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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS


PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CULTURA E SOCIEDADE

MISSÃO DO SAHY: Hãm ha Topa, yãymaih xix ayuhuk


(Terra de Deus, índios e não-índios)

por

LEILA DAMIANA ALMEIDA DOS SANTOS SOUZA

Orientador: Profº. Dr. Djalma Thürler

Salvador – BA
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CULTURA E SOCIEDADE

MISSÃO DO SAHY: Hãm ha Topa, yãymaih xix ayuhuk


(Terra de Deus, índios e não-índios)

por

LEILA DAMIANA ALMEIDA DOS SANTOS SOUZA

Orientador: Profº. Dr. Djalma Thürler

Dissertação apresentada ao Programa


Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e
Ciências como parte dos requisitos para
obtenção do grau de Mestre.

Salvador – BA
2013
Sistema de Bibliotecas da UFBA

Souza, Leila Damiana Almeida dos Santos.


Missão do Sahy : Hãm ha Topa, yãymaih xix ayuhuk (Terra de Deus, índios e não-índios) /
por Leila Damiana Almeida dos Santos Souza. - 2013.
129 f.: il.

Inclui anexos.
Orientador: Prof. Dr. Djalma Thürler.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e
Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2013.

1. Identidade social. 2. Índios - Genealogia. 3. Diáspora indígena. 4. Fusão cultural.


I. Thüler, Djalma. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Professor Milton Santos. III. Título.

CDD - 306.4
CDU - 316.72/.73
LEILA DAMIANA ALMEIDA DOS SANTOS SOUZA

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Profº. Dr. Djalma Thürler
Orientador (UFBA)

_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marinyze das Graças P. de Oliveira
Examinadora Interna (UFBA)

_____________________________________________
Profº Dr. Paulo César Souza Garcia
Examinador Externo (UNEB)

Salvador, 10 de abril de 2013.


TERMO DE APROVAÇÃO

LEILA DAMIANA ALMEIDA DOS SANTOS SOUZA

MISSÃO DO SAHY: Hãm ha Topa, yãymaih xix ayuhuk


(Terra de Deus, índios e não-índios)

Aprovada em: 10/04/2013

ORIENTADOR: Profº. Dr. Djalma Thürler

Salvador - BA
2013
Dedico a você, Kleber Peixoto de Souza,
Mesmo com mil palavras
não há como lhe agradecer pelo companheirismo.
Então economizo nas letras, para engrandecer minha gratidão:
muito obrigada por tudo.
AGRADECIMENTOS

Ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo de Deus, e a Maria Santíssima, fonte de luz e


força.

Assim abraço fraternalmente:


Meus filhos, Luiz Kleber e Emanuel Luiz, pela compreensão nos momentos de
ausência e pela torcida.

Meus pais Luz José e Dinacy Almeida pelas mãos que cuidam e afagam em todos os
momentos necessários. Os meus irmãos Luiz José, Luiz Carlos e Luciana, aos
sobrinhos Luiz Neto e Lorena, a cunhada Jamile Almeida e o cunhado Caetano pela
corrente de oração e energias positivas que revigoraram e me levaram adiante.

Os bolsistas do Pibid/Univasf/Senhor do Bonfim, sem o compromisso e dedicação de


vocês essa caminhada seria mais difícil. Obrigada!

Os moradores da Missão do Sahy e da Aldeinha que de forma tão acolhedora


contribuíram para esse trabalho.

O meu orientador Djalma Thürler, pela confiança, paciência e pelas palavras sempre
doces.

À professora Marinyze Prates Oliveira e ao Professor Paulo César Garcia pelas ricas
contribuições dadas no momento da qualificação. A partir daquele dia a dissertação e
eu fomos outras.

Os professores (as) do Programa, pelas possiblidades de conhecer outra perspectiva


teórica que mudou a minha forma de conceber e fazer educação.

Susana Couto Pimentel, Pró-reitora de Graduação da UFRB, grande amiga e exemplo


profissional, agradeço pelo incentivo, puxão de orelha para concluir logo...

À Nelma Barbosa, querida amiga, incentivadora e tradutora.

Os colegas do Programa e de trabalho, pelo impulso que deram ao perguntar-me:


quando defende? Já terminou?
Um Índio
(Caetano Veloso)

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante


De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante

Depois de exterminada a última nação indígena


E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada, das mais avançadas, das tecnologias

Virá, impávido que nem Muhammed Ali, virá que eu vi


Apaixonadamente como Peri, virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee, virá que eu vi
O axé do afoxé, filhos de Ghandi, virá

Um índio preservado em pleno corpo físico


Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro
Em sombra, em luz, em som magnífico

Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico


Do objeto, sim, resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará, não sei dizer
Assim, de um modo explícito

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos


Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio.
RESUMO

Este trabalho versa sobre os processos identitários de um grupo de descendentes indígenas da


comunidade Missão do Sahy, distrito do Município de Senhor do Bonfim - BA. Foi realizada
uma retomada histórica onde se buscaram aspectos que indicassem uma atribuição de
características culturais aos descendentes de índios. O estudo da historiografia, juntamente
com as narrativas orais dos moradores, voltou-se para os primeiros contatos dos europeus com
os povos tradicionais brasileiros, passando pela situação dos índios no nordeste e na Bahia.
Utilizamos formulações epistemológicas acerca da “misturação dos índios”, do hibridismo
cultural e da diáspora. O enquadramento teórico ladeado pelo estudo de caso objetivou
analisar a partir das narrativas como os processos de atribuição da identidade conduziram o
(não) pertencimento étnico dos descendentes indígenas da Missão do Sahy. Foram utilizados,
entre outros, autores como: Da Paz, Machado, Pacheco de Oliveira, Paula Caleffi, Canclini,
Homi Bhabha e Stuart Hall. As análises qualitativas do estudo de caso foram possibilitadas
pela relação dialógica entre pesquisadora e objeto de estudo a partir da valorização das
respostas obtidas, assim, foi possível construir a imbricação da historiografia, dos
pressupostos teóricos e das narrativas orais desde o primeiro capítulo do trabalho. Os
resultados revelaram que aos indígenas diversas identidades foram atribuídas em diferentes
épocas e contextos, essa atribuição gerou uma desconstrução das identidades que se deu por
meio de um processo de “misturação” e pelo hibridismo cultural. Por outro lado, a luta e a
emergência de grupos indígenas apontavam para a existência de um processo de constituição
de identidades individual e coletiva, conquanto as investigações apontaram que também na
Missão do Sahy esse processo ocorreu (ocorre). Foi por meio das formulações acerca da
diáspora que se chegou à compreensão de que as novas identidades no plano cultural vêm se
constituindo numa dinâmica de produção e autoprodução, onde os descendentes assumem não
só o seu pertencimento, mas também buscam meios para se afirmarem como comunidade
descendente dos índios Cariri e Paiaiás.

Palavras-chave: Descendentes Indígenas. Diáspora. Hibridismo. Identidades.


RÉSUMÉ

Ce travail s´agit de l´investigation sur les processus identitaires d´un groupe de descendants d
´indigènes de la communauté appelée Missão do Sahy, dans un petit village situé dans la ville
de Senhor do Bonfim, à l´état de Bahia, Brésil. Nous avons fait une description de les plus
importantes moments de cette histoire, oú on a remarqué des aspects qui dénote l´attribution
des caractéristiques culturelles aux descendants d´indigènes. L´étude de l´historiographie,
avec les narratives orales des habitants, a mise-en-relief les premiers contacts des européens
avec les peuples traditionnels brésiliens, notamment sur la situation des indigénes de la región
Nordeste et de l´etat de Bahia. Nous avons utilisé de la pensée épistémologique de la “mixage
des indigènes”, de l´hybridité culturelle et de la diaspora. La base theorique accompagné par l
´étude de cas, a eut le but d´analyser, apartir des narratives, comment les processus d
´attribution de l´identité ont conduit le (non) appartenance éthnique des descendants indigènes
de la Missão do Sahy. Nous utilisons les contributions theoriques de Da Paz, Machado,
Pacheco de Oliveira, Paula Caleffi, Canclini, Homi Bhabha e Stuart Hall, parmi d´autres. La
realisation d´analyses qualitatives de l´étude de cas ont été possible à cause de la relation
dialogique entre la chercheuse et l´objet d´étude apartir d´une valorisation de tous les réponses
reçues. De cette façon, nous avons fait l´imbrication de l´historiographie, de la base théorique
et des narratives orales depuis le premier partie du travail. Les resultats ont revelé que
plusieurs identités étaient attribuée aux indigènes pendant des différentes époques et
contextes. Cette attribution a creé une (dé)constrution des identités à travers d´un processus
de “mixage” et par l´hybridisme culturelle. Par contre, la lutte et l´emergence des groupes
indigenes ont souligné l´existence d´un processus de constitution d´identités au niveau
individuel et collectif; cependant, l´investigation a montré que ce processus est arrivé (et
arrive) aussi dans la Missão do Sahy. Il était à travers des réfléchissements sur la diaspora
que ont a compris que les nouvelles identités au plan culturelle sont construit dans une
dynamique de production e auto-production, oú les descendants affirment pas seulement leur
appartennance, mais ils cherchent aussi des moyens pour s´affirmer comme une communauté
descendent des indigènes Cariri e Paiaiás.

Mots-Clés: Descendants d´indigènes. Diaspora. Hybridisme. Identités.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ANAÍ – Associação Nacional de Apoio ao Índio
APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
CBHE – Congresso Brasileiro de História da Educação
CCJ – Comissão de Constituição e Justiça
CEEI – Comitê de Educação Escolar Indígena
COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
DOU – Diário Oficial da União
FUNAI – Fundação Nacional dos Índios
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHAC – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Nacional
ME – Minerais Energéticos
MI – Minerais Metálicos
MRI – Rochas Industriais
OFM – Ordem Franciscana Menor
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONU – Organizações das Nações Unidas
PEC – Proposta de Emenda à Constituição
PIBID – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
PINEB – Programa de Pesquisas sobre os Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro
PL – Projeto de Lei
PÓS-CULT – Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade
RH – Recursos Hídricos
SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
UFBA – Universidade Federal da Bahia
UFRB – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
UNIVASF – Universidade Federal do Vale do São Francisco
LISTA DE FIGURAS

Figura 01 Estatua em Biotita, fixada na Missão do Sahy....................................... 28

Figura 02 Território de Identidade – Piemonte Norte do Itapicuru...................... 30

Figura 03 Localização do Rio de Contas e Rio São Francisco.............................. 31

Figura 04 Capa do Vídeo da Entrevista sobre a Missão do Sahy.......................... 33

Figura 05 Distância entre Missão do Sahy e Tijuaçu............................................ 38

Figura 06 Samba de Lata/Tijuaçu.......................................................................... 39

Figura 07 Negro Liberto Tijuaçu. Capa de Vídeo da Entrevista sobre Memórias. 40

Figura 08 Cemitério de Missão do Sahy................................................................ 43

Figura 09 Muro que separa cemitério e convento.................................................. 43

Figura 10 Artesanato da Aldeinha – Sofá.............................................................. 50

Figura 11 Artesanato da Aldeinha – Bonecos........................................................ 50

Figura 12 Artesanato da Aldeinha – Ateliê............................................................ 50

Figura 13 Capa do Vídeo sobre Lenda do Túnel................................................... 103

LISTA DE QUADROS

Quadro 01 Registro de povos indígenas.................................................................. 50

Quadro 02 Terras indígenas no Brasil Superfície do Território Nacional............... 72


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................... 14
Porquês, quereres e fazeres.............................................................................. 14
Caminhos, desafios e descobertas: eis que surgem os elementos da
pesquisa............................................................... .......................................... 18

CAPÍTULO 1
HÃM MÕNÃYXOP HÃ MÕKPUTOX (Terra dos descendentes dos antepassados):
UM ENCONTRO COM A HISTÓRIA DA MISSÃO DO SAHY............................. 28
1.1 Missão do Sahy: entrelaçando a história, narrativas e identidades.......... 31
1.2 Aldeinha: espaço de (re)construção étnica e social.................................. 42

CAPÍTULO 2
MAMÓPA REJU: CAMINHOS E IDENTIDADES DOS POVOS
TRADICIONAIS DAS TERRAS D’ALÉM MAR................................................... 52
2.1 Índios no Brasil: desconstruções e resistências..................................... 61
2.2 Yãykix pupi hãhãm: a atual face dos índios brasileiros........................... 71

CAPÍTULO 3
DESCONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA: EM FOCO OS INDIOS
DO NORDESTE E DA MISSÃO DO SAHY.............................................................. 78
3.1 Uma Compreensão para Além do Local: hibridização cultural dos povos
indígenas.............................................................................................. 87
3.2 Índios na Bahia: percursos, misturas e diásporas..................................... 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 107

REFERÊNCIAS........................................................................................................... 112

FONTES ORAIS........................................................................................................ 118

ANEXOS................................................................................................................... 119
14

INTRODUÇÃO

Porquês, quereres e fazeres...

Este não é um trabalho de etnóloga, antropóloga ou mesmo historiadora. Trata-se


de uma inquietação inicial que levou uma educadora a adentrar num universo onde os
povos indígenas e seus descendentes sofrem em grande escala um processo de
estigmatizações e privações culturais.
Há mais de uma década o Brasil ultrapassou o simbólico número 500. Um
número que trouxe consigo todo um discurso de reconhecimento e reparação social para
com os primeiros habitantes da “Terra Chã e Formosa”, da Terra da Santa Cruz. Era o
advento dos 500 anos de descobrimento, mas o quê se comemorava? Os primeiros
contatos dos portugueses com os nativos? A abertura para iniciar uma jornada secular de
exploração do homem e dos recursos necessários à produção social da vida?
Prestes a completar 513 anos do dia em que a tripulação de Pedro Álvares
Cabral avistou os primeiros nativos, comemorar-se-á também o quingentésimo décimo
terceiro aniversário da negação da identidade destes povos: “Parece-me gente de tal
inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto
que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências” (CARTA, 1968, p.
10).
Abria-se à frente um enorme labirinto onde os povos tradicionais foram
colocados e junto com eles um bombardeio de informações culturais que
desconsideravam suas vidas e o modo de viver. As identidades dos nativos foram logo
sendo atribuídas de acordo com os olhos e a intenção dos colonizadores, como destacou
Caminha: “não duvido que eles se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé”;
“Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”; “os gentis”; “os
selvagens”. (CARTA, 1963, passim)
O processo de exploração de novas terras levou os europeus a adentrarem em
territórios muitas vezes desconhecidos. Na tentativa de chegar às Índias Orientais, uma
das esquadras portuguesas – a de Cristóvão Colombo – acabou aportando em território
que, posteriormente, seria conhecido como América ou Índias Ocidentais. Então,
somando as “descobertas” de Colombo com as significações dadas aos nativos por Pero
Vaz de Caminha, a resultante foi uma classificação homogeneizante que atribuiu
15

indistintamente aos habitantes da costa sul-americana o nome “índio”.


Ao tratar do modo de perceber e atribuir significados ao outro, torna-se oportuno
evidenciar que os indígenas sempre tiveram um olhar de desconfiança para com o
branco. O índio Ailton Krenak no relato “O Eterno Retorno do Encontro 1”, afirma que
as narrativas antigas, de mais de quinhentos idiomas diferentes, só na região da América
do Sul, apontavam que seus antepassados já sabiam do contato com o homem branco
mesmo antes de ele acontecer:
Na história do povo Tikuna, que vive no rio Solimões, na fronteira com a
Colômbia, temos dois irmãos gêmeos, que são os heróis fundadores desta
tradição, que estavam lá na Antiguidade, na fundação do mundo, quando
ainda estavam sendo criadas as montanhas, os rios, a floresta, que nós
aproveitamos até hoje... Quando esses dois irmãos da tradição do povo
Tikuna, que se chamam Hi-pí - o mais velho ou o que saiu primeiro e Jo-í -
seu companheiro de aventuras na criação do mundo tikuna, quando eles ainda
estavam andando na terra e criando os lugares, eles iam andando juntos, e
quando o Jo-í tinha uma ideia e expressava essa ideia, as coisas iam se
fazendo, surgindo da sua vontade. O irmão mais velho dele vigiava, para ele
não ter ideias muito perigosas, e quando percebia que ele estava tendo
alguma ideia esquisita, falava com ele para não pronunciar, não contar o que
estava pensando, porque ele tinha o poder de fazer acontecer as coisas que
pensava e pronunciava. Então, Jo-í subiu num pé de açaí e ficou lá em cima
da palmeira, bem alto, e olhou longe, quanto mais longe ele podia olhar, e o
irmão dele viu que ele ia dizer alguma coisa perigosa, então Hi-pí falou:
"Olha, lá muito longe está vindo um povo, são os brancos, eles estão vindo
para cá e estão vindo para acabar com a gente". O irmão dele ficou apavorado
porque ele falou isso e disse: "Olha, você não podia ter falado isso, agora que
você falou isso você acabou de criar os brancos, eles vão existir, pode
demorar muito tempo, mas eles vão chegar aqui na nossa praia". E, depois
que ele já tinha anunciado, não tinha como desfazer essa profecia (NOVAES,
1999, p. 35).

Olhares diversos acabam por criar representações do outro tendo como


parâmetro as percepções que se tem acerca de si. Assim, ao pensarmos a representação
da diferença, esta, como afirma Homi Bhabha (1998, p. 20), “não deve ser lida
apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos
na lápide fixa da tradição”. Portanto, não é o pertencimento étnico de um indivíduo ou
grupo que deve determinar os aspectos culturais do outro, pois, “a articulação social da
diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que
procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de
transformação histórica” (BHABHA, 1998, p. 20).
Portanto, a dimensão histórica que compõe o presente estudo não se justifica
pela simples necessidade de um encadeamento temporal dos fatos, pelo contrário, o que
1
A narrativa de Ailton “O Eterno Retorno do Encontro” foi publicada anteriormente em: Novaes, Adauto
(org.), A Outra Margem do Ocidente, Minc-Funarte/Companhia das Letras, 1999.
16

se deseja é olhar o passado e perceber as transformações ocorridas no campo das


subjetivações, individual e/ou coletiva. Importa perceber não só como as identidades
foram sendo atribuídas historicamente aos indígenas, mas conhecer os "entre-lugares" e
as estratégias que possibilitaram a emergência de novos signos que formaram a
identidade cultural desses sujeitos. Portanto, ao analisar uma determinada realidade é
preciso considerar que
o que é teoricamente inovador e politicamente crucial e a necessidade de passar
além das narrativas de subjetividades originarias e iniciais e de focalizar
aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferença
culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de
estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos
signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato
de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 1998, p. 20).

No caso da Missão do Sahy, a compreensão do objeto de estudo passou pela


necessidade de reconstruir e analisar, à luz dos Estudos Culturais, os fatos históricos que
envolveram os índios brasileiros, índios do nordeste e envolvem os descendentes
indígenas pesquisados.
Na seara historiográfica, foram mobilizados diversos estudos, partindo da Carta
de Pero Vaz de Caminha até chegar aos fatos e registros da realidade da Missão do Sahy.
Os olhares culturais lançados para os aspectos da história foram possibilitados, entre
outros, pelos estudos de Marinyze Prates de Oliveira (2004) e Silviano Santiago (2006).
Já as análises e descrições dos fatos históricos mais gerais valeram-se dos estudos de
Laura Melo e Souza (1986; 2001), Ribeiro (1983), Linhares (1990), Darcy Ribeiro
(1970; 2004), Prezia e Hoornaert (1989), e ainda dos indígenas Sônia Guajarara (2012)
e Gersen Baniwa (2006; 2010). Os aspectos locais tiveram o suporte das autoras Maria
Glória da Paz (2004; 2009), Paulo Batista Machado (2007), Miranda (2007; 2010),
Jaciônira Silva (2003), Maria das Neves Dourado (2008), Maria Glória da Paz e
Marlúcia Paiva (2008).
Ao se desviar das descrições e análises na perspectiva histórica, os horizontes
foram sendo indicados pelos estudos no campo da cultura e, por conta do objeto de
estudo, a perspectiva cultural também foi analisada pelo viés antropológico. Os debates
e as construções epistemológicas em torno das identidades lançaram luz ao estudo e
acabaram por atrair outros aspectos conceituais que vieram reforçar as pretensões de
estudar a realidade histórico-cultural de uma comunidade de descendentes indígenas.
Destacam-se, então, as formulações acerca de identidade feitas por Stuart Hall (2003;
17

2006), Homi Bhabha (1998), Paula Caleffi (2003).


Focando as identidades atribuídas aos indígenas pelos europeus, os debates dos
processos identitários receberam reforço da perspectiva antropológica que apontou a
necessidade de analisar a constituição dos índios brasileiros pela ótica da mistura de
raças e etnias. Vieram fazer parte do rizoma teórico da dissertação os estudos de José
Augusto Laranjeiras Sampaio (2002), Maria Rosário Carvalho (2011), João Pacheco
Oliveira (1998a; 1998b; 1994) e Manuela Carneiro da Cunha (2007; 2009).
Iniciadas as leituras, vivências em campo e as análises, percebeu-se que eram
necessários investimentos na área dos Estudos Culturais que oferecessem sustentação
aos debates da “misturação” identitária e cultural dos índios, assim, os estudos sobre
hibridização foram incorporados às construções teóricas da pesquisa. Nestor Garcia
Canclini (1997; 2000) foi o autor mais utilizado para essa aproximação, no entanto,
autores já mencionados como Hall (2003) e Bhabha (1998) também foram trazidos para
a “roda dialógica” construída em torno do objeto de estudo.
Não bastava mapear as negações identitárias ocasionadas por um processo de
atribuição de uma identidade eurocêntrica ao índio brasileiro, nem mesmo a defesa de
que esses processos foram forjados através de um processo de misturação interétnica,
por sua vez perpassado pela noção de hibridização, onde ocorrem os momentos de luta
cultural, de revisão e de reapropriação (HALL, 2003, p. 34).
Foi imperativo incorporar uma vertente dos Estudos Culturais que apontasse
para as possibilidades transformadoras da identidade cultural nas dimensões individual e
coletiva: somaram-se ao campo conceitual os escritos de Márcio André Braga e Orlando
Sampaio Silva sobre essas dimensões. Mas, faltava um elo que permitisse entender a
dinâmica recriadora e produtiva dos posicionamentos assumidos e nas especificidades
da identidade cultural, então as formulações de Stuart Hall sobre diásporas vieram
fechar o círculo conceitual construído para a análise da pesquisa: Missão do Sahy: Hãm
ha Topa, yãymaih xix ayuhu (Terra de Deus, índios e não-índios).
Importante frisar que o enquadramento conceitual criado não se fundou sobre
uma ótica de prevalência de estudos e conceitos. O imbricamento das diferentes
abordagens foi utilizado desde as primeiras descrições dos fatos históricos inerentes à
fundação da cidade de Senhor do Bonfim. Segue presente quando as análises se
voltaram para o distrito da Missão do Sahy. Também houve o entrelaçamento teórico ao
analisar os acontecimentos que marcaram a constituição identitária dos povos indígenas
desde os primeiros contatos com os portugueses.
18

A escolha foi por uma não linearidade de fatos e acontecimentos e isto se deu
pelo entendimento de que as relações entre o global e o local não devem se prender a
uma ordem estática e limitadora, pois, mesmo se tratando de uma cultura local e inscrita
num determinado tempo histórico, pode-se afirmar que: “as disjunturas patentes de
tempo e espaço são abruptamente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos
diferenciais. As culturas, é claro, têm seus "locais". Porém, não é mais tão fácil dizer de
onde elas se originam” (HALL, 2003, p. 36).
No caso da relação colonizador e indígena foi possível demarcar alguns
momentos e formas em que a cultura europeia foi sendo imposta as índios no Brasil, no
Nordeste, especificamente na Missão do Sahy. Isso se deu pelo fato de os integrantes da
cultura ocidental terem dificuldades de aceitar como válida outra cultura e negarem que
outros povos pudessem se organizar a partir de princípios que não os seus, assim,
acabaram agindo de modo a atribuir identidades diversas a esses povos.
Esse processo de generalização da condição indígena em detrimento da
diversidade que envolve esses povos contribui para o que está sendo chamado de
negação do “ser índio”. Essa negação muito se deve ao imaginário construído em torno
desses povos. Os primeiros registros escritos e gravuras acerca dos índios foram
realizados pelos colonizadores, assim, prevalece no imaginário a descrição parcial de
alguns povos dos quais se aproximaram.
Trazer a constituição dessas identidades atribuídas e, ao mesmo tempo, defender
a formulação de uma análise que mostre o caráter produtivo da cultura, bem como sua
permeabilidade para incorporar os conhecimentos, tradições e narrativas dos povos
indígenas me possibilitou, na condição de pesquisadora, encarar desafios e trabalhar
com as descobertas.

Caminhos, Desafios e Descobertas: eis que surgem os elementos da


pesquisa

Os estudos operacionalizados no âmbito do Programa Multidisciplinar de Pós-


Graduação em Cultura e Sociedade tiveram sua gênese na parceria estabelecida entre a
Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), na qual fui docente do curso
19

de Licenciatura em Ciências da Natureza2, o Ministério da Educação e a Secretaria


Municipal de Educação de Senhor do Bonfim. Parceria que buscou operacionalizar as
ações do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID/CAPES/MEC), através do projeto denominado: Fazendo Ciência na Docência: a
popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e educacional.
As intervenções realizadas no âmbito do PIBID objetivaram o desenvolvimento
de atividades que viessem contribuir para a percepção dos saberes e do pertencimento
étnico de uma comunidade tradicional das adjacências da cidade de Senhor do Bonfim.
A partir das atividades docentes desenvolvidas na comunidade, surgiu um olhar
inquietante que acabou por conduzir a uma análise da história dessa comunidade de
descendentes indígenas. Foram essas inquietações iniciais que encorajaram a busca por
um Programa de Pós-Graduação onde, além do levantamento histórico, pudessem ser
estudados/investigados os processos de constituição da identidade de um grupo que
transita entre os sabores e os dissabores de serem descendentes de índios.
Acolhido o projeto de pesquisa no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação
em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura), do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Professor Milton Santos (IHAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), deu-se
início aos novos desafios: definir, à luz das teorias estudadas, o objeto de estudo, sua
problematização e os objetivos da pesquisa; definir o enquadramento teórico para o
estudo, mas, sobretudo, conviver coma realidade investigada de modo que acolhesse as
descobertas e buscasse respostas às várias dúvidas e indagações sobre o pertencimento
étnico dos moradores da Missão do Sahy, eis o grande desafio individual e coletivo.
Entendendo que pensar o pertencimento não seria tarefa apenas minha enquanto
pesquisadora, mas um desafio a ser encarado pelos sujeitos, optou-se então por criar
situações dialógicas em que a história da Missão, as lendas, as crenças e o trabalho
ligassem o presente ao passado dos supostos descendentes indígenas.
Papéis definidos, momento de delimitar os sujeitos e o local da pesquisa. Ficou
evidenciado que seria preciso fazer uma delimitação dos sujeitos, muitos se dispuseram
a contar a história da Missão do Sahy e as narrativas dos seus conterrâneos. Porém, nem
todos faziam parte de um mesmo núcleo social, dois eram de uma localidade chamada
Aldeinha, sendo uma criança e um adulto; duas senhoras da sede do distrito que
assumem relação com descendência indígena e outra que não possui essa identificação,
mas conhecem bem as narrativas do seu povo, todas identificadas como acessíveis, por
2
Fui redistribuída e exerço minhas atividades docentes na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
20

já terem contribuído com outros estudos; por fim um jovem presidente da Organização
Não-Governamental Casa do Aprendiz Urupês, que busca identificar os traços culturais
dos antepassados e agrupá-los com expressões culturais de hoje.
Um dado importante a ser destacado foi o incômodo inicial desses sujeitos por
conta de uma busca excessiva de informações acerca da história da comunidade. Isso
muito se deve à emergência do debate nas instituições de ensino básico e superiores
acerca do pertencimento étnico dos moradores da Missão do Sahy. Compreendendo as
angústias, foi tomada a decisão de substituir os nomes reais por nomes fictícios, ou seja,
foram usados nomes de indígenas brasileiros acompanhados dos seus significados.
Outros dois sujeitos foram incorporados à pesquisa pela necessidade de se buscarem os
laços da Missão com a comunidade de remanescentes quilombolas de Tijuaçu, esses
tiveram os nomes alterados por nomes africanos. Assim, constituíram-se os sujeitos:
URUPÊS: nome de origem indígena que significa: um tipo de cogumelo ou “orelha de
pau”, também é uma coletânea de contos e crônicas do escritor brasileiro Monteiro
Lobato. Utilizado para designar o jovem líder comunitário.

APOEMA: nome de origem indígena que significa: aquela que vê mais longe. Senhora
de 78 anos que reconhece sua descendência e guarda na memória várias histórias, lendas
e saberes dos seus conterrâneos.

AIYRA: nome de origem indígena que significa: filha. Professora de 42 anos, filha de
uma das senhoras entrevistadas. Defendeu Monografia no curso de Pedagogia da
UNEB, Campus VII, no ano de 2008. Abordou o tema currículos, narrativas e
oralidades em Missão do Sahy, tendo como sujeito da pesquisa sua mãe.

UPIARA: nome de origem indígena que significa: o que luta contra o mal. Tem 54 anos
e trabalha com artesanato de cipó na comunidade conhecida como Aldeinha, fundada
por sua mãe.

IBOTIRA: nome de origem indígena que significa: flor pequena. Tem 13 anos e reside
na Aldeinha.

KUMARI: nome de origem indígena que significa: comadre. Senhora de 72 anos, não
se identifica como descendente indígena, mas guarda muitas histórias e lendas do seu
povo.
ASANTE: nome de origem africana que significa: agradecido, grato. Atribuído a um
21

remanescente de quilombola, Tijuaçu/BA.

THEMA: nome de origem africana que significa: Rainha. Atribuído a um remanescente


de quilombola, Tijuaçu/BA.

