, Laura de Melo e Souza (2002) afirma
que já existia um nome à procura de um lugar. O nome Brasil e suas variantes – Bacir,
Bracil, Brazille, Bersil, Braxili, Braxill, Bresilge – já designavam umas três ilhas,
assegura a autora que “primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado”
(SOUZA, 2002, p. 7).
A Carta de Pero Vaz de Caminha lança denominações intermediárias à nova terra
chegando o Capitão-Mor a chamá-la de Monte Pascoal, em referência ao tempo Cristão
chamado Páscoa. Outra denominação que também tem viés religioso, para Laura de
Melo e Souza (1986), está relacionada a uma luta travada entre Deus e o Diabo 24. O
plano espiritual no contexto histórico da época se sustentava pelas reformas e pela
perseguição religiosa, da mesma forma era religiosa a linguagem e a forma de
denominar as terras conquistadas e descobertas.
24
Construções apresentadas no livro: O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia da Letras, 1986.
54
O percurso constitutivo dos povos da Terra de Vera Cruz é marcado por uma
atribuição de identidade aos nativos25. Para Paula Caleffi (2003, p. 21), desde os
primeiros contatos de Cristóvão Colombo com os nativos da América identidades foram
sendo atribuídas aos povos tradicionais. Esse processo por aqui é percebido já nos
primeiros registros que descrevem o contato do europeu com o nativo das terras
descobertas por Pedro Álvares Cabral.
Para melhor compreender esse processo de identidade atribuída, torna-se
necessário continuar se reportando aos primeiros contatos dos europeus com os
indivíduos que aqui habitavam quando da chegada da esquadra de Cabral e do
“achamento” do Novo Mundo (OLIVEIRA, 2004, p. 88).
É inegável que a Carta de Pero Vaz de Caminha oferece indícios importantes
25
Atribuição de identidade é tratada por Paula Caleffi (2003, p. 21) no trabalho “O que é ser índio hoje”.
O conceito será recorrente nas análises apresentadas.
55
26
No livro “Olhares Roubados: cinema, literatura e nacionalidade” a autora apresenta o capítulo “Um ol-
har na Câmara, outro na Carta”, onde refere-se ao relato de Pero Vaz de Caminha como um primeiro
roteiro cinematográfico do que viria ser o Brasil.
27
Segundo Márcio André Braga (2006) a identidade pessoal e a social são duas dimensões que
antropólogos e sociólogos se valem para tratar da construção da relação com o outro. Já a atribuição de
identidade é tratada por Paula Caleffi (2003, p. 21) no trabalho “O que é ser índio hoje”. Ambos os
conceitos serão recorrentes nas análises apresentadas.
56
partir de um parâmetro europeu, eis o terreno fértil para se atribuir uma identidade aos
novos povos “descobertos”. Nesse ínterim, surge a segunda vertente de análise da Carta
que permite aproximar aos relatos as dimensões28 pessoal e social dos processos
identitários.
Para interconectar a ação do olhar com as dimensões pessoal e social da
identidade, é preciso conceber que a primeira é a base sob a qual se constrói a
identidade social – étnica – de um grupo. Assim, a dimensão social da identidade é
“estabelecida sempre de forma relacional, visto que, para se estabelecer o eu, é
imperioso poder determinar as diferenças em relação ao outro” (BRAGA, 2006, p. 173).
Na Carta de Caminha, a todo o momento as diferenças são apontadas como forma de
afirmar a identidade europeia e questionar a identidade do outro, essa atitude gera uma
ação classificatória que se vale do seguinte percurso:
As determinações que estabelecem a identidade de cada um surgem na
interação com os demais agentes de um determinado campo, onde existam
relações sociais. Estas permitem aos participantes classificar os indivíduos a
partir de elementos que determinem o que eu sou e o que o diferencia em
relação ao que os outros agentes são. Servem de parâmetros para tal
classificação elementos biológicos, culturais, profissionais, sociais ou
quaisquer outros que sirvam para salientar as diferenças entre o eu e os outros
na interação social. O princípio de classificação que determina as identidades
pessoais remete-nos a uma característica importante das sociedades humanas,
perpassando culturas e tempos: a necessidade de nomear e representar os
sujeitos, estabelecendo sentidos e significados para esses sujeitos e suas
diferentes categorias (BRAGA, 2006, p. 173).
28
Essas dimensões são tratadas pelo o antropólogo Orlando Sampaio Silva, no livro “Eduardo Galvão:
índios e caboclos (2007), como identidade individual e coletiva.
57
Portanto, destaca que o pertencimento étnico se faz por meio dessa confluência
das dimensões identitárias, assim, enfatiza que o autorreconhecimento (dimensão
individual) é uma espécie de etapa para se chegar à “oficialização desse
58
benefícios próprios para os marinheiros, como Nicolau Coelho 29, mas vão sim “direto
para as mãos do legítimo e definitivo proprietário: ‘(...) Creio que o Capitão há de
mandar uma amostra para Vossa Alteza’” (CARTA, 1963).
Essa subserviência é repetida em vários trechos da carta, demarcando o domínio
do Rei, como exemplo pode ser destacado o seguinte trecho: “Senhor, posto que o
Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a
notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou...”,
e ainda: “Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro
dia de maio de 1500” (CARTA, 1963, grifos nossos)
Todo esse domínio da coroa portuguesa estava amparado pelas bulas inter
coetera, onde os Papas designavam ao Rei as dádivas dos súditos e “que dela faça o que
bem entender, ou que dela faça o que o Papa lhe tinha ordenado antecipadamente”.
(SANTIAGO, 2006, p. 234). Portanto, existia ainda um descolamento da identidade
social no plano religioso, pois, a determinação para as ações do Rei partiam antes do
clero.
O erro de percurso de Cristóvão Colombo, que tentava chegar às índias orientais,
mas acabou aportando na América, somado às caracterizações dadas aos nativos por
Pero Vaz de Caminha acabaram custando aos primeiros habitantes da Terra de Vera
Cruz um processo inicial de desconstrução de uma identidade social (étnica). Processo
esse que no seu curso parece ter seguido as determinações das bulas inter coeteras, pois
muitos dos bens materiais que pertenciaM aos indígenas foram confiscados:
(...) teve a questão do esbulho, onde algumas peças que eram de propriedade
da igreja católica, que no caso como pertenceu a igreja, pertenceu de fato a
comunidade, essas peças traziam um pouco da história da comunidade que
eram além de imagens sacras, tinham algumas outras como, como
confecções da época feito em crochê, mas com a expulsão dos religiosos tudo
foi confiscado (URUPÊS, 2011).
Faz-se valer não só a vontade do outro, mas também a apropriação da vida e das
produções sociais e materiais dos que não fazem parte da cultura dominante. Desfocam-
se os bens produzidos e as determinações sobre a vida alheia para outro plano de
decisão.
Quando não aceita como válida a cultura do outro e negam que outros povos
possam se organizar a partir de princípios que não os seus, atribui-se uma identidade a
29
Trata-se de um dos marinheiros a quem o capitão-mor incumbiu de fazer as primeiras explorações nas
Terras de Vera Cruz. Foi também primeiro a ter contato com os habitantes destas terras.
60
esses povos diferentes das suas, na maioria das vezes a identidade dos que têm maior
poder é imposta aos demais. Esse não reconhecimento das singularidades de povos que
se organizam diferentemente da lógica dominante recebe o nome de etnocentrismo.
