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HELGA – LYGIA FAGUNDES TELLES outras coisas mais que já esqueci.

Tudo
aconteceu porque a terceira viagem foi no
Ela era uma só . Nã o havia outra e se quisesse
verã o de 1939. Nã o vou contar minha guerra,
compará -la com alguma coisa, seria com os
Polô nia, França, Grécia, Rú ssia… A beleza de
tenros cogumelos dos bosques ou com as
Helga e a sua perna. Confesso que durante
manhã s de bicicleta nas estradas impecá veis ou
muito tempo nã o sei em qual pensei mais, se na
com as primeiras cerejas da primavera. Era
que tinha ou se na que perdera. Mas é cedo. Por
uma, una, ú nica, apesar de ter uma só perna,
enquanto é preciso dizer como foi possível
aliá s bela como ela toda. Mas é cedo para falar
acontecer o que aconteceu. O meu hitlerismo
nã o sobre sua beleza — que deve ser lembrada
era jovem, leal, risonho e franco e a guerra nã o
sem enfado quantas vezes forem necessá rias —
entrava na jogada. Nela fiz mais ou menos tudo
mas cedo para falar sobre a perna que vai
o que os outros fizeram e até menos do que vi
exigir explicaçã o. A perna envolve viagem,
ser feito em matéria de luta ou crime. De resto,
guerra, a perna vai tã o além… Sem
eu e meus camaradas de armas éramos
esclarecimento tudo será apenas crueldade. É
parecidos, menos numa coisa: nunca consegui
bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva,
estabelecer um vínculo entre essa guerra e as
brasileiro. Mas fui alemã o. Filho de alemã de
férias na Jugendhaus em meio dos piqueniques
Santa Catarina e desse Silva brasileiro que nã o
nas florestas e excursõ es pelas estradas
cheguei a conhecer. Mã e alemã nascida no Vale
marginadas de verdor. As aulas tã o nítidas
do Itajaí, neta de proprietá rios em Vila Corinto
eram para isso? A palavra unerbittlich
desde 1890, pude ver isso nos papéis. Mas
significava mesmo implacá vel e era para valer?
alemã malvista porque se casou com o Silva,
Só mais tarde, depois da guerra, descobri
Paulo também, o que me faria Paulo Silva Filho.
dentro de mim que aprendera a liçã o. Curioso é
Mas nada disso vigorou, na escola eu já era Paul
que hoje já nã o consigo lembrar qual a perna
sem o o, Paul Karsten. E o destino amá vel de
que Helga perdera, se a direita ou a esquerda. E
um Paul Karsten, ginasiano de Blumenau em
dizer que durante anos nã o houve dia nem hora
1935, eram férias, cursos de aperfeiçoamento,
que Helga nã o aparecesse no meu pensamento.
amizades e amores na Alemanha. De Hitler, é
Acha meu analista que os esquecimentos
bom lembrar. E nã o havia nada melhor, a
parciais sã o frequentemente formas sutis de
começar pela viagem no Monte Pascoal, classe
autopuniçã o. Nã o sei se isso é verdade mas sei
ú nica com escalas na Bahia, em Madeira,
que agora que resolvi evocá -la nã o posso
Lisboa, e depois Hamburgo até os verõ es
impedir que a todo instante ela cruze estas
interminá veis nas Casas da Juventude, com
linhas antes do momento exato em que devia
excursõ es, piqueniques, bicicletas, cerejas e
comparecer. Quero confessar que nã o liguei
sexo em meio do cansaço feliz e da dose exata
muito quando soube que o Brasil entrara na
de melancolia. Jugendhaus, era esse o nome
guerra contra a Alemanha mas devo dizer
dessas casas e pensar nelas me faz pensar em
também que achei bom nã o ter combatido
fonte e musgo. As viagens seguintes, três ao
contra soldados brasileiros. O que me faz
todo, foram marcadas pelas aulas cheias de
pensar que nunca deixou de existir em mim
simplicidade e exaltaçã o. E a nossa, a minha
alguma coisa do filho daquele Silva que sempre
particular importâ ncia por ser alemã o e alemã o
imaginei moreno pá lido, a cara comprida e os
estrangeiro. Esportes. Treinos. O aço das
olhos tristes. Assim que acabou a guerra, vendi
metralhadoras sem carga encostado no peito
meu capacete e meu punhal com a cruz suá stica
banhado de suor. As bandeiras apoiadas no
a um funcioná rio brasileiro que até hoje nã o sei
ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini
o que estava fazendo em Dü sseldorf. Fomos
no está dio de Berlim, os alemã es da América do
para uma cantina onde me pagou uma cerveja e
Sul marchando logo atrá s dos países sudetos e
dele ouvi entã o coisas alarmantes: que a minha
antes mesmo dos alemã es da América do Norte.