Sujeitos definidos, situações dialógicas criadas. Agora seria preciso caracterizar


o local da pesquisa. Empreendeu-se não apenas uma descrição do distrito de Missão do
Sahy e da comunidade denominada Aldeinha. Foi feita uma análise permeada pelas
significações que os sujeitos da pesquisa têm do local em que vivem articuladas com
aspectos historiográficos, baseados em escritos de autores nacionais e regionais. A
intenção foi puxar a “ponta da rama”, a descendência indígena, mas as controvérsias e
dúvidas das oralidades acompanharam as mesmas imprecisões e superficialidades
contidas na “história oficial”. Às narrativas e os aspectos históricos sobre o local
somaram-se as formulações conceituais no campo da cultura, trazendo análises sobre
etnicidade, identidade cultural, hibridização, diáspora e outros.
Preliminarmente cabe adiantar que o povoado de Missão do Sahy faz parte do
município de Senhor do Bonfim - BA, estando localizado a 8 km da sede. Os registros
indicam que a comunidade começou a se constituir com os índios a partir da chegada
dos portugueses por volta do século XVII.
Outrora, por volta do Século XVII (1697), foi instalado pelos franciscanos na
localidade o Arraial da Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy. No longo
processo de colonização, a Missão foi elevada a Vila, em julho de 1722, passando a ter
status administrativo da Coroa Portuguesa. Em 1841 todos os bens da Missão foram
confiscados e devolvidos ao último Frade. O aldeamento foi extinto em 1864, restando
aos moradores a tarefa de reconstituir, por meio das histórias orais, os laços das atuais
comunidades com o seu passado.
Na tentativa de reorganizar a vida pessoal, após a morte do esposo, bem como
garantir uma localização para o labor e o sustento dos filhos, Dona Edite, hoje com 79
anos, fundou uma comunidade distante da sede da Missão do Sahy denominada
Aldeinha. A primeira necessidade da matriarca era prover o sustento da prole, mas com
o tempo foram sendo incorporados elementos da cultura dos antepassados nos
artesanatos que até hoje são feitos para garantir o sustento da comunidade.
Tempos atrás os costumes indígenas influenciaram a decisão de terem apenas
casamentos consanguíneos na Aldeinha, atualmente isso foi flexibilizado, mas essa é
22

uma marca que ainda se mantém entre os membros da comunidade. Além dos traços
físicos da organização geográfica, do manejo do solo, do trabalho e da distribuição dos
bens, a Aldeinha acumula histórias que podem contribuir para o autorreconhecimento
dos índios da Missão do Sahy, bem como para um futuro reconhecimento
governamental.
Então, na condição de pesquisadora, a tarefa de reconstituir, por meio das
histórias orais, os laços das atuais comunidades com o seu passado também foi
assumida.
Definidos os sujeitos, caracterizado o local e assumidos compromissos, chegou o
momento de apresentar o percurso metodológico. Não há como negar que “em qualquer
área nova a investigação começa forçosamente pela busca e elaboração do método”.
(VYGOTSKY, 1996, p. 59). Por tornar-se parte de um campo de estudo que ainda não
havia explorado, a área de Estudos Culturais se apresentou de fato como nova, porém,
rica em possibilidades de estudo e análise.
Diante da novidade acadêmica e epistemológica, foi mesmo necessário elaborar
o método de trabalho, pois o objeto acabou requerendo a inserção, mesmo que
perifericamente, em outras áreas de conhecimento, além da educação e dos Estudos
Culturais somaram-se a história e a antropologia. Seria impossível replicar
fidedignamente uma metodologia e procedimentos de investigação prescritos
anteriormente por outros métodos. Essa decisão conduzida pelo objeto de estudo ainda
demonstrou que:
Podemos enunciar como tese geral que todo planejamento novo dos
problemas científicos, conduz inevitavelmente a novos métodos e técnicas de
investigação. O objeto e o método de investigação mantêm uma relação
muito estreita. Por isso, a investigação adquire uma forma e um curso
completamente novos quando está relacionada com a busca de um método
novo, adequado ao novo problema; neste caso a investigação se diferencia
substancialmente daquelas formas nas quais o estudo simplesmente aplica as
novas áreas os métodos já elaborados e estabelecidos na ciência
(VYGOTSKY, 1995, p. 47).

Em nome da relação direta entre objeto de estudo e o método de investigação


optou-se por uma análise/pesquisa ancorada na abordagem qualitativa. Esta abordagem
se pauta na relação dialógica entre pesquisador e objeto pesquisado, que leva em conta
os significados agregados às respostas obtidas dos sujeitos, valoriza as interações
sociais, e possibilita ações discursivas e reflexões (ANDRÉ e MENGA, 2003, p. 27-29).
Essa perspectiva de análise se demostrou muito próxima das pretensões em olhar os
processos constitutivos da identidade dos sujeitos e problematizá-los a partir das
23

significações que os mesmos davam ao seu pertencimento étnico.


Ao buscar os fundamentos do estudo de caso, encontraram-se nas construções de
André e Lüdke (2003, p. 17-18) indicações para esta pesquisa, pois, afirmam as autoras
que o estudo de caso visa descobrir algo que ainda não foi investigado, e nunca é um
método pronto e acabado. Afirmam que discussões tendem a ser novas mesmo quando o
pesquisador possui uma base teórica e formulações pré-estabelecidas. É preciso que o
pesquisador esteja atento a novos elementos da pesquisa, de modo que compreenda o
poder recursivo do conhecimento. Essas formulações corroboram as decisões tomadas
no que tange às definições de método e metodologia.
Outro autor apresenta a dimensão reflexiva do estudo de caso, dimensão esta que
apoiada nas construções de Roberto Sidnei Macedo ajuda a delinear a escolha
metodológica da pesquisa. Para Macedo (2004):
Os estudos de caso visam à descoberta, característica que se fundamenta no
pressuposto de que o conhecimento não é algo acabado um vez por todas,
haverá sempre um acabamento precário, provisório, portanto; o conheci-
mento é visto como algo que se constrói, se faz e refaz constantemente. As-
sim sendo o pesquisador estará sempre buscando novas respostas e novas
indagações no desenvolvimento do seu trabalho. Valorizam a interpretação
do contexto; buscam retratar a realidade de forma densa, refinada e profunda,
estabelecendo plano de relação com o objeto pesquisado, revelando-se aí a
multiplicidade de âmbitos e referências presentes em determinadas situações
ou problemas; usam uma variedade de informações assim, em desenvolvendo
um estudo de caso o pesquisador usa uma variedade de dados coletados em
diferentes momentos, em situações variadas e com uma variedade de tipos de
informantes; apresenta flexibilidade para representar os diferentes e às vezes
conflitantes pontos de vista e ações presentes numa situação social, portanto,
cultiva-se o pressuposto de que a realidade pode ser vista e construída sob
diferentes perspectivas (MACEDO, 2004, p. 150).

A técnica empregada para obtenção dos dados foi a entrevista, que segundo
Antônio Carlos Gil (1999) consiste numa forma de diálogo assimétrico que possibilita a
interação social e oferece flexibilidade para que os entrevistados possam esclarecer o
significado de uma resposta ou adaptarem-se às circunstâncias da entrevista. Dentre
tantos outros mecanismos que legitimam esse tipo de investigação, ela possibilita a
obtenção de respostas para um determinado objeto de investigação.
Para Marli André e Menga Lüdke (2003, p.33-34), a entrevista constitui um
poderoso instrumento de pesquisa, entretanto, devemos tomar cuidado com as
perguntas, com sua formulação, de modo que não inflijamos o direito e as exigências
que o informante tem ou faz de se resguardar quanto a algum ato invasivo ou pergunta
impertinente. Assim como deve-se ter o cuidado de não elaborar perguntas induzidas
que obrigam o informante a dar a resposta sem que tenha explicitado sua subjetividade e
24

reflexão sobre a temática abordada.


Procurou-se interferir o mínimo durante as entrevistas, em alguns momentos os
entrevistados pareciam interessados em saber a opinião do entrevistador, nesse
momento procurou-se encaixar novas perguntas que facilitassem o entendimento da
pessoa sem que fosse necessária a emissão do ponto de vista do entrevistador.
Outra técnica empregada foi a análise de documentos. Para André e Ludke
(2003, p. 38), consiste numa fonte de pesquisa natural, permite evidenciar novos
enfoques que não foram apreendidos em outros métodos, assim como possibilita
verificações sempre que for necessário por conta da sua objetividade.
Para Macedo (2004, p. 170), a análise documental permite revelar novos
elementos ou aprofundamento da pesquisa. O autor considera este recurso significativo
na tradição metodológica da etnopesquisa. Destaca o autor: “ademais, tem a vantagem
de ser fontes relativamente estáveis de pesquisa, o que facilita sobremaneira o trabalho
do pesquisador interessado na qualidade das práticas humanas e com a fugacidade
destas” (MACEDO, 2004, p. 171).
No campo procedimental, entende-se que o estudo foi norteado pela
etnopesquisa exploratória de cunho qualitativo, mediante a abordagem do estudo de
caso. Valeu-se de entrevistas gravadas, as quais foram denominadas encontros
dialógicos. Como eram guiadas pelas histórias de vida dos sujeitos, não houve a
necessidade de um roteiro semiestruturado, no entanto, existiam questões norteadoras
em cada encontro dialógico: origem da Missão do Sahy; a existência dos índios e a
possível relação como os mesmos; as narrativas e lendas da Missão e as tradições
culturais e religiosas. Também foram realizadas análises em documentos sobre a
fundação de Senhor do Bonfim e na cópia do relatório do Instituto do Patrimônio
Histórico Artístico Nacional (IPHAN).
Durante as entrevistas foi instaurado um clima de prosa interiorana para que se
chegasse às questões pretendidas sem colocar nas mesmas o peso do trabalho
acadêmico. Como todos já haviam participado em momentos anteriores, não houve
dificuldade para a condução dos diálogos construtivos.
Como na dimensão dialógica Bakhtiniana (1997) a fala viva traz consigo um
enunciado vivo, para que seja compreendida necessita de respostas (BAKHTIN, 1997,
p. 290). Para que se responda algo é preciso uma pergunta, por conseguinte, surge a
problematização:
Como as narrativas dos descendentes revelam as identidades atribuídas ao índio
25

e, identificando-as, possibilitam a instauração de um processo de constituição das


identidades individual e coletiva?
Para que se obtenha a (s) resposta (s) à problematização apresentada, o estudo é
conduzido pelo seguinte objetivo geral: analisar a partir das narrativas como os
processos de atribuição da identidade conduziram o (não) pertencimento étnico dos
descendentes indígenas da Missão do Sahy. Por consequência, alguns objetivos
específicos se fazem necessários para organização nas ações investigativas; tem-se
então: buscar a relação dos episódios de atribuição/desconstrução da identidade dos
indígenas com os processos de misturação étnica e hibridismo cultural; analisar as
formas pelas quais as formulações epistemológicas de diáspora podem direcionar a
constituição das identidades individual e coletiva com vistas à emergência do
pertencimento ético cultural; analisar a influência das narrativas e lendas da Missão do
Sahy no processo de atribuição/desconstrução das identidades, e numa perspectiva
diaspórica analisar a constituição das identidades individual e coletiva.
Com esse desenho metodológico foram feitas as imersões nos episódios em que
os indígenas aparecem como atores dos processos históricos global e local. Atores sem
protagonismo, ou seja, sujeitos da história, mas na condição de sujeitados à exploração e
privações culturais. Para não se prender no campo das descrições, foram a esses
incorporados os aportes teóricos no campo da cultura e as narrativas dos participantes
da pesquisa.
As decisões e construções tomadas foram frutos das vivências no Programa
Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, desde as disciplinas
cursadas, as orientações até a qualificação. Atualmente ao participarmos da construção
de um curso de licenciatura voltado para os povos do campo, conseguimos levar os
Estudos Culturais para a organização curricular do curso. Aprendizados que compõem o
presente estudo, mas que também serão levados para toda vida.
A opção foi trazer na introdução além da apresentação, justificativa e
caracterização do objeto de estudo, os aspectos metodológicos da pesquisa. Essa decisão
foi tomada para que não houvesse uma quebra no desencadeamento dos capítulos
propostos para a dissertação. Buscou-se em cada capítulo conjugar as diversas vozes em
busca da compreensão de fatos e das respostas para o problema e objetivos elencados.
Para ser fiel a essa opção, os capítulos foram organizados conforme segue abaixo.
No Capítulo I - Hãm mõnãyxop hã mõkputox (Terra dos descendentes dos
antepassados): um encontro com a história da Missão do Sahy. O título na língua
26

Maxacali tem a intenção de aproximar os descendentes da comunidade a elementos dos


antepassados, no caso os aspectos linguísticos. Sabe-se que as etnias que possivelmente
habitaram a localidade não tinham como tronco linguístico o Maxacali, pois os registros
confirmam que os povos que viveram mais próximos da Missão do Sahy foram os
Cariris, que até hoje habitam o norte do estado e foram catequizados e escravizados por
volta do ano 1703 pela Missão Franciscana de São Gonçalo do Salitre, no atual
município de Campo Formoso, distante apenas 16 km. Já os Paiaiás foram índios que
viveram nas terras a 28 km de Missão, em Itapicuru de Cima, entre os anos de 1689 e
1834, tendo os Freis Capuchinhos como dirigentes da Missão Santo Antônio e Nossa
Senhora da Saúde. Também é registrada presença desta etnia nos atuais municípios de
Jacobina e Campo Formoso.
Ainda se tratando do primeiro capítulo, este se organiza a partir do
entrecruzamento de fatos, memórias e teorias, onde os binarismos culturais, do tipo
aqui/lá, são transpassados por conceitos como identidade, cultura, hibridismo (HALL,
2003, p. 109), criando assim um processo ao mesmo tempo descritivo e argumentativo.
As vozes dos sujeitos entremeiam e são entremeadas pelas teorias justamente por se
acreditar que o foco em Senhor do Bonfim ou na Missão do Sahy, considerando o
“aqui” (presente), não pode estar dissociada de um olhar voltado para o “lá” (passado).
Olhar Bonfim e a Missão enquanto “local” não exclui a necessidade de uma análise
“global” das ações colonizadoras, por conseguinte, essas são ações se complementam e
ainda absorvem os aportes teóricos no campo cultural.
A mesma lógica de construção textual e de análise é utilizada para tratar da parte
“Aldeinha: espaço de (re) construção étnica e social”. A reconstrução do local no espaço
e no tempo é feita através dos registros históricos e das narrativas contadas pelos
sujeitos da pesquisa. Assim, torna-se possível ligar a comunidade da Aldeinha e seus
membros aos antepassados, os índios, provavelmente os Cariris e/ou Paiaiás. Registros,
teorias e narrativas acabam criando um “movimento alado” que permite ao leitor se
transportar das serras do Monte Tabor, na Missão, às serras das Jacobinas; do Rio de
Contas ao Rio São Francisco, em pontos extremos do território brasileiro; acompanhar a
rota de fuga da negra Mariinha do Recôncavo ao sertão, bem como sua exploração pelo
território que hoje é a comunidade quilombola de Tijuaçu; também adentrar nas matas
da Aldeinha.
O Capítulo II Mamópa Reju: caminhos e identidades dos povos tradicionais das
Terras D’além Mar continua na viagem pelos recantos brasileiros, agora reportando ao
27

tempo do descobrimento. Os sujeitos da pesquisa também se “metem” nesses tempos


idos, afinal, é dos seus antepassados que o capítulo trata. Volta ao tempo do
descobrimento para começar a desenrolar o “novelo” do que está sendo considerado um
processo de atribuição/desconstrução de identidade. O tópico continua a tratar deste
processo de desconstrução e da resistência dos índios brasileiros, neste ponto as teorias
dos Estudos Culturais também entremeiam os processos de invisibilização dos índios,
oferecendo simultaneamente diversas análises ao processo argumentativo.
O tópico “Yãykix pupi hãhãm: a atual face dos índios brasileiros” traduz não só
etimologicamente o sentido da frase na língua Maxacali, mas expressa o movimento
atual dos índios no Brasil: luta pela terra. Debates atuais são trazidos à tona para
demonstrar que as identidades atribuídas não foram ações do passado, hoje a violência
se faz pelos meios institucionais como forma de garantir a exploração do capital em
terras indígenas.
No Capítulo III, DesConstrução da Identidade Indígena: hibridizações e misturas
dos índios nordestinos e da Missão Do Sahy, é dada centralidade às formulações acerca
da desconstrução da identidade indígena e aproxima a essas formulações a teoria da
hibridização. Muda o ponto de partida, mas não o método criado para narrar,
fundamentar e analisar as temáticas culturais, portanto, são sempre presentes as
narrativas e lendas da Missão do Sahy. Os debates sobre hibridização e diásporas
ganham um “afago” direto, o capítulo se subdivide em dois tópicos que focam a
hibridização na Missão e a diáspora na Bahia, lembrando que não há como tratar o local
sem adentrar no geral e vice-versa, enfim a perspectiva de análise é híbrida e diaspórica,
por isso pode falar de trans-lugar. Assim, o capítulo se subdivide em “Uma
Compreensão para Além do Local: hibridização cultural dos povos indígenas” e “Índios
na Bahia: percursos, misturas e diásporas”.
No mais...
...embarque nas leituras e chegue à conclusão da dissertação sem esquecer de
tirar as suas próprias conclusões, afinal, como ensina Stuat Hall (2003, p. 44), este é um
trabalho produtivo, é uma autoprodução, portanto, o escritor e o leitor transformam-se
em novos sujeitos, com efeito, esse processo não é uma questão de ser, mas de se tornar,
ou seja, é um processo cultural.
28

CAPÍTULO 1

HÃM MÕNÃYXOP HÃ MÕKPUTOX:


(Terra dos descendentes dos antepassados)
UM ENCONTRO COM A HISTÓRIA DA MISSÃO DO SAHY

Figura 01: Estátua em Biotita, fixada na Missão do Sahy.


Fonte: Blog do Artista Florinaldo Souza dos Santos (Galego de Campo Formoso)

A Missão do Sahy, distrito da cidade de Senhor do Bonfim/BA, tem aspectos


29

históricos capaz de “encher os olhos” de qualquer pesquisador que queira adentrar num
universo onde os fatos do passado ressurgem com uma força renovadora e, ao mesmo
tempo, alimentam diversas incertezas acerca dos seus primeiros habitantes.
Optar pela imersão na história da Missão é ir além de um mergulho nos fatos que
remontam aos tempos da colonização portuguesa no Brasil. Não se trata de apontar as
profundas diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada (HALL, 2006, p. 108),
ou seja, não serão feitas análises direcionadas por um binarismo – passado e presente. A
opção foi por uma retomada histórica onde o ontem e o hoje fossem transpassados por
conceitos como identidade, cultura, hibridismo e outras “formas de transculturação, de
tradução cultural, destinadas a perturbar para sempre os binarismos culturais do tipo
aqui/lá” (HALL, 2003, p. 109).
Focar a Missão do Sahy considerando o “aqui” (presente) não pode estar
dissociada de um olhar voltado para o “lá” (passado). Considerar a Missão enquanto
“local” não exclui a necessidade de uma análise “global” das ações colonizadoras, mas,
por outro lado, é preciso ter claro que as relações entre esses dois pólos se
complementam, de modo que o global e o local se reorganizem e moldem um ao outro
(HALL, 2003, p.109).
Essa perspectiva ampliada de análise possibilitou que o lócus de pesquisa não
fosse apenas descrito, mas, sobretudo, fosse perpassado pelas significações que os
sujeitos têm de si, da sua história, da sua cultura e do seu lugar. Na mesma dinâmica
foram trazidos os aportes teóricos para que os “achados” da pesquisa não se reduzissem
a uma descrição linear. No entanto, o entrelaçamento das citadas significações será feita
no decorrer dos capítulos.
Assume-se então um conceito de análise que não pode ser visto como sinônimo
de descrição, pois, “a análise se converte de fato na explicação cientifica do fenômeno
que se estuda e não só na sua descrição” (VYGOTSKY, 1995, p. 99). Portanto,
promover o entrelaçamento dos sujeitos e suas histórias, juntamente com aspectos
conceituais se torna possível quando a análise-construtiva proposta considera “os
elementos reais objetivamente existentes, e apresenta como tarefa não só a segregação,
mas também, a [tarefa] de esclarecer os nexos existentes e as relações originadas pela
agrupação dinâmica de tais elementos” (VYGOTSKY, 1995, p. 99).
Antes de iniciar a apresentação da Missão do Sahy e seus processos históricos é
preciso contextualizar a cidade e o território de identidade onde o distrito de localiza.
Senhor do Bonfim faz parte do Território de Identidade chamado Piemonte Norte do
30

Itapicuru, que compreende, além de Senhor do Bonfim, os municípios de Campo


Formoso, Jaguarari, Andorinha, Ponto Novo, Caldeirão Grande, Pindobaçu, Filadélfia,
Antônio Gonçalves, juntos somam cerca de 265.000 habitantes.
Segundo dados do Censo Populacional do IBGE (2010), o município possui uma
população de 74.431 habitantes, distribuídos numa extensão territorial de cerca de 817
km². A cidade está localizada no sopé sul da Serra do Gado Bravo, extensão da Chapada
Diamantina, na Cordilheira do Espinhaço. Sua altitude, na região central, é de 453
metros acima do nível do mar, possuindo locais na extensão do município com altitude
superior a 600 metros. Está localizado a uma distância de 374 quilômetros da capital do
Estado.
O Território de Identidade onde se situa Senhor do Bonfim é uma rica província
mineral, destacando-se a grande produção de cobre (Mina da Caraíba), Cromo (Mina de
Pedrinhas e Ferbasa), ouro, vanádio, magnesita, ferro, manganês, calcita, granito,
ametista (Mina da Cabeluda), esmeralda (Minas da Carnaíba e Socotó) e níquel. Ao
todo apresenta 275 pontos de recursos minerais cadastrados, dentre esses: Minerais e
Rochas Industriais – MRI; Minerais Energéticos – ME; Minerais Metálicos – MI; e
Recursos Hídricos – RH.

Figura 02 – Território de Identidade – Piemonte Norte do Itapicuru

Fonte: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), 2007

1.1 Missão do Sahy: entrelaçando história, narrativas e


31

identidades

No território brasileiro a colonização se estabeleceu sobre sangrentas batalhas


entre bandeirantes e indígenas. Aliadas a essa investida dos bandeirantes, as ações
missionárias católicas, através dos religiosos da Companhia de Jesus e de outras
congregações, buscavam estreitar os laços entre o nativo e o colonizador, com o
pretexto de converter o primeiro à religião católica e, assim, “salvar-lhe a alma”.
A formação histórica do município de Senhor do Bonfim está diretamente
relacionada à busca de ouro e pedras preciosas e à introdução da criação de gado no
sertão baiano. Os estudos historiográficos registram que nos últimos anos do século
XVI, portugueses pertencentes à Casa da Torre3 saíam em expedições pelo interior do
Estado da Bahia com destino às minas de ouro das Jacobinas, que segundo Freitas
(2001) tratava-se de um território situado entre os Montes Altos e a Cachoeira de Paulo
Afonso e entre os rios São Francisco e Rio de Contas, dividido por duas grandes regiões
com os nomes de Jacobina Nova e Jacobina Velha (FREITAS, 2001, p. 84).

Figura 03 – Localização do Rio de Contas e Rio São Francisco

Fonte: GuiaNet - Guia Internet Brazil

Além da corrida pelo ouro e pedras preciosas, outro fator determinante para a
ocupação do território foi a criação e deslocamento do gado. Esses fatores constituíram
o pano de fundo inicial da conquista e colonização das partes norte e nordeste do Brasil.

3
A Casa da Torre de Garcia d'Ávila, também referida como Castelo de Garcia d'Ávila, Torre de Garcia
d'Ávila, Forte de Garcia d'Ávila ou simplesmente Casa da Torre, localiza-se no atual município de Mata
de São João, no litoral norte do estado da Bahia. Constitui-se no centro de um expressivo poder militar no
período colonial, assim, teve um importante papel no desbravamento do sertão nordestino e na evolução
territorial do Brasil.
32

Baseado nos fatos históricos4, registra-se que o povoado de Missão do Sahy,


localizado a 8 km do centro de Senhor do Bonfim, pertencia originalmente ao território
das Jacobinas. Por sua localização, era roteiro de passagem para quem seguia do Rio
São Francisco até Rio de Contas.
Os registros indicam que o povo era constituído inicialmente por indígenas que,
a partir da chegada dos portugueses por volta do século XVII, passaram a ser alvos da
exploração de mão de obra escrava para as fazendas de gado, dos Guedes de Brito (DA
PAZ, 2004). Em 1697, os frades da Ordem Franciscana Menor (OFM) fundaram a
Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy, para proteção, cristianização e
“educação” dos índios que restaram do genocídio perpetrado pelos colonos, sob
autorização da casa da Torre dos Garcia D’Ávila (DA PAZ, 2009).
Através da memória oral, os atuais moradores da Missão resgatam sua
descendência indígena, mas as controvérsias acerca da origem dos habitantes acabam
deixando dúvidas quanto ao pertencimento étnico.
O coordenador5 da Organização Não-Governamental Casa do Aprendiz Urupês,
em um dos relatos, apresenta a abordagem, defendida por outros membros da
comunidade, acerca da formação histórica da Missão do Sahy:
Daí surgiu no ano de 1697 com a vinda dos franciscanos. E qual foi o
principal objetivo deles? Foi catequizar os nativos que aqui residiam, né!.
É... E comenta-se muito que as tribos daqui não eram locais, foram tribos
que foram apreendidas em outras regiões e aí trazidas para cá pelos
colonizadores, né, juntadas na atual Missão do Sahy, e nucleada, onde foi
feito, instalado né, o convento franciscano com esse objetivo de catequizar e
todas as formalidades que eles tinham para a Missão religiosa que além do
convento tinha a capela, né, cemitério indígena, tinha as casas de apreensão
dos índios onde os mesmos eram, passavam por uma espécie de
domesticação que além de aprenderem a língua latim, também, eles eram
passavam por algumas etapas de, até de obrigatoriedade mesmo, pra que se
eles, como se eles tivessem que ser domesticados mesmo, civilizados, porque
eles, nem todos obedeciam as imposições dos franciscanos (URUPÊS, 2011).

O coordenador, ao se voltar para as questões de descendência, fala sobre a


escassez de registros e sobre a diversidade de relatos acerca da etnia que habitou a
região:
Pouquíssimo, pouquíssima coisa você encontra a respeito disso, porque
durante muitos anos se acreditou que fosse a tribo Pataxó, têm algumas

4
Alguns textos de autores regionais serviram de fontes históricas, dentre estes, dois livros de Paulo
Batista Machado: Cartilha Histórica sobre as Origens de Senhor do Bonfim (1993) e Notícias e Saudades
da Vila Nova da Rainha, alias, Senhor do Bonfim (2007).
5
Como alguns dos sujeitos solicitaram a preservação de suas identidades, que não foi o caso do
coordenador, a decisão foi usar nomes fictícios para todos. Assim, chamaremos o sujeito em questão de
Urupês, palavra Tupi que significa um tipo de cogumelo ou orelha de pau. As fontes orais serão escritas
em itálico ao longo do trabalho.
33

publicações, algumas autorias regionais. Existem menções a isso aí, mas


recentemente alguns autores vêm trabalhando e descobrindo que não foi, não
foram os Pataxós que residiram aqui, que a tribo realmente nativo daqui
aponta mais para os Kiriris que são originários da nação Kariri e teve
relação com os Paiaiás, com os Tapúias e outras tribos que residiram aqui
nessa região desse Rio São Francisco, Rio Salitre, então o forte indício
realmente é que foram os Kiriris que residiram Missão do Sahy ,que foram
realmente os nativos que aldeiaram aqui (URUPÊS, 2011).

Figura 04 – Capa do Vídeo da Entrevista sobre a Missão do Sahy


http://www.youtube.com/watch?v=5W26CoQz5cA&feature=youtu.be

Fonte: Arquivo pessoal de Leila Damiana Souza

Autores que se dedicaram à reconstrução da história regional comungam as


mesmas dúvidas, segundo DA PAZ (2009) há de fato uma controvérsia quanto às tribos
que habitavam originalmente o território do atual povoado. Existem relatos de que os
Pataxós fossem a tribo originária, no entanto, as incursões pelo sertão baiano registram
a existência de muitas outras tribos, dentre elas os Kiriri (Cariri) e os Paiaiá. A autora
chega a afirmar que:
A existência de várias nações indígenas ao longo do território das Jacobinas é
confirmada nos relatos dos viajantes europeus Von Martius e Spix (1968),
quando a passagem pelo sertão da Bahia até as margens do Rio São
Francisco, onde registraram a presença de aldeia Payayás, Sapoyás,
Secaquekirinhem, Tupaias, Aracuaiás, Opacatiarás, Chacraíbas, Pontas,
Chucurús ou Chocós, Massacarás, Cariris ou Kiriris. Contudo, apenas
algumas dessas tribos indígenas tinham identificado o lugar em que
habitavam, entre elas os índios Payayá, uma das tribos que habitavam a
Jacobina velha e até hoje é referência na historiografia do Município de
Jacobina; o que nos leva a crer que alguns teriam escapado do genocídio e às
guerras justas da proteção dos padres franciscanos (DA PAZ, 2009, p. 65)

Por outro lado, estudos apontam indícios da existência desses povos na região.
Jacionira Coêlho Silva (2003), ao tratar dos índios, vaqueiros e missionários, apresenta
um quadro onde são mapeadas as povoações indígenas e núcleos urbanos na área de
influência da Casa da Torre. Abaixo são destacadas apenas as duas localidades mais
próximas da Missão do Sahy.
34

Quadro 01: Registro de povos indígenas


MISSÃO/ARRAIAL MISSIONÁRIOS GRUPO/TRIBO PERÍODO NÚCLEO URBANO ATUAL
Missão Santo Antônio e Capuchuinho Paiaiá 1689 –1834 Itapicuru de Cima, BA
Nossa Senhora da Saúde
Missão São Gonçalo do Franciscano Cariri 1703 - ? Abreus, Campo Formoso,
Salitre BA
Fonte: Adaptado da tese de Jacionira Coêlho Silva (2003).

Esses e outros registros históricos, somados às tradições orais da região,


corroboram na defesa de uma ligação ancestral dos habitantes da Missão do Sahy com
os povos indígenas, ficando a dúvida quanto à etnia que habitava a localidade. Não seria
esta indefinição que anularia o pertencimento étnico dos que se afirmam descendentes
de índios. O que se pode chamar provisoriamente de identidade cultural 6 não é estática,
ao contrário, se constrói através de histórias e repertórios culturais específicos, assim,
“cada uma dessas histórias de identidade está inscrita nas posições que assumimos e
com as quais nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de posições de
identidade com todas as suas especificidades” (HALL, 2003, p. 432).
As mudanças no foco de estudo têm levado historiadores e antropólogos a
“discutirem, questionarem e ampliarem o conceito de identidade associando-o à ideia de
pluralidade cultural e contribuindo para valorizar alguns temas e sujeitos sociais
anteriormente negligenciados em nossa historiografia” (AZEVEDO E ALMEIDA,
2003, p. 25). Por isso, alguns autores regionais (MACHADO, 2007; GONÇALVES,
1997; FREITAS, 2001) vêm produzindo materiais na tentativa de reforçar e preservar as
memórias da Missão do Sahy. Defendem com base em fatos históricos e relatos orais
que os primeiros habitantes nativos da região de Senhor do Bonfim foram os índios que
ali viviam (MACHADO, 2007, p. 19).
A recuperação de um desses registros dá conta de que em 1721 o frade
capuchinho Martin de Nantes impediu a prisão e o transporte de todos os índios da
aldeia, pois Garcia D’Ávila II, dono das fazendas da região, pretendia vendê-los como
escravos aos senhores de engenho. Essa mesma perspectiva de escravização dos índios
aparece em alguns relatos de membros da comunidade.
Minha mãe contô que minha voinha era descendente dos índios. Eu não
conheci ela não, nem foto tem lá em casa. Os homem de Portugal pegaro
minha voinha a dente de cachorro. Acho que não foi só minha vó não, porque
no colégio a professora disse que muita gente descendente foi pegado assim
(IBOTIRA7, 2011).

eu ouvia falar porque minha mãe contava mais meu pai...que meu pai nasceu
6
As construções sobre identidade cultural serão aprofundadas no capítulo 3.
7
Significa flor pequena. Nome atribuído a uma menina da Missão do Sahy entrevistada neste estudo.
35

na Saúde, mas foi quase criado aqui na Missão também e minha mãe
também....a minha mãe, era caboca..sabe o que que é caboca? A minha vó,
mãe da minha mãe, foi caboca pegada na Saúde...botaro os cachorro pa
pegar ela no mato, ela mocinha com 14 ano, pegaro ela levar o pa saúde, os
caboco foro lá pa pegar ela de volta e o pessoal num deixara e criaro ela
(KUMARI8 apud DA PAZ, 2004, p. 108.)