Uma visão etnocêntrica surge quando a sociedade e a cultura materna do dominador são
consideradas como verdadeiras e únicas, sendo assim medida para todas as coisas.
Esse processo de generalização da condição indígena em detrimento da
diversidade que envolve esses povos contribui para a (des) construção da identidade do
“ser índio”. Essa desconstrução muito se deve ao imaginário que reveste o modo de
viver desses povos. Segundo João Pacheco de Oliveira (1999, p. 115), a “representação
quotidiana sobre o índio é a de um indivíduo morador da selva, detentor de tecnologias
mais rudimentares e de instituições mais primitivas, pouco distanciado da natureza”.
Cria-se uma categorização onde todo índio para ser de verdade precisa se enquadrar nos
parâmetros “selvagens”, não se pensa o indivíduo na sua especificidade étnica e
cultural.
Não se evidencia a dimensão pessoal da identidade, pois a homogeneização
impossibilita a percepção de parâmetros que diferenciem um indivíduo em relação ao
outro. Assim, ao tratar um indivíduo de determinada etnia como igual a outro de uma
etnia diferente, nega-se sua singularidade, ou seja, desconstrói a sua identidade pessoal.
Ao mesmo tempo, a identidade social acaba por incluir todos numa única classificação –
índios – ação que prima por diferenciar este grupo de outros na sociedade e não por
aglutinar elementos de identidade comuns, que, por sua vez, teriam que respeitar as
singularidades dos sujeitos que compõem um determinado grupo social (étnico).
A Carta de Pero Vaz de Caminha, no seu afã descritivo, quando interessa, trata
todos indistintamente, mas em se tratando das índias, com os olhos desprovidos do
pudor cristão e com suas palavras, decora o corpo feminino com estilo gracioso e com
vários trocadilhos:
(...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis,
com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão
altas e tão cerradinhas e tão limpas as cabeleiras que, de as nós muito bem
olharmos, não se envergonhavam.
(...) E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela
tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa
que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições
envergonhara, por não terem as suas como ela (SANTIAGO, 2006, p.
237).
(2009, p. 16) afirma que os relatos que existem sobre esses povos estão quase sempre
repletos de interesses e objetivos relacionados ao processo de conquista,
consequentemente, são forjados a partir de aspectos políticos e ideológicos. Nesse
sentido, a ótica cultural europeia prevalece nos relatos e, sendo assim, estes trazem de
forma explícita ou implicitamente uma gama de preconceitos, discriminações e
desconstruções de identidades pessoal e social.
30
Como o estudo da imagem do índio brasileiro não é temática principal desta pesquisa, estes aspectos
são aqui utilizados para caracterizar períodos e fatos históricos.
62
32
A palavra está sendo utilizada considerando as duas acepções, a primeira no campo da lógica, onde se
cruzam duas proposições e a segunda no sentido que segue: sf (alteração de premícia) Antigo direito dos
párocos de receberem uma certa parte das primeiras produções das terras.
65
seus antepassados e agora estão com a maracá 33 nas mãos, a significação deste momento
histórico é outra.
... nem todos obedeciam às imposições dos franciscanos, então teve algumas
resistências, no entanto que houve até genocídios, muitos genocídios aqui. E
poucos anos depois, se não me engano 5 anos depois, a mesma tribo foi
forçada a construir a comunidade de Missão do Sahy (URUPÊS, 2011).
Quando os branco de Portugal chegou aqui os índios tava tudo em paz. Mas
foi tanta cachorro atrás de caboco por esses mato da Missão que num teve
jeito, foi tudo prá chobata. Trabaió duro, de escrevo mesmo. Ainda quere
saber purque num tem índio de verdade aqui (UPIARA, 2011).
33
Nos rituais coletivos dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, do sul da Bahia, a maracá sempre está presente, seja nas
danças ou nas rodas de conversa, nesta última o momento de falar é quando se tem nas mãos esta pequena
cabaça oca ornamentada com penas e com pedrinhas dentro.
34
Beatriz Dantas, José Augusto Laranjeiras Sampaio e Maria do Rosário Carvalho, “Os Povos Indígenas
no Nordeste Brasileiro: Um Esboço Histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.), História dos
Índios no Brasil. São Paulo: FAPESP/SMC/Companhia das Letras, 1992.
66
35
Filósofo e matemático brasileiro (1855 – 1927). Defensor do Positivismo, a interpretação da realidade à
luz da doutrina comtiana, o levou a defender a abolição da escravatura, a proclamação da república, a
separação entre a Igreja e o Estado.
36
Von Ihering (1850 – 1930) foi médico, professor e ornitólogo teuto-brasileiro. Fundador do Museu
Paulista, dedicado à história natural. Foi também o criador do Jardim Botânico no Rio de Janeiro. Seus
estudos abrangeram várias áreas da história natural, tendo publicado sobre botânica, antropologia e
etnologia.
37
Ribeiro (1922 – 1997) dedicou-se as áreas de educação, sociologia e antropologia. Publicou vários
livros, vários deles sobre os povos indígenas.
68
22º, 49º, 109º, 129º, 176º, 210º, 215º, 216º, 231º e 232º, além do art. 67º do Ato das
Disposições constitucionais provisórias.
No campo educacional, as conquistas chegam à institucionalização de algumas
políticas. A Portaria Interministerial nº 559/MJ-MEC criou na pasta da Educação a
Coordenação Nacional de Educação Indígena e também garantiu aos índios o ensino
bilíngue (D.O. 17/4/1991). No ano seguinte foi instituído, pelo Secretário Nacional de
Educação Básica do MEC, o Comitê de Educação Escolar Indígena (CEEI). O
Ministério divulgou, em 1993, as “Diretrizes para a Política Nacional de Educação
Escolar Indígena”, durante o I Seminário Nacional de Educação Indígena (RICARDO,
1996, p. 71). Esses seminários ocorrem até hoje com a participação de diferentes etnias.
Esses avanços e conquistas não conseguiram por fim aos conflitos, só que agora
os inimigos dos índios têm outra face, são pessoas que invadem e exploram ilegalmente
as terras indígenas. Em 1984, um índio Kiriri de Mirandela/BA foi assassinado durante
o processo de luta pela demarcação das terras dos Kiriris. Em outra ação, no ano de
1987, quatro índios Yanomamis morreram num conflito com garimpeiros e três índios
Xakriabás, habitantes da reserva de Itacarambi (MG), foram mortos por grileiros. Em
1989, três índios Korubos, que viviam isolados entre os rios Ituí e Itaquaí (AM), foram
assassinados por seringueiros, caçadores e madeireiros, essas mortes impulsionaram a
criação da “Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB)” instituição que vem denunciando e combatendo as investidas contra os
índios.
Mas nem só por terras os indígenas são assassinados. Em 1997, o índio Galdino
Jesus dos Santos, da etnia Pataxó (Bahia), foi queimado vivo em Brasília, vindo a
morrer dias depois num hospital da cidade (RICARDO, 2000, p. 73).
Atualmente as investidas contra os indígenas estão muito ligadas ao modelo de
crescimento econômico brasileiro que prima pelos avanços tecnológicos e das
produções, essas prioridades acabam gerando uma competição injusta e desleal para
com os índios. Para a líder indígena Sônia Guajajara38, não se trata de serem “contra o
desenvolvimento do país, mas ele não pode crescer deixando seus filhos para trás nem
tão pouco desconsiderar os direitos existentes39”. Para fazerem frente aos ataques
sofridos, entidades indígenas, durante a Conferência do Clima das Organizações das
38
Vice Coordenadora da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e
Membro da Direção Nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
39
Discurso proferido na Conferência do Clima da ONU, em dezembro de 2012. Pronunciamento com
base na Carta Denúncia da APIB às Nações Unidas.
