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No primeiro grupo inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respetivamente o Bem e o Mal, o Céu e o
Inferno. Ao longo de toda a obra estas personagens são como que os «juízes» do julgamento das almas,
tendo em conta os seus pecados e vida terrena.
Fazendo uma análise das personagens, cada uma representa uma classe social, ou uma determinada
profissão ou mesmo um credo. À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem
elementos simbólicos, que representam a sua vida terrena e demonstram que não têm qualquer
arrependimento dos seus pecados.
Humor
Surgem ao longo do auto três tipos de cómico: o de carácter, o de situação e o de linguagem.
O cómico de carácter é aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem, de que é
exemplo o Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede as suas palavras, não podendo ser
responsabilizado pelos seus erros.
O cómico de situação é o criado à volta de certa situação, de que é bom exemplo a cena do Fidalgo,
em que este é gozado pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado.
Por fim, o cómico de linguagem é aquele que é proferido por certa personagem, de que são bons
exemplos as falas do Diabo.
Argumento
Este auto considerado por Gil Vicente como sendo um auto de moralidade (Peça de carácter didático-moral
onde as personagens encarnam vícios ou virtudes com o objetivo de moralizar a sociedade ) inicia com uma dedicatória à
Rainha D. Leonor (presença do mecenatismo), recorrendo a captatio benevolentiae (Expressão da retórica latina que
significa literalmente “conquista da benevolência”, muito difundida em todas as literaturas , quando um escritor quer ganhar a
simpatia de alguém, interpelando-o no sentido de receber louvor e solidariedade para a causa que está a ser defendida).
Feito o elogio à Rainha, Gil Vicente apresenta o argumento da peça: quando morremos (“no ponto que
acabamos de espirar”), as nossas almas dirigem-se a um rio, que tem de ser atravessado para atingirmos o
nosso destino final (Inferno ou Paraíso). No cais, para atravessar o rio, encontram-se dois barcos com os
respetivos barqueiros, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno.
O primeiro a chegar é um fidalgo, a seguir: um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma
alcoviteira, um judeu, um juiz, um procurador, um enforcado e quatro cavaleiros.
O seu percurso em cena é praticamente idêntico em quase todas as personagens. Um a um dirigem-se
à barca do Diabo, carregando com eles os seus pecados (signos não verbais ou símbolos cénicos). Perguntam para
onde vai a barca, mas ao saber que vai para o inferno ficam apavorados e dizem-se dignos do Céu.
Aproximam-se, então, do Anjo, que os condena ao inferno pelos seus pecados.
O Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Frade (e sua amante), a Alcoviteira (Brísida Vaz) o Judeu, o
Corregedor (juiz), o Procurador e o Enforcado são todos condenados ao inferno pelos seus pecados. Apenas
o Parvo é absolvido pelo Anjo. Os Cavaleiros nem sequer são acusados, pois deram a vida a lutar pela
Igreja.
FIDALGO
Caracterização da personagem:
Direta - nobre (fidalgo de solar)
Indireta - vaidoso, presunçoso do seu estado social
- o seu longo manto e o criado que carrega a cadeira representam bem a sua vaidade e
ostentação
- a forma como reage perante o Diabo e o Anjo revelam a sua arrogância (de quem está
habituado a mandar e a ter tudo)
- a sua conversa com o Diabo revela-nos que além da sua mulher tinha uma amante, mas que
ambas o enganavam
ONZENEIRO
Logo a seguir, vem um Onzeneiro que pergunta ao Diabo para onde vai aquela barca. O
Diabo diz-lhe para entrar e pergunta-lhe o que o levou a demorar tanto. O Onzeneiro queixa-se de que
morreu de forma imprevista, enquanto andava a recolher o dinheiro, e que nem dinheiro tinha para pagar ao
barqueiro.
Não querendo entrar na barca do Diabo, resolve dirigir-se à barca do Anjo, a quem pergunta se podia
embarcar. O Anjo diz-lhe que não entraria naquela barca por ter sido ganancioso.
De volta à barca do Diabo, o Onzeneiro pede para regressar ao mundo dos vivos para ir buscar dinheiro
pois pensava que o Anjo não o teria deixado entrar pelo facto de o bolsão ir vazio.
O Onzeneiro acaba por entrar na barca do Inferno.
Tipo: Burguesia
Caracterização da personagem:
Indireta – ganancioso, confiante da sua capacidade financeira
JOANNE, O PARVO
Aproxima-se, agora, do cais um Parvo, que pergunta se aquela barca era a dos tolos. O
Diabo afirmou que era aquela a sua barca. Entretanto, o Diabo perguntou-lhe de que é que ele tinha morrido.