Os relatos de indivíduos de diferentes gerações mantêm a mesma linha de


reconstituição histórica da Missão, como também de outras localidades. A antropóloga
Delvair Montagner (2007), num relatório encaminhado para o Ministério Público
Federal do Acre, ao discutir a construção da etnia Náwa, destaca alguns atos de
perseguição e escravização, sobretudo, contra a mulher índia.
A história dos Náwa remonta há cinco ou seis gerações, quando seus
antepassados, os índios brabos, foram “amansados ou pegos a dente de
cachorro (MONTAGNER, 2007, p. 70).

Maria Ana da Conceição é considerada cabocla legítima Náwa, cabocla


pintada, que foi pega no mato a cachorro, na atual Cruzeiro do Sul
(MONTAGNER, 2007, p. 72).

Raimunda Carvalho contou que sua mãe, a avó materna e a bisavó foram
pegas a laço, a cachorro, na cabeceira do rio Azul (MONTAGNER, 2007, p.
78).

Não costumavam matar mulheres raptadas, colocando-as para trabalhar na


seringa, na roça, na criação de porcos e de gado. Foram pegas a cachorro no
rio Jaquirana as índias Luzia, Maria Chata, Maria Velha e Maria Peba
(MONTAGNER, 2007, p. 80).

De norte a sul do Brasil tem-se registros dos “amansadores e pegadores de


índios”, estes invadiam as terras com intuito de tomá-las como também de escravizar os
nativos para trabalho na lavoura. A fala de Chicon, da tribo indígena Nukini (Acre), dá
a dimensão desse contato com o branco. Segundo Delvair Montagner (2007, p. 93), o
índio definiu assim o que é ser pego a dente de cachorro: “É o índio que nunca viu
gente, que quando vê qué matá os branco. Aí bota os cachorro pra pegá eles na carrera.
Aí, eles pegô, amarrô e traz”.
As invasões e escravização afetavam os índios também nos seus processos
culturais. A retirada dos nativos para outros lugares contribuía para o “espalhamento”
dos membros de diferentes tribos. Quando estes eram arregimentados nas terras-
cativeiros acabavam entrando em contato e em choque com outros grupos de índios e
não-índios, possibilitando assim o surgimento, mesmo que de forma embrionária, do
que Roberto Cardoso de Oliveira denominou de fricção interétnica.

8
Significado: Indígena comadre. Nome fictício. No estudo original o nome também foi preservado.
36

Chamamos de “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e segmentos


da sociedade brasileira, caracterizados por seus processos competitivos e, no
mais das vezes, conflituais, assumindo esse contato proporções “totais”, isto
é, envolvendo toda conduta tribal e não-tribal que passa que passa a ser
moldada pela situação de fricção interétnica (OLIVEIRA, 2006, p. 46).

Em meio a esses contatos e conflitos, em julho de 1722, a Missão de Nossa


Senhora das Neves do Sahy foi elevada à categoria de Vila, tornando-se a primeira na
região com estatuto de espaço administrativo da Coroa Portuguesa, para a cobrança de
impostos, combate a violência, administração da justiça e das leis. Dois anos depois,
perdeu tal posto por conta da distância das recém-descobertas minas de ouro, próximas
à missão do Bom Jesus da Glória, atual município de Jacobina.
Em 1841 todos os bens9 da Missão foram confiscados e devolvidos ao último
Frade. As investidas dos Garcia D’Ávila e seus herdeiros surtiram efeito, pois em 1843
alcançaram seus objetivos: a conquista de terras nos sertões da Bahia. Conquistas que se
deram à custa da escravização de indígenas e negros na região, objetivando explorar as
riquezas naturais e a criação de gado (GONÇALVES, 1997, p. 35-43).
Esquecido e quase sem importância, o que ficou do antigo aldeamento foi
extinto em 1864, restando aos pesquisadores reconstituir, por meio das histórias orais,
os laços das atuais comunidades com o seu passado. As autoras Maria da Paz e Marlúcia
Menezes Paiva (2008) afirmam que a Missão chamada “do Sahy” foi na verdade
resultado da várias transformações, negações e esquecimentos dos povos que ali
viveram e vivem. As pesquisadoras continuam a falar da Missão do Sahy:
Nesses três séculos de seu povoamento consumou-se o processo de ocupação
e, em seguida, a consolidação cultural da ação transformadora, por
parte das instituições religiosas; através da assimilação da nova cultura,
foram sendo afastadas e relegadas à ignomínia e ao esquecimento os ritos e
costumes dos povos ali existentes. E paulatinamente foi introjetando o modo
de viver do colonizador e tomou forma o processo de esquecimento da
história econômica, social, política e cultural do lugar. Na verdade, no atual
Município de Senhor do Bonfim, muito pouco se sabe da missão franciscana
de Nossa Senhora das Neves do Sahy, bem como da existência da tribo que
deu origem ao povoado (DA PAZ e PAIVA, 2008, p. 2).

Considerando a fricção interétnica no campo do senso comum podemos entendê-


la como um “conflito” entre diferentes etnias e culturas que, por sua vez, gera junções e
disjunções, ora negativos ora positivos, podendo os traços culturais passarem de um
grupo para outro. Mas quando a análise recai sobre os possíveis entrelaçamentos entre
as diferentes culturas e etnias, ao invés de perceber a fricção como um processo de

9
Hoje, não se tem registros do que foi feito com tais bens.
37

“aculturação”, cabe mais olhá-la pela perspectiva diaspórica e híbrida.


Atualmente o termo “aculturação” é questionado no campo dos estudos
indígenas, no entanto, foi balizador para etnógrafos e antropólogos durante décadas,
entretanto, o uso nesta pesquisa se deu apenas de forma periférica. Destarte, o conceito
de “aculturação” dialoga, mesmo de forma transversal, com os debates acerca da
identidade cultural. Portanto, se faz necessária a compreensão dos dois conceitos para
que se perceba a interconexão das culturas nas falas e nas memórias dos sujeitos.
No Brasil, um dos autores que inicialmente trabalhou com o conceito de
aculturação foi o antropólogo Eduardo Galvão, fortemente influenciado pela escola
norte-americana da década de 60. Como o conceito vem sofrendo fortes transformações
ao longo dos anos, a opção foi buscar uma reconstrução de aculturação que se
aproximasse com o presente estudo. Para Carmem Junqueira (1999), a aculturação:
Compreende os fenômenos resultantes do contato direto e continuo de
sociedades de culturas diferentes com as mudanças consequentes nas culturas
originais dessas sociedades. O termo aplica-se com maior propriedade
quando do encontro de sociedades tribais, com sociedades de dimensões
assemelhadas. Fala-se então de aculturação intertribal, ou seja, de um
processo de influências mútuas. Por outro lado, o encontro de sociedades
indígenas com a sociedade brasileira, por exemplo, não abre espaço para tal
intercâmbio cultural, mas sim para a crescente dominação dos povos
indígenas e mesmo sua destruição (JUNQUEIRA, 1999, p. 95).

Com as premissas dadas, é possível romper com o reducionismo que trata o


termos apenas como situação de sobreposição de uma cultura sobre a outra, ou ainda,
uma dominação política, militar e territorial. Por outro lado, olhar para as ambivalências
e não para as idiossincrasias do entrelaçamento de diferentes culturas no sertão baiano
conduz ao estudo das formulações voltadas para a (des)construção/(des)caminho da
identidade. Optando por essa vertente, as formulações de Paula Callefi (2003) e Roberto
Carlos de Oliveira (2000) servirão de fio condutor para as análises propostas.
Nas cantigas, nas brincadeiras e nos relatos orais dos sujeitos da Missão da Sahy
aparecem com frequência aspectos da vida e da cultura negra. Sabe-se que a serra de
Jacobina, no século XVII, foi um local de grande extração de ouro, sendo os escravos
negros os responsáveis pelos trabalhos nas minas. Após a alforria, restou a estes se
refugiarem ou serem mocambos em terras próximas. Uma dessas proximidades foi a
localidade chamada à época “Lagarto Grande”, hoje distrito de Senhor do Bonfim, e
com o nome oficial Tijuaçu. A origem do nome vem da língua indígena, que significa
grande lagarto, na região esse réptil é comumente chamado de “teiú” (Tupinambis
38

teguixin teguixi).
Trata-se de uma comunidade negra rural, localizada a 12 km de Senhor do
Bonfim e a 25 km de Missão do Sahy. Os registros de costumes e tradições revelam que
os primeiros negros habitaram a região ainda na primeira metade do século XIX.
Figura 05 – Distância entre Missão do Sahy e Tijuaçu

Fonte: Google Maps – Maplink/Tele Atlas, 2013

Na década de 90 iniciou-se o processo de reconhecimento como remanescente


de quilombo. Em 28 de fevereiro de 2000, seguindo as regras do Laudo Antropológico,
foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) o reconhecimento da comunidade
como remanescente de quilombo. Atualmente a Fundação Cultural Palmares reconhece
que além da sede – Tijuaçu –, o perímetro quilombola é formado pelas localidades de
Alto Bonito, Água Branca, Macaco, Lajinha, Barreiras e Quebra Facão.
Dentre os documentos que serviram para o reconhecimento, estão depoimentos
de moradores que se auto afirmam descendentes de quilombolas. A preservação das
memórias e sua disseminação acabaram possibilitando a compreensão da localidade
para além das histórias oficiais e também aproximaram as histórias dos descendentes
quilombolas de Tijuaçu com as dos descendentes de índios da Missão do Sahy.
As narrativas registradas em artigos, pesquisas e laudos antropológicos sempre
remetem à fundação de Tijuaçu a três negras fugidas do Recôncavo Baiano. Sendo que
uma delas é apontada como “fundadora desse perímetro quilombola e possuidora dessas
terras” (MIRANDA, 2010, p. 4), contudo, a figura mais viva nas memórias é de Maria
Rodrigues, carinhosamente tratada por Mariinha Rodrigues. Como se fosse num jongo10
as vozes se cruzam em uníssonos, em diferentes momentos, atribuindo a Mariinha a
condição de grande provedora do território:
Derde o começo até hoje todo mundo aqui é parente de Mariinha. Mulé

10
Manifestação cultural de africanos, essencialmente rural. Influenciou a formação do Samba, segundo os
jongueiros, o Jongo é o "avô" do Samba.
39

danada, teve muitos fios e foi espaiando eles por aqui e acolá. Quando viu já
tinha gente chegando em Antonho Goncarves (ASANTE11, 2011.)

Esta geração é todo mundo parente de Maria Rodrigues... Então, ela teve
vários filhos. Essas terras eram todas abandonadas. Então, ela para ter
posse das terras, pegava um filho e colocava, como no caso colocou em
Quebra Facão, colocou em Barreira, um aqui, um em Lajinha para ter posse
da terra (2001)12.

Mariinha Rodrigue, moradeira do Lagarto, a dona do Lagarto, eu conheci


assim (2000)13.

Figura 06 – Samba de Lata/Tijuaçu

Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1515118
(Harisson Souza)

Talvez os 25 km entre a Missão e Tijuaçu e esse espírito desbravador de


Mariinha Rodrigues não oferecem indícios para se pensar a influência de elementos da
cultura negra na vida dos descentes indígenas do Sahy e vice-versa. Esses laços foram
estabelecidos num dos estudos da historiadora Carmélia Miranda (2007):
Além do nagô, outro grupo que contraiu matrimônio com os descendentes de
Mariinha Rodrigues foi o dos congos, que habitavam na região do atual
distrito de Quicé, localidade próxima de Tijuaçu. Estes, segundo os
depoentes, viviam no mato como os Cariris (índios da região). Segundo Dona
Anísia, “os congos não eram saídos, não. Viviam no mato fazendo suas roças
e comendo besteiras de roça. Eles não saíam assim pro mundo, não. Eram
criados a base de beiju e de massa de mandioca na roça”. Os moradores mais
velhos fazem, também, várias referências aos índios Cariris (Caririzeiros),
que contraíram matrimônio entre os descendentes de Mariinha Rodrigues.
Dizem que os Cariris viviam no mato, eram muito bravos e alimentavam-se
da caça. A senhora Maria Bernardina relata que seu avô José Pedro da Silva
casou-se com uma cabocla (índia), chamada Benta Maria de Jesus, que veio
de Feira de Santana para a região. Dizem que eram “índios mansos”, que
passavam pelo local para visitar os índios da Vila de Missão do Sahy e
acabavam parando em Tijuaçu, onde contraíam casamentos (MIRANDA,
2007, p. 7).

11
Nome africano que significa agradecido, grato. Atribuído na pesquisa a um remanescente quilombola
de Tijuaçu.
12
Valmir dos Santos. Tijuaçu, 20 abr. 2001. Entrevista concedida a Carmélia Aparecida Silva Miranda,
In.: (MIRANDA, 2010, p. 4).
13
Edista Maria de Jesus. Povoado de Barreiras, Tijuaçu, 08 de abril de 2000. Entrevista concedida a Car-
mélia Aparecida Silva Miranda, In.: (MIRANDA, 2007, p. 1).
40

A minha avó dizia que o meu avô era indio, não bisavô né. Que minha vó
mim falava, inté incrusive ela foi pegada a troco de cachorro. Era essa
históra que minha vó contava, tá entendeno. Eu não vou contar essa históra
bem profunda porque vai sai pela boca da minha irmã mais velha. Ela sabe,
a mais veia sabe. Essa históra vai passando de geração para geração, mas
dize que minha vó, bisavó, era uma índia, isso era (THEMA14, 2011).

Figura 07 – Negro Liberto Tijuaçu. Capa de Vídeo da Entrevista sobre Memórias


http://www.youtube.com/watch?v=iWcCIYNjrU4

Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1515118
(Harisson Souza)

Nos cantos tradicionais que são relembrados pelos nativos da Missão do Sahy
não é raro identificar a prenseça da interpenetração das duas culturas. Em entrevista, a
descendente AIYRA15 (2011) busca na memória trechos de dois cantos das religiões de
matrizes africanas onde são misturados elementos da cultura indígena:
Caboco do mato, porque que come folha?
dim, dim, dim, aruanda16.
Caboco do mato pra que joga flecha?
dim, dim, dim, aruanda.

Ai meu Deus Janaína vambora pra aldeia.

O pertencimento à localidade e a sua descendência indígena possibilita que


Aiyra (2011) aborde essa interpenetração entre as culturas – negra e indígena –
afirmando que:
muitas são as influências do candomblé na Missão. Existiram muitos
terreiros por aqui e lá se cultuavam os orixás com cantos e oferendas
levando em conta elementos da cultura dos meus antepassados, falava em
flecha, aldeia, corpo nu etc. Hoje ainda fazem muitos despachos nas serras
perto daqui (AIYRA, 2011).

14
Nome fictício que significa na língua africana: Rainha. Nome escolhido por se tratar de uma
remanescente de quilombolas, Tijuaçu/BA. Também pela proximidade com seu nome de batismo.
Entrevista completa no link acima.
15
Nome indígena que significa: Filha. Atribuído a uma jovem descendente de índios da Missão do Sahy.
16
Nome dado pela Umbanda a uma cidadela de luz etérica que orbitaria a ionosfera do planeta Terra, em
uma dimensão espiritual de transição.
41

Percebe-se com os relatos que as novas e inusitadas combinações dos seres


humanos, das culturas e ideias se misturam, hibridizam, mas como afirma Stuart Hall
(2003, p. 34), “não se quer sugerir aqui que, numa formação sincrética, os elementos
diferentes estabelecem uma relação de igualdade uns com os outros”. Para que essas
tradições se mantenham, um processo de luta e resistência é instaurado, sendo os
elementos simbólicos culturais retrabalhados, revisados e reapropriados.
Ao se pensar a Missão do Sahy e a sua relação com a comunidade de Tijuaçu,
abre-se possibilidade para se afirmar que existe um hibridismo cultural (CANCLINI,
2000), em que a reinvenção das tradições culturais – seja ela indígena, negra ou branca
– se vale de uma conexão de fronteiras culturais que remeta a um encontro com “o
novo”. Sendo que este elemento novo não seja apenas uma transição natural entre
passado e passado e presente. Que seja sim, ato insurgente de tradição cultural, ou
melhor, que seja arte não apenas para retomar o passado como causa social ou
precedente estético, que renove o passado, refigurando-o como um “entre-lugar”
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. Que seja um “passado-
presente” constituído a partir da necessidade e não da nostalgia de viver (BHABHA,
1998, p. 27).
É nesses “entre-lugares” flutuantes que os moradores da Missão e de Tijuaçu se
fazem descendentes de índios e negros, portanto, é por meio dessa junção/disjunção de
culturas que se cruzaram no decorrer do tempo que os atuais sujeitos se constituem em
sujeitos culturais híbridos. Cabe então trazer as palavras de Canclini (1997) quando
define os termos hibridização:
el término hibridación no adquiere sentido por si solo, sino en uma
constelación de conceptos. La hibridación sociocultural no es uma simple
mezcla de estrutura o práticas sociales discretas, puras, que existan en forma
separada. As veces esto ocorre de modo no planeado, o es resultado
imprevisto de procesos migratorios (CANCLINI, 1997, p. 112).

A emergência atual dos povos tradicionais muito se deve a esse poder de


hibridização que, juntamente com outros processos (identititários, diaspóricos),
contribui para a preservação da memória social dos grupos étnicos. A reconstrução dos
laços, a busca das raízes, os troncos ancestrais, a ponta da rama do que ainda se mantém
pela tradição oral servem de elementos para que esses povos emerjam de seu silêncio e
tornem-se visíveis aos olhos de entidades como a Fundação Nacional dos Índios
(FUNAI), a Fundação Cultural Palmares, poderes públicos e instituições de ensino,
42

dentre outros.
Assim, pensar a realidade da Missão do Sahy requer muito mais do que analisar
os aspectos históricos da sua constituição política, social e econômica, é preciso
adentrar nas memórias, narrativas e lendas que levam os indivíduos a negarem em
alguns momentos a condição indígena e em outros se afirmarem como parte de uma
história de descendência.

1.2 Aldeinha: espaço de (re)construção étnica e social

A comunidade conhecida como Aldeinha, localizada numa região afastada do


centro da Missão do Sahy, acaba sendo um elo dos atuais moradores com os povos
tradicionais que ali viveram isolados até a chegada dos missionários no século XVII.
Os indícios da presença indígena estão registrados na historiografia regional, nos
relatos orais e até mesmo em estudos da 7ª Superintendência Regional do Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), realizado em março de 2008
(ANEXO 01). As marcas de descendência nos estudos de Lourenço Silva (1906)
aparecem quando afirma que “Sahy era uma aldeia de índios da tribo Pataxó para onde
mais tarde ocorreram outros tipos de brancos e negros” (SILVA apud DA PAZ, 2009, p.
79). Já o relatório técnico do IPHAN atesta que “... os colonizadores portugueses se
deram conta de que as terras baianas já tinham donos: os indígenas. Foram providas
então, diversas ações de extermínio contra eles que se espalhavam por diversas regiões
do território da Bahia. Em Missão do Sahy não foi diferente” (IPHAN-7ªSR, 2008, p.
2). O técnico responsável pela vistoria na Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy
primeiramente apresenta um viés histórico, mas acaba destacando traços étnicos e
outros aspectos de cunho arqueológico que indicam a presença indígena:
Os vestígios da presença indígena contudo, apesar de raros, ainda podem ser
percebidos na pele cabocla e no cabelo liso de muitos dos antigos moradores
do local (IPHAN-7ªSR, 2008, p. 2).

(...) boa parte da área residencial e do entorno de Missão do Sahy apresentam


um considerável potencial arqueológico. A presença de vestígios
arqueológicos aflorando à superfície em alguns pontos vistoriados é
relativamente comum (IPHAN-7ªSR, 2008, p. 2).

No cemitério de Missão dos Sahy, um dos locais vistoriados, é o mesmo que


outrora pertencia ao convento e que ainda hoje é utilizado pela população.
(...) são encontradas ossadas de enterramentos ocorridos anteriormente, além
de objetos muitas vezes relacionados à cultura indígena como cachimbos,
utensílios de cerâmica, ornamentos e oferendas de caráter mortuário
43

ritualístico (IPHAN-7ªSR, 2008, p. 3).

Somam-se a essas informações técnicas, presentes em relatório de órgão do


Governo Federal, as memórias orais e registros fotográficos de espaços e achados
arqueológicos. Ao entrevistar o jovem Urupês 17 (2011), essas memórias surgem em
diversos momentos.
Objetos arqueológicos aqui existem muitos, porém eles ficam em poder de
pessoas que nós não temos acesso, ainda aqui na comunidade. Muitos deles
já foram levados, não estão mais aqui. Temos registro de cachimbos 18
encontrados a mais ou menos três a quatro metros de profundidade. Eles são
ornamentados e confeccionados em barro, alguns deles têm até detalhes de
rostos que rementem ao rosto do europeu (URUPÊS, 2011).

Quando questionado sobre a localização e preservação desse material, bem como


algumas ruínas, informa que:
Uma unidade de um desses cachimbos, com a réplica do rosto, está em poder
de uma senhora daqui da comunidade. Existe outros dois, já num outro
formato, mas com o mesmo material, mesma argila, em poder de uma outra
pessoa daqui da comunidade também. Têm também fotografias, de cem,
cento e cinquenta anos atrás, que mostram tanto esses objetos arqueológicos
como mostram alguns pontos naturais que são os sítios arqueológicos
(URUPÊS, 2011).

o Cemitério Missão do Sahy que além de alguns túmulos lá que tem hoje
cem, cento e cinqüenta anos de construção, nós temos ainda ruínas do muro
que era do convento franciscano, ainda temos algumas ruínas, conservadas
(URUPÊS, 2011).

Figura 08 – Cemitério de Missão do Sahy Figura 09 – Muro que separa cemitério e convento

Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza

Todo este patrimônio histórico material encontra-se ameaçado pela falta de


preservação e pela falta de valorização da ancestralidade indígena. Falta, sobretudo, aos
17
Nome indígena que significa: um tipo de cogumelo ou “orelha de pau”, também é uma coletânea de
contos e crônicas de Monteiro Lobato. Entrevista completa no link da página 33.
18
Fotografia de um destes cachimbos encontra-se anexada ao relatório do IPHAN (Ver anexo 1, página 5,
foto 14).
44

que se assumem como descendentes, um verdadeiro pertencimento étnico, pois é


perceptível que os descendentes da Missão têm dificuldades de se autodefinirem como
grupo étnico. Para os antropólogos, esses grupos têm como características “as formas de
organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados
como tal pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias da
mesma ordem” (MONTAGNER, 2010, p. 34).
Assim, para que realmente se aceite uma etnicidade seja Pataxó, Cariri (Kiriri)
e/ou Paiaiá (Payayá), é preciso somar aos registros históricos e as memórias orais um
sentimento de pertencimento. Caso contrário, os que se foram continuarão sendo vistos
como personagens de memórias remotas e os que se apresentam como descendentes
vistos ora como sonhadores ora como aproveitadores. Esta última forma quando a
etnicidade possa render alguma vantagem pessoal.
Esse contexto de dúvidas e incertezas acaba contribuindo para que as
controvérsias que cercam a localidade da Aldeinha sejam reais e atuais, mesmo diante
de todo um processo de reconstrução étnica e social que os moradores da localidade
vêm alcançando.
Voltando as origens da Aldeinha, além do nome fazer alusão a uma forma de
organização geográfica dos indígenas, também traz uma carga semântica, histórica e
socialmente reveladora para os descendentes indígenas da Missão do Sahy. Quanto ao
primeiro aspecto – geográfico –, a própria disposição das residências remete a uma
organização espacial das aldeias, portanto, não fica evidenciada a intencionalidade de
criação da Aldeinha como forma de preservação das origens dos povos tradicionais.
Os registros orais existentes foram confirmados pelas entrevistas realizadas por
esta pesquisa. Os dados que foram mobilizados apontam que a ocupação do espaço e a
constituição da comunidade não se deram a princípio pela noção de pertencimento
étnico. Deram-se, sim, pelas necessidades pessoais de uma mulher diante da sua viuvez.
Hoje, no entanto, existe a noção de pertença às origens tradicionais. Mesmo de forma
enviesada, a depender dos interesses em jogo, aflora um irrestrito pertencimento à
cultura ancestral.
Por conta dos assédios ocorridos nos últimos anos aos moradores da localidade e
também por uma estratégia financeira, as entrevistas com a matriarca da Aldeinha se
tornaram mais difíceis. Este deve ser o motivo pelo qual as produções acadêmicas
consultadas (teses, dissertações, monografias e artigos – DA PAZ, 2004; DA PAZ E
PAIVA, 2008; SANTOS, 2007; DOURADO, 2008; SANTOS E GONÇALVES, 2011;
45

OLIVEIRA, 2012) voltadas para Missão dos Sahy pouco ou nada mencionam sobre a
Aldeinha.
Em artigo científico de Santos e Gonçalves (2011), apresentado no VI Congresso
Brasileiro de História da Educação – VI CBHE/ Vitória-ES, as autoras trazem uma
afirmação que explica os momentos de sonegação de informações por parte de
moradores da Aldeinha:
Alguns destes fragmentos foram obtidos através das narrativas de sua
matriarca, que a princípio contava com desenvoltura e orgulho como tinha
criado aquele lugar onde reside com a sua família, mas hoje devido a procura
de muitos curiosos sobre o assunto, a família e ela mesma não se dispõem
mais a fornecer informações; os motivos alegados são os mais diversos, e vão
desde a necessidade de preservação da intimidade coletiva da família, até a
questão de obtenção de algum ganho extra com essas narrativas (SANTOS e
GONÇALVES, 2011, p. 5).

Por outro lado, as poucas informações que existem sobre a origem da Aldeinha
são de domínio público, assim, em uma das entrevistas essas reminiscências vieram à
tona. Ao entrevistar Apoema19 (2011), compreendemos o processo de formação da
localidade e tivemos como entender a relação dos nativos com o artesanato de cipó.
Quem cumeçô tudo na tribo foi Edite20. Lá num tinha nada, era só mato. Mas
dispôs que ficou sem marido levou seus fios tudo prá lá. Então fez umas
taperazinha e foi arrumando, dispôs começo a fazer cesta e bonecas de
palhinha pra pode vender e dá de cumé pra todo mundo (APOEMA, 2011).

Essa origem do nome é confirmada por Santos e Gonçalves (2011), ao evocarem


a figura da senhora Edite Maria Arcanjo e atribuir a mesma a organização inicial, bem
como toda condução da Aldeinha.
Segundo a matriarca, o local, afastado do centro do povoado, foi habitado por
ela e seus filhos logo após o falecimento do seu esposo. Viúva e sem ter uma
situação econômica que possibilitasse o sustento dos filhos menores, contudo
sem querer doá-los para serem criados por algumas famílias de melhores
condições, resolveu isolar-se e sobreviver daquilo que a mata poderia prover:
a caça, a pesca, frutos silvestres, a comercialização do oricuri, uma espécie de
fruto de uma pequena palmeira do sertão do Nordeste e a confecção de
pequenos cestos de cipó (SANTOS E GONÇALVES, 2011, p. 4).

Na condição de pesquisadora, a aproximação com membros da Aldeinha foi


mediada pelas ações do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a popularização das
19
Nome de origem indígena que significa: aquela que vê mais longe. Utilizado para simbolizar uma
mulher de 78 anos que consegue perceber todo processo histórico e analisar a situação atual.
20
O nome da matriarca foi mantido, pois é público sua identidade por conta da liderança que exerce,
mesmo com seus 79 anos. No entanto, seguindo a definição inicial do texto seu nome será substituído nos
momentos em que a referência ao nome for feita, assim terá como codinome: Jaci, que significa: mãe dos
frutos.
46

ciências num contexto de diversidade social, cultural e educacional". O vínculo com a


Universidade e as proposições do Projeto possibilitou o rompimento das barreiras
iniciais que dificultavam a aproximação com os sujeitos e com as histórias da Aldeinha.
A partir de então, a aproximação permitiu uma maior compreensão da
organização desses descendentes de Edite que, por se assumirem como indígenas,
marcam nas gerações que a procederam este traço étnico.
Quando da aproximação com membros da Aldeinha, em 2011, surgiu a
informação de que existiam 52 habitantes dentre os quais 35 eram adultos e 17 eram
crianças e adolescentes. Esses indivíduos estavam distribuídos em 10 famílias, sendo
todos “filhos” da localidade. Os matrimônios deveriam seguir laços sanguíneos,
portanto, eram comuns casamentos entre primos. Esta informação acabou apontando
uma proximidade cultural com outras etnias indígenas, portanto, a temática foi
explorada em uma entrevista com Upiara21, um dos filhos de Dona Edite. Na
oportunidade, quando perguntado sobre os casamentos entre familiares, respondeu:
Sim, o casamento acuntece entre os primo. Entre irmão num pode e também
num pode entre tios e subrinhos. Mas isso já tem tempo que num acontece.
Hoje tá mais fácil casá com gente que não é dos Cariri (UPIARA, 2011).

– É verdade que quando se casa com alguém de fora não pode ficar na
Aldeinha? Por que isso?
Tem uma meia verdade ai. Se se juntar com arguém de fora, pode ser que
essa pessoa já tenha casa, trabalho e tudo mais, como é que vai largá tudo
pra morar na Aldeinha? O que acontecia bem antes era que não tinha espaço
aqui, intão se casasse fora fosse morar fora também. Mas sou da opinião que
se puder casá com os daqui melhor. É gente nossa, gente que a gente conhece
(UPIARA, 2011).

– Mas essa decisão com relação aos casamentos é por uma questão cultural?
Não, eu acho que não. As pessoas até fala que é para num misturar mais o
sangue com quem não é índio, mas num é bem assim não. É mais pela coisa
da moradia e do trabaío (UPIARA, 2011).

As respostas oferecem elementos importantes para se pensar a questão indígena


na Aldeinha. Primeiro o pertencimento étnico que aparece na primeira e na última
resposta, nesta última encontra-se presente a ideia de “misturação”22 dos índios. “Hoje é
mais fácil casá com gente que não é dos Cariri”. Neste estudo, por meio de entrevista,
foi a primeira vez que alguém da Aldeinha se assumiu como Cariri, ou seja, se

21
UPIARA: nome de origem indígena que significa: o que luta contra o mal.
22
Termo utilizado por Maria do Rosário Carvalho, 1988 e João Pacheco de Oliveira, 1999.
47

autoidentifica como descendente indígena.