69
Movidos por essa Marcha, os irmãos Villas Bôas integraram o grupo chefiado
pelo Marechal Cândido Mariano Silva Rondon, que também contava com a presença de
membros como Heloísa Alberto Torres, então Diretora do Museu Nacional; Café Filho,
vice-presidente da República; Darcy Ribeiro e José Maria da Gama Malcher, diretor do
40
Ládio Veron, líder guarani kaiowá (MT); Gersem dos Santos Luciano Baniwa, antropólogo e líder
indígena, representante indígena no Conselho de Educação; Raoni Metuktire, líder dos Kayapó de Mato
Grosso teve seu primeiro com os irmãos Villas Bôas na década de 50, nos anos 80 ganhou notoriedade ao
lutar contra a instalação da usina hidrelétrica de Kararaô, no rio Xingu, hoje reeditada como usina de Belo
Monte. Megaron Txucarramãe, também é líder Kayapó e encampa a luta contra a instalação da usina de
Belo Monte, essa luta lhe rendeu a exoneração em outubro de 2012 do cargo de chefia que exercia no
Parque Indígena do Xingu. Hoje vários outros conhecidos e anônimos defendem suas causas.
70
41
A região é dividida em três partes: uma ao norte (conhecida como Baixo Xingu), uma na região central
(o chamado Médio Xingu) e outra ao sul (o Alto Xingu). Na parte sul ficam os formadores do rio Xingu;
a região central vai do Morená (identificada pelos povos do Alto Xingu como local de criação do mundo)
à Ilha Grande.
71
que encampam as lutas pelos seus povos. Tamanho foi o reconhecimento aos trabalhos
dos irmãos Villas Bôas que, em 08 de janeiro de 1975, quando foi noticiada a
aposentadoria destes, o Jornal do Brasil estampou em suas páginas: “No adeus dos
Villas Bôas, a orfandade de uma cultura” (MAGALHÃES, 2003, p.146).
Luta pela terra (yãykix pupi hãhãm) é uma frase da língua Maxacalí 42 que pode
ser bem aplicada para tratar a atual busca dos indígenas pelos seus direitos. Luta que
tem como centralidade a busca pela garantia de direitos territoriais, por outro lado, esta
luta vai de encontro às políticas que priorizam o crescimento econômico por meio do
avanço tecnológico e dos sistemas de produções.
A compreensão da luta pela demarcação dos territórios indígenas passa
necessariamente pelo conhecimento de alguns dados oficiais, mesmo que estes
apresentem disparidades, pois são estes que acabam balizando as políticas voltadas aos
povos tradicionais.
A inconsistência dos dados oficiais somada à inexistência de um censo
específico dificultam o conhecimento e reconhecimento de muitas comunidades
indígenas. Luciano Gersem Baniwa43 (2010) destaca que os dados captados por órgãos
como a Fundação Nacional de Saúde - FUNASA e Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE apresentam variações que vão de 450 mil a 700 mil indígenas. Ou
seja, os dados da FUNASA/SIASI/2009 registram 558.185 indígenas aldeados, já o
IBGE/2001 aponta 734.000 indígenas, vivendo ou não em aldeias.
Os dados demográficos, ao demonstrarem a redução do território indígena,
possibilitam a compreensão da luta pela legalização desses espaços, outrora ocupados
com liberdade pelos índios. Dados da FUNASA apontam que as 278 etnias indígenas
42
Dentre as línguas indígenas faladas no Brasil há uma parte do tronco linguístico denominado Macro Jê.
A partir de cada troco surge uma família linguística, como é o caso da Maxacalí. Essa língua é falada
pelas etnias que vivem nos estados da Bahia e de Minas Gerais, mais precisamente os Maxacalí, Pataxó e
Pataxó Hã-hã-hãe.
43
Gersem dos Santos Luciano Baniwa é líder indígena, representante indígena no Conselho de Educação
e autor do primeiro livro da série Via dos Saberes: “O índio brasileiro – O que você precisa saber sobre os
povos indígenas no Brasil de hoje”, produzida pelo projeto Trilhas de Conhecimento, a série Via de
Saberes é composta de quatro livros sobre os índios brasileiros e foi publicada em 2006, na Coleção
Educação para Todos, da Unesco e do MEC.
72
Para Pacheco de Oliveira (1998b), a Convenção 169 da OIT, no seu artigo 1º,
item 2, estabelece que “a consciência de sua identidade indígena (...) deverá ser
considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam
as disposições da presente Convenção (...) critério antropológico de auto identificação
dos grupos étnicos” (OLIVEIRA, 1998b, p. 282). Esta premissa é fundamental para o
atual processo de reconhecimento das comunidades tradicionais, pois traz
implicitamente a noção de respeito à alteridade e ao poder de autonomeação das
coletividades.
Amparados pelos princípios dos “Direitos Originários”, os indígenas travam
lutas que buscam superar a classificação identitária atribuída pelo colonizador, para,
mediante um processo de afirmação cultural, fortalecerem uma identidade politicamente
operante que, por sua vez, evidencie as diferenças étnicas presentes entre os povos
indígenas.
Por parte dos povos e comunidades indígenas, cada vez mais estes veem a
proteção e promoção dos seus direitos relegados a um plano secundário, pois todo
esforço do Brasil para se fixar como um país economicamente relevante no contexto
mundial se faz à custa de um discurso calcado na implementação de políticas de
inclusão social, ou seja, de superação da pobreza e das desigualdades. Mas, essas
políticas não contemplam as necessidade e demandas dos indígenas.
O Brasil adotou um modelo de desenvolvimento que tem se mostrado como
difícil de reverter, pois prioriza o crescimento baseado no processo de reprimarização da
economia, das comodities provenientes da indústria extrativa, sobretudo mineral, e do
agronegócio. É um modelo com forte sustentação na indústria extrativa
agroexportadora. Assim, requer necessariamente a ampliação de infraestruturas, ou seja,
da implantação de grandes empreendimentos, que inevitavelmente impactam terras e
territórios, a vida socioeconômica, física, cultural e espiritual dos povos indígenas e de
outras populações locais.
Para a manutenção desse modelo torna-se necessário fazer vistas grossas às
causas sociais, dentre elas as indígenas. Com essa atitude, o governo acaba se omitindo
74
e sendo conivente com a ofensiva aos direitos indígenas, praticada por meio de medidas
administrativas, legislativas e jurídicas antiindígenas nos diferentes poderes do Estado.
Para se compreender a luta pela terra e os enfrentamentos travados contra uma
política econômica que se interessa pelos territórios indígenas e suas riquezas (minerais,
hídricas, florestais, biodiversidade), é preciso conhecer as leis antiindígenas e as
medidas administrativas e jurídicas que vão contra pautas dos movimentos indígenas e
indigenistas da atualidade.
Um dos sustentáculos da política antiindígena é Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) 215/00. A proposta que se arrasta até os dias de hoje consiste em
transferir para o Congresso Nacional a competência de aprovar a demarcação das terras
indígenas. Para Cleber Buzatto45, a possível aprovação de proposta que transfere do
Executivo para o Congresso a prerrogativa de reconhecer terras indígenas pode impedir
a demarcação de cerca de 700 territórios indígenas, incluindo processos já em
andamento e ainda não iniciados. Completa dizendo que: “os povos indígenas já vivem
hoje em situação de extrema vulnerabilidade social e violência. Com a PEC, o
Congresso pode piorar ainda mais essa situação”46.