Nesse momento, o Parvo dirige uma série de insultos ao Diabo e tenta, de seguida, embarcar na barca da
Glória. O Anjo disse-lhe que se ele quisesse, poderia entrar, pois durante a sua vida os erros que cometeu
não foram por malícia. Contudo, teria entretanto de esperar fora da barca.
Caracterização da personagem:
Direta – “Samica alguém”
Indireta – tolo, descarado
Esta cena tem uma intenção lúdica, fazendo divertir quem está a assistir a esta peça, mas também tem
uma intenção de crítica dizendo que as pessoas simples são mais merecedoras do Paraíso.
O Parvo é convertido numa éspecie de comentador independente da acção, pondo à mostra, com os
seus disparates, o ridículo das personagens convencidas do seu papel.
Em Gil Vicente, a função do Parvo não é apresentar-se a si próprio, nunca sendo observado pelo
interesse que em si mesmo possa oferecer, mas tem como função criar efeitos cómicos, irresponsáveis.
Durante a peça do Auto da Barca do Inferno, interfere diversas vezes, sendo constante característica o
uso do calão, que tanto é injurioso como otimista, fazendo de si um ser louco, completamente à parte, liberto
de regras e constrangimentos, em que a ordem não exerce qualquer tipo de poder.
SAPATEIRO
Tipo: Povo (artesão)
- morreu excomungado
do Anjo:
- Não viveu direito nem honestamente
Caracterização da personagem:
- Direta: aldrabão, ladrão, desonesto, malcriado
- Indireta: pecador, excomungado, autoconfiante , explorador
FRADE
Tipo: Clero (mundano)
- ser cortesão
- saber lutar
O Frade não nega as acusações feitas, pois pensa que o facto de ser Frade e o seu hábito o vão salvar dos seus pecados
- “Diabo-(...)
E não os punham lá grosa / no vosso convento santo?
- Frade- E eles faziam outro tanto!” revela que:
- havia uma quebra de votos de castidade ao hábito comum entre eles
- esta afirmação alarga a crítica a toda a classe social, pois o Frade é uma personagem
tipo, representando toda uma classe social
ALCOVITEIRA
A Alcoviteira, Brízida Vaz, chega ao cais relatando o que trazia e afirmando que
iria para o Paraíso pois tinha sofrido em vida e feito muito pelas moças, mas o Diabo contestava e dizia-lhe
que aquela barca era a que lhe estava destinada.
Brízida vai implorar ao Anjo que a deixe entrar na sua barca, pois ela não queria arder no fogo do
inferno, dizendo que tinha o mesmo mérito que o de um apóstolo. O Anjo disse-lhe que se fosse embora e
que não o importunasse mais.
Triste por não poder ir para o Paraíso, Brízida vai caminhando em direcção ao batel do Inferno onde
entra, já que era o único meio possível para seguir a sua viagem.
Tipo: Povo (alcoviteira)
Caracterização:
Direta - "som apostolada, angelada e martelada"
Indireta - Brísida era mentirosa (“três almários de mentir”), mexeriqueira (“cinco cofres de enleos”), ladra
(“alguns frutos alheos”), cínica (“trago eu muita bofé”), convencida (“e eu vou pera o paraíso”), enganadora
(“barqueiro mano meus olhos”).
Tipo(s) de cómico usado(s):
de linguagem - "barqueiro mano, meus olhos"; "cuidais que trago piolhos?"
de carácter - "eu som apostolada...fiz cousas mui divinas".
JUDEU
Logo após o embarque de Brísida Vaz, vem um Judeu, carregando um bode (fazia
parte dos rituais de sacrifício da religião hebraica).
Chegado ao batel dos danados, chama o marinheiro e pergunta-lhe a quem pertence aquela barca. O
Diabo questiona se o bode também era para entrar junto com o Judeu, que afirma que sim, mas o Diabo
impede essa entrada, pois ele não levava caprinos para o Inferno.
O Judeu resolve pagar alguns tostões ao Diabo, para que ele permita a entrada do bode. Vendo que não
consegue, roga-lhe várias pragas, apenas pelo facto do Diabo não fazer a sua vontade.
O Parvo, para troçar do Judeu, perguntou se ele tinha roubado a cabra.
Em nenhum momento, o Judeu tenta entrar na barca do Anjo.