Por isso, ter consciência da condição indígena é fundamental para a
determinação do pertencimento étnico. Assim sendo, o poder de autonomeação das
coletividades e a noção de respeito à alteridade são pontos a serem considerados nos
processos de reconhecimentos das comunidades indígenas. Importante frisar que esses
não são critérios fechados, e ainda, estes estão amparados pela Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho - OIT.
As possibilidades para que uma comunidade tradicional, como a Aldeinha, seja
reconhecida passa também pela preservação e guarda de utensílios de antepassados, pela
identificação de sítios arqueológicos que tenham valor histórico para a comunidade e
que ajudem na identificação do território e no seu reconhecimento étnico. Pensando
assim, a Missão do Sahy conjuga todos esses fatores, no entanto, há um espalhamento
desses elementos, o que dificulta tanto o autorreconhecimento quanto o reconhecimento
externo/oficial da descendência indígena. É importante uma orientação dos órgãos
indigenistas para que os moradores saibam que “é a capacidade de reconhecer no espaço
fatos e locais vinculados à tradição de um povo que constitui o principal pré-requisito
para o reconhecimento de alguém como membro daquela comunidade” (PARAÍSO,
1987, p. 14).
Quanto à mistura, quando se trata de populações descendentes de índios, não é
raro o surgimento de falas como essa: “As pessoas até fala que é para num misturar
mais o sangue com quem não é índio”. Isso não é uma especificidade da Aldeinha e dos
parentes de Upiara. A misturação de índios, sobretudo no nordeste brasileiro, foi fruto
de um processo histórico de desconstruções da cultura nativa através de atribuição de
uma cultura introjetada pelos colonizadores, mas essas questões serão abordadas nos
próximos capítulos.
As opções pelos casamentos consanguíneos como estratégia para romper com a
misturação não é privilégio dos indivíduos da Missão do Sahy, outras etnias sofrem com
o mesmo dilema. Todavia, mesmo com as dificuldades da FUNAI para reconhecer essa
situação, isso não tem sido impeditivo para o reconhecimento étnico das comunidades.
Hoje o maior problema não está nas relações de consanguinidade e,
consequentemente, no autorreconhecimento e na aceitação da especificidade étnica. Os
indígenas e descendentes se deparam com a dificuldade do Governo/FUNAI em
reconhecer o “índio misturado” como índio, isso se deve ao não enquadramento de
alguns povos no modelo de índios “puros”, “primitivos”, a exemplos dos povos
48

tradicionais da Amazônia e do Xingu.


Por outro lado, é importante ter conhecimento de que os laudos antropológicos,
sustentados pelas teorias do campo da cultura (identidade, hibridismo, diáspora), têm
defendido o pertencimento étnico de diversos povos no Brasil. Um exemplo é o trabalho
de Delvair Montagner (2007) sobre a construção da etnia Náwa, no Acre:
Podemos considerar as relações sociais entre o regional e o índio como sendo
de igualdade, pois uma pessoa branca ao casar com uma índia ou mestiça
índia, passa a se considerar ideologicamente igual ao parceiro: índio. (...) Os
filhos de um casal assim misturado, apesar de terem uma parte de sangue de
branco e outra de índio, são considerados da “raça” Náwa, pois “moram no
mesmo lado” destes, em sua terra, nasceram e se criaram nela
(MONTAGNER, 2007, p. 85).

No processo de criação do grupo étnico Náwa seus membros geraram uma


cultura própria, buscando resquícios antigos dentro de um território
delimitado, considerado de uso comum de seus antepassados. Elegeram como
uma das marcas de indianidade cacos de cerâmica, materiais líticos, antigas
capoeiras e cemitérios, sobre os quais todos concordam quanto a sua
procedência histórica (MONTAGNER, 2007, p. 43).

As situações enfrentadas na Missão do Sahy e as descobertas sobre a cultura


Náwa se aproximam substancialmente de uma das acepções de cultura apresentada por
Stuart Hall (2003):
O que esses exemplos sugerem é que a cultura não é apenas uma viagem de
redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma "arqueologia". A cultura é
uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu "trabalho
produtivo". Depende de um conhecimento da tradição enquanto "o mesmo
em mutação" e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse
"desvio através de seus passados" faz é nos capacitar, através da cultura, a
nos produzir a nos mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto,
não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós
fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais,
em qualquer forma acabada, estão a nossa frente. Estamos sempre em
processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de
ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p. 44).

Na realidade investigada percebe-se que o retorno ao passado é uma forma dos


sujeitos se perceberem como parte de um determinado grupo, porém, não basta apenas o
rótulo de índio para se pertencer a uma comunidade indígena, antes é preciso que os
sujeitos se reconheçam com parte desta e serem por ela reconhecidos (CUNHA, 1986,
p.11). Com isso, intenta-se que a mudança da descendente indígena Dona Edite para
uma localidade afastada constituiu, mesmo que sem intenção, uma forma diferente de
operar as tradições do seu povo, ou seja, operou a cultura enquanto produção social da
vida. Tornou-se culturalmente descendente indígena e não apenas foi rotulada como tal.
49

Nesse processo de transformações e intermediações culturais muda-se toda uma


estrutura de convivência social, retoma-se a cultura dos antepassados para se capacitar
através das memórias e produzir a si mesmo novamente (HALL, 2003, p. 44). Por isso é
que Dona Edite e seus descendentes – moradores da Aldeinha – buscam nas tradições
dos antepassados o manejo do cipó e transformam esta atividade artesanal na principal
fonte de renda da comunidade, além de criar o laço com os povos que lhes antecederam.
Por terem assumido a cultura como produção, transformando-a ao mesmo tempo
em matéria-prima e recurso para o trabalho produtivo, Upiara considera que houve uma
grande mudança no manejo do cipó e na relação dos descendentes com este labor.
Antes só quem fazia os trançado era os home da família. Mas hoje mulher,
menino todo mundo tomou o gosto pelo trabaí; Daqui todo mundo tira algum
pro sustento da famiá. Hoje nós melhoremô muito os produto, tem mais
variedade, agente usa não só o cipó caititu e o cajal, nois usa também o
bambu e a taboca, tudo tirado das mata da região. (UPIARA, 2011).

As transformações produtivas e culturais também são consideradas nos estudos


que Santos e Gonçalves (2011) realizaram na Aldeinha e corroboram as afirmações de
que a cultura como devir precisa ser muito mais do que uma redescoberta, uma viagem
de retorno às origens.
Com o melhoramento das técnicas até então primitivas, o artesanato foi
criando o seu espaço de comercialização e transformando-se em renda
principal desta comunidade familiar e a exemplo de outros produtos
artesanais confeccionados por comunidades similares, os produtos por eles
produzidos já são deslocados para outros espaços comerciais. Nesta
comunidade são confeccionados inúmeros objetos como: caçoas, cestos,
bicicletas e burricos decorativos, luminárias e móveis: banquinhos,
namoradeiras, sofás entres vários outros. (...) estes produtos são
comercializados nas feiras da região, na feira de Missão do Sahy e em feiras
artesanais; além de receberem encomendas de todas as partes do país também
já forneceram alguns produtos para fora do país. (SANTOS E GONÇALVES,
2011, p. 6).

Figura 10 – Artesanato da Aldeinha - Sofá Figura 11 – Artesanato da Aldeinha - Bonecos


50

Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza

Figura 12 – Artesanato da Aldeinha – Ateliê

Fonte: Acervo pessoal de Leila Damiana Souza

Com os olhos cegos para a perspectiva transformadora da cultura poderia se cair


na armadilha de dizer que os laços que ligam os descendentes indígenas as suas raízes
estão fadados à extinção, tendo como argumento para tal assertiva os poucos vestígios
da história de descendência, a má preservação dos monumentos e sítios arqueológicos, e
a paulatina perda das memórias orais por conta da morte dos mais velhos e do
desinteresse das gerações mais novas. Todavia, o que mobiliza este estudo é reconhecer
que existe sim todo esse (des) caminho cultural – ancorado nas teorias de misturação,
aculturação, hibridismo – só que do outro lado existem os debates sobre reafirmação das
identidades (individual e coletiva) e a perspectiva diaspórica da cultura, no entanto, não
se trata de decidir pela metade mais bela da verdade, trata sim de olhar para o problema
direcionado pela “miopia” que nos faz seres culturais em permanente produção.
A propósito da decisão pela “verdade mais bela” é oportuno lembrar o que disse
Upiara (2011): “Tem uma meia verdade ai. Se se juntar com arguém de fora, pode ser
51

que essa pessoa já tenha casa, trabalho e tudo mais, como é que vai largá tudo pra
morar na Aldeinha?” A investigação proposta não se pauta na defesa de uma
territorialização ou desterritorialização cultural, mas sim, em apresentar os resultados de
uma pesquisa que intentou contribuir para afirmação das memórias e das tradições dos
povos que viveram na Missão do Sahy, por isso nos capítulos seguintes serão retomadas
as reminiscências da Aldeinha, do seu artesanato com cipó e a apresentação das suas
lendas, fatos e festas, permeado pelos Estudos Culturais. Lembrando ainda que, mesmo
os fatos históricos não serão tratados como verdades tácitas, ademais, serão
compreendidos como uma possibilidade de autorreconhecimento, de recursivamente
produzir a todos num plano cultural, transformando novos tipos de sujeito. Por esse foco
é que se entende a verdade acadêmica entremeada pela verdade poética de Carlos
Drummond de Andrade:

Verdade23

A porta da verdade estava aberta,


mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava, só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar.
Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

23
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 35. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. 276 p.
52

CAPÍTULO 2
MAMÓPA REJU: CAMINHOS E IDENTIDADES DOS POVOS
TRADICIONAIS DAS TERRAS D’ALÉM MAR

A expressão guarani Mamópa Reju que significa “de onde você vem” remete aos
53

processos históricos dos povos tradicionais que habitavam as Terras D’além Mar, como
também possibilita questionamentos acerca da constituição identitária dos povos que
foram denominados índios. Denominação que se vale da mesma lógica que Cristovão
Colombo utilizou para caracterizar os habitantes do continente americano descoberto
em 12 de outubro de 1492.
Apesar das nuances que envolvem as caracterizações dos povos encontrados por
Colombo, o interesse parte de um recorte histórico voltado aos povos da Terra de Vera
Cruz avistados pela tripulação de Pedro Álvares Cabral em 23 de abril de 1500. A
propósito, é importante destacar que os registros do escrivão da frota – Pero Vaz de
Caminha – nomeiam a nova terra de diferentes formas e descrevem minuciosamente a
chegada e o encontro:
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira
das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de
terra, estando da dita Ilha, segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670
léguas. (...) E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam
furabuchos. Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra!
A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de
outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos;
ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A
Terra de Vera Cruz! E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos
em direitura à terra, indo os navios pequenos diante (..). E chegaríamos a esta
ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. E dali avistamos homens que
andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos
que chegaram primeiro. (CARTA, 1963. grifos nossos)

Com relação ao nome das novas terras, Laura de Melo e Souza (2002) afirma
que já existia um nome à procura de um lugar. O nome Brasil e suas variantes – Bacir,
Bracil, Brazille, Bersil, Braxili, Braxill, Bresilge – já designavam umas três ilhas,
assegura a autora que “primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado”
(SOUZA, 2002, p. 7).
A Carta de Pero Vaz de Caminha lança denominações intermediárias à nova terra
chegando o Capitão-Mor a chamá-la de Monte Pascoal, em referência ao tempo Cristão
chamado Páscoa. Outra denominação que também tem viés religioso, para Laura de
Melo e Souza (1986), está relacionada a uma luta travada entre Deus e o Diabo 24. O
plano espiritual no contexto histórico da época se sustentava pelas reformas e pela
perseguição religiosa, da mesma forma era religiosa a linguagem e a forma de
denominar as terras conquistadas e descobertas.

24
Construções apresentadas no livro: O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia da Letras, 1986.
54

Na luta contra o diabo e em nome de Deus, Cabral nomeou de Terra de Vera


Cruz o local onde aportou em abril de 1500, uma homenagem ao Lenho Sagrado. Ao
tratar dessa disputa e do uso do nome Brasil para designar as Terras D’além Mar, Souza
(1986) afirma que:
O Santo Lenho inscrevia o sacrifício de Cristo na gênese da terra encontrada,
que ficava toda ela dedicada a Deus, como a expressar as grandes esperanças
na conversão dos gentios. Mas os acontecimentos tomaram rumo diverso. Se
a cruz erguida naquele lugar durou algum tempo, o demônio logo começou a
agir para derrubá-la, pois não queria perder o domínio que tinha sobre a nova
terra. Valendo-se do fato de chegarem a Portugal carregamentos cada vez
mais significativos de pau-brasil, trabalhou para que o nome da madeira
comercializada dominasse o nome do lenho no qual morrera Jesus,
vulgarizando-se na boca do povo. Assim, era como se importasse mais o
nome de um pau que tinge panos do que o nome daquele pau que deu tintura
a todos os sacramentos por que somos salvos, pelo sangue de Cristo que nele
foi derramado (SOUZA, 1986, p. 98).

A preocupação religiosa não se resumiria ao nome das novas terras. A


preocupação com a “salvação” dos nativos encontrados também está presente desde os
primeiros registros:
Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles
a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença
alguma, segundo as aparências. (...) não duvido que eles se farão cristãos e
hão de crer na nossa santa fé (...) E por isso, se alguém vier, não deixe logo
de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de
nossa fé (...). Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que
será salvar esta gente (CARTA, 1963).

O percurso constitutivo dos povos da Terra de Vera Cruz é marcado por uma
atribuição de identidade aos nativos25. Para Paula Caleffi (2003, p. 21), desde os
primeiros contatos de Cristóvão Colombo com os nativos da América identidades foram
sendo atribuídas aos povos tradicionais. Esse processo por aqui é percebido já nos
primeiros registros que descrevem o contato do europeu com o nativo das terras
descobertas por Pedro Álvares Cabral.
Para melhor compreender esse processo de identidade atribuída, torna-se
necessário continuar se reportando aos primeiros contatos dos europeus com os
indivíduos que aqui habitavam quando da chegada da esquadra de Cabral e do
“achamento” do Novo Mundo (OLIVEIRA, 2004, p. 88).
É inegável que a Carta de Pero Vaz de Caminha oferece indícios importantes

25
Atribuição de identidade é tratada por Paula Caleffi (2003, p. 21) no trabalho “O que é ser índio hoje”.
O conceito será recorrente nas análises apresentadas.
55

para a compreensão dos primeiros contatos do homem branco com os nativos


brasileiros. Marinyze Prates de Oliveira26 considera que a Carta “é um desses textos cuja
capacidade de oferecer-se a novas interpretações parece inesgotável” (OLIVEIRA,
2004, p. 88). Já Silviano Santiago (2006) pondera que “poderia ter sido uma carta de
amor, escrita à semelhança das cantigas medievais, mas que na verdade é uma carta
atual que continuará a conversar conosco, e circulará séculos afora ao sabor do acaso”.
(SANTIAGO, 2006, passim).
Muitas outras significações poderiam ser dadas à Carta de Pero Vaz de Caminha,
encaminhada ao Rei de Portugal, Dom Manuel, em primeiro de maio de 1500. No
entanto, o texto é aqui tratado como um marco que oferece formulações acerca das
questões voltadas à atribuição de identidade pessoal e social27.
O olhar percuciente da Carta que confere realismo aos relatos também estabelece
comparações entre os nativos e os europeus, destacando as qualidades do homem
branco que são ausentes nos originários da nova terra (OLIVEIRA, 2004, p. 91 e 105).
Ao validar as qualidades europeias em função do desconhecimento dos povos
tradicionais, “a classificação homogeneizante estabeleceu uma nova identidade, a partir
da qual os índios, dali em diante assim chamados, passaram a ser representados na
interação com o colonizador europeu” (BRAGA, 2006, p. 174).
A nova “feitura” dos povos da Terra de Vera Cruz em vários momentos pode ser
percebida nos escritos que evidenciam aspectos descritivos da descoberta. Por
conseguinte, ao voltar-se para a Carta é possível enxergar duas vertentes que se
entrelaçam e permitem uma análise mais abrangente dos relatos acerca da “gente
inocente” que habitavam a terra “chã e formosa”.
A primeira vertente evidencia a construção do texto a partir de um ímpeto
“mostrativo”, onde a ação do olhar conduz o relator a ver e descrever o visto, detendo-
se em minúcias que retratam, com palavras precisas e fiéis, aspectos geográficos e os
modos das criaturas da nova terra (OLIVEIRA, 2004, p. 91).
A autora segue destacando que o escrivão, ao se deparar com uma nova
realidade, vale-se do quadro de referência de que dispõe para caracterizar os nativos a

26
No livro “Olhares Roubados: cinema, literatura e nacionalidade” a autora apresenta o capítulo “Um ol-
har na Câmara, outro na Carta”, onde refere-se ao relato de Pero Vaz de Caminha como um primeiro
roteiro cinematográfico do que viria ser o Brasil.
27
Segundo Márcio André Braga (2006) a identidade pessoal e a social são duas dimensões que
antropólogos e sociólogos se valem para tratar da construção da relação com o outro. Já a atribuição de
identidade é tratada por Paula Caleffi (2003, p. 21) no trabalho “O que é ser índio hoje”. Ambos os
conceitos serão recorrentes nas análises apresentadas.
56

partir de um parâmetro europeu, eis o terreno fértil para se atribuir uma identidade aos
novos povos “descobertos”. Nesse ínterim, surge a segunda vertente de análise da Carta
que permite aproximar aos relatos as dimensões28 pessoal e social dos processos
identitários.
Para interconectar a ação do olhar com as dimensões pessoal e social da
identidade, é preciso conceber que a primeira é a base sob a qual se constrói a
identidade social – étnica – de um grupo. Assim, a dimensão social da identidade é
“estabelecida sempre de forma relacional, visto que, para se estabelecer o eu, é
imperioso poder determinar as diferenças em relação ao outro” (BRAGA, 2006, p. 173).
Na Carta de Caminha, a todo o momento as diferenças são apontadas como forma de
afirmar a identidade europeia e questionar a identidade do outro, essa atitude gera uma
ação classificatória que se vale do seguinte percurso:
As determinações que estabelecem a identidade de cada um surgem na
interação com os demais agentes de um determinado campo, onde existam
relações sociais. Estas permitem aos participantes classificar os indivíduos a
partir de elementos que determinem o que eu sou e o que o diferencia em
relação ao que os outros agentes são. Servem de parâmetros para tal
classificação elementos biológicos, culturais, profissionais, sociais ou
quaisquer outros que sirvam para salientar as diferenças entre o eu e os outros
na interação social. O princípio de classificação que determina as identidades
pessoais remete-nos a uma característica importante das sociedades humanas,
perpassando culturas e tempos: a necessidade de nomear e representar os
sujeitos, estabelecendo sentidos e significados para esses sujeitos e suas
diferentes categorias (BRAGA, 2006, p. 173).

O ímpeto descritivo da Carta de Pero Vaz de Caminha cumpre os requisitos


classificatórios para se determianar (atribuir) uma identidade aos nativos, nomeando-os
de índios. É fato que as identidades construídas nas relações entre brancos e índios
sempre evidenciaram o caráter depreciativo do indígena. As identidades dos chamados
povos pré-colombianos durante o período dos “descobrimentos” se forjaram a partir das
interações entre os habitantes das novas terras e os colonizadores, as representações
foram construídas por meio de estranhamentos e do questionamento em torno da
existência ou não de alma nos indígenas.
Os sentidos e significados dados a esses sujeitos revelam a categorização sinuosa
atribuída aos índios desde os primeiros contatos com os europeus. Esse movimento
relacional faz surgir a segunda dimensão de identidade, a social. Para Braga (2006, p.
174), essa dimensão é

28
Essas dimensões são tratadas pelo o antropólogo Orlando Sampaio Silva, no livro “Eduardo Galvão:
índios e caboclos (2007), como identidade individual e coletiva.
57

realizada em um nível de identidade acima da identidade pessoal, configura-


se pela atualização da identidade pessoal em relação à noção de grupo. Essa
atualização é dada pelo reconhecimento, por parte dos indivíduos, de
elementos identitários semelhantes ou idênticos em outros agentes.

Para reforçar a dimensão individual e coletiva da identidade, os estudos da


socióloga Izabel Mattos (1996, p. 35) permitem aproximar a temática com a questão
indígena. Diz a autora que “a identidade étnica (pessoal/individual) permite aos
indivíduos que compartilham uma mesma condição sócio-histórica se autodefinirem de
acordo com suas características culturais e interesses comuns”. Aceitos esses caminhos,
será preciso demarcar que o processo de constituição de identidades não faz parte de um
sistema estático, identidades são atribuídas, são negadas, mas ao mesmo tempo são
reconstruídas, redefinidas de acordo com o contexto e com as necessidades do grupo.
Com essas percepções, torna-se possível buscar esse processo de constituição de
identidades na Missão do Sahy. As mesmas intromissões dos colonizadores na cultura
dos índios do Monte Pascoal são percebidas nas memórias relacionadas aos indígenas
da Missão. Urupês (2011), ao abordar a chegada dos colonizadores na Vila de Nossa
Senhora das Neves, diz que:
Daí a Missão surgiu no ano de 1697 com a vinda dos franciscanos. E qual
foi o principal objetivo deles? Foi catequizar os nativos que aqui residiam,
né! E comenta-se muito que as tribos daqui não eram locais, foram tribos
que foram apreendidas em outras regiões e aí trazidas para cá pelos
colonizadores (URUPÊS, 2011).

Reconhece que houve uma identidade atribuída e a negação de uma cultura


existente, mas acredita que a retomada dos laços ancestrais virá com a constituição das
identidades individual e coletiva que, no caso dos descendentes indígenas, se formulam
por meio do autorreconhecimento e do reconhecimento social. Na visão de um nativo da
Missão do Sahy, esse processo precisa se dar assim:
O ponto principal é o autorreconhecimento, que as pessoas, que a
comunidade se auto reconheça como tal, esse é o ponto principal, a partir
desse auto reconhecimento, é buscar por via das instancias responsáveis a
oficialização desse reconhecimento, atestando que Missão do Sahy realmente
é uma comunidade que foi descendente, que é descendente de índios
(URUPÊS, 2011).

Portanto, destaca que o pertencimento étnico se faz por meio dessa confluência
das dimensões identitárias, assim, enfatiza que o autorreconhecimento (dimensão
individual) é uma espécie de etapa para se chegar à “oficialização desse
58

reconhecimento” (dimensão coletiva). Com efeito, voltamos às formulações de Braga


(2006) para reafirmar que numa dimensão relacional a identidade individual é o alicerce
da identidade coletiva – étnica – de um grupo.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, pode-se afirmar que os povos
tradicionais, mesmo com as diferenças étnicas, reconheciam entre si aspectos
identitários parecidos, ou seja, características, costumes e modos de agir os integravam
socialmente, alguns destes se diferindo dentro do macro grupo denominados indígenas.
Por essa linha cabe relembrar as proposições de Urupês (2011): “as tribos daqui não
eram locais, foram tribos que foram apreendidas em outras regiões”. Se assim foi,
tiveram que passar por uma espécie de reetinização para que, mesmo perante a mistura
étnica, sobrevivessem ao jugo do colonizador.
Já em relação aos colonizadores, as diferenças evidenciavam a não ocorrência de
uma identidade social com relação aos indígenas e mesmo entre os próprios europeus
que tinham funções distintas na sociedade e na ação colonizadora. Urupês (2011)
reconstrói do seu ponto de vista um momento histórico em que as comarcas e as
companhias religiosas que supostamente deveriam ter objetivos comuns se digladiavam
pelo domínio de terras:
(..) de 1705 até por volta do ano de 1720, ela foi sede de toda essa comarca,
e durante esses anos foi a Missão que delimitou o que devia fazer ou não em
todo esse território. Poucos anos depois a Missão perdeu o seu título, após
1720 perdeu o seu título para Jacobina. Jacobina passou então a ser a sede
da comarca e alguns anos depois devido ao mau funcionamento da missão
religiosa aqui, e tal, o juiz de Jacobina foi obrigado a expulsar os
franciscanos de Missão do Sahy, então veio uma companhia de lá, e o
pessoal da justiça, o pessoal da força militar da época, vieram até a Missão
e expulsaram os franciscanos na época, frades, os bispos da época que
ficavam centrados aqui em Missão tiveram que sair. Segundo a lenda alguns
saíram justamente fugidos pelo túnel (URUPÊS, 2011).

Retomando o percurso histórico entende-se que a estratificação social dos


europeus, que dificulta o pertencimento a um mesmo grupo, é pontencializada e
expressa na Carta de Pero Vaz ao revelar deliberadamente a submissão dos
colonizadores à Coroa Portuguesa. Assim, tudo que foi encontrado na nova terra é posse
do Rei. Silviano Santiago (2006) afirma que ao tomar posse da Carta como legítimo
destinatário, Dom Manuel I “também toma posse da terra e dos seres humanos por ele
descritos pela primeira vez” (SANTIAGO, 2006, p. 231). Isso fica evidenciado em
trechos da Carta que demonstram que os objetos e as peças recebidos não revertem em
59

benefícios próprios para os marinheiros, como Nicolau Coelho 29, mas vão sim “direto
para as mãos do legítimo e definitivo proprietário: ‘(...) Creio que o Capitão há de
mandar uma amostra para Vossa Alteza’” (CARTA, 1963).
Essa subserviência é repetida em vários trechos da carta, demarcando o domínio
do Rei, como exemplo pode ser destacado o seguinte trecho: “Senhor, posto que o
Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a
notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou...”,
e ainda: “Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro
dia de maio de 1500” (CARTA, 1963, grifos nossos)
Todo esse domínio da coroa portuguesa estava amparado pelas bulas inter
coetera, onde os Papas designavam ao Rei as dádivas dos súditos e “que dela faça o que
bem entender, ou que dela faça o que o Papa lhe tinha ordenado antecipadamente”.
(SANTIAGO, 2006, p. 234). Portanto, existia ainda um descolamento da identidade
social no plano religioso, pois, a determinação para as ações do Rei partiam antes do
clero.
O erro de percurso de Cristóvão Colombo, que tentava chegar às índias orientais,
mas acabou aportando na América, somado às caracterizações dadas aos nativos por
Pero Vaz de Caminha acabaram custando aos primeiros habitantes da Terra de Vera
Cruz um processo inicial de desconstrução de uma identidade social (étnica). Processo
esse que no seu curso parece ter seguido as determinações das bulas inter coeteras, pois
muitos dos bens materiais que pertenciaM aos indígenas foram confiscados:
(...) teve a questão do esbulho, onde algumas peças que eram de propriedade
da igreja católica, que no caso como pertenceu a igreja, pertenceu de fato a
comunidade, essas peças traziam um pouco da história da comunidade que
eram além de imagens sacras, tinham algumas outras como, como
confecções da época feito em crochê, mas com a expulsão dos religiosos tudo
foi confiscado (URUPÊS, 2011).

Faz-se valer não só a vontade do outro, mas também a apropriação da vida e das
produções sociais e materiais dos que não fazem parte da cultura dominante. Desfocam-
se os bens produzidos e as determinações sobre a vida alheia para outro plano de
decisão.
Quando não aceita como válida a cultura do outro e negam que outros povos
possam se organizar a partir de princípios que não os seus, atribui-se uma identidade a

29
Trata-se de um dos marinheiros a quem o capitão-mor incumbiu de fazer as primeiras explorações nas
Terras de Vera Cruz. Foi também primeiro a ter contato com os habitantes destas terras.
60

esses povos diferentes das suas, na maioria das vezes a identidade dos que têm maior
poder é imposta aos demais. Esse não reconhecimento das singularidades de povos que
se organizam diferentemente da lógica dominante recebe o nome de etnocentrismo.
Uma visão etnocêntrica surge quando a sociedade e a cultura materna do dominador são
consideradas como verdadeiras e únicas, sendo assim medida para todas as coisas.
Esse processo de generalização da condição indígena em detrimento da
diversidade que envolve esses povos contribui para a (des) construção da identidade do
“ser índio”. Essa desconstrução muito se deve ao imaginário que reveste o modo de
viver desses povos. Segundo João Pacheco de Oliveira (1999, p. 115), a “representação
quotidiana sobre o índio é a de um indivíduo morador da selva, detentor de tecnologias
mais rudimentares e de instituições mais primitivas, pouco distanciado da natureza”.
Cria-se uma categorização onde todo índio para ser de verdade precisa se enquadrar nos
parâmetros “selvagens”, não se pensa o indivíduo na sua especificidade étnica e
cultural.
Não se evidencia a dimensão pessoal da identidade, pois a homogeneização
impossibilita a percepção de parâmetros que diferenciem um indivíduo em relação ao
outro. Assim, ao tratar um indivíduo de determinada etnia como igual a outro de uma
etnia diferente, nega-se sua singularidade, ou seja, desconstrói a sua identidade pessoal.
Ao mesmo tempo, a identidade social acaba por incluir todos numa única classificação –
índios – ação que prima por diferenciar este grupo de outros na sociedade e não por
aglutinar elementos de identidade comuns, que, por sua vez, teriam que respeitar as
singularidades dos sujeitos que compõem um determinado grupo social (étnico).
A Carta de Pero Vaz de Caminha, no seu afã descritivo, quando interessa, trata
todos indistintamente, mas em se tratando das índias, com os olhos desprovidos do
pudor cristão e com suas palavras, decora o corpo feminino com estilo gracioso e com
vários trocadilhos:
(...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis,
com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão
altas e tão cerradinhas e tão limpas as cabeleiras que, de as nós muito bem
olharmos, não se envergonhavam.
(...) E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela
tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa
que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições
envergonhara, por não terem as suas como ela (SANTIAGO, 2006, p.
237).

Sobre os registros e o processo de constituição dos indígenas, Francisco Cancela


61

(2009, p. 16) afirma que os relatos que existem sobre esses povos estão quase sempre
repletos de interesses e objetivos relacionados ao processo de conquista,
consequentemente, são forjados a partir de aspectos políticos e ideológicos. Nesse
sentido, a ótica cultural europeia prevalece nos relatos e, sendo assim, estes trazem de
forma explícita ou implicitamente uma gama de preconceitos, discriminações e
desconstruções de identidades pessoal e social.

2.1 Índios no Brasil: (des)construções e resistências

O imaginário social acerca do índio brasileiro se constituiu desde o século XVI


sobre forte influência europeia. Edgar Teodoro da Cunha (2004), ao apresentar estudo
acerca da imagem de índios brasileiros, evidencia “visões fantásticas de novas terras,
com plantas e animais desconhecidos e povos à semelhança de homens, porém com
costumes ditos ‘bárbaros’, como a antropofagia e a poligamia” (CUNHA, 2004, p. 101).
Na sua análise, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (1993) defende que esse tipo
de enquadramento dos indígenas se valeu de um olhar voltado para o universo mítico
desses povos, assim, os mais diversos tipos de relatos e registros artísticos tratam os
indígenas como “gentios” (pagãos), “brasis”, “negros da terra” (índios escravizados) e
“índios” (índios aldeados) (CUNHA, 1993, p. 108).
Outros olhares convergem para a (des) construção da identidade dos povos
tradicionais, entretanto, é preciso ter claro que todo esforço para conhecê-los teve como
parâmetros os interesses dos europeus. O modo de agir dos colonizadores, as legislações
e normatizações voltadas para os índios eram movidas não pelo respeito e
reconhecimento da identidade do outro, mas especificamente se levavam em
consideração as necessidades mercantis dos “descobridores”.
Para se estudar a imagem do índio a partir do olhar do “outro”, é preciso ir além
dos estudos antropológicos, assim os trabalhos de cronistas do século XVI até o século
XIX, estudos sobre cultura material e pinturas se constituem em fontes de informação
etnográfica e de representações30. Por conseguinte, revisitar alguns aspectos históricos
pode possibilitar o entendimento da identidade atribuída ao indígena, dos processos de

30
Como o estudo da imagem do índio brasileiro não é temática principal desta pesquisa, estes aspectos
são aqui utilizados para caracterizar períodos e fatos históricos.
62

“mistura31” desses povos, bem como as formas de resistência de algumas etnias.