A admissibilidade da proposta foi aprovada pela Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ). O texto ainda precisa ser analisado por uma comissão especial antes de
seguir para o Plenário. A aprovação da PEC 215 - assim como da PEC 038/ 99, em
trâmite no Senado, põe em risco as terras indígenas já demarcadas e inviabiliza toda e
qualquer possível demarcação futura. O risco é grande, uma vez que o Congresso
Nacional é composto, na sua maioria, por representantes de setores econômicos
poderosos patrocinadores do modelo de desenvolvimento em curso.
Outro sustentáculo danoso aos indígenas está relacionado ao Projeto de
Mineração. Existe uma articulação da bancada ligada à mineração para aprovar o
Projeto de Lei (PL) 1610/96 que trata da exploração mineral em terras indígenas. A
relatoria em seu texto desconsidera as salvaguardas de proteção da integridade
territorial, social, cultural e espiritual dos povos indígenas, desburocratiza a autorização
da pesquisa e lavra mineral em terras indígenas, assim, abre caminho para uma
exploração centrada no lucro fácil.
No plano das medidas administrativas e jurídicas, o Governo Federal tem
45
Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Declaração dada durante ato político
em defesa dos direitos dos povos indígenas no Plenário 1 da Câmara dos Deputados em 04/12/2012.
46
Declaração dada durante ato político em defesa dos direitos dos povos indígenas no plenário 1 da
Câmara dos Deputados em 04/12/2012.
75
publicado nos últimos dois anos uma série de Decretos e Portarias contrários aos
Direitos indígenas. Na Carta Denúncia da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB) às Nações Unidas, os movimentos sociais indígenas denunciam as seguintes
ações:
Portaria 2498/2011 que objetiva a participação dos entes federados (Estados e
municípios) no processo de identificação e delimitação de terras indígenas;
ao editar esta medida, o governo ignorou o Decreto 1775/96 que institui os
procedimentos de demarcação das terras indígenas e que já garante o direito
do contraditório alegado para a criação desta Portaria.
Portaria 419/2011, que regulamenta a atuação do órgão indigenista, a
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em prazo irrisório, nos processos de
licenciamento ambiental, para facilitar a implantação de empreendimentos do
Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (hidrelétricas, mineração,
portos, hidrovias, rodovias, linhas de transmissão etc.) nos territórios
indígenas.
Portaria 303/2012 que busca estender para todas as terras indígenas as
condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Judicial
contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.888-Roraima/STF). O
Governo editou a Portaria mesmo sabendo que a decisão do STF sobre os
embargos declaratórios da Raposa Serra do Sol ainda não transitou em
julgado e estas condicionantes podem sofrer modificações ou até mesmo
serem afastadas pela Suprema Corte. A Portaria afirma que as terras
indígenas podem ser ocupadas por unidades, postos e demais intervenções
militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho
estratégico, sem consulta aos povos e comunidades indígenas e à FUNAI;
determina a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas que não
estiverem de acordo com o que o STF decidiu para o caso da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol; ataca a autonomia dos povos indígenas sobre os seus
territórios; limita e relativiza o direito dos povos indígenas sobre o usufruto
exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras indígenas assegurado
pela Constituição Federal; transfere para o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade o controle de terras indígenas, sobre as quais,
indevida e ilegalmente, foram sobrepostas Unidades de Conservação; e cria
problemas para a revisão de limites de terras indígenas demarcadas, que não
observaram integralmente o direito indígena sobre a ocupação tradicional.
(APIB, 2012)
CAPÍTULO 3
47
Foi um dos maiores antropólogos culturais brasileiros, é considerado como um dos fundadores da
antropologia científica no Brasil. Foi professor de Etnologia do Brasil na Universidade Federal do Pará
(1957) e na Universidade de Brasília (1963-1964). Seus estudos, mesmo sendo realizados nas décadas de
50, 60 e 70 ainda são muito utilizados não só por estudantes de antropologia, mas também por
museólogos, bibliotecários, educadores e comunicadores sociais em geral. Em 2007 o antropólogo
Orlando Sampaio Silva publicou o livro Eduardo Galvão: índios e caboclos, esta obre oferece subsídios
para compreensão de vários aspectos das populações indígenas.
80
pouco) sobre o que eles são hoje em dia” (GALVÃO apud SILVA, 2007, p. 222).
Formulações de Darcy Ribeiro também contribuem para a problematização da
questão relacionada aos processos identitários dos indígenas no Nordeste brasileiro. O
autor, quando trata a temática, refere-se aos “resíduos da população indígena do
nordeste” (RIBEIRO, 1970, p. 54). O antropólogo, fazendo uso de situações observadas,
chega a dizer que os povos com quem se deparou nas ilhas e barrancos do São Francisco
são “magotes de índios desajustados” (RIBEIRO, 1970, p. 56), isso porque, foram
submetidos a um processo de aculturação que os levou a utilizar símbolos de outras
culturas como sendo seus. Com tristeza aponta como exemplos o fato dos Potiguaras em
suas danças incorporarem instrumentos africanos — zambé e puitã — “acreditando
serem tipicamente tribais” (RIBEIRO, 1970, p. 53). Também afirma que os Xucurus
estavam altamente mestiçados com a população sertaneja local, tendo perdido “o idioma
e todas as práticas tribais, exceto o culto do Juazeiro Sagrado, se é que este cerimonial
fora originalmente deles” (RIBEIRO, 1970, p. 54).
Lançando mão de uma análise a partir dos pressupostos da atribuição da
identidade indígena (CALEFFI, 2003), é possível perceber que as primeiras
classificações dos povos tradicionais foram impostas sem levar em conta que esses
indivíduos ("índios") não constituem um único grupo étnico, muito menos uma raça.
Assim, as percepções que tiveram Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro, apesar de
procederem, no que tange à interferência de outras culturas dentre os índios, não pode
advogar na defesa dos índios como “raças puras”, conforme quiseram propagar as ações
e políticas coloniais.
De acordo com Paula Caleffi (2003, p. 22) “índios” referem-se às pessoas
integrantes de diferentes grupos étnicos com um longo histórico de luta contra a
marginalização imposta pelas políticas coloniais e depois nacionais e que inicialmente
tiveram uma identidade atribuída. Acolhendo essa significação, é possível se afirmar
que houve por parte dos primeiros europeus que mantiveram contatos com os indígenas
brasileiros uma negação dos aspectos culturais desses povos.
O processo de negação da condição indígena aparece também nas formas como
os colonizadores instituíam sua política voltada para o aldeamento. Segundo Jorge
Couto (1998, p. 42), “aos indígenas aldeados estavam vedadas as práticas tradicionais
que se mostrassem contrárias à moral cristã”. Dessa forma, existia um processo de
invalidação cultural dos nativos, pois manifestações que ferissem os dogmas dos
colonizadores deveriam ser eliminadas das práticas culturais. Uma das senhoras
81
Vale a pena buscar os laços das memórias de Apoema com os fatos históricos
para que se percebam as influências da cultura ocidental cristã na vida dos moradores
desse antigo aldeamento franciscano, e como os portugueses se valeram de ritos
religiosos para integrar os nativos à sua cultura. O primeiro laço é no campo
etimológico, penitente é uma designação dada aos religiosos da Ordem Terceira de São
Francisco.
O outro laço diz respeito ao ritual das penitências que, mesmo em diferentes
partes do mundo, ainda conservam os mesmos princípios e rituais. Em Juazeiro-BA,
este é um rito que alguns praticam, durante os 40 dias da Quaresma, da quarta-feira de
cinzas até a sexta-feira da Paixão.
Durante as noites, um grupo sai das proximidades da Igreja e percorre algumas
ruas da cidade rezando pelas almas dos mortos. Na caminhada ouvem-se as orações
como Ave Maria e os "ai de nós...", um lamento fúnebre que enche a noite. Os
82
chamados Penitentes vestem-se com lençóis brancos e são divididos em dois grupos: os
Alimentadores de Alma, que fazem orações pelas almas e chacoalham um instrumento
chamado matraca; e os Disciplinadores, que durante o ato de penitência se martirizam
com chicotes providos de lâminas na ponta, causando cortes por todo o corpo,
derramando sangue, com o objetivo de reduzir os pecados. As pessoas, espreitando por
detrás das janelas, assistem à procissão dos Penitentes, que só termina quando chega ao
cemitério, onde, envoltos pela escuridão, todos se lançam num profundo silêncio.
Ao ritual cristão das penitências se aproxima o que Kumari (2011) contou acerca
da Sentinela, estas sendo esta um velório, onde a guarda do corpo era feita dentro de
normas e ritos da igreja, sobretudo, com a força das Incelenças. Quanto a esta última,
trata-se das cantigas de guarda ou cantigas de sentinela, uma expressão musical típica
do Nordeste brasileiro, onde os enredos, geralmente, estão atrelados aos costumes
fúnebres. Mas a significação dada por Kumari a partir das suas memórias ganha uma
beleza cênica que transcende a orientação cristã do ato. Como faltaram detalhes aos
relatos fornecidos a esta pesquisa, buscou-se em outra fonte (DA PAZ, 2004) as
memórias reconstruídas há oito anos.
Aqui não tem mais os penitentes. Só se faz a imitação...porque foi proibido,
os padres proibiro. Agora em Juazeiro ainda se corta, mas aqui num é tanto
a proibição não tem quem tenha corage. (...) Agora os menino hoje eles só
imita num sabe? Eles veste aquelas mortallta e faz a procissão. Antes saia do
cemitero arrodiava a praça da igreja era bom demais aqui...nós rezava...Era
bom demais aqui, aquele povo tudo da antiga. Tinha um com a voz assim:
Vem, vem pecador
onde é que te esconde?
meu senhor te chama
e tu não me responde..
Essa caracterização do ritual cristão é para afirmar que estes e tantos outros
serviram para introjetar a cultura dos colonizadores dentre os nossos antepassados.
Nessa mesma linha, após lutas travadas pelo governo do Marquês de Pombal (1750 –
1777), dentre elas expulsão dos Jesuítas com o objetivo de integrar os índios aldeados a
então sociedade, os aldeamentos são extintos e os princípios de assimilação cultural
passam a ser utilizados no trato com a cultura indígena. Segundo este princípio, além da
negação da cultura indígena e a inserção desta na cultura colonizadora, faz-se necessário
“incorporar aos Próprios Nacionais as terras dos índios, que já não vivem aldeados, mas
sim confundidos com a massa de população civilizada” (DANTAS et al., 1992, p. 451).
Percebe-se que as ações do Marquês de Pombal estavam longe de ser
benevolências para os povos indígenas. Também não estão distantes das atuais ações
“neopombalinas”, que utilizam medidas legislativas para que as terras sejam
incorporadas a outros “próprios”, não mais o Estado, não mais os Próprios Nacionais.
Mas a tentativa assimilacionista não teve o êxito esperado, e espera-se que não o tenha
agora. Por outro lado, para Darcy Ribeiro (2004), a integração dos indígenas na
sociedade ocasiona uma transfiguração étnica, ou seja:
O processo pelo qual os tribais que se defrontam com sociedades preenchem
os requisitos necessários à sua persistência como entidade étnica, mediante
alterações em sua base biológica, em sua cultura e em suas formas de relação
com a sociedade e ambiente (RIBEIRO, 2004, p. 12).
controlar a produção dos meios de vida dos colonizados, assim, agem determinados em
não apenas tomar conta de, sentido básico de colo48, ou seja, não se importam apenas
com o cuidar, mas, sobretudo primam em mandar. Partindo dessas formulações, é
possível entender que “a colonização dá um ar de recomeço e arranque a culturas
seculares” (BOSI, 1992, p. 12).
Em meio a essas tentativas de negação, os grupos indígenas se afirmaram e
mantiveram sua identidade indígena. Darcy Ribeiro (2004) destaca ainda que mesmo
diante das tentativas de uniformização cultural, os povos tradicionais ainda
permaneceram índios. Não houve um processo de assimilação da cultura não índia, mas
sim uma acomodação entre os dois lados. O antropólogo considera que, por
conseguirem operar com condições mínimas para sua perpetuação, os indígenas
instauram um processo de resistência étnica e de autoafirmação cultural.
Indubitavelmente este processo de afirmação se dá permeado por uma luta
constante contra o preconceito advindo do imaginário acerca do índio brasileiro. Para o
antropólogo Guga Sampaio (2002), busca-se no índio o perfil do “bom selvagem”,
muitas vezes construído pela literatura que nega as condições dos índios reais:
A gente projeta a imagem do índio para o passado e para a imagem real, a
gente desautoriza os índios reais de carne e osso. E essa talvez seja a maior
expressão do preconceito, porque nós sabemos o que é índio e não os
próprios índios (SAMPAIO, 2002, p. 30).
histórias que resistiram nas danças e cantos, hábitos alimentares, no uso de artefatos e
adornos, na pintura corporal e na prática de rituais” (CAMUSO, 2011, p. 63).
A cautela ao abordar a temática é para que não haja uma profusão de noções –
índios emergentes, emergência étnica, invisibilidade indígena etc – a ponto de
naturalizar a condição de índios misturados por meio do conceito de etnogênese, ao
assumi-lo como um conceito que “abrange tanto a emergência de novas identidades
como a reinvenção de etnias já reconhecidas” (OLIVEIRA, 1999, p. 18). Todavia, a
mistura dos índios traz no seu bojo um problema que afeta várias comunidades, pois,
“ao serem destituídos de seus antigos territórios, não são mais reconhecidos como
coletividades, passam sim a serem referidos individualmente como remanescentes ou
descendentes” (OLIVEIRA, 1999, p. 24).
Essa é a problemática que envolve a comunidade da Missão do Sahy e oferece
subsídios para as análises da pesquisa ora apresentada. A miscigenação, “cruzamento”, a
“mistura” entre povos diferentes não podem ser naturalizadas pelos membros da
comunidade a ponto de considerarem que remanescem dos indígenas. Não! O ser
humano não pode se assumir enquanto sobra, resto, remanescente 49 de nada e nem de
ninguém. E essa visão está presente no (des)pertencimento dos membros da
comunidade.
