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AGRO (TECH) OU AGRO (TÓXICO) - Sustentabilidade, Riscos, Futuras Gerações e Justiça Ambiental
AGRO (TECH) OU AGRO (TÓXICO) - Sustentabilidade, Riscos, Futuras Gerações e Justiça Ambiental
AGRO(TECH) OU AGRO(TÓXICO)?
Sustentabilidade, riscos, futuras gerações e
justiça ambiental.
NITERÓI
2018
Universidade Federal Fluminense
Superintendência de Documentação
Biblioteca da Faculdade de Direito
CDD 341.347
ii
AGRO(TECH) OU AGRO(TÓXICO)?
Sustentabilidade, riscos, futuras gerações e justiça ambiental.
_____________________________________________
Prof. Dr.Valter Lúcio de Oliveira (Orientador)
_____________________________________________
Prof. Dr. Napoleão Miranda
_____________________________________________
Prof. Dr. Wilson Madeira Filho
_____________________________________________
Prof. Dr. Romualdo Theophanes de França Junior
_____________________________________________
Prof. Dr. Cesar Augusto Da Ros
iii
Ao Eterno, que terna e eternamente nos ama.
(Manoel de Barros)
iv
AGRADECIMENTOS
Há uma nota no livro de Eclesiastes1 que fala que: “terminar algo é melhor do que
começar.” Eis-me aqui, começando os agradecimentos da tese, no momento em que ela
se finda em sua maior parte.
1
Ou como diz a versão tradicional do cânon bíblico, segundo a tradução de João Ferreira de Almeida:
“Melhor é o fim das coisas do que o princípio delas.”. Eclesiastes 7:8.
v
chamá-la, que me abriu sua casa, seu carro e suas caronas para que entre meu percurso de
ida e volta eu obtivesse em seu lar o carinho da sua companheirinha canina Cristal, bem
como deliciosas refeições e uma cama quentinha que me acolhia o cansaço até a hora da
madrugada me chamar a despertar e, novamente, voar para Santa Catarina.
Para encurtar o tom novelesco que acabou contaminando o trecho acima, fui à
primeira aula do Seminário de Teses, que já havia começado em duas semanas anteriores.
Eu era, naquele momento, uma mistura de incertezas e medos que quase me paralisavam,
mas então, ali, naquela primeira aula que participei, o tal ponto de inflexão chegou e
começou a me puxar para a concretude da pesquisa, dos instigantes debates, das leituras
intrigantes e de tudo que eu precisava para aquele tempo e momento. Desistir já não era
opção. Finalizei, em janeiro, o Seminário de Teses, sentindo que “sei que sou um tanto
bem maior”, como canta o Fernando Anitelli e sua trupe do Teatro Mágico, e só fui capaz
de sentir “esse ser um tanto bem maior” por ter sido apoiada pelos gigantes de coração
acima mencionados.
Para não correr o perigo de ser injusta ou esquecer nomes, agradeço aos meus
amigos e amigas fiéis, que tanto me acolheram em horas de conversa e presença, como
em horas de ausência e silêncio por conta da pesquisa e escrita da tese. Vocês sabem quem
são e o quanto os amo.
vi
Por fim, mas não menos importante, agradeço aos meus alunos e alunas,
vocês me ensinam demais. Estar em sala pode ser cansativo, mas é sublime.
vii
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo científico geral investigar a relação entre o
discurso produzido no campo técnico-científico (ou técnico-operativo), as Ações Civis
Públicas disponibilizadas no GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR do Ministério
Público Federal – MPF e as respectivas decisões judiciais que envolvem questões
relacionadas ao uso dos agrotóxicos, buscando analisar os usos que são feitos do
conhecimento técnico e o tratamento de temas como sustentabilidade e/ou
desenvolvimento sustentável, futuras gerações, risco e justiça ambiental. Para atingir
referido objetivo, a tese estruturou-se com os seguintes objetivos específicos: a) Analisar
as disputas do campo técnico-científico recortadas pelo tema dos agrotóxicos e
compreender os usos e os contextos em que são acionados temas como sustentabilidade
e/ou desenvolvimento sustentável, futuras gerações, justiça ambiental e risco; b)
Examinar junto ao GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR do Ministério Público
Federal – MPF, os usos que são feitos das produções técnico-científicas sobre agrotóxicos
nas formulações das Ações Civis Públicas – ACPs e nas decisões judiciais correlatas; e
c) Identificar a emergência nos processos e nas decisões judiciais, de questões
relacionadas à sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável, futuras gerações, risco
e justiça ambiental, bem como compreender as circunstâncias e os sentidos que são
atribuídos a tais temas. Para este trabalho, explorou-se um rol de documentos, ações e
decisões judiciais que possuem uma forte interface entre o técnico, o político e o empírico,
conforme ficou melhor demonstrado ao final, sendo a base empírica fundamentada nas
Ações Civis Públicas disponibilizadas no GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR do
Ministério Público Federal – MPF, nas decisões judiciais de primeira instância e na
amostragem de algumas inserções do MPF na rede social facebook sobre o tema
agrotóxicos. No que tange a metodologia empregada utilizei a pesquisa qualitativa, ainda
que elementos quantitativos estejam expressos em algumas análises, pois busquei trazer
dados representativos de realidades distintas em relação ao uso de agrotóxicos. Por fim,
diante de um cenário político-social pós-impeachment e pós-democrático, onde as
bancadas ruralistas e os retrocessos socioambientais parecem ter ganhado uma velocidade
ainda mais espantosa do que nos governos que os antecederam, investigar as disputas
produzidas no campo técnico, buscando analisar os usos que são feitos do conhecimento
técnico-científico e o tratamento dos temas já mencionados, apresentaram atuais e
intrigantes pontos de contribuição para se pensar a utilização dos agrotóxicos no país,
sendo alcançados, de forma satisfatória, os objetivos gerais e específicos pretendidos.