O Diabo ordena o fim daquela discussão e ordena ao Judeu que entre.
Tipo: Judeu
Percurso cénico:
O Judeu tenta entrar na Barca do Inferno mas não consegue. O Diabo acaba por permitir que se
desloque a reboque na Barca do Inferno.
O Judeu recusa deixar o bode em terra, porque quer ser reconhecido como Judeu
Caracterização:
Indirecta – fanatismo religioso (não queria largar o bode), ladrão, má pessoa, avarento.
CORREGEDOR
Depois do Judeu ter embarcado, veio um Corregedor, carregado de feitos. Quando
chegou ao batel do Inferno, com sua vara na mão, chamou o barqueiro, pensando ser servido. O barqueiro,
ao vê-lo, fica feliz, pois esta seria mais uma alma que ele conduziria para o fogo ardente do Inferno.
O Corregedor era um dos eleitos para a sua barca, porque durante toda a sua vida foi um juiz corrupto,
que aceitava perdizes como suborno. O Diabo começa a falar em latim com o Corregedor, pois era usado
pela Justiça e pela Igreja, e era considerada uma língua culta. Os dois começam a discutir em latim, o
Corregedor por se achar superior ao Diabo quer também demonstrar-lhe que, pelo facto de ser um juiz
prestigiado, não poderia entrar em tal barca. O Diabo vai perguntando sobre todas as suas falcatruas, cita,
inclusive, a sua mulher, que aceitava suborno dos judeus, mas o Corregedor garantiu que nisso ele não
estava envolvido, esses eram os pecados de sua mulher e não os seus.
Tipo: Juiz corrupto
Enquanto o Corregedor estava nesta conversa com o Arrais do Inferno, chegou um
Procurador, carregando vários livros. Depara-se com o Corregedor e, espantado por encontrá-lo ali,
questiona-o para onde ia, mas o Diabo responde pelo Corregedor e diz: para o Inferno e que também era
bom ele ir entrando logo.
O Corregedor e o Procurador não queriam entrar na barca, pois diziam-se homens de fé, sabedores da
existência de outra barca em melhores condições que os conduziria para um lugar mais ameno - o Céu.
Quando chegam ao batel divino, o Anjo e o Parvo mostram-lhes que as suas ações os impediam de
entrar na barca da Glória, pois tinham feito mal e era agora altura de pagar, com a ida das suas almas para o
Inferno.
Desistindo de ir para o paraíso, os dois entram no batel dos condenados e deparam-se com Brísida
Vaz, que fica satisfeita com esta entrada, pois enquanto viveu foi muito castigada pela Justiça.
Corregedor:
Procurador:
Caracterização:
Indirecta – a referência às perdizes aludia ao carácter corrupto das personagens.
ENFORCADO
Após a entrada destes dois oficiais da justiça vem um homem que morreu enforcado que,
ao chegar ao batel dos mal-aventurados, começou a conversar com o Diabo. Tentou explicar que não iria no
batel do Inferno, pois já tinha sido perdoado por Deus ao morrer enforcado acreditando no que lhe dissera
Garcia Moniz). O Diabo diz-lhe que está enganado e predestinado a arder no fogo infernal.
Desistindo de tentar fugir ao seu destino, acaba por obedecer às ordens do Diabo para ajudar a
empurrar a barca e a remar, pois o momento da partida aproximava-se.
Tipo: Povo (criminoso condenado)
Caracterização:
Direta: - “ Bem-aventurado”.
Indirecta: -ingénuo,confiante na palavra dos outros,facilmente influenciável.
QUATRO CAVALEIROS
Tipo: Cruzados
Caracterização:
Ao contrário do que acontece com as outras personagens, nada nos é dito sobre a sua vida ou morte, a
não ser “morremos nas Partes de Além[…] pelejando por Cristo” .
CLASSIFICAÇÃO DA OBRA
A obra é um auto de moralidade, porque revela os vícios, os defeitos e os costumes da época de
Quinhentos, criticando-os de modo a moralizar a sociedade.
ASSUNTO
O auto apresenta a dualidade BEM / MAL, simbolizada pelas personagens alegóricas, ANJO e
DIABO, as quais se encontram na respectiva barca, atracada no cais. Aqui surgem várias almas que, através
do diálogo com o Anjo e/ou o Diabo, expõem a sua vida, carregada de vícios, o que as leva à condenação.
SIMBOLOGIA DO CENÁRIO:
Cais - representa o tribunal no qual somos julgados segundo o nosso comportamento enquanto vivos.