Os subsídios para compreensão do índio brasileiro partem do entendimento de
uma cronologia que tem início em 1500, quando se “descobrem” os nativos e nos anos
seguintes se organizam expedições de exploração na costa brasileira, indo do litoral do
Nordeste e o rio da Prata até o sul do continente (RIBEIRO, 1983, p. 57).
As incursões e fundações de vilas tiveram destaque nos primeiros trinta anos que
se seguiram à chegada dos colonizadores. A cronologia aponta que no ano de 1511,
durante o regime de feitorias, o comércio de pau-brasil foi regulamentado e, em 1532, a
Vila de São Vicente foi fundada por Martim Afonso de Souza, que aí plantou cana-de-
açúcar e instalou engenhos (LINHARES, 1990, p. 32).
A exploração desses produtos no Brasil, e que já vinha sendo feita na América
“descoberta” por Cristovão Colombo, se deu inicialmente por meio da escravização de
índios. O regime de trabalho forçado levou o Papa Paulo III a divulgar, em 1537, uma
Bula contrária à escravização de índios na América (LINHARES, 1990, p. 41).
Mediante perseguições e privação de liberdade registram-se, em 1538, os
primeiros focos de resistência indígena, sendo o primeiro desses registros o ataque dos
índios Tupinambás à Capitania do Espírito Santo (PREZIA e HOORNAERT, 1989).
Nos anos que se seguiram (1538 – 1547) várias manifestações de resistência
aconteceram: 1540, em Ilhéus/BA, iniciou-se uma longa rebelião dos Tupinambás
contra os portugueses (PREZIA e HOORNAERT, 1989); índios empreenderam ataques
à Capitania do Espírito Santo em Vila Velha, em 1545; nos anos seguintes, após
conflitos com índios, o donatário da Capitania de São Tomé, Gonçalo Monteiro, fugiu
para Portugal; no ano de 1547, enquanto os índios Tupinambás atacavam a Capitania de
Santo Amaro, índios Carijós eram escravizados na Capitania de São Vicente (RIBEIRO,
1983; PREZIA e HOORNAERT, 1989).
As controvérsias em torno da escravização dos índios seguiram. A Carta Régia
de 1549 instituiu o Governo Geral no Brasil, Tomé de Souza tornou-se o primeiro
governador e seu regimento recomendava “o cuidado com os índios” (RIBEIRO, 1983,
p. 74). No entanto, quatro anos depois, surgiram as “guerras justas” a partir do
Regimento de Tomé de Souza, sendo permitida a escravização de índios e a apropriação
de suas terras (RIBEIRO, 1983, p. 75).
A consolidação do poder colonial se valeu de uma série de ações nos anos que se
31
Autores como João Pacheco de Oliveira (1998) e Maria Rosário Carvalho (2011) apresentam estudos
voltados para análise desta perspectiva de “índios misturados”, pela aproximação com a fricção
interrétnica da Missão dos Sahy esse termo será recorrente no presente estudo.
63

seguiram, dentre essas se destacam a nomeação, por Carta Régia em 23/07/1556, de


Mem de Sá como governador geral do Brasil. Com o poder instituído pela Carta Régia,
o novo governador declarou guerra contra os inimigos da Coroa Portuguesa, sendo os
maiores deles os índios. Os desdobramentos dessa atitude ficam evidenciados em duas
grandes investidas de Mem de Sá contra os índios no Nordeste: a primeira ação
repressiva é o massacre de milhares de índios Tupiniquins, ocorrido em Ilhéus/BA no
ano de 1560. A segunda foi a chamada “Guerra justa” contra os índios Caetés em
Pernambuco e na Bahia (1560 e 1562).
Além das perseguições do governo geral nos anos seguintes, os índios do
Nordeste, sobretudo da Bahia, foram acometidos pela varíola, que dizimou milhares
deles em três diferentes anos: em 1562 mais de 30 mil índios e negros foram dizimados
na Bahia; um ano depois a doença vitimou 70 mil índios Caetés, e em 1584 outra
epidemia de varíola atacou os índios na Bahia (RIBEIRO, 1983, p. 81).
As perseguições e as doenças não calaram os índios do Nordeste, o que se viu
até a instituição da Lei de 31/12/1601, que aboliu a escravidão indígena, foi uma série
de rebeliões: Rebelião de índios Tupiniquins em Ilhéus/BA (1559); revolta dos índios
escravizados no Recôncavo baiano, entrando em confronto com índios aldeados por
jesuítas (1567); rebeliões indígenas em Pernambuco e na Paraíba e guerra aos índios do
norte da Bahia – atual Sergipe, em1575 – sendo expulsos da localidade em 1589;
rebelião de índios Potiguara na Paraíba, com duração de 13 anos (1586) e rebelião dos
índios Aimorés contra os moradores das Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro (1597)
(PREZIA e HOORNERT, 1989, p. 65-74).
Não que essas tenham sido as únicas resistências indígenas no Brasil, mas foram
algumas que aconteceram no Nordeste nos primeiros cem anos de contato dos índios
com os colonizadores. Nos anos do século XVI, o que se viu foram conflitos entre as
ordens religiosas e a investidas na pacificação dos indígenas. Assim, em 1593,
aldeamentos jesuíticos da Capitania da Paraíba foram confiscados para a ordem
franciscana, sendo expulsos os jesuítas e os índios Potiguaras do Rio Grande do Norte
foram pacificados no ano de 1599 (LINHARES, 1990, p. 98).
Valendo-se ainda de subsídios cronológicos que levem à compreensão do
processo de “mistura” e resistência dos índios brasileiros, o livro “A Presença Indígena
na Formação do Brasil”, de João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire
(2006), revela algumas ações colonizadoras e as consequentes revoltas e guerras
encampadas pelos índios brasileiros.
64

No início do século XV, mais precisamente entre os anos de 1601 e 1611, os


colonizadores editaram algumas leis relacionadas à abolição indígena (1601), como
também à proibição da escravidão (1605). Por outro lado, o avanço de bandeirantes,
como Manuel Preto, continuava aprisionando os índios em diferentes regiões, em 1602
aprisionam cerca de 3.000 Temiminós e em 1605 investiram contra os índios no Guairá.
Como outrora, o que se viu nos anos seguintes foi uma grande dizimação dos
nativos acometidos pela varíola e também diversas revoltas e guerras, a exemplo da
batalha entre portugueses e índios em Porto Seguro/BA (1609); na “França Equinocial”
(Maranhão), portugueses e índios Tremembés se uniram para derrotar os franceses que
ali buscavam dominar as terras e os povos (1615); na Amazônia índios Tupinambás
entraram em conflito com portugueses (1617); portugueses derrotaram os Tupinambás
numa revolta contra o Forte do Presépio em Belém (1619); no ano de 1628, bandeiras
paulistas atacaram índios Guaranis e missionários jesuítas nas missões do Guairá; no
mesmo ano na Bahia aconteceu uma guerra dos bandeirantes contra índios em
Jaguaripe, Paraguaçu e Maragogipe.
Esse quadro se estendeu século adentro e em todo o território nacional. Na
tentativa de consolidar a dominação indígena, de um lado os colonizadores continuavam
criando decretos e leis voltados para a libertação dos índios, mas em outra frente eram
organizadas as Missões, por diferentes congregações, intentando “salvar-lhes a alma”.
Estando os índios “amparados” pelas Missões, o que se viu foram grandes conflitos
entre índios e bandeirantes por todo o Brasil.
Nesse contexto histórico, as Missões precisam ser compreendidas como
unidades básicas de ocupação territorial e de produção econômica. Com essas
premissas32, os Franciscanos avançaram em direção à Missão do Sahy, pois como conta
a historiografia e as narrativas populares, a intenção era ter um canto para “pousar” e
seguir viagem no afã desbravador. Como se depararam no norte da Bahia com uma
região “chã e formosa”, assim como os portugueses ao aportarem no sul do estado 197
anos atrás, decidiram tanto ocupar quanto explorar economicamente a região, valendo-
se do trabalho escravo de índios e negros.
No campo historiográfico, os fatos têm um desencadeamento lógico que acaba
aparentando certa normalidade, mas para os descendentes que escutaram as histórias dos

32
A palavra está sendo utilizada considerando as duas acepções, a primeira no campo da lógica, onde se
cruzam duas proposições e a segunda no sentido que segue: sf (alteração de premícia) Antigo direito dos
párocos de receberem uma certa parte das primeiras produções das terras.
65

seus antepassados e agora estão com a maracá 33 nas mãos, a significação deste momento
histórico é outra.
... nem todos obedeciam às imposições dos franciscanos, então teve algumas
resistências, no entanto que houve até genocídios, muitos genocídios aqui. E
poucos anos depois, se não me engano 5 anos depois, a mesma tribo foi
forçada a construir a comunidade de Missão do Sahy (URUPÊS, 2011).

Quando os branco de Portugal chegou aqui os índios tava tudo em paz. Mas
foi tanta cachorro atrás de caboco por esses mato da Missão que num teve
jeito, foi tudo prá chobata. Trabaió duro, de escrevo mesmo. Ainda quere
saber purque num tem índio de verdade aqui (UPIARA, 2011).

A ascensão das Missões Franciscanas se valeu da perseguição e expulsão de


Jesuítas em diversas localidades, o que acabou levando o Marquês de Pombal a criar o
regime de Diretório dos Índios, substituindo o Regimento das Missões (RIBEIRO,
1983, p. 75). O “Diretório” foi uma lei editada em 1755 por D. José I, rei de Portugal,
através de seu ministro, o Marquês de Pombal, que dispunha sobre os aldeamentos
indígenas do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Em 1758, um Alvará estendeu estas
medidas para o Estado do Brasil. Esse diretório extinguiu o trabalho missionário dos
religiosos nos aldeamentos, elevando estes à condição de vilas ou aldeias, administradas
por um diretor.
Com o Diretório ficava assegurada a liberdade aos índios. Cada vila ou aldeia
deveria ter uma escola, com um mestre para os meninos e outro para as meninas, sendo
proibido o uso de outro idioma que não o português. Os indígenas deveriam ter
sobrenome português. Ficou proibida a nudez, as habitações coletivas, o uso da língua
brasileira (tupi), sendo punido com morte quem desacatasse. Também se estimulou a
mestiçagem.
A política estabelecida pelo Marquês de Pombal buscava incorporar o índio à
sociedade dos brancos, transformando-o em um trabalhador ativo, a fim de assegurar o
povoamento e a defesa do território colonial. Em 1798, o Diretório foi revogado. Os
índios aldeados foram emancipados e equiparados aos outros habitantes do Brasil.
Ao analisar essa cadeia cronológica de fatos históricos, um grupo de autores34
identifica um processo de estigmatização das populações indígenas da época:

33
Nos rituais coletivos dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, do sul da Bahia, a maracá sempre está presente, seja nas
danças ou nas rodas de conversa, nesta última o momento de falar é quando se tem nas mãos esta pequena
cabaça oca ornamentada com penas e com pedrinhas dentro.
34
Beatriz Dantas, José Augusto Laranjeiras Sampaio e Maria do Rosário Carvalho, “Os Povos Indígenas
no Nordeste Brasileiro: Um Esboço Histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.), História dos
Índios no Brasil. São Paulo: FAPESP/SMC/Companhia das Letras, 1992.
66

a partir da segunda metade do século, sobretudo, os índios dos aldeamentos


passam a ser referidos, com crescente frequência, como índios ‘misturados’,
agregando-se-lhes uma série de atributos negativos que os desqualificam e os
opõem aos índios ‘puros’ do passado, idealizados e apresentados como
antepassados míticos (DANTAS, SAMPAIO E CARVALHO, 1992, p. 451).

Eis aí o que está sendo chamado de (des)construção das identidades pessoal e


social. Portanto, essa categoria que está sendo utilizada para compreender os percursos
formativos dos índios ganha ancoragem nas formulações relacionadas ao que os autores
chamam de “índios misturados”, ou seja, no percurso histórico desses povos são
recorrentes as tentativas de demarcar uma distintividade cultural alicerçada no discurso
de que os índios são culturalmente misturados.
Desde a instauração das Missões existiu uma intenção explícita de promover
uma acomodação entre diferentes culturas, homogeneizadas pelo processo de catequese
e pelo disciplinamento do trabalho (OLIVEIRA, 1994, p. 07). A constituição de uma
situação interétnica parte desta “mistura” articulada com necessidade de mercado da
época. É nesse contexto que o final do século XIX, com a abolição da escravatura
(1888) e a Proclamação da República (1889), chega acompanhado de resistências e
outros conflitos envolvendo indígenas, por exemplo no Nordeste, onde índios aliaram-
se aos sertanejos em Canudos/BA para combater tropas governamentais.
Após o advento da República, mais precisamente no início do século XIX, o
trato para com os indígenas começa a ganhar novos contornos, isso muito se deve à
nomeação do então capitão Cândido Rondon para chefiar a Comissão Construtora de
Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso (MACIEL, 1998). Nesse estado Rondon
começou a demarcar terras para os índios Terenas; comandou trabalhos de
reconhecimento, como na região do rio Juruena, área dos índios Nambiquaras
(GAGLIARDI, 1989, p. 44); lutou pela criação do Decreto 8.072/1910 que criou o
Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN),
sendo nomeado como diretor do órgão SPILTN três meses depois.
Após a inserção de Cândido Rondon às questões dos índios, os etnógrafos,
antropólogos e historiadores passaram a analisar não mais a situação do índio pelo viés
da colonização, passam a valer as chamadas ações indigenistas. Também os conflitos
não mais foram vistos na perspectiva das revoltas e guerras, passou-se a registrar e
valorizar os atos e processos organizativos dos povos indígenas e as ações da sociedade
civil destinadas às questões desses povos, isso se deu por meio de publicações como
67

folhetos, em 1910, de Raimundo Teixeira Mendes 35, “A civilização dos indígenas


brasileiros e a política moderna” e “Em defesa dos selvagens brasileiros”; “A questão
dos índios do Brasil” de Hermann Von Ihering 36 em 1911; Darcy Ribeiro37 publicou
respectivamente em 1950 e 1962 os livros “Religião e Mitologia Kadiwéu” e “A
Política Indigenista Brasileira”.
Na mesma linha de valorização dos atos e processos organizativos, outras ações
foram surgindo, a reorganização e o fortalecimento do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) acumulou uma sucessão de decretos que buscavam organizar o órgão, bem como
uma sucessão de diretores, chegando a ter em 1965 um total de 126 postos indígenas,
divididos entre 9 inspetorias e 2 ajudâncias.
Cândido Rondon continuava desenvolvendo ações e arregimentando estudiosos
para a causa indígena, assim foram feitas pressões para que o Presidente Getúlio Vargas,
em 1952, autorizasse a formulação de um projeto para a criação do Parque Indígena do
Xingu (FREIRE, 1990, p. 66). Dois anos depois, pelo Decreto nº 50.455/1954, foi
criado o Parque do Xingu. No mesmo ano, Rondon e o antropólogo Darcy Ribeiro
criaram o Museu do Índio. Ainda pela Lei nº 5.371/1967, foi autorizada a instituição da
Fundação Nacional do Índio – FUNAI (SARQ/Museu do Índio).
No que se refere à organização dos povos indígenas, a partir dos anos 70, várias
reuniões e encontros começaram acontecer em todo o Brasil. Em 1974 foi realizada a 1ª
Assembleia Indígena Nacional, ocorrida na Missão de Diamantino (Mato Grosso),
reunião que até hoje ainda ocorre. Uma importante ação foi a criação da Associação
Nacional de Apoio ao Índio (ANAÍ), em 1977 (RICARDO, 1980). Também foi
realizado em Brasília, em 1982, o I Encontro Nacional de Povos Indígenas do Brasil
com a presença de 200 índios (PREZIA, 2003, p. 15).
Foi esse processo de organização que levou nove índios de várias regiões do país
a serem candidatos a deputado federal, objetivando a participação na Assembleia
Nacional Constituinte (CEDI, 1987). Esses avanços permitiram que na Constituição
Brasileira de 1988 fossem dispostos vários artigos sobre direitos indígenas – art. 20º,

35
Filósofo e matemático brasileiro (1855 – 1927). Defensor do Positivismo, a interpretação da realidade à
luz da doutrina comtiana, o levou a defender a abolição da escravatura, a proclamação da república, a
separação entre a Igreja e o Estado.
36
Von Ihering (1850 – 1930) foi médico, professor e ornitólogo teuto-brasileiro. Fundador do Museu
Paulista, dedicado à história natural. Foi também o criador do Jardim Botânico no Rio de Janeiro. Seus
estudos abrangeram várias áreas da história natural, tendo publicado sobre botânica, antropologia e
etnologia.
37
Ribeiro (1922 – 1997) dedicou-se as áreas de educação, sociologia e antropologia. Publicou vários
livros, vários deles sobre os povos indígenas.
68

22º, 49º, 109º, 129º, 176º, 210º, 215º, 216º, 231º e 232º, além do art. 67º do Ato das
Disposições constitucionais provisórias.
No campo educacional, as conquistas chegam à institucionalização de algumas
políticas. A Portaria Interministerial nº 559/MJ-MEC criou na pasta da Educação a
Coordenação Nacional de Educação Indígena e também garantiu aos índios o ensino
bilíngue (D.O. 17/4/1991). No ano seguinte foi instituído, pelo Secretário Nacional de
Educação Básica do MEC, o Comitê de Educação Escolar Indígena (CEEI). O
Ministério divulgou, em 1993, as “Diretrizes para a Política Nacional de Educação
Escolar Indígena”, durante o I Seminário Nacional de Educação Indígena (RICARDO,
1996, p. 71). Esses seminários ocorrem até hoje com a participação de diferentes etnias.
Esses avanços e conquistas não conseguiram por fim aos conflitos, só que agora
os inimigos dos índios têm outra face, são pessoas que invadem e exploram ilegalmente
as terras indígenas. Em 1984, um índio Kiriri de Mirandela/BA foi assassinado durante
o processo de luta pela demarcação das terras dos Kiriris. Em outra ação, no ano de
1987, quatro índios Yanomamis morreram num conflito com garimpeiros e três índios
Xakriabás, habitantes da reserva de Itacarambi (MG), foram mortos por grileiros. Em
1989, três índios Korubos, que viviam isolados entre os rios Ituí e Itaquaí (AM), foram
assassinados por seringueiros, caçadores e madeireiros, essas mortes impulsionaram a
criação da “Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB)” instituição que vem denunciando e combatendo as investidas contra os
índios.
Mas nem só por terras os indígenas são assassinados. Em 1997, o índio Galdino
Jesus dos Santos, da etnia Pataxó (Bahia), foi queimado vivo em Brasília, vindo a
morrer dias depois num hospital da cidade (RICARDO, 2000, p. 73).
Atualmente as investidas contra os indígenas estão muito ligadas ao modelo de
crescimento econômico brasileiro que prima pelos avanços tecnológicos e das
produções, essas prioridades acabam gerando uma competição injusta e desleal para
com os índios. Para a líder indígena Sônia Guajajara38, não se trata de serem “contra o
desenvolvimento do país, mas ele não pode crescer deixando seus filhos para trás nem
tão pouco desconsiderar os direitos existentes39”. Para fazerem frente aos ataques
sofridos, entidades indígenas, durante a Conferência do Clima das Organizações das

38
Vice Coordenadora da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e
Membro da Direção Nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
39
Discurso proferido na Conferência do Clima da ONU, em dezembro de 2012. Pronunciamento com
base na Carta Denúncia da APIB às Nações Unidas.
69

Nações Unidas (ONU), realizada em dezembro de 2012 em Doha, no Catar,


encaminharam uma Carta Denúncia onde, dentre tantas questões, afirmam que: a
superação da pobreza e das desigualdades não pode ser feitas à margem da proteção e
promoção dos direitos dos povos e comunidades indígenas.
Hoje o combate a esses ataques vem revelando alguns expoentes que descendem
de diferentes etnias40. Mas outrora essa defesa ficava a cargo de não índios como os já
citados Marechal Cândido Rondon e Darcy Ribeiro, contudo, para se entender esse
processo de organização indígena faz-se necessário considerar as ações dos irmãos
Villas Bôas.
Os sertanistas brasileiros Orlando (1914-2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo
Villas Bôas (1918-1961), no início de 1943, ingressaram nas primeiras atividades da
Expedição Roncador-Xingu, criada pelo governo de Getúlio Vargas. O objetivo de
conhecer e desbravar as áreas desconhecidas no centro-oeste e norte do Brasil levou o
Presidente a decretar a Marcha para o Oeste. Já no primeiro ano do Estado Novo (1937
– 1945), Vargas pronunciou que:
A civilização brasileira mercê dos fatores geográficos, estendeu-se no sentido
da longitude, ocupando o vasto litoral, onde se localizaram os centros
principais de atividade, riqueza e vida. Mais do que uma simples imagem, é
uma realidade urgente e necessária galgar a montanha, transpor os planaltos e
expandir-nos no sentido das latitudes. Retomando a trilha dos pioneiros que
plantaram no coração do Continente, em vigorosa e épica arrancada, os
marcos das fronteiras territoriais, precisamos de novo suprimir obstáculos,
encurtar distâncias, abrir caminhos e estender fronteiras econômicas,
consolidando, definitivamente, os alicerces da Nação. O verdadeiro sentido
de brasilidade é a Marcha para o Oeste. No século XVIII, de lá jorrou o
caudal de ouro que transbordou na Europa e fez da América o Continente das
cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de ir buscar: — dos vales
férteis e vastos, o produto das culturas variadas e fartas; das entranhas da
terra, o metal, com que forjar os instrumentos da nossa defesa e do nosso
progresso industrial (Pronunciamento no Palácio Guanabara e irradiado para
todo o País, à Meia-Noite de 31 de Dezembro de 1937).

Movidos por essa Marcha, os irmãos Villas Bôas integraram o grupo chefiado
pelo Marechal Cândido Mariano Silva Rondon, que também contava com a presença de
membros como Heloísa Alberto Torres, então Diretora do Museu Nacional; Café Filho,
vice-presidente da República; Darcy Ribeiro e José Maria da Gama Malcher, diretor do
40
Ládio Veron, líder guarani kaiowá (MT); Gersem dos Santos Luciano Baniwa, antropólogo e líder
indígena, representante indígena no Conselho de Educação; Raoni Metuktire, líder dos Kayapó de Mato
Grosso teve seu primeiro com os irmãos Villas Bôas na década de 50, nos anos 80 ganhou notoriedade ao
lutar contra a instalação da usina hidrelétrica de Kararaô, no rio Xingu, hoje reeditada como usina de Belo
Monte. Megaron Txucarramãe, também é líder Kayapó e encampa a luta contra a instalação da usina de
Belo Monte, essa luta lhe rendeu a exoneração em outubro de 2012 do cargo de chefia que exercia no
Parque Indígena do Xingu. Hoje vários outros conhecidos e anônimos defendem suas causas.
70

Serviço de Proteção aos Índios e também o médico sanitarista Noel Nutels.


Foi no baixo, médio e alto Xingu41, localizados na região nordeste do Estado do
Mato Grosso, que atuaram efetivamente os irmãos Villas Bôas, permanecendo na região
do sertão por 42 anos. Essa convivência com os indígenas fez com que a política
indigenista proposta pelos três irmãos fosse pautada por uma intensa preocupação
protecionista e preservacionista dos povos indígenas, procurando, contudo, interferir o
mínimo possível na vida e na organização social desses povos. Foi com base nessas
premissas que eles conduziram pacificamente o contato com todas as tribos indígenas da
região do Xingu e lá implantaram uma reserva (Parque Indígena do Xingu), cuja
intenção básica foi proteger e resguardar os povos indígenas xinguanos de contatos
indiscriminados com as frentes de penetração de nossa sociedade.
A importância da convivência dos sertanistas como os povos do Xingu foi
evidenciada por Darcy Ribeiro (1997), ao afirmar que:
Os Villas Bôas dedicaram todas as suas vidas a conduzir os índios xinguanos
do isolamento original em que os encontraram até o choque com as fronteiras
da civilização. Aprenderam a respeitá-los e perceberam a necessidade
imperiosa de lhes assegurar algum isolamento para que sobrevivessem.
Tinham uma consciência aguda de que, se os fazendeiros penetrassem
naquele imenso território, isolando os grupos indígenas uns dos outros,
acabariam com eles em pouco tempo. Não só matando, mas liquidando as
suas condições ecológicas de sobrevivência (RIBEIRO, 1997, p. 194).

Os Villas Bôas idealizaram e propuseram uma política indigenista fundada em


dois princípios básicos: a) os índios só sobrevivem em sua própria cultura; b) os
processos integrativos ocorridos historicamente no Brasil teriam, via de regra,
conduzido à desagregação das comunidades indígenas e não à sua efetiva participação
em nossa sociedade. Nesse sentido, já no prefácio do livro “Xingu: os índios, seus
mitos” apontam que a verdadeira defesa do índio está associada ao respeito e garantia da
sua existência de acordo com seus próprios valores, pois, não cabe aos "civilizados"
criar condições adequadas para integração dos índios, isso porque qualquer tentativa de
integrá-los é o mesmo estabelecer um plano para a sua destruição (VILLAS BÔAS,
Orlando; VILLAS BÔAS, Cláudio, 1975, p. vii).
Foram essas contribuições aos povos indígenas que acabaram por balizar outras
ações indigenistas por todo o Brasil, contribuições ainda hoje reconhecidas pelos índios

41
A região é dividida em três partes: uma ao norte (conhecida como Baixo Xingu), uma na região central
(o chamado Médio Xingu) e outra ao sul (o Alto Xingu). Na parte sul ficam os formadores do rio Xingu;
a região central vai do Morená (identificada pelos povos do Alto Xingu como local de criação do mundo)
à Ilha Grande.
71

que encampam as lutas pelos seus povos. Tamanho foi o reconhecimento aos trabalhos
dos irmãos Villas Bôas que, em 08 de janeiro de 1975, quando foi noticiada a
aposentadoria destes, o Jornal do Brasil estampou em suas páginas: “No adeus dos
Villas Bôas, a orfandade de uma cultura” (MAGALHÃES, 2003, p.146).

2.2 Yãykix pupi hãhãm: a atual face dos índios brasileiros

Luta pela terra (yãykix pupi hãhãm) é uma frase da língua Maxacalí 42 que pode
ser bem aplicada para tratar a atual busca dos indígenas pelos seus direitos. Luta que
tem como centralidade a busca pela garantia de direitos territoriais, por outro lado, esta
luta vai de encontro às políticas que priorizam o crescimento econômico por meio do
avanço tecnológico e dos sistemas de produções.
A compreensão da luta pela demarcação dos territórios indígenas passa
necessariamente pelo conhecimento de alguns dados oficiais, mesmo que estes
apresentem disparidades, pois são estes que acabam balizando as políticas voltadas aos
povos tradicionais.
A inconsistência dos dados oficiais somada à inexistência de um censo
específico dificultam o conhecimento e reconhecimento de muitas comunidades
indígenas. Luciano Gersem Baniwa43 (2010) destaca que os dados captados por órgãos
como a Fundação Nacional de Saúde - FUNASA e Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE apresentam variações que vão de 450 mil a 700 mil indígenas. Ou
seja, os dados da FUNASA/SIASI/2009 registram 558.185 indígenas aldeados, já o
IBGE/2001 aponta 734.000 indígenas, vivendo ou não em aldeias.
Os dados demográficos, ao demonstrarem a redução do território indígena,
possibilitam a compreensão da luta pela legalização desses espaços, outrora ocupados
com liberdade pelos índios. Dados da FUNASA apontam que as 278 etnias indígenas

42
Dentre as línguas indígenas faladas no Brasil há uma parte do tronco linguístico denominado Macro Jê.
A partir de cada troco surge uma família linguística, como é o caso da Maxacalí. Essa língua é falada
pelas etnias que vivem nos estados da Bahia e de Minas Gerais, mais precisamente os Maxacalí, Pataxó e
Pataxó Hã-hã-hãe.
43
Gersem dos Santos Luciano Baniwa é líder indígena, representante indígena no Conselho de Educação
e autor do primeiro livro da série Via dos Saberes: “O índio brasileiro – O que você precisa saber sobre os
povos indígenas no Brasil de hoje”, produzida pelo projeto Trilhas de Conhecimento, a série Via de
Saberes é composta de quatro livros sobre os índios brasileiros e foi publicada em 2006, na Coleção
Educação para Todos, da Unesco e do MEC.
72

demograficamente são formadas por uma população de 560 mil indivíduos


aproximadamente. Estão pulverizados em 664 terras, ocupando cerca de 12,6% do
território nacional (851.487.659,9 hectares), que corresponde a aproximadamente
107.575.079 hectares.

Quadro 02 - Terras indígenas no Brasil Superfície do Território Nacional


SITUAÇÃO Nº DE TERRAS SUPERFÍCIE (ha)
Em estudo/restrição 144 0
Delimitada 19 961.025
Declarada 54 7.672.346
Homologada 22 341.354
Encaminhada como Reserva Indígena 21 27.545
Regularizada 404 98.572.810
Total 644 107.575.079
Fonte: Ministério da Justiça/DAF-Diretoria de Assuntos Fundiários/ FUNAI. Detalhe do Mapa―BRASIL,
Situação Fundiária Indígena, 2009.

Contrapondo os dados da FUNASA, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI diz


ter o Brasil 218 etnias indígenas, entidades missionárias divulgaram em suas pesquisas
(2010 e 2011) que estes números podem alcançar 340 etnias. Chegam a este número a
partir da ampliação do universo indígena, ou seja, distribuem as etnias da seguinte
forma: 228 reconhecidas oficialmente; 27 isoladas; 10 parcialmente isoladas; 25 ainda a
serem pesquisadas; 9 possivelmente extintas e 41 etnias ressurgidas – “etnogênese” 44
(LIDÓRIO, 2010).
Essas reconfigurações surgem na esteira de tentativas de se estabelecerem
políticas de valorização dos índios e oferta de garantias legais dos seus direitos. Por um
lado a Constituição brasileira de 1988 reconheceu a organização social indígena e os
direitos dos índios, das comunidades e das organizações (Capítulo VIII da Constituição
da República Federativa do Brasil – 1988). Por outro lado, essas garantias e valorização
foram reforçadas pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT
de 1989.
No tocante à Constituição de 1988, criou-se um capítulo voltado para os
indígenas (Dos Índios). Este se encontra inserido no Titulo III ― “Da Ordem Social”, e
o destaque do dispositivo legal é o direito à diferença cultural dos índios, pois por muito
tempo prevaleceram as ideias de incorporação e assimilação dos índios à “Comunidade
Nacional”. Assim, o dispositivo destaca:
44
Conceito do campo da antropologia que será retomando posteriormente.
73

Com o texto constitucional em vigor, os índios deixam de ser


considerados como espécie em vias de extinção, sendo-lhes reconhecida
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. À União
não mais caberá a incumbência de incorporá-los à comunhão nacional,
mas de legislar sobre as populações indígenas, conforme o artigo 22 da
Constituição, no intuito de protegê-las (BRASIL, 1994, p.10).