viii
ABSTRACT
The objective of the present work was to investigate the relationship between the
discourse produced in the technical-operational field, that Class Actions made available
in the Agrotoxic and GMO WG of the 4th CCR of the Federal Public Prosecutor's Office
(MPF) and the respective judicial decisions involving issues related to use of agrotoxics,
seeking to analyze the uses made of technical-scientific knowledge and the treatment of
themes such as sustainability and/or sustainable development, future generations, risk and
environmental justice. In order to achieve this objective, the thesis was structured with
the following specific objectives: a) To analyze the disputes of the technical-scientific
field related to the topic of pesticides and to understand the uses and contexts in which
themes such as sustainability and /or sustainable development are triggered , future
generations, environmental justice and risk; b) To examine, together with Agrotoxic and
GMO WG of the 4th CCR of the Federal Public Prosecutor's Office (MPF), the uses that
are made of technical-scientific productions on pesticides in the formulations of Class
Actions and related judicial decisions; and c) Identify the emergence of processes and
judicial decisions, issues related to sustainability and /or sustainable development, future
generations, environmental risk and justice, as well as to understand the circumstances
and meanings that are attributed to such issues. For the research, a list of documents,
investigations, actions and judicial decisions that have a strong interface between the
technical, the political and the empirical was explored, as it was better demonstrated at
the end of the research, being the empirical base based on the Class Actions of the Federal
Public Prosecutor's Office provided in the Agrotoxic and GMO WG of the 4th CCR of
the 4th CCR of the MPF, in the first instance court decisions and in the sampling of some
insertions of the Federal Public Prosecutor's, MPF, in the facebook social network on the
subject of pesticides. Regarding the methodology employed, I used qualitative research,
although quantitative elements are expressed in some analyzes, since I have tried to bring
data representative of different realities in relation to the use of pesticides. Finally, in the
face of a post-impeachment and post-democratic political-social scenario, where the
ruralist groups and socio-environmental setbacks seem to have gained an even more
astonishing speed than in the previous governments, to investigate the disputes produced
in the technical field, seeking to analyze the uses made of technical and scientific
knowledge and the treatment of the themes already mentioned, presented current and
intriguing points of contribution to think about the use of pesticides in the country, and
the satisfactory general and specific objectives .
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 22
x
4 REVOLU-AÇÃO? O GRUPO DE TRABALHO (GT) AGROTÓXICOS E
TRANSGÊNICOS DA 4ª CÂMARA DE COORDENAÇÃO E REVISÃO (CCR)
DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF) ................................................... 233
xi
ABREVIATURAS E SIGLAS
CF – Constituição Federal
DDT - Dicloro-difenil-tricloroetano
xii
INCA - Instituto Nacional do Câncer
SC – Santa Catarina
xiii
SINDAG – Sindicato Nacional das Indústrias de Defensivos Agrícolas
PR - Paraná
xiv
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
xv
Figura 21 – Municípios responsáveis pela produção de soja no estado do Maranhão
(MPF, 2013, p. 6). .........................................................................................................245
Figura 22 – Processo n. 21371-49.2014.4.01.3400, originário da ACP 03/2014/DF. ..248
Figura 23 – Processo n. 21372-34.2014.4.01.3400, originário da ACP 04/2014/DF. ..249
Figura 24 – Facebook MPF - 11 de janeiro de 2015. Figura 24 - Facebook
MPF - 03 de junho de 2015. .........................................................................................310
Figura 25 – Facebook 31 de agosto de 2015 Figura 26 – Facebook MPF - 17 de
fevereiro de 2016. ..........................................................................................................311
Figura 27 – Facebook MPF - 18 de janeiro de 2016 retrospectiva...............................311
Figura 28 – Facebook MPF - 27 de novembro de 2015. Figura 29 – Facebook
MPF - 21 de abril de 2016. ...........................................................................................312
Figura 30 – Facebook MPF - 12 de setembro de 2016 e Retrospectiva 04 de janeiro de
2017. ..............................................................................................................................312
Figura 31 – Facebook MPF - 06 de agosto de 2016. Figura 32 – Facebook MPF -
25 de outubro de 2016. ..................................................................................................313
Figura 33 – Facebook MPF - 18 de dezembro de 2016. ..............................................313
Figura 34 – Facebook MPF - 17 de agosto de 2016. Figura 35 – Facebook MPF -
24 de agosto de 2016. ....................................................................................................314
Figura 36 – Facebook MPF - 17 de outubro de 2016. Figura 37 – Facebook MPF
- 21 de outubro de 2016. ...............................................................................................314
Figura 38 – Facebook MPF - 07 de janeiro de 2017. ...................................................314
Figura 39 – Facebook MPF - 13 de junho de 2017. ......................................................315
xvi
LISTA DE TABELAS
xvii
LISTA DE QUADROS
xviii
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 – Brasil: Mortes por Agrotóxico de Uso Agrícola - por Circunstância (1999-
2009) ..............................................................................................................................158
Mapa 2 – Bebês intoxicados por agrotóxicos (0 a 12 meses). .......................................222
Mapa 3 – Níveis de PCB no leite materno (OMS, 2017, p. 72). ...................................229
xix
LISTA DE GRÁFICOS
xx
“A obrigação de suportar nos dá o
direito de saber.”
Jean Rostand
xxi
INTRODUÇÃO
E é nesse caminhar não linear e dialogal que é a vida e a pesquisa acadêmica que
passo a tecer algumas considerações sobre o problema de pesquisa da tese, seu objeto,
lugar de observação, hipóteses e metodologia.
22
Ministério Público Federal – MPF e as respectivas decisões judiciais que envolvem
questões relacionadas ao uso dos agrotóxicos, buscando analisar os usos que são feitos do
conhecimento técnico-científico e o tratamento de temas como sustentabilidade e/ou
desenvolvimento sustentável2, futuras gerações, risco e justiça ambiental.
2
No segundo capítulo deste trabalho, ficará melhor aclarada a presença de referidos termos, muitas vezes
tratados como sinônimos e outras diferenciados por teóricos que discutem o tema. Nosso interesse em
relação ao termo reside no fato dele se relacionar a ideia de uma projeção de desenvolvimento para presentes
e futuras gerações. Fato este que também será melhor explorado em tópico próprio deste trabalho.
23
c) A utilização das questões relacionadas a sustentabilidade e/ou
desenvolvimento sustentável, futuras gerações, risco e justiça ambiental, assim como as
circunstâncias e sentidos que são atribuídos a tais temas pelo campo técnico-jurídico
ainda são inexpressivas e, quando existentes, apresentam um viés conceitual
multivariado.
3
Faço a referência à Lava Jato em alguns momentos da tese porque referida operação, em seus contornos
midiáticos e políticos, acabou também afetando a forma de se “operar no campo jurídico” de forma intensa
e com reverberares que ainda estão sendo estudados e compreendidos, mas que trouxeram uma notável
insegurança jurídica aos profissionais da área. Acredito que, passados alguns anos, talvez se tenha um
direito marcado invariavelmente por essa cisão.
24
Saliento que para melhor compreensão da operacionalização do campo técnico-
jurídico, busquei instrumentalizar-me, anteriormente, no capítulo 3, de estudos técnico-
científicos de ordem médica, ambiental e nutricional, precipuamente, além de
documentos e relatórios de instâncias internacionais, como ONU, OMS, FAO e o
Tribunal de Opinião, ocorrido em Haia em 2016 e batizado de Tribunal Monsanto que
abarcam, em suas abordagens, argumentos próximos aos levantados pelos procuradores
do MPF nas ACPs analisadas nesta tese.