Barcas - simbolizam a partida para o outro mundo;
Rio - simboliza a divisão e a transição entre este mundo e o outro.
PERSONAGENS
Alegóricas- Anjo / Diabo:
Semelhanças Diferenças
- São personagens alegóricas; Diabo: espera um grande número de passageiros,
- Nenhum tenta recuperar as personagens que entram por isso enfeita a barca:
em cena; - “Põe bandeiras, que é festa”;
- Ambos avaliam o tipo de vida das personagens, Anjo: Confiante de que não terá muita gente:
realçando os aspectos negativos (na generalidade); - “(…) veremos se vem alguém/ merecedor de tal
- Ambos têm uma única função: condenar (Diabo) ou bem (…);
salvar (Anjo).
Diabo: linguagem irónica, zombeteira, crítica,
agressiva;
Anjo: sóbrio na linguagem e nos gestos;
Diabo: Lembra às personagens que o destino já se
encontra traçado, referindo os seus vícios;
Anjo: o julgamento é definitivo.
Personagens-tipo:
Semelhanças Diferenças
- Grande apego aos bens materiais - Percurso cénico;
e ao seu tipode vida (excepções:Parvo, Cavaleiros); - Representatividade dos símbolos.
- Não existe um arrependimento real, embora, por
vezes, haja uma tomada de consciência do erro;
- Visão deturpada da religião;
- Fazem-se acompanhar de símbolos cénicos
(excepção: Parvo).
TEMPO:
Situando-se num plano extra terreno, a acção não apresenta uma evolução cronológica.
CRÍTICA:
Nesta peça, Gil Vicente denuncia os vícios da sociedade portuguesa quinhentista, segundo o lema
latino ridendo castigat mores, isto é, a rir se corrigem os costumes.
Assim, são criticados:
A falsa prática religiosa; A vaidade;
A corrupção da justiça; Desregramento sexual;
O judaísmo; A ostentação;
A exploração; Desprezo pelos humildes;
A tirania, A ignorância e a credulidade;
A ganância; A frivolidade.
ESTRUTURA EXTERNA:
Os textos dramáticos organizam-se, habitualmente, em actos que contêm diversas cenas. Tal não
acontece no Auto da Barca do Inferno, embora não seja difícil dividir em cenas esta peça de Gil Vicente.
A peça é constituída por oitavas, com versos em redondilha maior, seguindo o esquema rimático
abbaacca.
ESTRUTURA INTERNA:
Cada cena, excepto a inicial, apresenta as três partes clássicas:
Exposição: breve apresentação da personagem;
Conflito: interrogatório feito pelo Diabo e pelo Anjo;
Desenlace: atribuição da sentença.
O CÓMICO:
Cómico de carácter:
A loucura de Joane e a inconsciência dos seus actos e das suas palavras.
Um frade dançarino e enamorado (desajuste entre o que a personagem deveria ser e a realidade)
Cómico de linguagem:
Uso do calão
Frases desconexas proferidas por Joane
As respostas absurdas de Joane
Ironia
Latim macarrónico
Falas de Brísida Vaz
Cómico de situação:
O Fidalgo que entra em cena presunçoso e seguro da sua salvação
Surpresa do Onzeneiro ao ver o Fidalgo na Barca do Inferno
Um frade que canta, dança e se faz acompanhar de uma moça
Lição de esgrima que o Frade dá ao Diabo
Encontro do Corregedor com Brísida Vaz na Barca do Inferno
LINGUAGEM:
A linguagem apresenta-se como um meio caracterizador das personagens, dos estatutos, das
profissões, dos vícios, dos destinos, etc.
Assim, Joane utiliza uma linguagem indecorosa, injuriosa, rude e agressiva; a do Sapateiro é
desbragada e rude, registando-se a presença de alguns tecnicismos (“badana”, “cordovão”, etc.); o interesse
que o Frade demonstra pela esgrima está patente nos termos técnicos a que recorre com frequência; a
Alcoviteira apresenta uma linguagem ambígua e deturpada, invertendo o sentido das palavras que se
encontram nos textos religiosos; o Judeu recorre ao calão; o Corregedor usa o latim.
A linguagem transmite ainda o tom irónico e gozador do Diabo, contrapondo-o ao ar calmo e sério do
Anjo.
Como recursos estilísticos, há que realçar a ironia, o eufemismo e o recurso a trocadilhos.
Aspetos medievais e renascentistas da obra: