Você está na página 1de 5
Artigos Originais TRAJETORIAS TERAPEUTICAS DE USUARIOS DE SERVICOS PSIQUIATRICOS E ADEPTOS DA UMBANDA: um estudo sobre pluralismo terapéutico Ruth Mylius Rocha ' Resumo: Nossa sociedade € marcada pela complexidade cultural, pela convivéncia de diferentes crengas, valores e normas, o que tem propiciado o surgimento de um pluralismo terapéutico: as pessoas procuram, alternada ou simultaneamente, ndo sé as praticas que mantém afinidades entre si, como algumas te6rica e ideologicamente incompativeis. Incoeréncia dos usudrios dos servigos psiquidtricos ou estaremos frente a outro tipo de coeréncia, que desafia os paradigmas e a ldgica letrada, e cujo sentido nos cabe desven- dar? Objetivando-se estudar as trajetdrias de pessoas que estabelecem pluralismo terapéutico, foram realizadas entrevistas com pessoas que recorrem a servicos psiquiatri- cos e centros de Umbanda. Aplicou-se neste estudo a abordagem qualitativa e 0 método descritivo/analitico, Entre os resultados, analisou-se o modo como esses recursos $80 aci- onados no decorrer das trajet6rias dos entrevistados, procurando demonstrar a légica subjacent a esse pluralismo terapéutico. Verificou-se que, para os usuarios, nao hi com- peticdo entre os dois sistemas de explicacio e cura, mas uma relacao complementat € hierarquica: sendo o plano espiritual hierarquicamente superior, engloba o material. Palavras-chave: Sofrimento psiquico; Psiquiatria; Valores culturais; Umbanda INTRODUCAO, Desde 0 seu surgimento, no final do século XVIII, a psiquiatria & a referencia cientifica para todas as questées relacionadas doenca mental. Apesar disso, amplas camadas da popula¢ao procuram solucées alternativas para os problemas que nés, da area de satide, consideramos psfquicos. (Observa-se que a busca de outras formas de ajuda, no entanto, nao implica nega- cao ou abandono da psiquiatria; pelo contrario, muitas vezes dois ou mais sistemas terapéuticos sdo utilizados, ainda que alguns aparentemente incompativeis, derivando de sistemas simbélicos mutuamente excludentes. Queiramos ou nao, 0s usuarios dos nossos servicos fazem essas associagdes. Como habitualmente a psiquiatria - e a medicina de maneira geral - nao dialoga com essas outras praticas, sobretudo as populares, desqualificando-as enquanto possibilidade de saber, resta aos pacientes silenciar sobre a utilizagao das mesmas. © que nos move a realizar o presente estudo é a idéia de que ha um sentido nesse pluralismo e que talvéz compreendendo-o nés - profissionais de saiide - possamos ter outros instrumentos - que nao a desqualificacao - para lidar com essa questao. As diretri- zes da Reforma Psiquiatrica, entre outros pontos, acenam para a valorizagio de recursos assistenciais diversificados, inclusive a «alengao informal em sade mental desenvolvida por religiosos...» (Brasil, 1994, p. 15). RR. Enferm, UERI, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 73-77, uléde2. 2000 74 ROCHA, Ruth Mylius © objetivo desta pesquisa ¢ estudar trajetorias terapéuticas miiltiplas, tal como vividas ¢ relatadas pelos proprios sujeitos. Ac buscar compreender esse movimento pensa- mos oferecer subsidios as equipes de Satide Mental; em termos da assisténcia, nosso obje- tivo é auxiliar o profissional de sade a escutar de outra forma as explicacdes que 0 cliente dé para seu sofrimento - sobretudo aquelas que envolvem elementos religiosos - ¢, quem sabe, lidar com elas de modo a integré-las na terapéutica oferecida. Optamos por estudar a associagao realizada entre dois sistemas: a Psiquiatria, especialidade médica legitimada para lidar com o sofrimento psiquico, ¢ a Umbanda, seita religiosa brasileira muito difundida e procurada por sua dimensio terapéutica. REFERENCIAL TEORICO. Ha, como sabemos, diversas formas de conceber aquilo que na area «psi» chama- ‘mos de sofrimento psfquico ou transtorno mental. De acordo com essas interpretacdes, ha também diferentes modos de lidar com esse sofrimento. Ainda que todos tenham a finali- dade de restabelecer a satide, 0 bem-estar, ou de afastar os males, ora se aproximam uns dos outros, ora se afastam ou se opdem, pois so expressbes de diferentes universos cultu- rais € tempos hist6ricos, com diferentes ancoragens teéricas, Na busca de esclarecimento sobre as razdes que levam as pessoas a estabelecer © pluralismo, foi esclarecedora a leitura de texto de Figueira (1978), que recorre a idéias de Lévi-Strauss e Berger sobre terapéuticas