Os dois primeiros capítulos da tese, por sua vez, possuem uma maior carga teórica-
conceitual, sendo que o primeiro capítulo aborda a evolução da relação do homem com a
natureza, bem como o desenvolvimento histórico-social da mecanização agroprodutiva
através da Revolução Verde, Revolução Genética e Biofortificação. O segundo capítulo,
por seu turno, aborda os termos e conceitos relacionados à sustentabilidade e/ou
desenvolvimento sustentável, futuras gerações, risco e justiça ambiental
25
opção agro(tech)4 industrializada para poder “alimentar o mundo” em suas presentes e
futuras gerações.
Referencial teórico-metodológico
4
Decidi adotar referida expressão por considerá-la representativa da ideia presente, principalmente, no
agronegócio e seu modelo agroprodutivo, que defende que o uso de agrotóxicos, maquinários e
monocultivos é procedimento simbolicamente tecnológico e avançado, conforme veremos ao longo da tese.
5
Inclusive, recordo-me agora de uma aluna que me relatou a conversa entre seu marido e dois rapazes que
disputam jogos de videogame com ele pela internet e que são alunos de Agronomia no Mato Grosso.
Quando ela e o marido questionaram os estudantes sobre o uso de agrotóxicos naquele estado e o quanto
ele poderia ser potencialmente danoso ao meio ambiente, saúde e nutrição humana, os mesmos asseveraram
que não conheciam outro meio de se produzir alimentos e que as doenças eram um dos males menores e,
ao final, vaticinaram com a seguinte máxima, relatada pela aluna com cara de espanto e indignação de que:
“o câncer mata devagar, mas a fome mata rápido.”
6
Mesmo reconhecendo que essa representação é múltipla e variada para a sociedade e suas representações,
aqui acionaremos o disposto na bibliografia e documentos utilizados durante a pesquisa.
26
Também me apoiei em Hannigan (1995, p. 44;48) e em sua abordagem
construcionista tratada em sua obra Sociologia Ambiental. Segunda referida abordagem,
uma grande parte da produção dos problemas ambientais é protagonizada por
especialistas de áreas e comunidades específicas de conhecimento como médicos,
advogados, sociólogos, cientistas, gestores públicos, operadores políticos, os quais
formam um mosaico no qual emerge a teoria social construcionista, que busca adotar uma
postura um tanto quanto agnóstica com o escopo de poder otimizar a forma como as
pessoas dão significação a determinados problemas sociais.
Vale observar o fato de que o construcionismo não se mostra útil apenas como
opção teórica, mas tem utilidade como ferramenta analítica, a qual será utilizada em
alguns momentos deste trabalho, através da análise das exigências formuladas, dos
formuladores dessas exigências e o processo que faz emergir referidas exigências. Assim,
no que se refere à formulação de exigências, é preciso que se levantem algumas questões,
como a que se refere ao fato dos “formuladores de exigências” estarem filiados a
organizações específicas, movimentos sociais, profissionais, grupos de interesse ou, mais
recentemente, os costumeiros lobbys ou bancadas, como as que temos no Brasil. Não é à
toa que na formulação de alguns problemas sociais, teremos expressividade da
27
participação de médicos e cientistas, outros de funcionários públicos e advogados, bem
como nos meios de comunicação social, através da criação de pautas jornalísticas ou
páginas em redes sociais e afins (HANNIGAN, 1995, p. 50; 52).
28
Investigar a relação entre o discurso produzido no campo técnico-operativo, as
ACPs do GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR do MPF e as respectivas decisões
judiciais que envolvem questões relacionadas ao uso dos agrotóxicos, buscando analisar
os usos que são feitos do conhecimento técnico-científico e o tratamento de temas como
sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável, futuras gerações, risco e justiça
ambiental, fizeram-me trilhar um pouco da proposta sistematizada em já referenciado
quadro, uma vez que, em vários momentos, apontam-se eixos e atividades que serão
percebidas no desenvolvimento deste trabalho.
Para concluir, passo a enumerar seis fatores trazidos por Hannigan (1995, p. 74-
75) como necessários para a construção com êxito de um problema socioambiental, os
quais, conforme já mencionado, nortearão algumas das análises presentes no decorrer
deste trabalho, sendo elas:
29
3. Atenção por parte dos meios de comunicação, nos quais o problema é visto como
algo novo e relevante;
4. Dramatização do problema em termos simbólicos e visuais;
5. Incentivos econômicos para tornar uma ação positiva;
6. Emergência de um patrocinador institucional que assegure legitimidade e
continuidade.
Dramatização
Autoridade Incentivos Meios de Patrocinador
Simbólica e Propagadores
Científica econômicos Comunicação Institucional
Visual
Friso, todavia, que estas não serão as únicas categorias de análise a serem
exploradas no presente trabalho, mas que são categorias que ora se “costurarão” a outras
que lhes complementem ou que as contraponham, com o escopo de produzir o estudo
mais abrangente possível do tema que pretendi pesquisar.
Assim, será possível verificar que, ao longo do trabalho, busquei acionar algumas
outras categorias clássicas e, até mesmo, indispensáveis para o estudo do problema que
explorei, como o conceito de campo, como orbital dos fenômenos sociais, seus eixos
estruturados, arenas de lutas, representações, ambiguidades, disputas, atores,
(BOURDIEU, 2002), pois em alguns momentos da pesquisa, por exemplo, será
perceptível a disputa simbólica de termos entre a indústria agroprodutiva e setores da
agroecologia e suas respectivas pesquisas. Fato este que me levou à obra “Os usos sociais
da ciência”, que argumenta que no campo científico estão inseridos os agentes e as
instituições que produzem, reproduzem ou difundem a ciência e que tal campo é na
30
verdade um mundo social como outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos
específicas. (BOURDIEU, 2004, p. 20-21; 29).
31
do tema no Brasil (HERCULANO, MADEIRA FILHO, FIRPO, PACHECO e
ACSERALD).
Para Ellul (1968, p. 18), certos progressos técnicos acabam por gerar incertezas
permanentes e em longo prazo e que, particularmente, no campo do meio ambiente e da
saúde parecem despontar de forma exemplar. Para o autor em comento, a criação do
desenvolvimento tecnológico desenfreado e irrefletido necessita sempre de novos
instrumentos e técnicas para resolvê-lo, sendo os problemas de saúde pública e de
segurança alimentar alguns dos quais são sistematicamente reformulados para que
recebam soluções técnicas, ao invés de soluções políticas.