Para Pacheco de Oliveira (1998b), a Convenção 169 da OIT, no seu artigo 1º,
item 2, estabelece que “a consciência de sua identidade indígena (...) deverá ser
considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam
as disposições da presente Convenção (...) critério antropológico de auto identificação
dos grupos étnicos” (OLIVEIRA, 1998b, p. 282). Esta premissa é fundamental para o
atual processo de reconhecimento das comunidades tradicionais, pois traz
implicitamente a noção de respeito à alteridade e ao poder de autonomeação das
coletividades.
Amparados pelos princípios dos “Direitos Originários”, os indígenas travam
lutas que buscam superar a classificação identitária atribuída pelo colonizador, para,
mediante um processo de afirmação cultural, fortalecerem uma identidade politicamente
operante que, por sua vez, evidencie as diferenças étnicas presentes entre os povos
indígenas.
Por parte dos povos e comunidades indígenas, cada vez mais estes veem a
proteção e promoção dos seus direitos relegados a um plano secundário, pois todo
esforço do Brasil para se fixar como um país economicamente relevante no contexto
mundial se faz à custa de um discurso calcado na implementação de políticas de
inclusão social, ou seja, de superação da pobreza e das desigualdades. Mas, essas
políticas não contemplam as necessidade e demandas dos indígenas.
O Brasil adotou um modelo de desenvolvimento que tem se mostrado como
difícil de reverter, pois prioriza o crescimento baseado no processo de reprimarização da
economia, das comodities provenientes da indústria extrativa, sobretudo mineral, e do
agronegócio. É um modelo com forte sustentação na indústria extrativa
agroexportadora. Assim, requer necessariamente a ampliação de infraestruturas, ou seja,
da implantação de grandes empreendimentos, que inevitavelmente impactam terras e
territórios, a vida socioeconômica, física, cultural e espiritual dos povos indígenas e de
outras populações locais.
Para a manutenção desse modelo torna-se necessário fazer vistas grossas às
causas sociais, dentre elas as indígenas. Com essa atitude, o governo acaba se omitindo
74

e sendo conivente com a ofensiva aos direitos indígenas, praticada por meio de medidas
administrativas, legislativas e jurídicas antiindígenas nos diferentes poderes do Estado.
Para se compreender a luta pela terra e os enfrentamentos travados contra uma
política econômica que se interessa pelos territórios indígenas e suas riquezas (minerais,
hídricas, florestais, biodiversidade), é preciso conhecer as leis antiindígenas e as
medidas administrativas e jurídicas que vão contra pautas dos movimentos indígenas e
indigenistas da atualidade.
Um dos sustentáculos da política antiindígena é Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) 215/00. A proposta que se arrasta até os dias de hoje consiste em
transferir para o Congresso Nacional a competência de aprovar a demarcação das terras
indígenas. Para Cleber Buzatto45, a possível aprovação de proposta que transfere do
Executivo para o Congresso a prerrogativa de reconhecer terras indígenas pode impedir
a demarcação de cerca de 700 territórios indígenas, incluindo processos já em
andamento e ainda não iniciados. Completa dizendo que: “os povos indígenas já vivem
hoje em situação de extrema vulnerabilidade social e violência. Com a PEC, o
Congresso pode piorar ainda mais essa situação”46.
A admissibilidade da proposta foi aprovada pela Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ). O texto ainda precisa ser analisado por uma comissão especial antes de
seguir para o Plenário. A aprovação da PEC 215 - assim como da PEC 038/ 99, em
trâmite no Senado, põe em risco as terras indígenas já demarcadas e inviabiliza toda e
qualquer possível demarcação futura. O risco é grande, uma vez que o Congresso
Nacional é composto, na sua maioria, por representantes de setores econômicos
poderosos patrocinadores do modelo de desenvolvimento em curso.
Outro sustentáculo danoso aos indígenas está relacionado ao Projeto de
Mineração. Existe uma articulação da bancada ligada à mineração para aprovar o
Projeto de Lei (PL) 1610/96 que trata da exploração mineral em terras indígenas. A
relatoria em seu texto desconsidera as salvaguardas de proteção da integridade
territorial, social, cultural e espiritual dos povos indígenas, desburocratiza a autorização
da pesquisa e lavra mineral em terras indígenas, assim, abre caminho para uma
exploração centrada no lucro fácil.
No plano das medidas administrativas e jurídicas, o Governo Federal tem

45
Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Declaração dada durante ato político
em defesa dos direitos dos povos indígenas no Plenário 1 da Câmara dos Deputados em 04/12/2012.
46
Declaração dada durante ato político em defesa dos direitos dos povos indígenas no plenário 1 da
Câmara dos Deputados em 04/12/2012.
75

publicado nos últimos dois anos uma série de Decretos e Portarias contrários aos
Direitos indígenas. Na Carta Denúncia da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB) às Nações Unidas, os movimentos sociais indígenas denunciam as seguintes
ações:
Portaria 2498/2011 que objetiva a participação dos entes federados (Estados e
municípios) no processo de identificação e delimitação de terras indígenas;
ao editar esta medida, o governo ignorou o Decreto 1775/96 que institui os
procedimentos de demarcação das terras indígenas e que já garante o direito
do contraditório alegado para a criação desta Portaria.
Portaria 419/2011, que regulamenta a atuação do órgão indigenista, a
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em prazo irrisório, nos processos de
licenciamento ambiental, para facilitar a implantação de empreendimentos do
Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (hidrelétricas, mineração,
portos, hidrovias, rodovias, linhas de transmissão etc.) nos territórios
indígenas.
Portaria 303/2012 que busca estender para todas as terras indígenas as
condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Judicial
contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.888-Roraima/STF). O
Governo editou a Portaria mesmo sabendo que a decisão do STF sobre os
embargos declaratórios da Raposa Serra do Sol ainda não transitou em
julgado e estas condicionantes podem sofrer modificações ou até mesmo
serem afastadas pela Suprema Corte. A Portaria afirma que as terras
indígenas podem ser ocupadas por unidades, postos e demais intervenções
militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho
estratégico, sem consulta aos povos e comunidades indígenas e à FUNAI;
determina a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas que não
estiverem de acordo com o que o STF decidiu para o caso da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol; ataca a autonomia dos povos indígenas sobre os seus
territórios; limita e relativiza o direito dos povos indígenas sobre o usufruto
exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras indígenas assegurado
pela Constituição Federal; transfere para o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade o controle de terras indígenas, sobre as quais,
indevida e ilegalmente, foram sobrepostas Unidades de Conservação; e cria
problemas para a revisão de limites de terras indígenas demarcadas, que não
observaram integralmente o direito indígena sobre a ocupação tradicional.
(APIB, 2012)

Essas medidas acabam por estabelecer um clima de apreensão e tensionamento


que agrava a insegurança jurídica e social já instalada há décadas. Contribui para o
aumento de conflitos agrários entre indígenas e agricultores, bem como o aumento da
exploração ilegal de terras, pois a morosidade do Estado em reconhecer, demarcar e
proteger os territórios dos povos indígenas faz com que as invasões ocorram numa
enorme velocidade, por outro lado, a restituição e demarcação das terras guiadas por
essas ações governamentais são lentas e ineficazes.
Todo esse contexto político requer uma resistência dos indígenas que defendem
a duras penas suas terras e sua cultura, mas o contra-ataque vem muitas vezes de forma
truculenta e permeado pelas violações de direitos e atentados à própria vida dos
76

indígenas. Na carta às Nações Unidas também é denunciado que:


No dia 07/11 - Um indígena do povo Munduruku – MT, foi assassinado
brutalmente durante uma operação da Polícia Federal em território já
demarcado;
No MS, indígenas Kadiwéu são despejados de terras homologadas há mais de
um século e Guarani-Kaiowá sofrem ataques dos mais diversos tipos e são
assassinados dentro de suas casas, como se não bastasse, os pistoleiros
matam e desaparecem com os corpos e ainda culpam os indígenas pela
violência;
No RS, Indígenas Kaingang e Mbyá vivem às margens das estradas
acampados sob o intenso frio do Sul do país, sobrevivendo há décadas em
pequenos pedaços de terra entre as cercas do latifúndio e o asfalto das
estradas e ferrovias.
No Vale do Javari - AM, cerca de 4 mil indígenas não tem saúde, ou em
situação calamitosa, doenças consideradas erradicadas matam diariamente
como é o caso da Hepatite B instalada na região. Hoje 85% da população está
contaminada com o vírus e tem um índice gravíssimo de morte.
Awá-Guajá – MA, a expansão da Ferrovia Carajás pela mineradora Vale,
promoverá o desaparecimento das florestas e da fauna que são fonte de vida
desse povo e que hoje, ainda têm suas terras invadidas por madeireiros que
abrem estradas clandestinas e adentram na mata acabando também com a
Terra Araribóia.
Tembé - PA, madeireiros invasores atearam bala contra lideranças indígenas e
Policiais que faziam o monitoramento da Terra. Um indígena ficou
desaparecido por 36 horas na mata (há duas horas atrás foi encontrado), e o
clima de tensão na região se agrava a cada dia por falta da insegurança e
ataques frequentes em represálias a quem defende a floresta.
No Nordeste, criminalização constante e violência constante contra os
indígenas. (APIB, 2012)

Essas ameaças e violações de direitos são invisibilizadas para a população, pois


os meios de comunicação fazem um trabalho para criar a imagem dos indígenas como
violentos, preguiçosos, aproveitadores e alcoólatras. Não noticiam que as terras
indígenas apresentam uma barreira contra o desmatamento e, consequentemente, evitam
emissões de gases de efeito estufa, uma vez que as maiores emissões do Brasil estão
ligadas ao desmatamento, degradação e queimadas. Não noticiam que esses povos têm
direitos garantidos pela Constituição Brasileira e que são violados pelos próprios
representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário,
Diante desse quadro é inevitável não se remeter às incursões
colonizadoras/religiosas que tiveram início em meados do século XVI. À época, as
Missões, mesmo não se assumindo assim, serviam como unidades de produção
econômica e ocupação territorial, hoje ganham nova roupagem, são “neomissões”,
neocolonizadoras que continuam avançando com um poder de destruir as terras que
ainda restam aos indígenas. Nesse contexto, a yãykix pupi hãhãm (luta pela terra) passa
necessariamente pela defesa dos direitos dos territórios indígenas e pela revogação de
77

Portarias, Projetos e todas as medidas governamentais que restringem direitos dos


índios brasileiros.
78

CAPÍTULO 3

(DES)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA: EM FOCO OS INDIOS


DO NORDESTE E DA MISSÃO DO SAHY

Após um mergulho no passado dos povos indígenas e uma prospecção por um


futuro que aponta ser tão violador de direitos quanto os tempos idos, é chegado o
momento de focar o presente. Atualidade, contemporaneidade que não se faz sem a
coexistência do passado.
Para se compreenderem as singularidades dos descendentes indígenas da Missão
79

do Sahy, distrito de Senhor do Bonfim/BA, é preciso recorrer a alguns aspectos do


estudo da identidade dos indígenas do Nordeste brasileiro. Essa contextualização é de
fundamental importância para o entendimento das várias faces que estes povos foram
tomando ao longo da história, bem como oferece subsídios para a compreensão das
atuais condições em que vivem esses povos.
Falar de índios no Nordeste brasileiro é adentrar num terreno multifacetado onde
alguns tratam os aspectos culturais indígenas como processo de “misturação”
(CARVALHO, 1998 e OLIVEIRA, 2011), atribuição de identidades (CALEFFI, 2003),
aculturação (GALVÃO apud SILVA, 2007), identidade individual e coletiva (SILVA,
2007). Também podem ser lançadas para compreensão desses aspectos as formulações
de hibridização cultural de Néstor Canclini (2000).
Inicialmente é preciso se compreender que o processo de descoberta e
exploração desses povos tem uma forte ligação com o contexto político, econômico e
social da região, pois as missões jesuíticas e franciscanas, juntamente com a expansão
pecuária do século XVII, tiveram fortes influências na exploração e aculturação dos
índios nordestinos. Sobre esse contexto, Darcy Riberio (1970) afirma que:
Por todos os sertões do nordeste, ao longo dos caminhos das boiadas, toda a
terra já é pacificamente possuída pela sociedade nacional; e os remanescentes
tribais, que ainda resistem ao avassalamento só têm significado como
acontecimentos locais, imponderáveis (RIBEIRO, 1970, p. 57).

Os estudos de Eduardo Galvão47 (1979) ainda apresentam relevância quando o


objeto de estudo aborda os índios do Nordeste brasileiro. Isso se deve às
problematizações feitas no sentido de questionar a legitimidade étnica dos índios
nordestinos em relação aos de outras regiões do país, chegando a afirmar que “a maior
parte vive integrada no meio regional, registrando-se considerável mesclagem e perda
dos elementos tradicionais, inclusive a língua” (GALVÃO apud SILVA, 2007, p. 215).
Ou seja, tais povos e culturas por muito tempo são descritos, sobretudo pelos
relatos de cronistas ou naturalistas viajantes dos séculos XVIII e XIX, “apenas pelo que
foram (ou pelo que, supõe-se, eles foram) há séculos atrás, mas sabe-se nada (ou muito

47
Foi um dos maiores antropólogos culturais brasileiros, é considerado como um dos fundadores da
antropologia científica no Brasil. Foi professor de Etnologia do Brasil na Universidade Federal do Pará
(1957) e na Universidade de Brasília (1963-1964). Seus estudos, mesmo sendo realizados nas décadas de
50, 60 e 70 ainda são muito utilizados não só por estudantes de antropologia, mas também por
museólogos, bibliotecários, educadores e comunicadores sociais em geral. Em 2007 o antropólogo
Orlando Sampaio Silva publicou o livro Eduardo Galvão: índios e caboclos, esta obre oferece subsídios
para compreensão de vários aspectos das populações indígenas.
80

pouco) sobre o que eles são hoje em dia” (GALVÃO apud SILVA, 2007, p. 222).
Formulações de Darcy Ribeiro também contribuem para a problematização da
questão relacionada aos processos identitários dos indígenas no Nordeste brasileiro. O
autor, quando trata a temática, refere-se aos “resíduos da população indígena do
nordeste” (RIBEIRO, 1970, p. 54). O antropólogo, fazendo uso de situações observadas,
chega a dizer que os povos com quem se deparou nas ilhas e barrancos do São Francisco
são “magotes de índios desajustados” (RIBEIRO, 1970, p. 56), isso porque, foram
submetidos a um processo de aculturação que os levou a utilizar símbolos de outras
culturas como sendo seus. Com tristeza aponta como exemplos o fato dos Potiguaras em
suas danças incorporarem instrumentos africanos — zambé e puitã — “acreditando
serem tipicamente tribais” (RIBEIRO, 1970, p. 53). Também afirma que os Xucurus
estavam altamente mestiçados com a população sertaneja local, tendo perdido “o idioma
e todas as práticas tribais, exceto o culto do Juazeiro Sagrado, se é que este cerimonial
fora originalmente deles” (RIBEIRO, 1970, p. 54).
Lançando mão de uma análise a partir dos pressupostos da atribuição da
identidade indígena (CALEFFI, 2003), é possível perceber que as primeiras
classificações dos povos tradicionais foram impostas sem levar em conta que esses
indivíduos ("índios") não constituem um único grupo étnico, muito menos uma raça.
Assim, as percepções que tiveram Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro, apesar de
procederem, no que tange à interferência de outras culturas dentre os índios, não pode
advogar na defesa dos índios como “raças puras”, conforme quiseram propagar as ações
e políticas coloniais.
De acordo com Paula Caleffi (2003, p. 22) “índios” referem-se às pessoas
integrantes de diferentes grupos étnicos com um longo histórico de luta contra a
marginalização imposta pelas políticas coloniais e depois nacionais e que inicialmente
tiveram uma identidade atribuída. Acolhendo essa significação, é possível se afirmar
que houve por parte dos primeiros europeus que mantiveram contatos com os indígenas
brasileiros uma negação dos aspectos culturais desses povos.
O processo de negação da condição indígena aparece também nas formas como
os colonizadores instituíam sua política voltada para o aldeamento. Segundo Jorge
Couto (1998, p. 42), “aos indígenas aldeados estavam vedadas as práticas tradicionais
que se mostrassem contrárias à moral cristã”. Dessa forma, existia um processo de
invalidação cultural dos nativos, pois manifestações que ferissem os dogmas dos
colonizadores deveriam ser eliminadas das práticas culturais. Uma das senhoras
81

descendentes dos índios da Missão do Sahy – Apoema – evidencia a negação do


pertencimento étnico, mas ao mesmo tempo afirma que tem um “sinal” indígena.
As história dos índios eu não sei bem, porque nesses tempos dele eu não era
viva. Mas elas contavam que os índios viviam ali atrás do cemitério, tem um
lugar que diz que ali era a pousada deles a morada né. Ai meu marido
encontrava caco de telha de alvenaria, ali diz que é o lugar deles. (...) eu sei
que eu tenho um sinal, a história da Missão é assim é por caboclo. É que eu
não sei contar, eu sei que eu tenho um sinal, eu tenho um sinal (APOEMA,
2011).

Também é possível perceber a influência das práticas cristãs, e nessas nenhum


vestígio de rituais e manifestações dos povos que lá habitaram:
Tinha todo ano Semana Santa, era uma veneração muito grande tal qual não
é hoje. Hoje tão fazendo uma Sexta-feira Santa dos dias grandes, é uma
brincadeira, uma coisa assim sem respeito. Naquele tempo a agente tinha
respeito, minha mãe ela ensinava qui Jesus sofreu por nós, eu era bem
miudinha. Então naquele tempo tinha os penitentes aqui da Missão, e eu
tinha medo, mas eu ia pá penitência mais mamãe. Ai eu dizia: mãe tenho
medo dos penitete, eu chamava era os penitete, “sim o que é que tem menina,
é penitente”. E eu com medo ali agarrada na saia. Doze horas da noite
descia pelo cemitério e ia cantando, e ai trazia pá Igreja, eles saiam em
procissão. Eles cantando, rezando e a matraca batendo, até hoje a matraca
tá ai na igreja. Batendo a matraca toc, toc, toc e eles cantando “piedade,
senhor piedade, tem de piedade ai de nós pecador, tende de piedade ai de
nós” e a matraca toc, toc, toc. Ave Maria e ar muié véia chorava, e eu
menina ali garrada ne minha mãe com medo. Ai lavai, lavai a festa Nossa
Senhora das Neves. Ave Maria era uma festona era uma festa muito boa
(APOEMA, 2011).

Vale a pena buscar os laços das memórias de Apoema com os fatos históricos
para que se percebam as influências da cultura ocidental cristã na vida dos moradores
desse antigo aldeamento franciscano, e como os portugueses se valeram de ritos
religiosos para integrar os nativos à sua cultura. O primeiro laço é no campo
etimológico, penitente é uma designação dada aos religiosos da Ordem Terceira de São
Francisco.
O outro laço diz respeito ao ritual das penitências que, mesmo em diferentes
partes do mundo, ainda conservam os mesmos princípios e rituais. Em Juazeiro-BA,
este é um rito que alguns praticam, durante os 40 dias da Quaresma, da quarta-feira de
cinzas até a sexta-feira da Paixão.
Durante as noites, um grupo sai das proximidades da Igreja e percorre algumas
ruas da cidade rezando pelas almas dos mortos. Na caminhada ouvem-se as orações
como Ave Maria e os "ai de nós...", um lamento fúnebre que enche a noite. Os
82

chamados Penitentes vestem-se com lençóis brancos e são divididos em dois grupos: os
Alimentadores de Alma, que fazem orações pelas almas e chacoalham um instrumento
chamado matraca; e os Disciplinadores, que durante o ato de penitência se martirizam
com chicotes providos de lâminas na ponta, causando cortes por todo o corpo,
derramando sangue, com o objetivo de reduzir os pecados. As pessoas, espreitando por
detrás das janelas, assistem à procissão dos Penitentes, que só termina quando chega ao
cemitério, onde, envoltos pela escuridão, todos se lançam num profundo silêncio.
Ao ritual cristão das penitências se aproxima o que Kumari (2011) contou acerca
da Sentinela, estas sendo esta um velório, onde a guarda do corpo era feita dentro de
normas e ritos da igreja, sobretudo, com a força das Incelenças. Quanto a esta última,
trata-se das cantigas de guarda ou cantigas de sentinela, uma expressão musical típica
do Nordeste brasileiro, onde os enredos, geralmente, estão atrelados aos costumes
fúnebres. Mas a significação dada por Kumari a partir das suas memórias ganha uma
beleza cênica que transcende a orientação cristã do ato. Como faltaram detalhes aos
relatos fornecidos a esta pesquisa, buscou-se em outra fonte (DA PAZ, 2004) as
memórias reconstruídas há oito anos.
Aqui não tem mais os penitentes. Só se faz a imitação...porque foi proibido,
os padres proibiro. Agora em Juazeiro ainda se corta, mas aqui num é tanto
a proibição não tem quem tenha corage. (...) Agora os menino hoje eles só
imita num sabe? Eles veste aquelas mortallta e faz a procissão. Antes saia do
cemitero arrodiava a praça da igreja era bom demais aqui...nós rezava...Era
bom demais aqui, aquele povo tudo da antiga. Tinha um com a voz assim:
Vem, vem pecador
onde é que te esconde?
meu senhor te chama
e tu não me responde..

É a matraca sô..catraca..catraca..catraca. Aí só via era muié chorando, por


isso que tiraro pois disse que muita gente ismuricia(...)
Aqui também quando morria um a pessoa, fazia a sentinela, chamava
sentinela né? Até de manhã rezando, o defunto lá no meio da casa e todo
mundo rezando. Aí os pade acabaro também, porque disse que o povo
chorava quando tirava aquelas incelença. Aquelas reza penosa, era reza de
Semana Santa... Aquelas incelença muito forte.
Pecador magina/
que é de morrer/
chama por Jesus/
que é de ti valer/
quando a morte vem/
calada sozinha/
ela vem dizendo/
esta hora é minha/

(oi me arrupeio toda. Num gosto)

Quando era já de manhã o povo tirava uma incelença assim:


83

ele vai embora/


de todo o seu coração/
adeus povo todo/
adeus meus irmão/
uma incelença da vilgencia pa vitória/
amanhã muito cedinho /
vosso filho vai embora/
ele vai embora de todo seu coração/
adeus povo todo, adeus meus irmão.
(KUMARI apud DA PAZ, 2004, p. 109 – 111)

Essa caracterização do ritual cristão é para afirmar que estes e tantos outros
serviram para introjetar a cultura dos colonizadores dentre os nossos antepassados.
Nessa mesma linha, após lutas travadas pelo governo do Marquês de Pombal (1750 –
1777), dentre elas expulsão dos Jesuítas com o objetivo de integrar os índios aldeados a
então sociedade, os aldeamentos são extintos e os princípios de assimilação cultural
passam a ser utilizados no trato com a cultura indígena. Segundo este princípio, além da
negação da cultura indígena e a inserção desta na cultura colonizadora, faz-se necessário
“incorporar aos Próprios Nacionais as terras dos índios, que já não vivem aldeados, mas
sim confundidos com a massa de população civilizada” (DANTAS et al., 1992, p. 451).
Percebe-se que as ações do Marquês de Pombal estavam longe de ser
benevolências para os povos indígenas. Também não estão distantes das atuais ações
“neopombalinas”, que utilizam medidas legislativas para que as terras sejam
incorporadas a outros “próprios”, não mais o Estado, não mais os Próprios Nacionais.
Mas a tentativa assimilacionista não teve o êxito esperado, e espera-se que não o tenha
agora. Por outro lado, para Darcy Ribeiro (2004), a integração dos indígenas na
sociedade ocasiona uma transfiguração étnica, ou seja:
O processo pelo qual os tribais que se defrontam com sociedades preenchem
os requisitos necessários à sua persistência como entidade étnica, mediante
alterações em sua base biológica, em sua cultura e em suas formas de relação
com a sociedade e ambiente (RIBEIRO, 2004, p. 12).

Ao se pensar nas formas de agir dos colonizadores, como Pombal, as


contribuições de Alfredo Bosi (1992) dão a dimensão das ações por estes empreendidas
nas terras “descobertas”. Diz Bosi que o ato colonizador pode ser classificado em
princípio como “o deslocamento que os agentes sociais fazem do seu mundo de vida
para outro onde irão exercer a capacidade de lavrar ou fazer lavrar o solo alheio” (BOSI,
1992, p. 11). Mas não só o aspecto de deslocamento é definidor deste ato. Afirma ainda
que os colonizadores, ao agirem como detentores de verdades universais, buscam
84

controlar a produção dos meios de vida dos colonizados, assim, agem determinados em
não apenas tomar conta de, sentido básico de colo48, ou seja, não se importam apenas
com o cuidar, mas, sobretudo primam em mandar. Partindo dessas formulações, é
possível entender que “a colonização dá um ar de recomeço e arranque a culturas
seculares” (BOSI, 1992, p. 12).
Em meio a essas tentativas de negação, os grupos indígenas se afirmaram e
mantiveram sua identidade indígena. Darcy Ribeiro (2004) destaca ainda que mesmo
diante das tentativas de uniformização cultural, os povos tradicionais ainda
permaneceram índios. Não houve um processo de assimilação da cultura não índia, mas
sim uma acomodação entre os dois lados. O antropólogo considera que, por
conseguirem operar com condições mínimas para sua perpetuação, os indígenas
instauram um processo de resistência étnica e de autoafirmação cultural.
Indubitavelmente este processo de afirmação se dá permeado por uma luta
constante contra o preconceito advindo do imaginário acerca do índio brasileiro. Para o
antropólogo Guga Sampaio (2002), busca-se no índio o perfil do “bom selvagem”,
muitas vezes construído pela literatura que nega as condições dos índios reais:
A gente projeta a imagem do índio para o passado e para a imagem real, a
gente desautoriza os índios reais de carne e osso. E essa talvez seja a maior
expressão do preconceito, porque nós sabemos o que é índio e não os
próprios índios (SAMPAIO, 2002, p. 30).

A partir desse imaginário não é raro o registro de estranhamento quando pessoas


se deparam com um índio paramentado e se referem a este como “índio de verdade”.
Como estes utilizam objetos, vestimentas, frequentam escolas regulares, têm costumes
parecidos com os não índios, ficam de fora deste seleto grupo de “índios puros”.
A partir deste processo de negação, Bessa Freire (2010) apresenta em um vídeo
cinco ideias equivocadas presentes no imaginário brasileiro acerca dos índios:
1. Índio genérico – que se considera que todos os índios fazem parte de um só
povo com a mesma cultura, crença e língua.
2. Culturas atrasadas – desconsideram-se os saberes, ciências, artes,
literatura, música, religião, poesia produzidas pelos indígenas por acreditar
que estas ou não existem ou são inferiores.
3. Culturas congeladas – o índio autêntico é aquele citado na Carta de Pero
Vaz de Caminha. Congelou-se esta imagem e qualquer mudança provoca
estranhamento.
4. Os índios fazem parte do passado – vê-se a tradição viva como primitiva
48
Para Bosi, colo na língua romana significa: eu moro, eu ocupo a terra e, por extensão, eu trabalho, eu
cultivo o campo. É a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode
trabalhar ou sujeitar. Sempre que se quer classificar os tipos de colonização, distingue-se dois processos:
o que se atém ao simples povoamento e o que conduz a exploração do solo. Colo está em ambos: eu
moro, eu cultivo (BOSI, 1992, p. 11).
85

porque não segue o paradigma ocidental.


5. Brasileiro não é índio – desconsidera as matrizes indígenas na formação do
povo brasileiro.

Essas ideias reforçam a visão preconceituosa sobre o índio e em nada


contribuem para a construção da identidade cultural – individual e coletiva – destes
povos. O desconhecimento atropela até mesmo leis como a 11.645/2008, que altera a
Lei nº 9.394/ 1996, modificada pela Lei nº10.639/2003, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. No entanto,
existe uma preponderância em trabalhar a dimensão Afro-Brasileira em detrimento das
questões indígenas.
A anulação de identidade sofrida por alguns povos indígenas é outro fator de
confirmação que identidades não indígenas sejam atribuídas a esses povos e, a partir daí
os índios sejam vítimas de diversos preconceitos. Sobre esta questão, Gersem Baniwa
(2006), afirma que:
Povos indígenas que, por pressões políticas, econômicas e religiosas ou por
terem sido despojados de suas terras e estigmatizados em função dos seus
costumes tradicionais, foram forçados a esconder e a negar suas identidades
tribais como estratégia de sobrevivência – assim amenizando as agruras do
preconceito e da discriminação (BANIWA, 2006, p. 28).

Para Baniwa (2006), ao fazer frente a essa invalidação de identidade, o


movimento indígena do Brasil acaba aceitando a denominação genérica de “índio” ou
“indígena”, em detrimento da sua etnia. Essa estratégia é lançada com vistas a
fortalecer-se como povos tradicionais e lutar por direitos coletivos das diversas etnias
indígenas do Brasil.
Ao “negar” a classificação étnica e optar pela denominação genérica (índio), os
povos tradicionais acabam sendo absorvidos por uma dinâmica conhecida como
“etnogênese”. Esta relacionada às possibilidades que os índios têm de reassumir e
recriar suas tradições, reconstruir e reafirmar as identidades étnicas, fatores estes que
podem distinguir os indígenas, bem como contribuir para sua afirmação.
Tendo a cautela necessária, compreende-se que a “etnogênese” se aproxima de
outros conceitos, como, por exemplo, o de “índios misturados” e hibridização quando se
considera a existência de um percurso que leva o indígena a: “procurar por uma
identidade própria, negada através dos tempos e reconstituir, por meio da tradição oral,
86

histórias que resistiram nas danças e cantos, hábitos alimentares, no uso de artefatos e
adornos, na pintura corporal e na prática de rituais” (CAMUSO, 2011, p. 63).
A cautela ao abordar a temática é para que não haja uma profusão de noções –
índios emergentes, emergência étnica, invisibilidade indígena etc – a ponto de
naturalizar a condição de índios misturados por meio do conceito de etnogênese, ao
assumi-lo como um conceito que “abrange tanto a emergência de novas identidades
como a reinvenção de etnias já reconhecidas” (OLIVEIRA, 1999, p. 18). Todavia, a
mistura dos índios traz no seu bojo um problema que afeta várias comunidades, pois,
“ao serem destituídos de seus antigos territórios, não são mais reconhecidos como
coletividades, passam sim a serem referidos individualmente como remanescentes ou
descendentes” (OLIVEIRA, 1999, p. 24).
Essa é a problemática que envolve a comunidade da Missão do Sahy e oferece
subsídios para as análises da pesquisa ora apresentada. A miscigenação, “cruzamento”, a
“mistura” entre povos diferentes não podem ser naturalizadas pelos membros da
comunidade a ponto de considerarem que remanescem dos indígenas. Não! O ser
humano não pode se assumir enquanto sobra, resto, remanescente 49 de nada e nem de
ninguém. E essa visão está presente no (des)pertencimento dos membros da
comunidade.
Traços característicos existem poucos, até porque com a grande
miscigenação que houve você raramente vai encontrar, encontra alguns
casos, raros, por exemplo, tem uma família aqui que é desde o avô até o neto,
todos são característicos, a fisionomia realmente indígena, porém a cultura
deles não existe mais, acabou, porque com a vinda do branco do negro que
se misturou aos nativos, aos descendentes dos nativos daqui, então perdeu
totalmente a origem, então nós podemos que hoje nós só temos
remanescentes e muitos deles bem misturados, temos o cafuzo, o mameluco,
o mulato, tudo fruto dessa grande miscigenação que houve, até porque
quando foi fundada a comunidade Tijuaçu, que é um quilombo de
descendentes escravos, teve uma grande relação com Missão do Sahy, então
essa relação, esse cruzamento das duas comunidades resultou nisso daí, no
cafuzo, o descendente de índio com descendente de negro, então você poderá
ver, analisar, que a mistura é muito grande aqui na comunidade (URUPÊS,
2011).

o toré ele era uma coisa assim, mesmo só de caboco, desses caboco mesmo,
de oreia jurada, de flecha, dessas coisa, caboco mesmo. (...) então era
daquela parte (índio), e hoje é candomblé, candomblé já é outa parte
(APOEMA apud DA PAZ, 2004).