Traços característicos existem poucos, até porque com a grande
miscigenação que houve você raramente vai encontrar, encontra alguns
casos, raros, por exemplo, tem uma família aqui que é desde o avô até o neto,
todos são característicos, a fisionomia realmente indígena, porém a cultura
deles não existe mais, acabou, porque com a vinda do branco do negro que
se misturou aos nativos, aos descendentes dos nativos daqui, então perdeu
totalmente a origem, então nós podemos que hoje nós só temos
remanescentes e muitos deles bem misturados, temos o cafuzo, o mameluco,
o mulato, tudo fruto dessa grande miscigenação que houve, até porque
quando foi fundada a comunidade Tijuaçu, que é um quilombo de
descendentes escravos, teve uma grande relação com Missão do Sahy, então
essa relação, esse cruzamento das duas comunidades resultou nisso daí, no
cafuzo, o descendente de índio com descendente de negro, então você poderá
ver, analisar, que a mistura é muito grande aqui na comunidade (URUPÊS,
2011).
o toré ele era uma coisa assim, mesmo só de caboco, desses caboco mesmo,
de oreia jurada, de flecha, dessas coisa, caboco mesmo. (...) então era
daquela parte (índio), e hoje é candomblé, candomblé já é outa parte
(APOEMA apud DA PAZ, 2004).
Lá em casa mãinha e voinha conta que nossos parente mais velho era índio,
de cabelo liso, vivia nu e tudo. Só que fala isso na escola, Deus me livre! É
mico na certa. Prefiro nem dizer que sou parenta desses ai (IBOTIRA, 2011).
49
Adj. m+f (de remanescer) Que remanesce; que sobra. Sm. Resto, sobejo.
87
50
Questões essas apresentadas na introdução desta dissertação.
51
Filósofo e antropólogo argentino radicado no México, pioneiro em estudos sobre o hibridismo das cul-
turas latino-americanas.
52
Essa afirmação encontra-se no início da introdução à edição de 2001, em espanhol, do livro Culturas
Hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
88
53
O autor trata especificamente da modernização da latino-americana, mas seus estudos são facilmente
transpostos para outros contextos.
89
Já uma menina das gerações mais novas, moradora da Aldeinha, tem a seguinte
significação do seu pertencimento étnico:
lá em casa muita gente trabalha junto com o cipó. Antes era mais, só que o
trançado muitas da veis num dava dinheiro, então teve gente que foi pra
Bonfim trabalha, outros foram pras pedreira de Campo Formoso. Mas meu
tio que fica na oficina sabe muita coisa dos nossos parente que era índio. Ele
disse que umas coisa do trançado os índios já fazia, se não como que nossos
bisâ, trisâ... sei lá o que, iria saber fazer o trançado. Ele sabe também fazer
coisa muita coisa de barro, isso sim era feito pelos índios. Até lá em casa tem
uns aguidá de barro (IBOTIRA, 2011).
A partir das hipóteses anteriores, o autor apresenta uma terceira, onde afirma que
ao se alterar a forma de olhar uma dada realidade, seriam obtidas respostas que iriam
além das questões culturais, possibilitando o entendimento também de processos
políticos, históricos, sociais e econômicos.
Nos estudos realizados, chega-se à compreensão de que o inverso também seria
possível, ou seja, se se partisse dos processos acima destacados teríamos um
entendimento mais amplo do processo de desconstrução da identidade indígena, bem
como da afirmação da identidade individual e coletiva destes povos.
Ao inserir na pesquisa as formulações acerca da hibridização, foi possível
compreender que na história dos índios brasileiros os aspectos particulares e
característicos destes povos foram sobrepujados em função de um padrão de vida
europeia. Portanto, quando se afirma que houve uma desconstrução da identidade
indígena, defende-se que a heterogeneidade multitemporal, ou seja, a coexistência entre
o tradicional e o moderno não foi considerada pelos colonizadores e nem é considerada
pelos que hoje negam os direitos e a cultura destes povos.
Por outro lado, quando os índios brasileiros absorvem os signos europeus,
negando suas identidades tribais como estratégia de sobrevivência – conforme destaca o
90
O pai dela, meu bisavô, que era caboco, tirava tudo quanta era doença das
pessoas sem precisar maltratar e nem cobrava dinheiro, mas dize que era
aduvinhão. Aduvinhava. Disse que um dia ele tava em casa e disse:
- Oh mulê.
Com a mulé dele, minha bisavó.
- O que é home?
54
A palavra empregada no sentido kardecista, empregada por Chico Xavier para expressar o “estado ou
lugar transitório por onde passam as pessoas que não souberam aproveitar a vida na Terra”. Guarda os
dois outros sentidos da palavra: primeiro por se tratar de uma dimensão que está "entre" a dimensão mate-
rial (ou física) e a dimensão espiritual (ou sutil).
91
- Venha aqui endereitar, alimpar aqui essa sala, ajeitar tudo que hoje vai vim
aqui uma visita, hoje vai ter uma visita e num vem vim boa, tá braba.
Aí a mulé disse:
- Tu já tá cum tuas coisa,
Lhe digo, isso foi cedo. Quando foi ali uma base de quato pá cinco horas,
quando oiaro a estrada lá vem aquela carroça de burro. Num tem essas
carroça de burro com aquelas armadia do burro puxando, pois bem assim, aí
disse que atrás era uma gaiola de madeira e ela dento: a mulé e a mãe na
frente, mais o marido. O marido tangendo o animal. Vinham de Jacobina
pra cá no lombo desse animal, a procura desse meu bisavô. Aí chegou e disse
que ele tava na janela né, disse que ele se dirigiu pra lá e falou:
- Boa tarde!
- Boa tarde! O senhor sabe me informar aqui onde é a casa de seu Fulano.
Ele deu uma risadinha e disse:
- Tá cunversando com ele, porque ? o que é?
- É porque eu trago aqui uma pessoa...
Ele disse:
- Não,...não precisa dizer não, eu já sei. Agora vá abrir a gaiola pa mandar
ela descer!
- Não, seu Fulano, tem que procurar uns home pa ajudar a tirar ela, porque
ela tá braba. Pa botar ai foi nun sei quantos home,
Ai ele disse:
- Apois ela vai descer sozinha.
Ai ele disse:
- Não, nun desce não...
Ele abriu a porterinha da gaiola, pegou no braço dela e disse:
- Desça!
Disse que ela assim espantada oiando po povo. Aí disse que desceu e já íava
uma esteira lá no pé do altar, botaro p'ela sentar ela sentou, aí quando foi de
noite dero logo um chá. Dero a ela e ela queta. Já foi uma alegria po marido
né.
E a mãe dela que acompanhou. Aí de noite, ele botou ela em tratamento, em
trabaio, oche! Minha fia disse que dormiu a noite toda, que não dormia.
Quando foi dez horas da manhã foi que ela acordou. Disse que a mãe já tava
preocupada, quando acordou disse que chamou:
- Mãe!
E a mãe:
- oi minha fia, o que é?
- Mãe cadê meu chinelo?
- Tá aqui.
- Cadê meu xale?
- tá aqui minha fia...
Que a mãe tinha trazido tudo ela botou o xale na cabeça e saiu prafora e
ficou oiando assim po mundo. Aí tinha um pé de mangueira, aí ela ficou
debaixo do pé de manga e perguntou:
- Oh mamãe onde é que eu tô? Onde é que nós tamos?
E a mãe disse:
- Nóis tamo na Missão
- Mamãe cadê meus fios?
- Tão lá em casa.
- Disse que já foi um alegria pa essa famia. Que ela tava doida né?
Passou três dia aqui, aí ela ficou boa, boa, quando foi embora, disse que o
marido dela disse assim:
- Seu Fulano quanto eu lhe devo?