7
Expressão cunhada pelo juiz de Direito Rubens Casara em seu livro “Estado Pós-Democrático: neo-
obscurantismo e gestão dos indesejáveis”, onde afirma que: Hoje, poder-se-ia falar em um Estado Pós-
Democrático, um Estado que, do ponto de vista econômico, retoma com força as propostas do
neoliberalismo, ao passo que, do ponto de vista político, se apresenta como um mero instrumento de
manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e ampliação das condições de acumulação do
capital e geração de lucros.” (CASARA, 2017, p. 16-17)
32
operativo, buscando analisar os usos que são feitos do conhecimento técnico-científico e
o tratamento de temas como sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável, futuras
gerações, risco e justiça ambiental podem ter atuais e intrigantes pontos de contribuição
para se pensar o modelo agroprodutivo majoritário no país. Somos o celeiro do mundo,
já disseram alguns, alimentaremos e protegeremos esse mesmo mundo e suas presentes e
futuras gerações como afirmam os entusiastas da Revolução Verde e seus
desdobramentos, ou o “agro que é pop, que é tech e que é a indústria-riqueza do Brasil”8
nos agro-intoxicará?
8
Alusão à propaganda veiculada no horário nobre da Rede Globo de Televisão no ano de 2017.
33
1 “SOMOS OS FILHOS DA (R)EVOLUÇÃO”: AGROTÓXICOS,
TRANSGÊNICOS E ALIMENTOS BIOFORTIFICADOS
34
sendo característica da Idade Média. Nessa época, criaram-se metáforas que aduziam que
a natureza era uma espécie de livro escrito pelas mãos de Deus e que continha, portanto,
em seu interior, mensagens divinas a serem decifradas.
Por ter esse condão biocêntrico, a ecologia profunda afirma não existir diferenças
entre seres humanos e não-humanos, considerando que o mundo natural possui valores
próprios que independem da classificação clássica antropocêntrica adotada por boa parte
da civilização contemporânea.
35
Esse conceito encontra-se bem sedimentado em boa parte dos países ditos
“desenvolvidos” que hoje produzem “produtos verdes”, tecnologia ambiental e até uma
denominada “economia verde”. Seu discurso de que o desenvolvimento econômico não
precisa parar, mas deve ser sustentável dos pontos de vista social e ambiental, encontrou
eco em diversas corporações e está presente no corpus normativo e nas instâncias
operativas que tratam de diversas temáticas socioambientais brasileiras, conforme
analisaremos em capítulo e tópico específico deste trabalho.
Vandana Shiva (1995), que terá suas análises sobre transgênicos e monoculturas
trazidas mais à frente deste trabalho, explica que os movimentos ecofeministas e
ecológicos convergem no sentido de buscar a construção de formas que viabilizem uma
36
melhor convivência no planeta, opondo-se, portanto, a dupla exploração capitalista e
patriarcal do ecossistema e das mulheres, para que assim seja possível o alcance de um
ponto de encontro para o desenvolvimento sustentável.
Por fim, vimos até o presente momento que a historicidade dos discursos acerca
da natureza é inegável e, na medida em que as relações sociais se desdobram em novas
necessidades materiais para a manutenção de determinado tipo de sociedade, percebemos
que a concepção da natureza acompanhou essa mudança.
37
A produção de alimentos, a partir de métodos agropastoris, remete-se a estágios
muito iniciais que apresentam os vestígios do homem no planeta. Nesse sentido, a
agricultura é reconhecida como instrumento para a produção de alimentos desde o período
neolítico, aproximadamente 10.000 anos A.C. (GRIGG, 1987, p. 79).
38
1.2 REVOLUÇÃO VERDE: ESTUDO DO CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL DE
SURGIMENTO
Nesse cenário, vale trazer ao palco a presença de Willian Boyce Thompson (1869-
1930) que fez fortuna nos Estados Unidos da América (EUA), através da exploração de
minas de cobre nas montanhas de Montana e que foi imbuído pela Cruz Vermelha, em
outubro de 1917, na liderança de uma missão humanitária na Rússia – em plena revolução
bolchevique.
9
Livro de Dominique Lapierre e Javier Moro que trata da contaminação por nuvens tóxicas exaladas da
fábrica de pesticidas da empresa Union Carbide na cidade de Bhopal, no coração da Índia e que deixou
dezenas de milhares de mortos, milhares de feridos e continua a causar danos à população local mais de
três décadas passadas do ocorrido.
39
Na história contada pela narrativa de Lapierre e Moro (2014), percebe-se que para
o florescer daquilo que seria denominado como Revolução Verde estavam presentes
elementos que compõem a categorização de emergência de um problema socioambiental,
como a existência de autoridades científicas que iriam trabalhar no Boyce Thompson
Institute; a existência de “propagadores”, na própria figura do mecenas da tecnologia de
combate à fome, Willian B. Thompson; a atenção dos meios de comunicação da época
noticiando o feito de tão importante industrial, bem como os incentivos econômicos para
se tornar uma ação positiva – a erradicação da fome no mundo e a emergência da figura
de Thompson como patrocinador para assegurar a legitimidade e continuação do
problema levantado.
40
Tragicamente, ainda que a guerra seja dilapidadora de vidas e do meio ambiente
natural de forma geral, ela consegue aglutinar em torno de si exércitos apaixonados e
coesos, além de inúmeros mercenários, o que a torna tão atrativa, agregadora e,
literalmente, explosiva para a humanidade até os dias de hoje.
41
Conforme vimos no primeiro item deste capítulo, a alimentação é, também,
expressão social, a forma com que nos alimentamos, os alimentos que escolhemos para
colocarmos sobre nossas mesas, bem como as pessoas que escolhemos para compartilhar
o “partir do pão”, diz muito de cada um de nós, como cultura e sociedade.
42
Todavia, a Revolução já apresentava seus ruídos não previstos, assim é que os
agricultores da Índia, para onde elas foram levadas para teste pela própria Union Carbide,
viram que para que as sementes produzissem com alto rendimento e múltiplas colheitas,
era preciso doses muito maiores de água e adubo. Logo, em cinco anos (1966-1971), a
Revolução Verde multiplicou por três o adubo consumido na Índia e com a reduzida base
genética utilizada para potencializar o alto rendimento associado ao monocultivo, as
vulnerabilidades de doenças e insetos se multiplicaram (LAPIERRE; MORO, 2014, p.
75).