Lá em casa mãinha e voinha conta que nossos parente mais velho era índio,
de cabelo liso, vivia nu e tudo. Só que fala isso na escola, Deus me livre! É
mico na certa. Prefiro nem dizer que sou parenta desses ai (IBOTIRA, 2011).

49
Adj. m+f (de remanescer) Que remanesce; que sobra. Sm. Resto, sobejo.
87

Para não se fechar nos aspectos naturalizadores que se nutrem da


miscigenação/mistura para defender distanciamento étnico com os antepassados, é
preciso considerar a dualidade entre negações e resistências como parte da
(des)construção da identidade. Sendo assim, entende-se que o aprofundamento de outros
conceitos – identidade, identidade étnica, hibridização cultural e índios misturados –
possibilitará uma maior compreensão do objeto de estudo, consequentemente, lançará
luz às questões empíricas levantadas50, pois a pesquisa indicou que diversos aspectos
históricos que envolveram os povos tradicionais brasileiros se fundaram por meio de
identidades atribuídas (cabocos, selvagens, nativos e outras) que se deram por meio da
aculturação e, por sua vez, se valeram da hibridização de culturas e da misturação dos
índios.

3.1 Uma Compreensão para Além do Local: hibridização


cultural dos povos indígenas

O filósofo e antropólogo Néstor Canclini 51 afirma que “os estudos sobre


hibridização modificaram o modo de falar sobre identidade, cultura, diferença,
desigualdade e multiculturalidade” (2001)52. Considerando as reais influências desses
estudos e trazendo-os para a pesquisa realizada, foi possível perceber que as instigantes
reflexões propostas por Canclini (2000) em torno do eixo tradição/modernidade/pós-
modernidade seriam de grande valia para as análises pretendidas.
A modernidade para Marshall Berman (2005) é simbolizada como um furacão
avassalador, pois, para o autor reflete um ambiente “que promete aventura, poder,
alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao
mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos tudo o que sabemos, tudo o que
somos” (BERMAN, 2005, p. 15). Sob essa ótica o turbilhão da modernidade traz
consigo a modificação de tudo a nossa volta, alterando o ritmo das coisas, onde num
movimento de mutação permanente cria e ao mesmo tempo destrói tudo que nos rodeia.
Canclini constrói sua análise da modernidade não sob essa ótica da criação/

50
Questões essas apresentadas na introdução desta dissertação.
51
Filósofo e antropólogo argentino radicado no México, pioneiro em estudos sobre o hibridismo das cul-
turas latino-americanas.
52
Essa afirmação encontra-se no início da introdução à edição de 2001, em espanhol, do livro Culturas
Hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
88

destruição/novo. A ótica do autor prima pela coexistência entre o tradicional e o


moderno, para tanto, trabalha a partir de três hipóteses que têm como premissa a ideia
de uma formação cultural híbrida.
A hipótese inicial sustenta-se na afirmação de que a “incerteza em relação ao
sentido e ao valor da modernidade deriva não apenas do que separa nações, etnias e
classes, mas também dos cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno
se misturam” (CANCLINI, 2000, p. 18). Assim, analisa a hibridação cultural,
defendendo que a mistura de culturas não acontece de forma sintética, mas de forma
dialógica, onde elementos distintos se conjugam e acabam por se traduzirem em algo
novo.
A partir dessas assertivas conclui-se que a incerteza da descendência indígena
não pode ser vistas apenas como fruto das disjunções – passado/presente, índio/branco,
verdade/mentira – muitas vezes geradas por uma cultura dominante. É preciso entender
que os cruzamentos socioculturais fazem parte do percurso histórico de constituição
individual e coletiva, logo, os processos dialógicos na escola precisam tratar as questões
étnicas não como algo menor e, quando na comunidade, devem dar espaço para que as
memórias, os contos e as lendas de modo que liguem os descendentes à ponta da rama
étnica.
A segunda hipótese é a que aponta para necessidade de se conceber um novo
olhar para a modernização53 de um determinado local ou cultura, haja vista a
heterogeneidade multitemporal específica de cada localidade. Por esse prisma, a ideia
de uma modernização (cultura) substitutiva acaba sendo excluída, pois o autor não
acredita em “uma força alheia e dominadora que operaria por substituição do tradicional
e do típico” (CANCLINI, 2000, p. 19).
Ao analisar a segunda hipótese que defende a hibridização da formação cultural,
conclui-se que, no caso da Missão do Sahy, não se pode falar em uma extinção da
cultura indígena. Os traços étnicos estão presentes não só nos aspectos físicos, mas
também apresentam marcas na organização sócio produtiva da Aldeinha, no uso das
ervas medicinais e nas lendas contadas pelos mais velhos.
Os traços físicos são facilmente identificados nos moradores:
tem famía aqui que num arrenega não, e tudo de pele de caboco e cabelo
escuridinho. Num é de hoje que é tudo assim, eu conheci o véio bisâvo deles.
Diz que era curador dos bom (KUMARI, 2011).

53
O autor trata especificamente da modernização da latino-americana, mas seus estudos são facilmente
transpostos para outros contextos.
89

Quanto à organização sócio-produtiva, o modo de vida dos moradores da


Aldeinha é facilmente identificado como tendo marcas dos povos tradicionais. Ao ser
questionada sobre essa ligação, Aiyra estabeleceu a seguinte relação:
eles não têm o estereótipo dos índios que estão na nossa imaginação, mas a
forma com que se organizam para produzir, vender e dividir os ganhos; a
forma como se relacionam com a natureza para tirar o material do
artesanato, tudo isso é muito parecido com a forma de viver dos índios ditos
de verdade (AIYARA, 2011).

Já uma menina das gerações mais novas, moradora da Aldeinha, tem a seguinte
significação do seu pertencimento étnico:
lá em casa muita gente trabalha junto com o cipó. Antes era mais, só que o
trançado muitas da veis num dava dinheiro, então teve gente que foi pra
Bonfim trabalha, outros foram pras pedreira de Campo Formoso. Mas meu
tio que fica na oficina sabe muita coisa dos nossos parente que era índio. Ele
disse que umas coisa do trançado os índios já fazia, se não como que nossos
bisâ, trisâ... sei lá o que, iria saber fazer o trançado. Ele sabe também fazer
coisa muita coisa de barro, isso sim era feito pelos índios. Até lá em casa tem
uns aguidá de barro (IBOTIRA, 2011).

A partir das hipóteses anteriores, o autor apresenta uma terceira, onde afirma que
ao se alterar a forma de olhar uma dada realidade, seriam obtidas respostas que iriam
além das questões culturais, possibilitando o entendimento também de processos
políticos, históricos, sociais e econômicos.
Nos estudos realizados, chega-se à compreensão de que o inverso também seria
possível, ou seja, se se partisse dos processos acima destacados teríamos um
entendimento mais amplo do processo de desconstrução da identidade indígena, bem
como da afirmação da identidade individual e coletiva destes povos.
Ao inserir na pesquisa as formulações acerca da hibridização, foi possível
compreender que na história dos índios brasileiros os aspectos particulares e
característicos destes povos foram sobrepujados em função de um padrão de vida
europeia. Portanto, quando se afirma que houve uma desconstrução da identidade
indígena, defende-se que a heterogeneidade multitemporal, ou seja, a coexistência entre
o tradicional e o moderno não foi considerada pelos colonizadores e nem é considerada
pelos que hoje negam os direitos e a cultura destes povos.
Por outro lado, quando os índios brasileiros absorvem os signos europeus,
negando suas identidades tribais como estratégia de sobrevivência – conforme destaca o
90

índio Gersen Baniwa – acabam se valendo da heterogeneidade multitemporal, a partir


da qual reformula ou ressignifica a cultura alheia, incorporando elementos a sua cultura
original. Por conseguinte, essa interseção das múltiplas temporalidades, ora
aproveitando os aspectos culturais do outro, ora dando prevalência às questões
particulares da etnia, demonstra que não se pode falar de uma raça ou cultura indígena
pura. Culturalmente falando, esses povos vivem em constante atrito, pois o moderno e o
tradicional coexistem. Portanto, a heterogeneidade multitemporal é parte integrante
dessa intersecção de culturas, isso porque coexiste um jogo de signos – tradicionais e
modernos – sendo a todo momento traduzidos e ressignificados numa hibridação
cultural permanente (CANCLINI, 2000, p. 73).
Nesse jogo de signos onde a polifonia cultural pode alcançar uma polissemia de
significados, defende-se a perpetuação das lendas da Missão do Sahy, fazendo com que
ultrapassem os umbrais54 do tempo e juntem o ontem e o hoje numa perspectiva
transformadora de pertencimento étnico.
Apoema durante a entrevista falou rapidamente sobre seu pertencimento étnico,
ligando a sua bisavô aos índios e ao xamanismo, conquanto, por não ter aprofundado
nos detalhes da lenda e por entender que se trata de um elo da entrevistadas com a sua
descendência, foi tomada a decisão de buscar essas memórias em registros feitos por
outra pesquisadora. Apoema inicia lembrando uma passagem da sua infância e chega à
“história dos encantados”.
“Ainda me lembro do cantinhio que minha vó, eu era menina, quebrando
licuri, ela também...quebrando licuri e cantando a cantiguinha, um toré de
caboco:
E, ê, ê, ê ,ê, indé/
Ê, ê, ê, ê, ê, indé/
Dê qui nun venha cá/
(aí nois tudo):
Dê qui nun dê, qui nun dê/
Dê qui nun dê, qui nun dá/
Ê, ê ,ê, ê, êfindé/
De qui nun venha cá.

O pai dela, meu bisavô, que era caboco, tirava tudo quanta era doença das
pessoas sem precisar maltratar e nem cobrava dinheiro, mas dize que era
aduvinhão. Aduvinhava. Disse que um dia ele tava em casa e disse:
- Oh mulê.
Com a mulé dele, minha bisavó.
- O que é home?

54
A palavra empregada no sentido kardecista, empregada por Chico Xavier para expressar o “estado ou
lugar transitório por onde passam as pessoas que não souberam aproveitar a vida na Terra”. Guarda os
dois outros sentidos da palavra: primeiro por se tratar de uma dimensão que está "entre" a dimensão mate-
rial (ou física) e a dimensão espiritual (ou sutil).
91

- Venha aqui endereitar, alimpar aqui essa sala, ajeitar tudo que hoje vai vim
aqui uma visita, hoje vai ter uma visita e num vem vim boa, tá braba.
Aí a mulé disse:
- Tu já tá cum tuas coisa,
Lhe digo, isso foi cedo. Quando foi ali uma base de quato pá cinco horas,
quando oiaro a estrada lá vem aquela carroça de burro. Num tem essas
carroça de burro com aquelas armadia do burro puxando, pois bem assim, aí
disse que atrás era uma gaiola de madeira e ela dento: a mulé e a mãe na
frente, mais o marido. O marido tangendo o animal. Vinham de Jacobina
pra cá no lombo desse animal, a procura desse meu bisavô. Aí chegou e disse
que ele tava na janela né, disse que ele se dirigiu pra lá e falou:
- Boa tarde!
- Boa tarde! O senhor sabe me informar aqui onde é a casa de seu Fulano.
Ele deu uma risadinha e disse:
- Tá cunversando com ele, porque ? o que é?
- É porque eu trago aqui uma pessoa...
Ele disse:
- Não,...não precisa dizer não, eu já sei. Agora vá abrir a gaiola pa mandar
ela descer!
- Não, seu Fulano, tem que procurar uns home pa ajudar a tirar ela, porque
ela tá braba. Pa botar ai foi nun sei quantos home,
Ai ele disse:
- Apois ela vai descer sozinha.
Ai ele disse:
- Não, nun desce não...
Ele abriu a porterinha da gaiola, pegou no braço dela e disse:
- Desça!
Disse que ela assim espantada oiando po povo. Aí disse que desceu e já íava
uma esteira lá no pé do altar, botaro p'ela sentar ela sentou, aí quando foi de
noite dero logo um chá. Dero a ela e ela queta. Já foi uma alegria po marido
né.
E a mãe dela que acompanhou. Aí de noite, ele botou ela em tratamento, em
trabaio, oche! Minha fia disse que dormiu a noite toda, que não dormia.
Quando foi dez horas da manhã foi que ela acordou. Disse que a mãe já tava
preocupada, quando acordou disse que chamou:
- Mãe!
E a mãe:
- oi minha fia, o que é?
- Mãe cadê meu chinelo?
- Tá aqui.
- Cadê meu xale?
- tá aqui minha fia...
Que a mãe tinha trazido tudo ela botou o xale na cabeça e saiu prafora e
ficou oiando assim po mundo. Aí tinha um pé de mangueira, aí ela ficou
debaixo do pé de manga e perguntou:
- Oh mamãe onde é que eu tô? Onde é que nós tamos?
E a mãe disse:
- Nóis tamo na Missão
- Mamãe cadê meus fios?
- Tão lá em casa.
- Disse que já foi um alegria pa essa famia. Que ela tava doida né?
Passou três dia aqui, aí ela ficou boa, boa, quando foi embora, disse que o
marido dela disse assim:
- Seu Fulano quanto eu lhe devo?
- Nada! O que o senhor me deve é ir cuidar de sua mulé e de seus fios, ele
disse.
- Não não pode ser assim, o senhor vai mais eu, eu não tenho com que lhe
pagar.
Aí fizeram assim: o marido foi com o anima, a mulé, a mãe e o veinho foram
de trem
92

Quando chegou lá, dero tanta coisa a esse veinho, minha mãe dizia:
- Oi minha fia, meu avô chegou cum tanta coisa. Minha fia: requeijão,
farinha boa, beiju de tapioca daquele seco, tapioca seca.
Ainda trouxe de tudo ainda deu dinheiro, que eu num sei ainda o dinheiro
daquele tempo: tostão, dois mireis, essas coisas...
Ai disse que andou uns cumo è que chama? Do salvador...
Cumo é que chama... Minha mãe dizia ói minha fia chegou uns...uns...negoço
e macumbeiros de Salvador, de Feira de Santana, do Reconco.
Sim aí disse que chegou esses do Reconco e aí tomara todos os encantados
do meu bisavô...
Disse que ele passou três dia manifestado com um guezerrinho na mão, e os
oio fechado. Só pa riba e pra baixo. Estrada arriba estrada abaixo. Só:
e,ê,ê,ê,ê, indé, dê qui num dê qui num dá...

Só sacudindo aquele guezerrinho e os oínho fechado até quando morreu. Diz


que foi eles que tomaram os encantados dele.

É possível perceber que este tipo de manifestação cultural está ancorado no


fenômeno da “heterogeneidade multitemporal” identificada por Canclini (2000, p.72). A
transposição de barreiras temporais por meio das memórias dos antepassados apresenta
possíveis relações com a questão indígena. Faz transparecer que o processo de
aculturamento dos índios brasileiros se aproxima dos debates que o autor trava entre a
modernidade e a pós-modernidade, pois, tanto numa situação como em outra, a
conquista desencadeou a justaposição conflitiva de conquistadores e conquistados, cujas
diferenciações culturais desembocaram tanto em ajustes e negociações, quanto na
sujeição do outro e, consequentemente, na perda das tradições.
De acordo com Canclini, esses ajustes e negociações desencadearam
combinatórias e sínteses imprevistas que, por sua vez, possibilitaram desdobramentos,
produtividade e poder criativo a partir das mesclas interculturais existentes.
Outra linha de argumento do autor em defesa do hibridismo está voltada para a
problematização do que se convencionou chamar de mestiçagem. Canclini prefere
considerar essa nova situação intercultural como hibridação, pois entende que se trata de
diversas mesclas interculturais e não apenas raciais (2000, p. 19). Assim, a chamada
mestiçagem não se expressa apenas pelo encontro de pessoas diferentes, mas ocorre por
meio das relações divergentes e convergentes que se dão entre uma cultura e outra.
Trazendo a questão indígena para esse debate, reafirma-se que na relação do
colonizador com os nativos o primeiro ato é “a apropriação de suas terras, frutos,
minerais e, é claro, dos corpos do outro, ou ao menos do produto da sua força de
trabalho” (CANCLINI, 2000, p. 187). Pensando na perspectiva dos indígenas, o autor
diz que: “a primeira luta dos nativos para recuperar sua identidade passa por resgatar
93

esses bens e colocá-los sob sua soberania” (CANCLINI, 2000, p. 188). Assim, a
identidade indígena não pode ser atribuída, pelo contrário, deve partir da autoafirmação
da condição étnica de cada um desses povos.
Por esse viés, compreender os aspectos identitários e as tentativas de afirmação
dos descendentes indígenas de uma região do semiárido passa necessariamente pela
compreensão da heterogeneidade multitemporal específica de uma dada localidade,
portanto, faz necessária a reconstrução da história e da presença desses povos na Bahia
e como surgem os debates em torno dos chamados “índios misturados”.

3.2 Índios na Bahia: percursos, misturas e diásporas

Por décadas a produção acadêmica em torno das questões indígenas era


incipiente no Brasil. No estado da Bahia a realidade não era diferente. A partir dos
desdobramentos da Reunião Brasileira de Antropologia, em 1975, realizada em
Salvador, foi estabelecido um termo de cooperação entre a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) para que estudos fossem gerados e
estes subsidiassem programas de assistência e desenvolvimento aos povos indígenas do
estado.
Foi essa primeira iniciativa que possibilitou o surgimento de um “grupo de
trabalho” sobre alguns povos indígenas da Bahia — como os Pataxós e os Kiriris. Esses
primeiros estudos só foram potencializados com a criação da Associação Nacional de
Ação Indigenista (ANAI) e do Programa de Pesquisas sobre os Povos Indígenas do
Nordeste Brasileiro (PINEB). Nesse contexto houve a ampliação do conhecimento
empírico sobre as condições de existência da população indígena do estado, levando o
grupo a ensaiar uma primeira tentativa de definição dos “índios do nordeste”, como um
“conjunto étnico e histórico” integrado pelos “diversos povos adaptativamente
relacionados à caatinga e historicamente associados às frentes pastoris e ao padrão
missionário dos séculos XVII e XVIII” (DANTAS, SAMPAIO e CARVALHO, 1992,
p. 433).
Os estudos voltados para os povos indígenas da Bahia apontam dois contextos
históricos com marcas regionais bem delineadas. Um deles é o semiárido nordestino,
mais especificamente o norte do estado, apresentando como marca a expansão da
94

pecuária durante o século XVII. Nesse contexto, a população indígena que não foi
dizimada pela expansão acabou em aldeamentos missionários de ordens religiosas, a
exemplo dos jesuítas e dos franciscanos.
O outro contexto dos indígenas na Bahia tem como aspectos regionais a
localização na Mata Atlântica e no litoral ao Sul e Extremo Sul do estado. Nessa região
a conquista também se deu por meio de aldeamentos missionários, isso na segunda
metade do século XVI, mas, com uma lentidão que prolongou a ação missionária até as
décadas iniciais do século XX. Ainda no final do século passado, em 1926, havia dois
bandos indígenas autônomos no estado – Pataxó Hã-Hã-Hãe e Baenã55 – que acabaram
atraídos ao Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu do SPI (Serviço de Proteção aos
Índios), no atual município de Itaju do Colônia.
Ao se voltarem para essa análise histórica, os estudiosos constataram que à
época “os índios dos aldeamentos passam a ser referidos como índios ‘misturados’, com
essa caracterização eram-lhes dadas uma série de atributos negativos que os
desqualificavam e os opunham aos chamados índios ‘puros’ do passado” (DANTAS,
SAMPAIO e CARVALHO, 1992. p. 451).
Para compreender o percurso dos índios baianos, é preciso adentrar na discussão
da expressão “índios misturados”, mesmo porque a pesquisa considera essa perspectiva
como um dos elementos fundantes da (des)construção da identidade indígena. Os
estudos de Dantas, Carvalho e Sampaio (1992) revelam que nos Relatórios de
Presidentes de Província e em outros documentos oficiais o termo aparecia com
frequência. No entanto, podem ser percebidas algumas vertentes para o estudo da
questão, uma busca discutir a “mistura” como uma fabricação ideológica e distorcida, já
a outra afirma que para entender essa “mistura” é preciso entendê-la a partir da noção de
fricção interétnica.
A mistura enquanto fabricação ideológica tem sua base na organização política e
econômica da época. Devido ao alto grau de incorporação dos “índios do nordeste” na
economia e na sociedade, estes mantinham sob seu controle amplos espaços territoriais.
Isso ameaçava o controle das frentes expansionistas, portanto, para garantir a tutela
sobre os “índios”, os agentes colonizadores exerciam uma função de mediação
intercultural e política, assim tentavam disciplinar a convivência entre os dois lados.

55
Os Pataxó Hãhãhãe e Baenã pertencem a família linguística Maxakali e segundo Funasa (2010) são
cerca de a 2.375 indígenas da etnia na região. Já os Baenã era uma pequena tribo que recebeu essa
denominação pelos Pataxó, teriam sido, também, capturados à força e arrastados para o posto, lá
morrendo quase todos em pouco tempo.
95

Distorciam as diferenças e as utilizavam para justificar uma ação “pacificadora” na


região, mas, na verdade o que desejavam era a regularização do mercado de terras, bem
como criar condições para o desenvolvimento econômico. Nessa perspectiva, Urupês
fala um pouco da incorporação dos índios a Missão do Sahy na economia:
Após a extinção da missão religiosa que não existia mais índios de sangue,
realmente puro só existia descendentes, nessa época da expulsão dos
franciscanos, os índios que fiaram foram explorados. Então a Missão do
Sahy começou a aflorar muito a questão da pecuária, da fruticultura. No
entanto, a Missão nessa época, por volta do século XVIII até o século XIX foi
um seleiro na área de fruticultura, principalmente nessa área dos brejos e da
Varsinha, que é uma região muito forte em mananciais de água, terras
férteis. Teve então plantio de café, mangas, e outras frutas como, por
exemplo, goiaba, abacate. Então a Missão produzia e mandava essas,
exportava essas frutas pra região de Juazeiro, Senhor do Bonfim, Campo
Formoso, Jacobina, toda essa região era atendida com as frutas da região de
Missão do Sahy. Então, acho que foi assim que os indígenas começaram a
entrar na economia da Missão e deu impulso na economia (URUPÊS, 2011).

No plano ideológico é importante apresentar as devidas críticas às distorções das


singularidades dos índios, pois, não se pode aceitar a forma descontextualizada dos
aspectos que envolvem os índios do Nordeste, isso porque fatos e acontecimentos de
uma dada cultura não devem ser descritos a partir de uma temporalidade única e
homogeneizadora. Se nos valermos de análises parciais e esquemáticas, os aspectos
ideológicos poderão distorcer, minimizar ou mesmo omitir os fenômenos que não se
ajustam à cultura das diversas etnias que compõem os povos indígenas brasileiros.
As singularidades dos índios do Nordeste – dentre eles os da Bahia – passam
necessariamente pela desnaturalização da “mistura” como aspecto fundante da
sobrevivência e da cidadania indígena. Se formos observar as características e a
cronologia da ocupação das áreas indígenas se evidenciará uma diferença fundamental
entre os povos da Amazônia e os do Nordeste, diferença essa que determina os aspectos
culturais desses indivíduos. Os primeiros detêm parte significativa de seus territórios,
enquanto que para os índios do Nordeste seus territórios foram incorporados pela
expansão colonizadora, por isso as posses dos índios não diferem do padrão camponês
do Nordeste brasileiro. Explica-se então que a afirmação cultural dos indígenas
nordestinos passa pelo desafio de restabelecer os territórios indígenas, promovendo a
retirada dos não índios das suas áreas. Nesse contexto, as missões religiosas foram
instrumentos importantes da política colonialista.
No sertão do São Francisco, o estado colonial incorporou, em nome da expansão
e da regulação de mercado, um contingente de “índios mansos”, que já era produto de
96

uma primeira “mistura”. Uma segunda mistura vem pelas mãos dos missionários que
fixam colonos brancos dentro dos limites dos antigos aldeamentos, estimulando assim
os casamentos interétnicos: “A misturação na Missão foi grande. Quem era dos índios
casou com brancos. O nego de Tijuaçu casou com as índias daqui e foi misturando”
(UPIARA). Como a atividade econômica da região centrava-se nas fazendas de gado, e
estas não eram muito atrativas, os efeitos desses casamentos não tiveram maiores
implicações na “mistura” dos índios.
Quando o processo de “mistura” envolve as questões territoriais, a
(des)construção da identidade indígena é realizada com maior efetividade. Num
primeiro momento, o baixo fluxo migratório para o sertão fez com que as antigas terras
dos aldeamentos permanecessem sob o controle de uma população de descendentes dos
índios das missões. Mas, em 1850, com a Lei de Terras, ocorre um movimento de
regularização das propriedades, baseado na distribuição de terras às famílias vindas das
grandes propriedades ou das fazendas de gado. É nesse contexto que começam a ser
declarados extintos os antigos aldeamentos indígenas, sendo os seus terrenos
incorporados às comarcas e municípios em formação. Todo esse processo pode ser
compreendido como a terceira “mistura”, sendo esta limitadora de posses de terras e
responsável pelas marcas nas memórias e narrativas dos povos indígenas.
Portanto, a desconstrução da identidade dos povos tradicionais no Nordeste – e
da Bahia – tem como marca a destituição desses povos dos seus antigos territórios. Com
essa afronta não são mais reconhecidos como coletividades, mas referidos
individualmente como “remanescentes” ou “descendentes”. Eis a “emergência” de
novas identidades indígenas que se fazem por meio de pouca distintividade cultural, ou
seja, eis os “índios misturados”.
Olhar esse processo constitutivo tendo como base o movimento diaspórico nos
leva a afirmar que “a identidade cultural não é fixa, é sempre hibrida” (HALL, 2003, p.
432), seguindo essa mesma lógica o autor diz que “é justamente por resultar de
formações históricas especificas, de historias e repertórios culturais de enunciação
muito específicos, que ela pode constituir um ‘posicionamento’, ao qual nos podemos
chamar provisoriamente de identidade” (HALL, 2003, p. 433). Assim, a negação
histórica da condição indígena foi uma das propulsoras da (des)construção da identidade
desses povos, mas, à luz da diáspora é possível afirmar que esse processo de
desconstrução tem como característica a provisoriedade que permitirá o surgimento de
novas identidades.
97

Na Missão do Sahy essa provisoriedade é percebida na afirmação da Aldeinha


como comunidade de descendentes, no surgimento da Organização Não-Governamental
Casa do Aprendiz Urupês e na profusão de artigos, monografias, dissertações e teses
sobre diversos aspectos da comunidade. Contudo, obter do outro o reconhecimento do
pertencimento étnico necessita ações mais ousadas de assunção do ser índio. Montagner
(2002), ao analisar a construção da etnia Náwa, no Acre, percebeu que, ao buscarem
visibilidade da condição étnica, os indígenas
se sentem como se tivessem assumindo uma nova identidade, que não
estavam buscando, mas foram impelidos a ela e todo comportamento e
discurso estão agora direcionados nesse sentido. Reviram o passado,
desenterraram comprovantes arqueológicos; relembram antepassados que não
sabem nomear na maioria das vezes, valorizam aspectos culturais que muitos
desconheciam até pouco tempo atrás, lamentam não terem dado atenção às
histórias que os mais velhos contavam. Recriam cânticos e inventam adornos
corporais, dando uma especificidade a eles. Adotam, para sua identidade
pessoal, a etnia Náwa. A união interna fortalece-se. Lideranças políticas são
firmadas, externas e internamente, no grupo. Reascendem a memória social
do grupo para justificar sua indianidade. Atualmente são reconhecidos, são
vistos pelas autoridades e pelos regionais. Saem da invisibilidade. Adquirem
respeito e cidadania (MONTAGNER, 2002, p. 97).

Trazendo a concepção de diáspora para o estudo, remonta-se à origem


etimológica da palavra, sua raiz vem do verbo grego speiro que significa ‘semear’ e
‘disseminar’. Acolhendo essa significação, chega-se ao entendimento de que a diáspora
necessariamente não subverte os aspectos culturais das comunidades, mas os
heterogeniza. A diáspora designa então um entre-lugar, este caracterizado pela
desterritorialização e reterritorialização, nesse sentido, James Clifford (1997) defende
que a diáspora remete àquelas situações em que o indivíduo elabora sua identidade
pessoal (individual) com base no sentimento de estar dividido entre duas lealdades
contraditórias: a de sua terra de origem (home) e do lugar onde está atualmente, onde
vive e constrói sua inserção social.
Aproximando o conceito de diáspora às análises dos povos indígenas lançam-se
as mesmas perguntas que Stuart Hall (2003, p. 26) fez ao estudar a realidade caribenha:
Como imaginar a relação do nativo com a terra de origem, a natureza de seu
"pertencimento"? Como pensar sobre a identidade nacional e o "pertencimento" à luz da
experiência da diáspora?
O primeiro passo é “não apegar-se a modelos fechados, unitários e homogêneos
de ‘pertencimento cultural’, mas abarcar os processos mais amplos” (HALL, 2003, p.
47). Assim, ao considerar que na diáspora as identidades se tornam múltiplas, é possível
98

afirmar que a (des)construção da cultura indígena pode se tornar um elo para a


afirmação identitária dos indivíduos e dos coletivos a que pertencem.
Na Missão do Sahy não é necessário se viver a nostalgia de antepassados que
nem sabem certamente de que etnia foram. Urge intensificar a conscientização, os que
acreditam na descendência precisam se engajar nos movimentos indígenas, assim como
os Nawá, lutar pelos direitos, reinventar cantos e rituais, ou seja, refazer a si e ao grupo
para que a identidade indígena aflore de fato.
Para se chegar as aproximações teóricas desejadas é preciso assumir a concepção
binária de diferença como um dos elementos do conceito de diáspora, ou seja, é preciso
considerar a existência de uma “fronteira de exclusão que depende da construção de um
‘outro’ e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora” (HALL, 2003, p. 33). Isso
reforça a compreensão já apresentada de que a identidade dos povos tradicionais
brasileiros se constituiu a partir das características atribuídas aos nativos como forma de
diferenciá-los dos povos europeus.
A concepção binária de diferença aponta que se de um lado tem-se a atribuição
de uma identidade indígena – patrocinada pela ação colonizadora – do outro a afirmação
da identidade individual e coletiva dos remanescentes da Missão do Sahy pode fazer
emergir novos significados para a noção de pertencimento desses povos. Assim, as
diferenças dependerão da significação que os indivíduos darão às suas condições
culturais e históricas. Nesse sentido, Stuart Hall (2003) defende que:
A diferença, sabemos, é essencial ao significado, e o significado e crucial a
cultura. Mas num movimento profundamente contra intuitivo, a linguística
moderna pós-saussuriana insiste que o significado não pode ser fixado
definitivamente. Sempre há o "deslize" inevitável do significado na semiose
aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser
dialogicamente reapropriado. A fantasia de um significado final continua
assombrada pela "falta" ou "excesso", mas nunca e apreensível na plenitude
de sua presença a si mesma (HALL, 2003, p. 33).

Essa reapropriação de significados leva a compreensão de que a identidade


indígena não foi exterminada para sempre, mesmo tendo sido atacada durante séculos,
poderá ressurgir após a superação do movimento de dispersão. Stuart Hall (2003), à luz
dos conceitos de diáspora, defende que a identidade dos indivíduos se reconfiguram
mesmo após um processo de migração cultural:
Essencialmente, presume-se que a identidade cultural, seja, fixada no
nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da
linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu mais interior. É
impermeável a algo tão "mundano", secular e superficial quanto uma
99

mudança temporária de nosso local de residência. A pobreza, o


subdesenvolvimento, a falta de oportunidades — os legados do Império em
toda parte — podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento
— a dispersão. Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do
retorno redentor (HALL, 2003, p. 28).