situaçã o jurídica era nada mais, nada menos, do
Amizade e amor foi lá que conheci, pró ximos e
que a de um traidor, quer dizer, uns quinze
concretos. E o ó dio também abstrato e
anos de cadeia, por aí. Era só voltar e a
longínquo, aos judeus, aos comunistas e a
condenaçã o viria na certa. Recebi a notícia na sua doçura naquele mundo de fim do mundo.
hora errada porque naquela altura meu desejo Passando pela farmá cia, nã o houve vez que nã o
maior era esquecer a guerra, encerrar as férias a visse ereta e séria, vendendo aspirina e as tais
na Alemanha e tranquilamente voltar para Vila latinhas de pomada fabricada pelo pai, o velho
Corinto, casar por lá , cuidar do plantio, da Wolf, um verdadeiro caco aos quarenta anos,
criaçã o e ajudar minha mã e que devia estar andando quilô metros em busca de mercadoria:
velha. Helga ainda nã o aparecera na minha vida vidrinhos de iodo e alguns metros de gaze. Foi
e o hitlerismo e a guerra ainda nã o tinham me o velho quem primeiro me falou da penicilina e
marcado para sempre. Ainda nã o. Há um do quanto um negó cio desses poderia render.
pormenor que me ocorre com tamanha Até entã o eu vendia para Helga algumas latas
insistência que fico à s vezes pensando, de leite em pó e de veneno para rato. Também
pensando e nã o descubro por que me lembro me lembro muito de um outro pormenor: a lata
tanto das unhas do seu pé pintadas com de leite tinha uma risonha vaquinha no ró tulo e
esmalte rosa. Nã o sei qual perna lhe restara a outra tinha um rato negro, morto,
mas revejo seu pé, só o pé com as unhas dependurado pelo rabo por um longo fio. Quero
pintadas, nã o pintava as unhas das mã os, ser verdadeiro quando digo que nã o me
limpas, polidas mas sem esmalte. Pintava as do importei ao ver meu lucro diminuído devido à
pé, economizando assim o esmalte que naquele perda de tempo em venderlhe as ninharias que
tempo era raro como todo o resto, comida, podia comprar. O prazer de vê-la era tã o
roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, ela grande que me sentia compensado quando
gostava das cores tímidas. Nã o poder voltar ouvia sua voz calma, harmoniosa como os seus
para o Brasil decidiu minha sorte de continuar gestos que por sinal eram raros. Nã o
Paul Karsten o tempo necessá rio para procurava, entã o, a mulher. Durante meses a
enriquecer e nunca mais ter paz. Nã o por ter caça à comida utilizava quase toda a
enriquecido, como veremos, estou chegando lá . imaginaçã o e energia de que sou capaz,
O caso é que nã o fui prisioneiro de guerra nem qualquer preocupaçã o com mulher se dissipava
propriamente desertor. Num momento de nessa caça. Foi só numa segunda fase que
confusã o a guerra se afastou de onde me relacionei a beleza de Helga com o desejo. Já
encontrava, nã o voltou mais e depois acabou. Já sabia entã o da sua perna, ela mesma me contou
contei que vendi meu capacete e meu punhal. quando recusou-se a me acompanhar a um
Arranjei em seguida outros punhais e capacetes local de danças, improvisado nos escombros do
que vendia para jovens recrutas americanos museu. Fiz o convite quando fui cedo à
que chegaram demasiado tarde e doidos por farmá cia, soubera das danças e nã o vi melhor
levarem qualquer suvenir desse tipo. O oportunidade para sair com ela. Estava como
pequeno comércio de troféus ampliou-se para sempre detrá s do balcã o mas assim que lhe
cigarros, chocolate, leite em pó e outras falei em dançarmos teve um movimento de
latarias, mas tudo muito reduzido. Basta dizer fuga enquanto uma nuvem preta pareceu
que na intendência americana meu só cio mais baixar sobre seu rosto tã o limpo. Mas logo
qualificado era apenas sargento, o que mostra espantou a nuvem e sorriu quase natural
bem a modéstia do negó cio. Naquela quando confessou que nã o podia dançar as
improvisaçã o de vida ao deus-dará , o tempo valsas que lá tocavam, tinha uma perna só .