Para efeitos de conclusão deste primeiro tópico, o que parece ser perceptível até o
presente momento é o fato de que momentos marcantes da humanidade como a Revolução
Bolchevique e as duas grandes guerras mundiais, tinham em seus bastidores ricos
empreendedores que, em nome de uma propagada solidariedade, apresentaram-se como
patrocinadores da mudança do padrão de produção de alimentos no mundo. Mais adiante,
veremos que certos ciclos se repetem, pois, atualmente, a biofortificação vem sendo
propagada por bilionários do quilate de Bill Gates e esposa.
Parece-nos que os discursos que são empunhados por esses “salvadores” são,
muitas vezes, no sentido de que é preciso reagir e projetar o futuro e assim, dentro desse
contexto pós-guerras e artificialização da vida, surgiu a denominada Revolução Verde.
Temos, então, um aparente paradoxo, pois os “salvadores” das pessoas famintas do
mundo são justamente aqueles que concentram renda e poder e que estão imiscuídos em
guerras bélicas ou não. E é nesse caldo financeiro, cultural e combativo que a agricultura
se mecaniza e os agrotóxicos, transgênicos e alimentos biofortificados tecem
protagonismos relevantes, conforme trataremos no tópico a seguir.
43
das crianças possam partilhar das dádivas de biodiversidade da
natureza”.
Na época do lançamento do livro de Rachel Carson, a tese que hoje pode parecer
trivial para alguns grupos, mostrou-se escandalosa, uma vez que sugeria que a população
dos EUA estava sendo envenenada lentamente pelo mau uso de pesticidas químicos.
É preciso frisar que o contexto de escrita da obra de Carson foi o de fim de duas
guerras mundiais e do ápice da denominada guerra fria. Nesse contexto histórico-social,
a indústria química - que conforme já vimos foi uma das principais beneficiárias da
tecnologia pós-guerra, encabeçou, também, um dos principais papéis no imaginário
estadunidense de prosperidade e domínio.
O DDT, tão ferozmente atacado pela autora em comento, era visto como um
produto mágico que possibilitou a vitória sobre pragas de insetos na agricultura e as velhas
doenças transmitidas por insetos, assim como a bomba atômica havia destruído os
inimigos militares dos Estados Unidos (CARSON, 2010 [1962], p. 12).
10
Apesar da referência inicial à data de 1962, ano de lançamento nos EUA da obra Primavera Silenciosa,
trabalharemos com referências de 2010, obra traduzida pela editora Gaia no Brasil, razão pela qual a obra
consultada aparecerá entre parênteses, enquanto a data original entre colchetes.
44
A população atribuía aos químicos, trabalhando em seus aventais
brancos e engomados em remotos laboratórios, uma sabedoria
quase divina. Os resultados de seu trabalho eram ornamentados com a
presunção de beneficência. Nos Estados Unidos pós-guerra, a ciência
era Deus e a ciência era masculina. (LEAR apud CARSON, 2010,
[1962], p. 12). (sem destaque no original).
O prefácio da obra também informa que o livro Primavera Silenciosa foi o produto
da inquietude da autora que desafiou, de forma deliberada, a sabedoria de um governo
que permitia que substâncias tóxicas fossem lançadas no meio ambiente antes de saber as
consequências de seu uso de longo prazo.
Frise-se, nesse momento, que até os dias de hoje, a realidade de uso de produtos
químicos nos EUA continua da mesma forma, primeiro lança-se o produto e após, fazem-
se os experimentos, os quais se dão com a própria população feita de cobaia.11
11
Conforme relata o documentário “The Human Experiment”. Nesse ponto, o Brasil conta com uma
legislação muito mais protetiva e avançada do que a estaduninense.
45
primeira leva de retirada ocorreu apenas em 1985, passados mais de 23 anos da denúncia
de Carson e que compreendeu o cancelamento de sua autorização. Após, em 1998, teve
seu uso proibido em campanhas de saúde pública e, somente, nos idos de 2009, teve seu
banimento definitivo com a publicação da Lei n. 11.936/2009, que proibiu sua fabricação,
importação, exportação, manutenção, estoque, comercialização e uso no país, ou seja,
passados 47 anos da denúncia protagonizada por Rachel Carson (ABRASCO, 2015, p.
96).
O quadro de longa demora de retirada do DDT do Brasil pode ajudar na
compreensão da razão por que outros produtos químicos, atestados cientificamente de
forma indiscutível, como danosos à saúde e ao meio ambiente e proibidos em outros
países, continuam em circulação no Brasil. Baseados em relatórios da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária - ANVISA, tem-se a informação que dos 50 agrotóxicos mais
utilizados nas lavouras de nosso país, 22 são proibidos na União Europeia, o que faz do
Brasil o maior consumidor de agrotóxicos já banidos de outros países (ABRASCO, 2015,
p. 96).
Ressalvamos que essa relação entre agrotóxicos banidos do país, consumo de
agrotóxicos per capita no Brasil e demais informações correlatas serão tratadas em tópico
próprio deste trabalho. Neste momento, cabe apenas, a reflexão sobre o fato de que dentro
da construção socioambiental de um problema, como o que ora tratamos, nem sempre a
autoridade científica capaz de validar exigências ambientais em um local, validará em
outro e que os demais itens enumerados por Hannigan (1995), parecem realmente
subsidiar explicações sobre a razão de um produto como o DDT ser banido nos EUA da
década de 70 e, no Brasil, apenas em 2009, e porque ainda, estamos enfrentando o desafio
de “banir os banidos”.
46
estar protegido em seu lar contra a intrusão de venenos aplicados por outras pessoas
(CARSON, 2010, [1962], p. 15-16).
Carson questionou em sua obra a razão que levou uma civilização a optar por
travar uma guerra contra a vida. Já naquela época, um dos questionamentos da obra
Primavera Silenciosa deu-se sobre o fato dos agrotóxicos não serem compreendidos senão
como armas de uma guerra não declarada, cujas vítimas humanas e não humanas eram
ocultadas por uma ciência cerceada por interesses econômicos ou justificadas por esta
mesma ciência como efeitos colaterais do emprego de uma tecnologia apresentada como
indispensável. (ABRASCO, 2015, p. 28)
47
Abrasco (2015, p. 28) frisa que a autora em comento provou o gosto amargo da execração
pública, uma vez que sofreu inúmeras acusações e ameaças quando ousou questionar o
sistema de poder corporativo em plena era Macarthista.
12
Informação pessoal de Raquel Rigotto constante do Dossiê ABRASCO (2015, p. 28).
48
demonstra que, além dos aspectos tributários trazidos por Carson na citação acima, outros
interesses e recursos estavam em jogo.