e cultura. Ele mostra que nas sociedades simples ha uma cosmologia valida para toda a sociedade; um doente encontra, entao, uma Unica expli- cagao para seus males ¢ uma s6 maneira de traté-los. Nas sociedades complexas, porém, as Fepresentagdes que os suijeitos elaboram de seu universo sao fragmentarias; eles se defrontam com uma grande variedade de ideologias e sistemas simbdlicos, muitas vezes em oposicao. Berger, apud Figueira (1978), traz 0 conceito de dosse! de simbolos, que permite compreen der como se costuram essas diversas vis6es de mundo. Nas sociedades simples esse dossel 6 formado pela mitologia e pela magia e durante muitos séculos, no Ocidente, ele foi mantido pela religiao. Na sociedade moderna, pluralista, no entanto, so tantos os sistemas simbdli- os que para sobreviver, entre tantas possibilidades de compreender o mundo, a pessoa tom de se vincular a um deles. Analisando a relagdo das pessoas com esses sistemas, Figueira (1978) caracteriza trés diferentes estilos: isolamento, relativizacSo e desorientacdo. No isole- ‘mento, & semelhanca das sociedades simples, o sujeito é totalmente orientado por um siste- ma simbélico, que deve fornecer explicagdes abrangentes e coerentes, nao havendo espaco para qualquer outra explicacéo. O exemplo deste tipo de relacao é a adesao intensa 2 uma teligido. Na relativizacdo, 0 sujeito tem uma visio de mundo fundamental, mas convive com outras, que considera viaveis. Sua visdo de mundo é relativizada: se uma terapéutica Nao oferece 0 efeito desejado, sobretudo em momentos de crise, seu vinculo com esses sistema fica enfraquecido, ¢ ele recorre a outros. No terceiro tipo de relacao, a desorienta- ‘cdo, 0 sujeito se vé impotente face a pluralidade de visbes de mundo € oscila, a procura da terapéutica mais eficiente, nao se mantendo fiel a nenhuma delas, METODOLOGIA Desejando saber como essas formas de atengao ao soirimento - Psiquiatria ¢ Umbanda - fazem sentido, como se compatibilizam com a visio de mundo dos usuarios, coptamos pela abordagem qualitativa e pelo método descritivo-analitico. A pesquisa foi realizada com amostra intencional de 30 pessoas: 17 entrevistadas em trés servicos psi- quiatricos e 13 entrevistadas em um centro de umbanda. Trabalhamos com pessoas que R. Enferm. UERJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 73-77, jul/éez. 2000 ‘Teajetérias terapéuticas de usuarios de servicos psiquidtricos... utilizam os dois sistemas indagando sobre a maneira como compreendem o que thes acontece, 0 motivo da procura dos dois recursos e a expectativa em relacao aos sistemas procurados, assim como os resultados obtidos. A dinamica da fala do sujeito, colocada em léncia, forneceu os elementos para compreender as estratégias que ele utiliza para interpretar as situagdes de seu existir e as maneiras como lida com as condigdes objetivas € subjetivas de sua vida. Na andlise dos depoimentos foram utilizadas as categorias pro- postas por Figueira (1978). Como o isolamento por sua propria definicao excluio pluralismo, utilizamos as categorias relativizacao e desorientagao. ‘Observando-se os principios éticos, foram entrevistadas as pessoas que concorda- ram com 0 estudo ¢ os nomes para designd-las so ficticios. RESULTADOS E DISCUSSAO Entre os usuérios entrevistados nos servicos psiquiatricos, encontramos alguns que poderiamos situar no grupo da desorientacao. Carla, por exemplo, diz que «procura ajuda de todo jeito». Explica que reagindo a um ambiente familiar no qual frente a qualquer problema a resposta era « vamos oars, desejou agir; por isso procurou as religiGes espiri- las, assim como outras formas terapéuticas. Mas agora abandonou-as e faz tratamento ambulatorial na psiquiatria e também com um psicélogo evangélico «que sabe ouvir». Paulo, além do tratamento psiquiatrico, ja procurou ajuda em varias religides, nos dltimos dez anos, pois quer voltar a trabalhar; na medida em que uma «nao esta dando conta», procura outra. Atualmente jreqilenta uma igreja evangélica; diz que as vezes tem vonta- de de voltar a procurar um centro de umbanda, mas tem medo, pois «é pecador. Potém os treze participantes da pesquisa no centro de umbanda e varios dos entrevistados no hospital psiquidtrico sao adeptos da religido ha certo tempo, tendo che- gado a ela «por necessidades, ou seja, porque apresentavam algum tipo de problema, pessoal ou familiar e [4 encontraram ajuda. No entanto, essa adesao umbanda ndo as impede de