perdeu a medida e hoje nã o sou mesmo capaz Aquela noite pensei muito na mutilaçã o de
de lembrar quando exatamente conheci Helga. Helga, mutilaçã o antiga, pois ela perdera a
Só sei que sua beleza me surgiu inicialmente da perna e o resto da família, menos o pai, no
cintura para cima atrá s do balcã o da farmá cia, primeiro bombardeio de Hamburgo. Na mesma
se assim podemos chamar à quele casebre de ocasiã o o velho Wolf perdera também a
madeira enegrecida, toscamente erguido no farmá cia, a primeira, pois a segunda e a terceira
meio das ruínas do sudeste industrial de foram destruídas em Dü sseldorf. Ainda era rico
Dü sseldorf. Sua beleza, foi sua beleza o que de depois da tragédia de Hamburgo e a prova
início me impressionou. E depois, seu recato, disso é que montou em seguida mais essas duas
farmá cias. Outra prova de que tivera dinheiro sim. Naquela noite e no dia seguinte nã o pensei
foi a magnífica perna ortopédica que comprou noutra coisa. Pedi pormenores e ele me falou
para a filha, daquelas que durante a guerra num certo major-médico, chegamos até a
eram reservadas para heró is excepcionais, procurar o homem mas ele fora transferido
membros graú dos do Partido Nacional- para Hamburgo. E o capital? Via o velho
Socialista ou oficiais superiores. Fora desse tipo diariamente e ficá vamos falando, falando… E o
de gente só os muito ricos podiam comprar capital? Foram dias de tanta inquietaçã o, a tal
uma perna igual. Nã o pude entã o deixar de ponto fiquei seduzido pela ideia que meu
sentir um certo espanto quando vi Helga sair pequeno comércio começou a declinar. Via o
andando detrá s do balcã o, mancando um velho e via Helga, com ela também falava
pouco, é certo, mas discretamente, com uma demais e de repente falei em casamento. Como
lentidã o que combinava com seu feitio. é difícil reconstituir os acontecimentos!
Imaginara-a plantada numa perna só , apoiada Lembrar o ano em que tudo aconteceu já exige
em muletas ou numa bengala, dando saltos esforço. Distribuir os fatos pelos meses nã o
penosos… E cheguei a dizerlhe que num vestido consigo. Mas ordenar os sentimentos é para
de noite ninguém notaria a perna artificial. Ela mim totalmente impossível. Revivo o tempo da
entã o baixou os grandes olhos claros. No dia contemplaçã o de sua beleza e depois os
seguinte era domingo e Helga concordou em instantes de fundo desejo. E lembro muito do
sair comigo. Eu podia emprestar o jipe do casamento. Quanto ao amor por Helga, afirma o
sargento americano mas a tarde estava tã o analista que nã o passa de um recurso
agradá vel que ela preferiu que fô ssemos autopunitivo que resolvi imaginar. O fato é que
mesmo a pé. À noite — era uma noite estrelada me casei e na pró pria madrugada de nú pcias
— jantamos, ela, o pai e eu, uma lata de rosbife fugi para Hamburgo levando a perna
e outra de milho que desviara do meu ortopédica que em seguida vendi. De posse do
comércio. Senti-me generoso, bom. Foi aí que o capital inicial, nã o foi difícil encontrar o tal
velho Wolf me falou da penicilina. Na cara major e no tempo previsto pelo velho Wolf, seis
devastada do farmacêutico vi como seus olhos meses mais ou menos, fiz fortuna. Daí por
azuis, iguais aos da filha, coruscavam de diante nã o foi mais possível dizer que as férias
entusiasmo ao imaginar o negó cio. Ele tinha o nazistas na Alemanha foram episó dios fortuitos
cá lculo fá cil e claramente demonstrou que três na vida de um jovem de Vila Corinto. Paul
meses de trá fico de penicilina eram o suficiente Karsten cometeu seu crime de guerra, pessoal e
para juntar uma pequena fortuna. Havia apenas por conta pró pria, mas fora do lugar e com a
dois problemas a enfrentar: o primeiro era o pessoa errada. O ato de raça de senhor alemã o
risco, mas nã o tã o grande assim, na pior das aprendido nas aulas floridas dos cursos de
hipó teses um par de anos na cadeia, se tanto. A 1936 foi praticado em plena paz por um pobre
segunda dificuldade, a maior, era a mesma de rapaz brasileiro contra uma pobre moça alemã .
qualquer negó cio: o capital inicial. E para tudo, Engano ainda pensar que o fim de Paul Karsten
uma condiçã o indispensá vel, a rapidez. Esses foi uma soluçã o. Alguns anos mais tarde, Paulo
grandes negó cios só funcionariam durante uns Silva Filho voltou para o Brasil anistiado e rico,
seis meses, no má ximo. Depois, a eficiência mas voltou um homem de pouca fé e
combinada de americanos, russos e dos imaginaçã o amortecida. A ú nica maneira que
pró prios alemã es iria pô r tudo nos eixos e encontrou de expiar o crime do jovem Paul foi
qualquer empreendimento se tornaria tornar-se um cidadã o exemplar. Hoje, o analista
rotineiro, lento. Com os ingleses, nem pensar. A explica que simplesmente procuro e encontro,
coisa do lado de cá tinha que ser feita mesmo na insipidez da virtude, a puniçã o de Paul
com os americanos e sem demora. O velho se Karsten e de seus camaradas.
ramificava em consideraçõ es mas minha
atençã o se concentrava em Helga, a doce Helga
que eu já beijara naquela tarde. Foi entã o meio
distraidamente que ouvi o que ele disse? Pois

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