- Nada! O que o senhor me deve é ir cuidar de sua mulé e de seus fios, ele
disse.
- Não não pode ser assim, o senhor vai mais eu, eu não tenho com que lhe
pagar.
Aí fizeram assim: o marido foi com o anima, a mulé, a mãe e o veinho foram
de trem
92
Quando chegou lá, dero tanta coisa a esse veinho, minha mãe dizia:
- Oi minha fia, meu avô chegou cum tanta coisa. Minha fia: requeijão,
farinha boa, beiju de tapioca daquele seco, tapioca seca.
Ainda trouxe de tudo ainda deu dinheiro, que eu num sei ainda o dinheiro
daquele tempo: tostão, dois mireis, essas coisas...
Ai disse que andou uns cumo è que chama? Do salvador...
Cumo é que chama... Minha mãe dizia ói minha fia chegou uns...uns...negoço
e macumbeiros de Salvador, de Feira de Santana, do Reconco.
Sim aí disse que chegou esses do Reconco e aí tomara todos os encantados
do meu bisavô...
Disse que ele passou três dia manifestado com um guezerrinho na mão, e os
oio fechado. Só pa riba e pra baixo. Estrada arriba estrada abaixo. Só:
e,ê,ê,ê,ê, indé, dê qui num dê qui num dá...
esses bens e colocá-los sob sua soberania” (CANCLINI, 2000, p. 188). Assim, a
identidade indígena não pode ser atribuída, pelo contrário, deve partir da autoafirmação
da condição étnica de cada um desses povos.
Por esse viés, compreender os aspectos identitários e as tentativas de afirmação
dos descendentes indígenas de uma região do semiárido passa necessariamente pela
compreensão da heterogeneidade multitemporal específica de uma dada localidade,
portanto, faz necessária a reconstrução da história e da presença desses povos na Bahia
e como surgem os debates em torno dos chamados “índios misturados”.
pecuária durante o século XVII. Nesse contexto, a população indígena que não foi
dizimada pela expansão acabou em aldeamentos missionários de ordens religiosas, a
exemplo dos jesuítas e dos franciscanos.
O outro contexto dos indígenas na Bahia tem como aspectos regionais a
localização na Mata Atlântica e no litoral ao Sul e Extremo Sul do estado. Nessa região
a conquista também se deu por meio de aldeamentos missionários, isso na segunda
metade do século XVI, mas, com uma lentidão que prolongou a ação missionária até as
décadas iniciais do século XX. Ainda no final do século passado, em 1926, havia dois
bandos indígenas autônomos no estado – Pataxó Hã-Hã-Hãe e Baenã55 – que acabaram
atraídos ao Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu do SPI (Serviço de Proteção aos
Índios), no atual município de Itaju do Colônia.
Ao se voltarem para essa análise histórica, os estudiosos constataram que à
época “os índios dos aldeamentos passam a ser referidos como índios ‘misturados’, com
essa caracterização eram-lhes dadas uma série de atributos negativos que os
desqualificavam e os opunham aos chamados índios ‘puros’ do passado” (DANTAS,
SAMPAIO e CARVALHO, 1992. p. 451).
Para compreender o percurso dos índios baianos, é preciso adentrar na discussão
da expressão “índios misturados”, mesmo porque a pesquisa considera essa perspectiva
como um dos elementos fundantes da (des)construção da identidade indígena. Os
estudos de Dantas, Carvalho e Sampaio (1992) revelam que nos Relatórios de
Presidentes de Província e em outros documentos oficiais o termo aparecia com
frequência. No entanto, podem ser percebidas algumas vertentes para o estudo da
questão, uma busca discutir a “mistura” como uma fabricação ideológica e distorcida, já
a outra afirma que para entender essa “mistura” é preciso entendê-la a partir da noção de
fricção interétnica.
A mistura enquanto fabricação ideológica tem sua base na organização política e
econômica da época. Devido ao alto grau de incorporação dos “índios do nordeste” na
economia e na sociedade, estes mantinham sob seu controle amplos espaços territoriais.
Isso ameaçava o controle das frentes expansionistas, portanto, para garantir a tutela
sobre os “índios”, os agentes colonizadores exerciam uma função de mediação
intercultural e política, assim tentavam disciplinar a convivência entre os dois lados.
55
Os Pataxó Hãhãhãe e Baenã pertencem a família linguística Maxakali e segundo Funasa (2010) são
cerca de a 2.375 indígenas da etnia na região. Já os Baenã era uma pequena tribo que recebeu essa
denominação pelos Pataxó, teriam sido, também, capturados à força e arrastados para o posto, lá
morrendo quase todos em pouco tempo.
95
uma primeira “mistura”. Uma segunda mistura vem pelas mãos dos missionários que
fixam colonos brancos dentro dos limites dos antigos aldeamentos, estimulando assim
os casamentos interétnicos: “A misturação na Missão foi grande. Quem era dos índios
casou com brancos. O nego de Tijuaçu casou com as índias daqui e foi misturando”
(UPIARA). Como a atividade econômica da região centrava-se nas fazendas de gado, e
estas não eram muito atrativas, os efeitos desses casamentos não tiveram maiores
implicações na “mistura” dos índios.
Quando o processo de “mistura” envolve as questões territoriais, a
(des)construção da identidade indígena é realizada com maior efetividade. Num
primeiro momento, o baixo fluxo migratório para o sertão fez com que as antigas terras
dos aldeamentos permanecessem sob o controle de uma população de descendentes dos
índios das missões. Mas, em 1850, com a Lei de Terras, ocorre um movimento de
regularização das propriedades, baseado na distribuição de terras às famílias vindas das
grandes propriedades ou das fazendas de gado. É nesse contexto que começam a ser
declarados extintos os antigos aldeamentos indígenas, sendo os seus terrenos
incorporados às comarcas e municípios em formação. Todo esse processo pode ser
compreendido como a terceira “mistura”, sendo esta limitadora de posses de terras e
responsável pelas marcas nas memórias e narrativas dos povos indígenas.
Portanto, a desconstrução da identidade dos povos tradicionais no Nordeste – e
da Bahia – tem como marca a destituição desses povos dos seus antigos territórios. Com
essa afronta não são mais reconhecidos como coletividades, mas referidos
individualmente como “remanescentes” ou “descendentes”. Eis a “emergência” de
novas identidades indígenas que se fazem por meio de pouca distintividade cultural, ou
seja, eis os “índios misturados”.
Olhar esse processo constitutivo tendo como base o movimento diaspórico nos
leva a afirmar que “a identidade cultural não é fixa, é sempre hibrida” (HALL, 2003, p.
432), seguindo essa mesma lógica o autor diz que “é justamente por resultar de
formações históricas especificas, de historias e repertórios culturais de enunciação
muito específicos, que ela pode constituir um ‘posicionamento’, ao qual nos podemos
chamar provisoriamente de identidade” (HALL, 2003, p. 433). Assim, a negação
histórica da condição indígena foi uma das propulsoras da (des)construção da identidade
desses povos, mas, à luz da diáspora é possível afirmar que esse processo de
desconstrução tem como característica a provisoriedade que permitirá o surgimento de
novas identidades.