O Brasil, ainda que não tenha sido berço de nascimento da Revolução Verde,
conquistou, ao lado de países como Índia, um solo fértil para o crescimento dos filhos da
Revolução Verde e adotou como padrão agroprodutivo a exportação do alimento-
mercadoria em forma de commodities, sendo sustentado por diversas políticas públicas
que visam facilitar e amplificar a expansão e acumulação capitalista da agricultura. 15
13
Voltaremos aos efeitos de desastres e contaminações químicas sobre a saúde humana no capítulo 03 desse
trabalho.
14
As estimativas não são precisas, uma vez que até a presente data, passadas 3 décadas do “acidente”,
nenhuma punição formal ou mesmo um “pedido de desculpas” às populações atingidas ocorreu.
(LAPIERRE; MORO, 2014, p. 346)
15
Ainda que não seja tema específico dessa pesquisa, mas apenas para que seja possível situarmo-nos,
minimamente, nos frutos mercantis da Revolução Verde no país, temos informações que o dinheiro
oferecido pelos governos para os negócios agroprodutivos brasileiros é tanto que em pesquisa de
CARVALHO (2012) foi apontado que o agronegócio recebia cerca de R$ 90 bilhões de crédito e gerava
um Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 120 bilhões, de um total do PIB agrícola de R$ 160 bilhões e que as
dívidas agrícolas de 2005 a 2008 geraram 15 leis e 115 atos do Conselho Rural para sua renegociação, ou
seja, um grande favorecimento aos aliados dos grupos econômicos transnacionais de insumos.
(CARVALHO, 2012 apud ABRASCO, 2015, p. 104)
49
ABRASCO et.al), temos um mercado controlado por 6 grandes grupos transnacionais:
Syngenta, Bayer, Basf, Dow, DuPont e Monsanto e uma oferta de fertilizantes
concentrada em 3 grupos transnacionais, controladas desde 2007, pela Bunge, Yara e
Mosaic. Ressalte-se que esse movimento de controle é recente e que até a data de 1992
as empresas Ultrafértil e Fosfértil, ambas da Petrobras, controlavam a oferta de
fertilizantes no país. Temos também que 26% do comércio varejista de alimentos no
Brasil está controlado por grupos econômicos transnacionais, como Nestlé, PepsiCo e
Coca-Cola, entre outras similares (ABRASCO, 2015, p. 104).
Shiva (2003, p. 56) informa, todavia, que ao contrário do que é sugerido pelo
termo VAR, não existe uma medida neutra ou objetiva de "produtividade", que esteja
fundamentada em um sistema de cultivo baseado em sementes milagrosas que têm um
rendimento maior comprovado, quando em comparação com um sistema de cultivo
tradicional e complementa: "agora tem aceitação universal a afirmação de que não
existem termos observacionais neutros nem nas mais rigorosas disciplinas científicas,
como a física". Todos os termos são estabelecidos pela teoria”.
50
A categoria de VAR da Revolução Verde é essencialmente uma
categoria reducionista que descontextualiza propriedades tanto das
variedades autóctones quanto das novas. Como processo de
descontextualização, os custos e os impactos são externalizados e a
comparação sistêmica com alternativas é impossibilitada. (SHIVA,
2003, p. 56).
Uma comparação nesses moldes precisa envolver sistemas inteiros e não pode ser
reduzida à comparação de um fragmento de um sistema agrícola, pois em sistemas
51
agrícolas tradicionais, por exemplo, a produção envolve a conservação das condições de
produtividade.
Abaixo, mostramos uma figura que retrata o sistema agrícola de insumos internos
defendido pela autora. Podemos observar que é um sistema de cultivo que se baseia
exclusivamente em insumos orgânicos internos, com sementes e fertilidade do solo tendo
por origem comum a própria fazenda de cultivo e com o controle de pragas sendo
realizado pela rotação de culturas.
52
Figura 2 - Sistema agrícola de insumos externos (SHIVA, 2013, p. 62).
Nos dizeres de Shiva (2003, p. 57-58), uma produtividade elevada não é intrínseca
às sementes, mas uma função da disponibilidade dos insumos necessários que, por sua
vez, têm consequências ecologicamente destrutivas para o ecossistema. Para melhor
ilustrar a tese relativa à produtividade pretensamente revolucionária da mecanização e
artificialização do sistema agroprodutivo, hoje dominante no Brasil e em boa parte do
mundo, a autora em comento produziu o quadro comparativo abaixo:
53
A comparação deveria ocorrer entre dois sistemas de cultivos distintos SC1 e SC2,
com a inclusão do leque de insumos e produtos acionado por cada sistema. Além disso, a
comparação de SC2 seria diferente, caso o mesmo não recebesse imunidade em termos
de uma avaliação ecológica e a base de análise estratégica produzida pela Revolução
Verde que distorce a comparação entre PS1 e PS2. (SHIVA, 2013, p. 59).
16
A Bayer comprou a Monsanto por 66 bilhões de dólares. Referida aquisição corporativa pareceu dar
origem ao que é, de longe, a maior corporação de agronegócio do mundo. Segundo os resultados financeiros
de 2015, as duas empresas têm um volume de negócios combinado de US$ 23,1 bilhões. Ninguém do ramo
pode igualar-se a elas. Os jovens casais Syngenta / ChemChina e Dupont / Dow as seguem de longe (US$
14,8 e 14,6 bilhões, respectivamente), e a Basf está em quarto lugar, com US$ 5,8 bilhões. Assim, a Bayer
e a Monsanto controlam, juntas, cerca de 25% do mercado mundial de pesticidas; e de 30% das vendas de
sementes agrícolas — tanto as geneticamente modificadas quanto as convencionais. Considerando-se
somente as plantas transgênicas - OGMs, as duas corporações juntas atingem uma clara posição de
monopólio, com mais de 90%. Referida aquisição pode gerar o aumento dos preços e a diminuição de
escolhas para os agricultores do mundo. Mais informações podem ser consultadas em: Dossiê Monsanto:
em risco, a alimentação do mundo. Disponível em: <https://outraspalavras.net/posts/dossie-monsanto-em-
risco-a-alimentacao-do-mundo/>. Acesso em: 05 fev. 2017.
54
as quais são adaptadas às diferentes condições de solo e clima brasileiro e que, em todo o
mundo, a empresa investe mais de US$ 1,4 bilhão por ano em pesquisa e desenvolvimento
de produtos novos e que buscam proporcionar aos agricultores um “portfólio amplo,
diferenciado, de alta tecnologia e com características específicas para cada região.”17
17
Dados retirados do site da Monsanto para o público brasileiro e disponíveis no endereço:
<http://www.monsanto.com/global/br/produtos/pages/sementes.aspx>. Acesso em: 09 fev. 2017.