procurar, paralelamente, a psiquiatria. A semelhanga dos achados de Loyola (1984), que analisou as opcées terapéuticas na Baixada Fluminense, observamos que elas distinguem as doengas materiais das espirituais, sabendo quando recorrer a cada tipo de ajuda, nao significando que a demanda a uma represente rejei¢ao 8 outra. Estabelece-se uma relagao de complementaridade @ ambas podem ser procuradas simultaneamente ‘A pessoa que nao se ocupa da parte espiritual abre uma porta para a entrada de espiritos negativos; isso provoca tensao, prejudica o sistema nervoso. Ai entra a psiquiatria, que cuida da cabeca; sem os remédios sinto a cabeca apertada, no consigo ler Kardec. Geraldo Sem a forca dos espiritos, acho que eu nao sairia mais do quarto. As vezes ‘chego no centro de umbanda me sentindo ‘o resto dos restos", af recebo uma carga positiva € sinto um alivio. Me sinto uma barco a deriva, € 0 centro me ajuda a direcionar esse barco. Mas a psiquiatria é meu refligio. Nao sei o que seria de mim se nao fosse diariamente ao hospital-dia. Jussara A psiquiatria ajuda, pois «cuida da cabegae, «trata do sistema nervaso», diminu- indo a vulnerabilidade da pessoa e, portanto, dificultando ou evitando a aproximagao dos obsessores. Nessa complementaridade, o polo considerado mais importante é a religiao. Gislaine diz que pede a seus guias espirituais que iluminem seu psiquiatra, para que este acerte em seu tratamento. E um dado confirmado por Montero (1985); esta autora mostra R. Enferm, UERJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 73-77, jul/dex. 2000 5 76 ROCHA, Ruth Mylius que a supremacia ¢ da pratica religiosa, pois se sao os espiritos atrasados que se incorpo- ram na pessoa, provocando a doenga, a medicina cientifica, cuidando do corpo, trata das conseqléncias dessa incorporacao, mas s6 a medicina espiritual vai chegar as causas do mal. Foi fundamental a ajuda que recebi neste hospital... Onde estava antes, mo ‘anestesiaram’ com remédios, eu nao conseguia pensar nem decidir nada. Meu problema é espiritual, s6 vai resolver espiritualmente, mas eu nao con- seguia me aproximar do espiritismo. Aqui fui estimulado para a vida e reto- mei a religiao... Mario © Sr. Nascimento é espfrita kardecista. Considera que adoeceu devido a um trabalho barra pesaday feito por uma vizinha; apresentava outros sintomas que cederam com a medicagdo, mas, apos 10 meses de internacao, continuaya repetind os mesmos argumentos sobre a causa de sua doenca, sem que a medicacio anti-psicética alterasse seu diagnéstico, equadro delirante de cunho mistico». Espera ter uma licenca para fazer um trabalho na umbanda, que considera mais capacitada para lidar com as forgas mals primitivas, mais pesadas. Como se percebe nesses depoimentos, nao se trata de relativizagao, na medida ‘em que a procura de um segundo tipo de ajuda nao ocorre por faléncia do primeira, nao havendo também enfraquecimento do vinculo com um ao utilizar 0 outro. O que se evi- dencia, no pluralismo estabelecido pelos entrevistados, é que os dois sistemas so perce- bidos e utilizados como complementares, tendo cada um seu campo de aco. CONSIDERACOES FINAIS Nossa hipotese era que em nossa sociedade pluralista, multifacetada, nao haveria ‘oposigio para 03 usuarios entre as varias praticas, mas coexisténcia, com atribuicao de E que haveria critérios orientando essas opgdes. Foi o que se evidenciou dos depoimentos colhidos. A questo da coeréncia parece ser resolvida através de uma relacao hierarquica entre dois planos opostos e complementares - 0 espiritual e o material. Ambos coexistem, no mundo ¢ na vida do sujeito, sendo o plano espiritual hierarquicamente superior ao material, englobando-o, portanto. © que nao impede que, em certas situagbes, essa rela- ao seja invertida, e o plano material imponha sua l6gica sobre o plano espiritual, sem, entretanto, desacredita-lo ou desqualificd-lo enquanto tal. Neste sentido, do ponto de vista destes usuérios nfo hé uma competicao entre diferentes sistemas de explicacdo cura, mas uma relacdo complementar, embora no rarquica). O conftonto parece de fato existir apenas do outro lado, isto é, do ponto de vista da psiquia~ ‘ria. © fato de as praticas religiosas serem classificadas, pela psiquiatria, no campo das crengas, ou crendices, exclui a possibilidade de complementatidade. O desafio da nova psiquiatria, tal como preconizada pela Reforma Psiquiatrica, no entanto, é 0 de levar a sétio a possibilidade de uma