97
da expulsão dos franciscanos pelos jesuítas que velhos, jovens e crianças disparam a
mesma hsitória: “Diz que esses zezuíta fugira pra lá, num sei como foi, eles sairo fugido
dasqui pa Jacobina. Derão vinte e quato horas pa eles saire daqui, pais é o povo tem a
mania de dizer que eles sairo por debaixo do chão” (KUMARI, 2011). Basta ter a
delicadeza de ouvir que logo disparam a Lenda do Túnel:
Pedra da Baleia, né, que foram, segundo a lenda existem alguns túneis que
eles foram os construtores desses locais, que eles fizeram as escavações, e qual
o objetivo dessas escavações? Era, como a área era muito acidentada, a
região toda é muito acidentada, ficava difícil trazer pedras do local, da
margem do rio pra comunidade Missão, pra o local onde existia loteamento,
então eles fizeram esse, essas escavações, esses túneis pra facilitar, ou seja, as
pedras que deveriam ser trazidas por cima, eram trazidas por baixo
(URUPÊS, 2011).
- Mas isso ai é mentira...diz que tem esse tune que vai daqui até Jacobina...
- Diz o povo que tem, agora se tem eu num sei, diz que os pode tinha que pegar
água da cachoeira ia pela túne...
- Tu num lembra onde foi que o finado Tarciso achou uma mina? Num foi aí
nesse túne? Num foi ai detrás do cemitério que ele cavou.., Diz que tem aí
debaixo do cemitério, agora se tem, eu não sei, se tinha ainda tem ninguém
Tapou..(risos)
- O povo diz que aqui nesta serra é uma serra muito rica, diz que tem
minério...eu não sei se isso é verdade não viu? (risos) antigamente dizia que
viram carneiro de ouro aí nessa serra, o povo via Já noite saindo, brilhando
dizem...e parece que já veio um engenheiro num sei quem foi..
- Ali abaixo da casa de d.Sinhá...então dizem que ali, veio duas pessoas do
Pernambuco atrás dessa boca desse túne, cavaro, cavaro aí e não sei o
que...acho que num acharo nada, eu sei dizer uma coisa, o finado Tarciso
arrumeou alguma coisa, sabe porque? Ele não tinha nada e depois disso ele
melhorou e muito e diz que quem arranca essas coisa não pode mais ficar no
lugar, e depois disso ele foi pra São Paulo e voltou, depois comprou casa boa
e tudo e foi embora, quem tira essas coisa num pode ficar no lugar e foro tudo
embora.
Outras versões da lenda do túnel são recorrentes na Missão do Sahy. Até existem
vídeos públicos, como o que segue abaixo, sobre o suposto local dos túneis.
104
O universo das lendas não para por aí. Outra contada e recontada na localidade é
a lenda da Mulher chorona. Apoema (2011), a guardiã das memórias narra mais essa
lenda:
... Eu quando vi a história da mulher chorona, minha mãe, nós morava
naquela casa ali nera? Ai minha mãe nós tava quebrando licuri. A gente
quebrava licuri até uma hora da madrugada. Aqui não tinha luz, era tudo no
candeeirínho. Ai minha mãe quebrando licuri e nós tirando né? Aí quando
foi nessa noite minha fia, lá vem aquela mulè chorona...
- Ô meu Deus, qu’é q’eu fiz meu Deus? Q’é q’eu fiz meu Deus, p'eu tá
sofrendo desse jeito.
Ai mãe disse:
- Cala a boca, fiquem calada..
Ai nós comecemo a ficar com medo né? Ai mãe disse:
- Não fique com medo não, fique ai todo mundo caladinho dexe ela passar.
Aí nós ficamo. Mas menina eu tremia de medo. Aí mãe, é assim mesmo, aí ela
passou bem na frente da nossa casa...
- Meu Deus, q'é q'eu fiz. Meu Deus...
Oia, chega me arrupeuio toda...
Ai morava um pessoal aqui que tava fazendo a estrada né? E eles ficar
hospedado numa casa que tinha ali na esquina, um bando de rapaz e
senhoras né? Ai quando foi um dia um disse assim:
- Se eu vê essa mulher chorando eu vou me levantar e vou ver o que é...
Aí quando foi uma noite, diz que ele levantou, os outros brigando com ele
né?
-Fulano deixa, num vai pra lá não. Que que tu vai fazer Ia?
Assim, fica a crença de que foi possível ir ao cerne do que a pesquisa propôs.
Diante da realidade estudada e das construções teóricas de pesquisadora me fiz sujeito,
tendo minha identidade cultural modificada durante a investigação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após transitar pela história e pelas narrativas dos índios no Brasil, na Bahia e na
Missão do Sahy, é possível afirmar que durante a pesquisa a vertente de cultura não foi
empregada como “algo dado, posto, algo dilapidável” (CUNHA, 2009, p. 239). Pelo
contrário, por ter se proposto a olhar as interferências na constituição das identidades
cultural e coletiva de um grupo de descendentes indígenas, a opção foi pensar a
107
Por esse viés de análise e para fugir da perspectiva de cultura ensimesmada, foi
preciso assumi-la como “algo constantemente reinventado, recomposto, dinâmico,
investido de novos significados” (CUNHA, 2009, p. 239). Por essa ótica, foi criada uma
inter-relação entre os processos de atribuição de identidade aos indígenas e as
proposições acerca do hibridismo e da diáspora. Outros conceitos, conjecturas e
proposições orbitaram as discussões, mas no centro para o qual todos convergiam estava
um ser ocultado, culturalmente e negligenciado pelo homem branco: os índios.
Já os registros das narrativas, compilados através dos encontros dialógicos,
permearam toda a análise. Eles serviram não só para caracterizar a Missão do Sahy, mas
também para exemplificar como os colonizadores efetivavam a atribuição/(des)
construção das identidades durante o período das Santas Missões. Sendo as Missões
organizadas sob o pretexto da Fé, atacavam as identidades originais e atribuíam aos
índios novas identidades, ou seja, no Brasil e na Missão do Sahy, amparados pela lógica
cristã, agiam na Terra de Deus, transformando índios em não-índios.
109
56
Conforme conceituada no capítulo 3, página 100.
57
Como as narrativas dos descendentes revelam as identidades atribuídas ao índio e, identificando-as, pos-
sibilitam a instauração de um processo de constituição das identidades individual e coletiva?
58
Buscar a relação dos episódios de atribuição/(des)construção da identidade dos indígenas com os pro-
cessos de misturação étnica e hibridismo cultural.
110
Ele sabe também fazer coisa muita coisa de barro, isso sim era feito pelos
índios. Até lá em casa tem uns aguidá de barro (IBOTIRA, 2011).
111
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SPIX, Von Baptist J.; VON MARTIUS, Carl F. P. Viagem pelo Brasil. São Paulo,
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VILLAS BÔAS, Orlando; VILLAS BÔAS, Cláudio. Xingu: os Índios e seus Mitos. São
Paulo: Editora Edibolso, 1975.
FONTES ORAIS
APOEMA: nome de origem indígena que significa: aquela que vê mais longe.
Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a
popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e educacional",
2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.
AIYRA: nome de origem indígena que significa: filha. Entrevista concedida aos
membros do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a popularização das ciências num
contexto de diversidade social, cultural e educacional", 2011. SOUZA, Leila Damiana
A.S.
UPIARA: nome de origem indígena que significa: o que luta contra o mal. Trabalha
com artesanato de cipó na comunidade conhecida como Aldeinha, fundada por sua mãe.
Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a
popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e educacional",
2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.
IBOTIRA: nome de origem indígena que significa: flor pequena. Tem 13 anos e reside
na Aldeinha. Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo Ciência na
docência: a popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e
educacional", 2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.
ANEXOS