55
A abordagem da produtividade também ocorre de modo mercadológico, não
sendo realizado qualquer comparativo como o proposto por Shiva (2013) em sua obra. A
seguir, apresentamos uma das inserções comerciais localizadas no sítio eletrônico que
estamos estudando e que começa com a indagação sobre os resultados da produtividade
da região de trabalho do agroconsumidor.
56
Figura 5 – Números da Soja Monsoy (MONSANTO, 2017).
57
Nutricional (novembro de 2014 - Brasília/DF); o Congresso Internacional de Nutrição
Especializada (maio de 2015 - RJ/RJ); o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (julho
de 2015 -Goiânia/GO) e a V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(CNSAN) - Atividade integradora "Biofortificação de alimentos: contexto e
controvérsias” (novembro de 2015 - Brasília/DF). 18
Partindo para uma tradução literal do termo que tem suas origens no latim e no
grego, temos que fortis (latim) significa forte; e bios (grego) significa vida. Portanto, o
termo biofortificação se refere à ação de “potencializar/tornar forte a vida”. A partir dessa
breve digressão literal, podemos chegar a duas conclusões iniciais: a primeira, é que se
assume com o termo o fato de que a vida pode ser ou estar “fraca” e, em segundo, se é
preciso potencializar/tornar forte essa “vida fraca”, isso ocorrerá por intermédio de
alguém ou algo e através de uma ação externa.
18
Segundo o documento da FBSSAN, para a construção dos argumentos e reflexões apresentados ocorreu
a contribuição de diversos militantes e estudiosos da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Sendo
listados os responsáveis direitos pela construção do texto, os quais mencionamos a seguir: Anelise Rizzolo
(Universidade de Brasília/ OPSAN/CONSEA/ABRASCO); Élido Bonomo (Universidade Federal de Ouro
Preto / FBSSAN); Elisabetta Recine (Universidade de Brasília/ OPSAN/CONSEA/ABRASCO); Fabio
Gomes (Instituto Nacional do Câncer - INCA); Fernanda Bairros (Universidade Federal do Rio Grande do
Sul / Rede de Mulheres Negras para SSAN / FBSSAN); Inês Rugani Ribeiro de Castro (Instituto de
Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro); Juliana Casemiro (Universidade do Estado do Rio
de Janeiro/ FBSSAN); Juliana Dias - Malagueta (Comunicação/ Universidade Federal do Rio de Janeiro -
doutoranda - HCTE); Leonardo Melgarejo (Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)/
AGAPAN/PPGP Agroecosistemas-UFSC); Maria Emília Pacheco - Federação de Órgãos de Assistência
Social e Educacional (Fase)/ FBSSAN/ ANA; Mónica Chiffoleau - Malagueta (Comunicação/
Universidade Federal do Rio de Janeiro - doutoranda - HCTE); Sonia Lucia Lucena Sousa de Andrade
(Universidade Federal de Pernambuco - professora aposentada); Vanessa Schottz (Universidade Federal do
Rio de Janeiro - Campus Macaé/ FBSSAN). (FBSSAN, 2016, p. 6-7)
58
O documento do FBSSAN (2016, p. 8) joga algumas luzes sobre o termo e suas
definições ao dizer que:
19
Uma das difusoras do termo e da estratégia no Brasil (FBSSAN, 2016, p. 8)
59
A seguir, para melhor visualização, uma ilustração produzida pelo boletim do
FBSSAN (2016) mostrando esses três momentos da modernização da agricultura e seus
principais protagonistas:
20
Para maiores informações sobre as críticas às bananas biofortificadas é possível acessar Goldberg M.
GMO-bananas are going into human trials – why this won’t end well. 22 junho 2014. Disponível em:
<http://livingmaxwell.com/gmo-bananas-human-trials-bill-gates>. Acesso em: 05 mar. 2017.
60
Aqui, parece-nos que estamos diante de uma questão imbricada, pois, de um lado,
temos o problema da escassez de alimentos no mundo sendo gerida por pessoas atreladas
ao capital financeiro e todo o status quo garantidor da falta de alimentos nas mais diversas
mesas do mundo se arvorando como patrocinadoras do fim desse mesmo problema. De
certa forma, todo o modo produtivo que eles patrocinam parece “criar esse problema” e
temos, paradoxalmente, os mesmos “criadores de problemas” se oferecendo como
portadores de solução.
61
mencionada a ligação desses pesquisadores com uma série de empresas como Monsanto,
Bayer, Mosaic, Ceres e Giz e as páginas na internet 21, que trazem conteúdo sobre
Biofortificação e que citam diversas empresas comprometidas com o agrobusiness, como
Fibria, Polímata, Unilever, Pioneer, Pepsico, entre outras gigantes do setor alimentício.
No mesmo ano, em novembro de 2002, Howdy Bouis, Joe Tohme e Ross Welch
visitaram a Embrapa Agroindústria de Alimentos, no Rio de Janeiro, com o intuito de
avaliar as possibilidades de colaboração na área de ciência e tecnologia de alimentos.
Nesta ocasião, ficou estabelecida a liderança do projeto no Brasil, através da Embrapa
21
Exemplos são as páginas citbiofort.com.br, embrapa.br, cgiar.org, harvestplus.org e agrosalud.org
62
Agroindústria de Alimentos e, a partir de 2003, foram elaboradas as propostas de trabalho
do Projeto Biofortificação de Produtos Agrícolas para Nutrição Humana – sendo este o
principal componente do HarvestPlus no Brasil. (NUTTI, 2011, p. 01)
63
Insta notar o fato de que teremos discursos científicos a embasarem
argumentações que frontalmente se contrapõem no campo técnico-operativo. A diferença
nevrálgica é que a quantidade de recursos financeiros e inserção mundial gerida pelos
setores que defendem a tecnologização da agricultura são infinitamente superiores do que
aqueles que estão em mãos de pessoas como Carson – já falecida, Shiva, pesquisadores
da Fiocruz ou Abrasco, entre outros, sendo esclarecido, mais uma vez, o quão
contramajoritários são os discursos que questionam as “revoluções” do sistema de
produção de alimentos e o quão difícil parece ser “furar um cerco” tão poderoso e
lucrativo de produção alimentar que se encontra estruturado em gigantes bases financeiras
do capitalismo mundial.