experiéncia maltipla e diversificada, aceitando os diferentes graus de prioridade e énfase que o usuario e seus familiares atribuem as diversas possibi- lidades de explicagao e cura para seus males. Recomendamos que essas questGes sejam abordadas nos cursos de graduagao © pés-graduagdo na area da satide, considerando que o respeito aos diferentes saberes € fundamental na construcao de novas praticas. IR. Enferm, UBRJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 75-77, jul/der. 2000 Trajetérias terapéuticas de usuarios de servicos psiquiatricos... NOTAS Este trabalho resume a tese de douturado realizada no Instituto de Medicina Social - UER) sob orientagdo da professora Jane Araujo Russo, * O trabalho recebeu o «Prémio Rachel Haddock Lobo», como melhor trabalho na area assistencial, no #2" Investigando em Enfermagem-UERJ 2000 * autora é Eniermeira, Professora da Faculdade de Enfermagem da UFR} e Doutoranda do IMS/UERJ. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS. BRASIL MS/SAS. Conieréncia Nacional de Saude Mental, 2, Relatorio Final. Brasfia, 1994, 63 p. FIGUEIRA, S.; 1978. “Notas introdut6rias 20 estuco das terapéuticas I: Lévi-Strauss ¢ Peter Berger”, In: FIGUEIRA, S. (coord,) Sociedade e Doenga Mental, Rio de laneito:Campus, 1978. p. 47-85 LOYOLA, M.A. Médicos e curandeiros. Conilito social e sadde. $a0 Paulo: Difel, 1994. 198 p MONTERO, P. Da doonga & desordem: a magia na umbanda, Rio de janeiro: Graal, 1985. 274 p PSYCHIATRIC SERVICES CLIENTS AND UMBANDA ADEPTS. THERAPEUTIC TRAJECTORI! STUDY ON THERAPEUTIC PLURALISM Abstract: Our society is marked by the cultural complexity, by the coexistence of different creeds, values and norms, thus favoring the emergence of a therapeutic pluralism. That is, altemately or simultaneously, people not only look for practices that maintain affinities among themselves, but they also search for some procedures which are theoretically and ideologically incompatible. Is this related to incoherence of psychiatric health care users or are we facing another type of coherence that defies the paradigms and the litterate logic, whose meaning is Lup to us to disclose ? Aiming to study the paths of establishing therapeutic pluralism, interviews have been made with users of both psychiatric institutions and Umbanda centers. In this study a qualitative approach, and a descriptive-analytic method was utilized in order io identify how the two therapeutic systems are used by those users, seeking to reveal the underlying logic within this therapeutic pluralism. The results showed that there is no competition among the two systems of explanation and cure, but there is a complementary and hierarchical relationship in the sense that the spiritual realm is hierarchical superior, encompassing the material one. Key words: Psychic suffering; Psychiatry; Cultural values; Umbanda TRAJECTORIAS TEREPEUTICAS DE USUARIOS DE ‘SERVICIOS PSIQUIATRICOS Y ADEP- TOS DE LA UMBANDA: UN ESTUDIO ACERCA DE PLURALISMO TERAPEUTICO Resumen: Nuestra sociedad es marcada por la complejidad cultural, por la coexistencia de diferentes creencias, principios y pautas, lo que ha propiciado la emergencia de un pluralismo terapéutico: altemadamente o simultaneamente, las personas buscan no solo las practicas que mantienen afinidades entre ellas como también algunas tedricamente y ideologicamente incompatibles. :ineoherencia de los usuarios de los servicios psiquidtricos o estaremos enfrente de ou tipo de coherencia, la qual desafia los paradigmas y la légica literata, y cuyo significa. do tenemos que descubrir? fin de estudiar las trajectorias de personas que stablecem pluralismo terapéutico, fueron realizadas entrevistas com aquellos que recurren a las insttuciones psiqui- arricas y a los templos de umbanda. Se aplicé en este estudio el tratamiento cualitativa y el meétodo descrtivofanalitico. Entre los resultados, se analisé la manera como tales recursos son accionados a lo largo de las tajectorias de los entrevistados, buscando demostrar la l6gica subyacente a ése pluralismo terapéutico. Se verificé que, para los clientes, no ha competicion entre los sistemas de explicacién y cura, pero una relacién complementar y jerdrquica: siendo jerérquicamente superiar, el plano espiritual engloba el plano material. Palabras clave: Sufrimiento psiquico; Psiquiatria; Principios culturales; Umbanda R. Enferm UERI, Rio de Janeiro, 8, n, 2, p, 73-77, jul/dez. 2000 7

Você também pode gostar