Outras acepções de identidade trazidas por Stuart Hall (2006) também


contribuem para a análise do objeto de estudo em questão. Nas construções
apresentadas no livro “A Identidade Cultural na Pós-modernidade”, o autor destaca que
o processo de identidade parte de uma visão de um “Sujeito do Iluminismo”, afirma que
esta visão encontrava-se “baseada numa concepção de pessoa humana como indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de
ação. Concepção muito “individualista” do sujeito e da sua identidade” (HALL, 2006, p.
10).
Por esse viés os portugueses colonizadores, juntamente com os frades da Ordem
Franciscana, que fundaram em 1697 a Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy,
não consideravam os índios da localidade como pessoas centradas, muito menos dotadas
de razão e consciência, por isso, negaram a identidade indígena e instauraram ações
catequizadoras em nome da “proteção” e “educação” desses povos. Mas, sabe-se que
essas ações em muito contribuíram para a (des)construção da identidade dos povos que
ali viveram e vivem até hoje.
A outra visão trazida por Stuart Hall (2006, p. 10) está relacionada ao “Sujeito
Sociológico”. Este “refletia a crescente complexidade do mundo moderno. O núcleo
interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, era sim formado na relação com
outras pessoas importantes para ele, que mediavam sentidos e símbolos – a cultura – do
mundo que ele habitava”.
Acredita-se que a (des)construção/atribuição da identidade dos povos
tradicionais pode estar abarcada por essa visão de homem e de mundo. Isso se deve ao
fato de que na relação mediada por sentidos e símbolos esses povos vão perdendo sua
autonomia e acabam assimilando uma nova cultura. Em Missão do Sahy este processo é
destacado por Maria da Paz e Marluce Paiva (2008, p. 2) quando afirmam que as
instituições religiosas promoveram a “ação transformadora” e, através da assimilação da
nova cultura, os sentidos, os símbolos, os ritos e costumes dos descendentes indígenas
foram sendo afastados e relegados à ignomínia e ao esquecimento. Foi sendo, portanto,
paulatinamente introjetado o modo de viver do colonizador, relegando a um plano
100

secundário as identidades, a história econômica, social, política e cultural do lugar.


Quando trata do “Sujeito pós-moderno”, Hall (2006, p. 17) defende que este
“caracteriza as sociedades da modernidade destacando que estas são caracterizadas pela
‘diferença’; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais. Assim
produzem uma variedade de diferentes ‘posições de sujeitos’ – isto é, identidades – para
os indivíduos”.
A partir desta perspectiva, pode-se reafirmar a necessidade de centrar a
investigação nos processos culturais e identitários dos sujeitos em questão. Se na
sociedade pós-moderna concebe-se que as divisões e antagonismos sociais possibilitam
a constituição de diferentes identidades, não se pode reificar o processo
(des)construção/atribuição identitária sofrido pelos descendentes indígenas da Missão
do Sahy. Por outro lado, abre-se a possibilidade de dar um novo sentido para os traços
ancestrais da cultura indígena, com o objetivo de fortalecer o pertencimento étnico dos
sujeitos. Como aponta a fala de Upiara, descendentes de indígenas sim, resignados
jamais: “como índios não somos reconhecidos ainda, mas temos nosso valor. Temo que
nos uni e nunca esperar que os políticos faça o que é nossa obrigação: se assumi nossa
cultura de índio” (2011).
Para defender assim como Upiara uma condição indígena, é preciso demarcar
que ela não é um ente dado e acabado, pois, se assim fosse, prevaleceria a ideia de
remanescência, ou seja, algo que resta, que faz parte de uma sobra. Contra essa visão
afirma-se que cultura se constrói em situações interétnicas e dialógicas concretas,
portanto, ela sugere reflexividade, uma capacidade de falar da própria fala, ou seja, tem
a propriedade de uma metalinguagem, uma noção reflexiva que de certo modo fala de si
mesma (CUNHA, 2009, p. 357).
Por isso ser tão fundamental a valorização das memórias que fazem alusão ao
pertencimento étnico, mas é importante que essas narrativas e os seus mensageiros
alcancem outros horizontes, pois “o modo pelo qual cada ser humano ser torna um ser
cultural é a sua inserção, com a mediação do outro, no circuito da significação ou da
semiose humana” (PINO, 1997, p. 27).
Apresentar esses sujeitos para as academias, para gestores públicos, para as
crianças e jovens das escolas é imprescindível, visto que é no processo de mediação que
a reconfiguração da questão étnica será feita, tanto para índios como para os não índios.
A essa ação pode ser acrescentada a importância que Clifford Geertz (2008) dá aos
101

processos semióticos na perspectiva dialógica: “o ponto global da abordagem semiótica


da cultura é, como já disse, auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual
vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo,
conversar com eles” (GEERTZ, 2008, p. 17).
Essa estratégia de interlocução poderá fazer com que não apenas se conheça a
realidade étnica dos moradores da Missão do Sahy, é preciso construir com eles as
alternativas que venham possibilitar a emergência de uma identidade pessoal e coletiva,
esse contato de formação mútua é possível na medida em que se considera que “a
compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma
atitude responsiva ativa” (BAKHTIN, 1997, p. 290). Nesse processo teremos que:
O ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um
discurso adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude
responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa,
adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em
elaboração constante durante todo o processo de audição e compreensão
desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo
locutor. A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre
acompanhada de uma atitude responsiva ativa; toda compreensão é prenhe de
resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte
torna-se o locutor (BAKHTIN, 1997, p. 290).

Somam-se à perspectiva sígnica de Bakhtin (1997) os estudos de Homi Bhabha


(1998), pois ao tratar das diferenças culturais, aborda a forma como o valor cultural é
negociado no plano subjetivo e intersubjetivo, gerando novos signos e identidades.
Portanto, é imperioso compreender que:
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de
passar além das narrativas de subjetividades originarias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na
articulação de diferenças culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o
terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou
coletiva – que dão início a novas signos de identidade e postos inovadores
de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de
sociedade. É na emergência dos interstícios – a sobreposição e o
deslocamento de domínios da diferença – que as experiências
intersubjetivas e coletivas de nação, o interesse comunitário ou o valor
cultural são negociados (BHABHA, 1998, p. 20).

Levando para ordem do dia os debates sobre o contexto cultural da


comunidade tradicional da “Aldeinha”, as possibilidades de afirmação das identidades
individual e coletiva, por meio das práticas discursivas, poderão fortalecer os saberes
tradicionais da comunidade.
102

Quanto a esses saberes tradicionais, Manuela Cunha (2007) os considera “um


tesouro no sentido literal da palavra, um conjunto acabado que se deve preservar, um
acervo fechado transmitido por antepassados e a que não vem ao caso acrescentar nada”
(CUNHA, 2007, p. 79). Imediatamente trata de desfazer a lógica reducionista que surge
quando se trata dos saberes populares, então afirma que esta é uma visão equivocada,
pois “muito pelo contrário, o conhecimento tradicional reside tanto ou mais nos seus
processos de investigação quanto nos acervos já prontos transmitidos pelas gerações
anteriores” (CUNHA, 2007, p. 80).
Seguindo a lógica criadora das práticas discursivas, mediadas pelos saberes
tradicionais, é provável que ao partilhar as lendas e as histórias dos índios do Sahy
identidades outrora atribuídas e negadas se reconfigurem, pois como formula Homi
Bhabha (1998), esse novo deve ser pensado como algo:
que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia
do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas
retoma o passado como causa social ou precedente estético ela renova o
passado, refigurando-o como um "entre-lugar" contingente, que inova e
interrompe a atuação do presente. O "passado-presente" torna-se parte da
necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABA, 1998, p. 35).

Em se tratando das narrativas da Missão, umas têm relação direta como a


organização religiosa e social do processo colonizador – as Penitências e as Incelenças –
mas outras são tidas como lendas, a exemplo dos Encantados do Velho Índio, do Túnel e
da Mulher Chorona. As lendas, quando consideradas como um saber popular, não
precisam passar pelo crivo da verdade universalizante que é característica fundante do
conhecimento científico. As narrativas e lendas estão no hall dos saberes tradicionais,
por isso, são mais tolerantes, acolhem frequentemente com igual confiança ou ceticismo
explicações divergentes cuja validade seja puramente local. Assim, a mulher que
assusta, o túnel que corta a cidade e outras oralidades, podem ser tomadas com grandes
verdades a depender das relações intersubjetivas que se constroem a partir das
narrativas. Foi numa troca de saberes com um indígena que a antropóloga Manuela
Carneiro Cunha ouviu algo que a levou refletir sobre a validade dos saberes
tradicionais: “pode ser que, na sua terra, as pedras não tenham vida. Aqui elas crescem e
estão, portanto, vivas” (CUNHA, 2007, p. 78).
São as narrativas e lendas que permeiam o imaginário dos moradores da Missão
e promovem a ligação dos mesmos com o passado e com os seus ancestrais. É só falar
103

da expulsão dos franciscanos pelos jesuítas que velhos, jovens e crianças disparam a
mesma hsitória: “Diz que esses zezuíta fugira pra lá, num sei como foi, eles sairo fugido
dasqui pa Jacobina. Derão vinte e quato horas pa eles saire daqui, pais é o povo tem a
mania de dizer que eles sairo por debaixo do chão” (KUMARI, 2011). Basta ter a
delicadeza de ouvir que logo disparam a Lenda do Túnel:
Pedra da Baleia, né, que foram, segundo a lenda existem alguns túneis que
eles foram os construtores desses locais, que eles fizeram as escavações, e qual
o objetivo dessas escavações? Era, como a área era muito acidentada, a
região toda é muito acidentada, ficava difícil trazer pedras do local, da
margem do rio pra comunidade Missão, pra o local onde existia loteamento,
então eles fizeram esse, essas escavações, esses túneis pra facilitar, ou seja, as
pedras que deveriam ser trazidas por cima, eram trazidas por baixo
(URUPÊS, 2011).

Mas é o dialogo entre duas moradoras que revela as riquezas do imaginário


popular (DA PAZ, 2004, p. 106):
- eles contam uma história ali daquele túnel, que tem uma história
interessante, do túnel, que vai sair em Puindobaçu, que eram antigas minas de
ouro, que eles fizeram ali para puder sair em outra região, pra fugirem, teve
uma briga, quer vê? Procure essa história...eles contam sim, é como se tivesse
uma briga e eles passassem pelo túnel...o túnel que sai noutra cidade”. (In. DA
PAZ, 2004)

- Mas isso ai é mentira...diz que tem esse tune que vai daqui até Jacobina...

- E esse túnel existe mesmo?

- Diz o povo que tem, agora se tem eu num sei, diz que os pode tinha que pegar
água da cachoeira ia pela túne...

- Tu num lembra onde foi que o finado Tarciso achou uma mina? Num foi aí
nesse túne? Num foi ai detrás do cemitério que ele cavou.., Diz que tem aí
debaixo do cemitério, agora se tem, eu não sei, se tinha ainda tem ninguém
Tapou..(risos)

- O povo diz que aqui nesta serra é uma serra muito rica, diz que tem
minério...eu não sei se isso é verdade não viu? (risos) antigamente dizia que
viram carneiro de ouro aí nessa serra, o povo via Já noite saindo, brilhando
dizem...e parece que já veio um engenheiro num sei quem foi..

- Ali abaixo da casa de d.Sinhá...então dizem que ali, veio duas pessoas do
Pernambuco atrás dessa boca desse túne, cavaro, cavaro aí e não sei o
que...acho que num acharo nada, eu sei dizer uma coisa, o finado Tarciso
arrumeou alguma coisa, sabe porque? Ele não tinha nada e depois disso ele
melhorou e muito e diz que quem arranca essas coisa não pode mais ficar no
lugar, e depois disso ele foi pra São Paulo e voltou, depois comprou casa boa
e tudo e foi embora, quem tira essas coisa num pode ficar no lugar e foro tudo
embora.

Outras versões da lenda do túnel são recorrentes na Missão do Sahy. Até existem
vídeos públicos, como o que segue abaixo, sobre o suposto local dos túneis.
104

Figura 13: Capa de Vídeo sobre Lenda do Túnel


http://youtu.be/jBzA8flKzJQ

Fonte: Blog Missão Notícias

O universo das lendas não para por aí. Outra contada e recontada na localidade é
a lenda da Mulher chorona. Apoema (2011), a guardiã das memórias narra mais essa
lenda:
... Eu quando vi a história da mulher chorona, minha mãe, nós morava
naquela casa ali nera? Ai minha mãe nós tava quebrando licuri. A gente
quebrava licuri até uma hora da madrugada. Aqui não tinha luz, era tudo no
candeeirínho. Ai minha mãe quebrando licuri e nós tirando né? Aí quando
foi nessa noite minha fia, lá vem aquela mulè chorona...
- Ô meu Deus, qu’é q’eu fiz meu Deus? Q’é q’eu fiz meu Deus, p'eu tá
sofrendo desse jeito.
Ai mãe disse:
- Cala a boca, fiquem calada..
Ai nós comecemo a ficar com medo né? Ai mãe disse:
- Não fique com medo não, fique ai todo mundo caladinho dexe ela passar.
Aí nós ficamo. Mas menina eu tremia de medo. Aí mãe, é assim mesmo, aí ela
passou bem na frente da nossa casa...
- Meu Deus, q'é q'eu fiz. Meu Deus...
Oia, chega me arrupeuio toda...
Ai morava um pessoal aqui que tava fazendo a estrada né? E eles ficar
hospedado numa casa que tinha ali na esquina, um bando de rapaz e
senhoras né? Ai quando foi um dia um disse assim:
- Se eu vê essa mulher chorando eu vou me levantar e vou ver o que é...
Aí quando foi uma noite, diz que ele levantou, os outros brigando com ele
né?

-Fulano deixa, num vai pra lá não. Que que tu vai fazer Ia?

-Eu vou vê o que significa isso.


Era um criolo, você se lembra dele, tocava violão fazia seresta...Ai ele
levantou, quando ele abriu a porta ela ia passando, e ele começou a ficar
com medo, quando ele olhou... Diz que nas costas dela tava aquele fogo nas
costas...
Ele contava pra nós que perguntou:
- O que é que a senhora quer?
105

Aí ela disse assim:


-Ainda não chegou meu tempo.
Aí ele se assombrou e correu pra dentro de casa.
Ela desapareceu, era uma sentença que ela tinha, ai ela não apareceu mais é
porque completou o tempo dela.

Ao olhar a plasticidade dessas lendas e a forma como elas perpassam o


imaginário, tornando-se verdades para essas pessoas, torna-se possível lutar contra a
perspectiva instrumentalizada e reprodutivista de cultura, ou seja, algo que só se efetiva
pela obediência de regras e valores fixos. Não! A cultura aqui é entendida como o modo
de ser e de viver dos descendentes em questão. Uma cultura que é produção do próprio
indivíduo e por isso, o transforma permanentemente em um novo tipo de sujeito
(HALL, 2003, p. 44).
Tendo como horizonte este processo transformador, almejou-se com a pesquisa
encontrar um fio condutor que possibilitasse olhar por vários ângulos a constituição dos
processos de identidade cultural de uma comunidade tradicional indígena. Grandes
foram os desafios. Era preciso olhar o passado e encontrar, a partir dos vestígios da
negação cultural, forjada por uma identidade atribuída, as possibilidades de reafirmação
étnica desses sujeitos. Assim buscou-se nos estudos no campo da identidade, trazer
questões que indicassem a possibilidade de superar atribuição identitária historicamente
feita aos indígenas e descendentes da Missão do Sahy.
Os estudos das teorias culturais possibilitaram a mobilização de vários conceitos,
tanto os que levassem à compreensão das identidades atribuídas, quanto os que
conduzissem a uma contraposição, ou seja, a construção das identidades individual e
coletiva.
A implicação com o campo teórico e com a realidade investigada levou a
ousadia de responder a algumas questões lançadas por Stuart Hall (2003, p. 39-40), no
entanto, alterando os sujeitos problematizados e o local de inserção dos mesmos. Os
esforços voltados para as reconstruções das identidades indígenas, as buscas pelas
fontes originárias, as lutas pela recuperação cultural não foram em vão.
Foi possível retrabalhar a Missão do Sahy e a trama dos processos identitários e
culturais que envolveram (e envolvem) a população local. A maior questão posta foi,
assim como Hall fez e se remeteu à África, interpretar a Missão do Sahy, reler a Missão
do Sahy e descobrir do que a Missão do Sahy pode ser capaz de (re) significar a partir
de uma concepção de cultura que possibilite aos sujeitos se autorreconhecerem como
106

descendentes indígenas para, simultaneamente, modificar o plano social com a intenção


de serem reconhecidos externamente como índios ou descendentes. Pois como diz
Geertz (2008),
Se a interpretação antropológica (da realidade da Missão) está construindo
uma leitura do que aconteceu (perspectiva histórica), então divorciá-la do que
acontece — do que, nessa ocasião ou naquele lugar, pessoas específicas
dizem, o que elas fazem, o que é feito a elas, a partir de todo o vasto negócio
do mundo — é divorciá-la das suas aplicações e torná-la vazia. Uma boa
interpretação de qualquer coisa — um poema, uma pessoa, uma história, um
ritual, uma instituição, uma sociedade — leva-nos ao cerne do que nos
propomos interpretar. Quando isso não ocorre e nos conduz, ao contrário, a
outra coisa — a uma admiração da sua própria elegância, da inteligência do
seu autor ou das belezas da ordem euclidiana —, isso pode ter encantos
intrínsecos, mas é algo muito diferente do que a tarefa que temos (GEERTZ,
2008, p.13).

Assim, fica a crença de que foi possível ir ao cerne do que a pesquisa propôs.
Diante da realidade estudada e das construções teóricas de pesquisadora me fiz sujeito,
tendo minha identidade cultural modificada durante a investigação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após transitar pela história e pelas narrativas dos índios no Brasil, na Bahia e na
Missão do Sahy, é possível afirmar que durante a pesquisa a vertente de cultura não foi
empregada como “algo dado, posto, algo dilapidável” (CUNHA, 2009, p. 239). Pelo
contrário, por ter se proposto a olhar as interferências na constituição das identidades
cultural e coletiva de um grupo de descendentes indígenas, a opção foi pensar a
107

disjunção, mas concomitantemente apontar as possibilidades de junção de todos os


elementos que acabaram por se constituírem em categoria de análise do pertencimento
étnico.
A escolha por esse caminho lançou o desafio de analisar os processos
identitários de um grupo específico, no entanto, se valendo de informações e aspectos
de outros sujeitos, que viveram em outros tempos e espaços. Essa interconexão entre
sujeitos, tempos e lugares foi possível por se tratar de um grupo étnico, com
características singulares dentro de cada etnia, mas com aspectos similares quando se
trata da relação destes com os colonizadores e, consequentemente, com a constituição
de identidades num plano cultural.
Por esse contexto foi necessário assumir um conceito de cultura que conseguisse
dialogar com essa perspectiva abrangente de análise. No livro “A interpretação das
Culturas”, Clifford Geertz (2008) traz uma tentativa de definição de cultura que acabou
se aproximando do problema de investigação desta dissertação, a saber: como as
narrativas dos descendentes revelam as identidades atribuídas ao índio e, identificando-
as, possibilitam a instauração de um processo de constituição das identidades individual
e coletiva?
A definição dos objetivos e do método de análise foi ao encontro das
formulações no campo da cultura quando se passou a assumi-la na mesma perspectiva
de Geertz:
o conceito de cultura é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max
Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise;
portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma
explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua
superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por
si mesma uma explicação (GEERTZ, 2008. P. 4).

A interpretação das diversas informações levantadas durante a pesquisa,


mediadas pelas teias de significados, abrangeu conceitos como identidades,
hibridização, diáspora, todos eles transpassados pela perspectiva cultural. Portanto, ao
mesmo tempo em que se ensejava responder as questões apontadas pelos objetivos, era
preciso ter claro que “a análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior,
quanto mais profunda, menos completa” (GEERTZ, 2008, p. 20). Mas era preciso
adentrar nessas análises, entretanto, houve um cuidado para não assumir nem um dos
caminhos de fuga apontados por Clifford Geertz (2008, p. 20): “Há uma série de
108

caminhos para fugir a isso — transformar a cultura em folclore e colecioná-lo,


transformá-la em traços e contá-los, transformá-la em instituições e classificá-las,
transformá-la em estruturas e brincar com elas. Todavia, isso são fugas”.
Para se distanciar das fugas, a construção teórica foi pensada não com o
propósito de criar um sistema de códigos para se interpretar as informações
provenientes dos encontros dialógicos, mas sim, contribuir nas análises e nas descrições
do que foi observado/investigado. O que se intentou foi tratar os casos/fatos de acordo
com suas especificidades e singularidades. Por conseguinte,
não se pode escrever uma "Teoria Geral de Interpretação Cultural" ou se
pode, de fato, mas parece haver pouca vantagem nisso, pois aqui a tarefa
essencial da construção teórica não é codificar regularidades abstraias, mas
tornar possíveis descrições minuciosas; não generalizar através dos casos,
mas generalizar dentro deles. Generalizar dentro dos casos é chamado
habitualmente, pelo menos em medicina e em psicologia profunda, uma
inferência clínica. Em vez de começar com um conjunto de observações e
tentar subordiná-las a uma lei ordenadora, essa inferência começa com um
conjunto de significantes (presumíveis) e tenta enquadrá-los de forma
inteligível. As medidas são calculadas para as previsões teóricas, mas os
sintomas (mesmo quando mensurados) são escrutinados em busca de
peculiaridades teóricas — isto é, eles são diagnosticados. No estudo da
cultura, os significantes não são sintomas ou conjuntos de sintomas, mas atos
simbólicos ou conjuntos de atos simbólicos e o objetivo não é a terapia, mas
a análise do discurso social. Mas a maneira pela qual a teoria é usada —
investigar a importância não-aparente das coisas — é a mesma (GEERTZ,
2008, p. 18).

Por esse viés de análise e para fugir da perspectiva de cultura ensimesmada, foi
preciso assumi-la como “algo constantemente reinventado, recomposto, dinâmico,
investido de novos significados” (CUNHA, 2009, p. 239). Por essa ótica, foi criada uma
inter-relação entre os processos de atribuição de identidade aos indígenas e as
proposições acerca do hibridismo e da diáspora. Outros conceitos, conjecturas e
proposições orbitaram as discussões, mas no centro para o qual todos convergiam estava
um ser ocultado, culturalmente e negligenciado pelo homem branco: os índios.
Já os registros das narrativas, compilados através dos encontros dialógicos,
permearam toda a análise. Eles serviram não só para caracterizar a Missão do Sahy, mas
também para exemplificar como os colonizadores efetivavam a atribuição/(des)
construção das identidades durante o período das Santas Missões. Sendo as Missões
organizadas sob o pretexto da Fé, atacavam as identidades originais e atribuíam aos
índios novas identidades, ou seja, no Brasil e na Missão do Sahy, amparados pela lógica
cristã, agiam na Terra de Deus, transformando índios em não-índios.
109

As narrativas também tiveram centralidade nas análises da constituição da


Missão do Sahy e da Aldeinha. Revelaram-se narrativas e lendas que não só se
aproximaram das variantes históricas, mas também indicaram elementos para analisar a
identidade à luz das teorias de atribuição/(des)construção identitária, hibridismo e
diáspora.
A construção da base metodológica e conceitual permitiu uma reflexividade 56, ou
seja, cada parte (teorias, histórias e narrativas) se relacionou com os demais elementos
num movimento de simultaneidade, mas, a parte isolada também manteve sua
importância quando apenas outro elemento precisou parear com essa unidade fora do
conjunto. Portanto, houve momentos em que teorias, histórias e narrativas se
perpassaram mutuamente, mas, também existiram momentos em que uma determinada
lenda se aproximou apenas de uma análise de cunho histórico, um exemplo foram as
lendas das “penitências” e das “incelenças” que se relacionaram apenas com os ritos da
igreja católica.
Buscando explicações para as construções realizadas, chegou-se a uma situação
metafórica onde se enxerga o sujeito – índio – como um grande cristal transparente,
onde se inscreveriam situações, fatos, conjecturas, conceitos e análises. Foi o olhar
multidimensional e multitemporal que possibilitou idas e vindas ao campo teórico, às
histórias, às narrativas e à realidade local dos descendentes indígenas de Missão do
Sahy. Poderia até parafrasear o poeta e dizer que: de tudo, ficaram três coisas. Mas teria
um problema de quantificação, pois na verdade ficou muito mais do que três coisas.
Como ao final de cada discussão realizada os posicionamentos eram tomados, as
conclusões acabaram sendo partícipes do circuito da significação proporcionado pelo
método de análise. Mesmo assim, ainda é preciso demarcar as respostas ao problema de
pesquisa e aos objetivos propostos.
Sendo as narrativas dos descendentes um dos elementos chave do problema de
pesquisa57, as conclusões geradas reforçam a hipótese inicial de que estas tiveram um
papel fundamental para revelar as identidades atribuídas aos indígenas. Tendo esse
processo de atribuição ocorrido por meio das misturas e hibridização, se alcança o
primeiro58 objetivo da pesquisa. Assim foram evidenciados no decorrer dos capítulos o

56
Conforme conceituada no capítulo 3, página 100.
57
Como as narrativas dos descendentes revelam as identidades atribuídas ao índio e, identificando-as, pos-
sibilitam a instauração de um processo de constituição das identidades individual e coletiva?
58
Buscar a relação dos episódios de atribuição/(des)construção da identidade dos indígenas com os pro-
cessos de misturação étnica e hibridismo cultural.
110

poder das narrativas.


O primeiro processo de atribuição de identidade cultural indígena no Brasil:
se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que
não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências (CARTA,
1963).

A mistura de valores, culturas e cresças:


muitas são as influências do candomblé na Missão. Existiram muitos
terreiros por aqui e lá se cultuavam os orixás com cantos e oferendas
levando em conta elementos da cultura dos meus antepassados (AIYRA).

Os hibridismos e as hipóteses levantadas por Canclini (2000), que têm como


premissa a ideia de uma formação cultural híbrida, foram percebidas em diversas
narrativas.
Reafirmamos ao final da pesquisa que a primeira hipótese de Canclini, de que é
nos “cruzamentos socioculturais que o tradicional e o moderno se misturam”
(CANCLINI, 2000, p.18) se validava nos estudos aqui apresentados. Pelas narrativas foi
possível ter claro que a mistura de culturas não acontece de forma sintética, mas de
forma dialógica, levando diferentes aspectos culturais se conjugam e se traduzirem em
algo novo.
Conclui-se que as disjunções – passado/presente, índio/branco, verdade/mentira
– precisam ser mais bem trabalhadas para não gerarem uma incerteza da descendência
indígena na Missão. Assim, torna-se necessário trabalhar os processos dialógicos na
escola para que as questões étnicas não sejam vistas como “uma vergonha” e na
comunidade, é preciso preservar as memórias que liguem os descendentes a sua etnia.
Olhando a hibridização através da segunda hipótese, onde o autor diz que não
acredita numa força dominadora que venha a excluir a cultura tradicional (CANCLINI,
2000, p. 19), conclui-se que, da mesma forma na Missão do Sahy seria falso falar em
uma extinção da cultura indígena, pois os aspectos físicos, a organização sócio-
produtiva da Aldeinha e as próprias memórias dizem o contrário: a cultura indígena
ainda encontra-se presente na localidade.
tem famía aqui que num arrenega não, e tudo de pele de caboco e cabelo
escuridinho. Num é de hoje que é tudo assim, eu conheci o véio bisâvo deles.
Diz que era curador dos bom (KUMARI, 2011).

a forma como se relacionam com a natureza para tirar o material do


artesanato, tudo isso é muito parecido com a forma de viver dos índios ditos
de verdade (AIYARA, 2011).

Ele sabe também fazer coisa muita coisa de barro, isso sim era feito pelos
índios. Até lá em casa tem uns aguidá de barro (IBOTIRA, 2011).
111

Essas e outras conclusões apresentadas confirmam não só o papel da


hibridização nas identidades atribuídas, mas também conseguem demonstrar o alcance
do terceiro objetivo específico, pois as narrativas e lendas da Missão do Sahy tanto
revelaram esse processo de mistura quanto permitiram a perspectiva diaspórica na
constituição das identidades individual e coletiva.
Assim foi respondido o segundo elemento chave do problema de pesquisa:
identificando as identidades coletivas, por meio das narrativas, haveria possibilidade de
se instaurar um processo de constituição das identidades individual e coletiva?
As evidências mostraram que sim, e as formulações epistemológicas de diáspora
contribuíram para direcionar a constituição dessas identidades, mostrando ser possível a
realização de um trabalho que conduza ao pertencimento étnico dos descendentes
indígenas da Missão do Sahy.
Por fim, mesmo diante da quantidade de problematizações, certezas e incertezas
que a pesquisa gerou, teima-se em dizer que:
De Tudo Ficaram Três Coisas...
(Fernando Sabino)
A certeza de que estamos começando...
A certeza de que é preciso continuar...
A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar...
Façamos da interrupção um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro!
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FONTES ORAIS

URUPÊS: nome de origem indígena que significa: um tipo de cogumelo ou “orelha de


pau”, também é uma coletânea de contos e crônicas do escritor brasileiro Monteiro
Lobato. Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a
popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e educacional",
2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.

ASANTE: nome de origem africana que significa: agradecido, grato. Atribuído a um


remanescente de quilombola, Tijuaçu/BA. Entrevista concedida aos membros do
Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a popularização das ciências num contexto de
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diversidade social, cultural e educacional", 2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.

THEMA: nome de origem africana que significa: Rainha. Atribuído a um remanescente


de quilombola, Tijuaçu/BA. Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo
Ciência na docência: a popularização das ciências num contexto de diversidade social,
cultural e educacional", 2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.

APOEMA: nome de origem indígena que significa: aquela que vê mais longe.
Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a
popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e educacional",
2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.

AIYRA: nome de origem indígena que significa: filha. Entrevista concedida aos
membros do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a popularização das ciências num
contexto de diversidade social, cultural e educacional", 2011. SOUZA, Leila Damiana
A.S.

UPIARA: nome de origem indígena que significa: o que luta contra o mal. Trabalha
com artesanato de cipó na comunidade conhecida como Aldeinha, fundada por sua mãe.
Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo Ciência na docência: a
popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e educacional",
2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.

IBOTIRA: nome de origem indígena que significa: flor pequena. Tem 13 anos e reside
na Aldeinha. Entrevista concedida aos membros do Projeto: "Fazendo Ciência na
docência: a popularização das ciências num contexto de diversidade social, cultural e
educacional", 2011. SOUZA, Leila Damiana A.S.

ANEXOS

A única cópia encontrada do documento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional (IPHAN) foi disponibilizada pela ONG Casa do Aprendiz Urupês. Segundo o
Presidente da ONG foi solicitada ao IPHAH uma cópia colorida e em melhor estado para
compor o acervo da Casa do Aprendiz Urupês, mas não foi disponibilizado. Pela importância do
documento foi feita a opção de anexar a única cópia, mesma estando com falhas de impressão.
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