Nutti (2011, p. 03) informa que uma página na internet foi criada, facilitando a
comunicação entre os mais de 750 membros e 100 instituições. Em 2004, os responsáveis
pelo HarvestPlus no CIAT - Centro Internacional de Melhoramento de Milho e Trigo
(CIMMYT), Centro Internacional da Batata (CIP), Consórcio Latino-americano do
Caribe para Apoio, Pesquisa e Desenvolvimento da Mandioca (CLAYUCA) e Embrapa,
sabendo que robustos recursos seriam destinados para pesquisas na África e Ásia,
decidiram apresentar proposta complementar de projeto de Biofortificação para América
Latina e Caribe e para financiamento pela Agência Internacional Canadense para o
Desenvolvimento (CIDA). Assim, em 2004, o Projeto AgroSalud, coordenado pelo CIAT
foi aprovado, sendo iniciado no ano seguinte e complementando o HarvestPlus no
montante de US$ 16.000.000,00 (dezesseis milhões de dólares) para um período de cinco
anos.
64
Figura 7 – Biofortificação e parceiros (NUCCI, 2011, p. 05).
Nesse momento, é necessário um aparte, uma vez que não se explica como foi
realizada essa “apresentação para a sociedade brasileira”, uma vez que uma das grandes
críticas já levantadas pelo FBSSAN e aprofundada mais adiante, versa sobre a questão da
Biofortificação no Brasil. Essa crítica é de que a referida pauta atinente aos alimentos
biofortificados tem passado ao largo de uma discussão democrática, pois princípios caros
ao universo jurídico, como o acesso à informação, participação comunitária, prevenção e
precaução – específicos do Direito Ambiental, cuja positivação se encontra acolhida em
nosso plexo normativo apresentam-se violados e esquecidos.
65
Voltando ao Simpósio de 2005, Nutti (2011, p. 05) informa que estavam presentes
representantes dos Ministérios da Saúde, Desenvolvimento Social (Fome Zero),
Desenvolvimento Agrário e Ciência e Tecnologia, além do Presidente da Embrapa, bem
como representantes do setor privado e universidades. Para a autora, o evento teve boa
exposição na mídia – sem que, novamente, ela adentre em maiores especificações sobre
qual mídia está se referindo, bem como se atingiu o objetivo esperado de fazer o tema da
Biofortificação emergir no cenário social brasileiro.
Ressalta Nutti (2011, p. 05) que todos os responsáveis por cultivos do projeto
HarvestPlus apresentaram suas propostas de trabalho, debatendo com os órgãos
financiadores e futuros parceiros e que no decorrer de 2005, ela e José Luiz Viana de
Carvalho realizaram visitas técnicas a diferentes instituições no Senegal, Gana, Nigéria,
Quênia, Etiópia, Uganda e Tanzânia, que se mostraram dispostas a integrar a rede de
Biofortificação e a receber capacitação para análise de carotenóides. A autora também
ressalta que, posteriormente, laboratórios de Moçambique, Síria, Índia e China foram
visitados e auditados para identificação de necessidades, aquisição de equipamentos e
inserção no programa HarvestPlus. No total, cerca de 20 laboratórios foram visitados e
auditados no período de 2005 a 2008.
Durante o ano de 2006, feijão caupi e trigo foram inseridos como cultivos no
projeto HarvestPlus, sendo também realizada em Teresópolis a primeira reunião anual
dos projetos HarvestPlus e AgroSalud, que contou com a presença de 45 participantes,
entre os quais pesquisadores de universidades e instituições estaduais e federais.
66
governo do Estado e prefeituras, além da Agência Estadual de Pesquisa Agropecuária e
Extensão Rural do Maranhão - AGERP, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social
do Maranhão - SEDES, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional -
CONSEA, Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão - FAPEMA e universidades
envolvidas com nutrição, além, evidentemente, do apoio da EMPRAPA alocada no
estado.
67
financiamento do Fundo de Pesquisa Embrapa - Monsanto, com recursos de R$
1.086.661,00, sendo apresentada uma contrapartida de R$ 1.700.000,00 em
infraestrutura, salários de pesquisadores e pessoal de apoio. O projeto BioFORT aglutinou
onze unidades da Embrapa - Agroindústria de Alimentos, Arroz e Feijão, Mandioca e
Fruticultura Tropical, Milho e Sorgo, Hortaliças, Meio-Norte, Tabuleiros Costeiros,
Semiárido, Soja, Cerrados e Trigo e universidades como: UFRJ, Unesp e UFS, entre
outras.
Na ocasião, foram lançados dois novos produtos: a mandioca Jari, com maiores
teores de betacaroteno (pró-vitamina A) e uma cartilha sobre o cultivo e consumo de
batata-doce, além de uma Vitrine Tecnológica e dia de campo, no Campo Experimental
de Nossa Senhora das Dores. (NUTTI, 2011, p. 07-08).
68
Nesse mesmo evento, o Programa HarvestPlus apresentou conjuntamente os
cultivos melhorados (SIC) de arroz, feijão, feijão-caupi, mandioca, batata-doce, milho e
abóbora. Além disso, sementes, ramas e manivas destes cultivares foram distribuídas para
40 agricultores do Assentamento de Santana dos Frades para testarem os cultivos. Na
ocasião, realizou-se ainda um almoço comunitário entre os participantes da reunião e os
agricultores, e parte do grupo visitou a escola no Município de Pacatuba onde os cultivos
haviam sido testados com as crianças, como parte da merenda escolar (NUTTI, 2011, p.
08).
Outro ponto que nos chama a atenção é a distribuição das sementes biofortificadas
aos assentados de Santana dos Frades. Assim como em tempos pretéritos havia a
distribuição dos insumos agrícolas compostos pelo “combo”: agrotóxicos e transgênicos,
agora distribuem-se as sementes biofortificadas. De certa forma, é como se aquele velho
adágio de que “é preciso mudar as coisas para que elas continuem as mesmas”, se
cumprisse na seara agroprodutiva brasileira, abarcando desde os membros do
agrobussiness aos pequenos produtores.
69
solo. De acordo com estudos já explanados neste primeiro capítulo e aprofundados ao
longo deste trabalho, a agroprodução artificializada produz empobrecimento do solo,
declínio da biodiversidade, entre outros fatores, que, conforme podemos imaginar, levam
a uma certa forma de “dependência química” do solo aos insumos criados pelas gigantes
do setor.
Por fim, chama a atenção o fato de que têm sido realizado testes dos
biofortificados cultivados em crianças de uma Escola Municipal de Paracatu, sem serem
fornecidos mais detalhes sobre o caso. Mais adiante deste trabalho, veremos que os efeitos
de agrotóxicos e transgênicos têm efeitos distintos entre crianças e adultos e então,
pergunta-se: seriam essas crianças de Paracatu, município pobre do interior nordestino,
cobaias de tenra idade? Teriam seus pais e professores consciência do perigo que é estar
sendo objeto de teste de tecnologias ainda em implantação e de recentíssima inserção no
país?
Mais uma vez fazendo-se uma alusão a alguns princípios e leis do Direito, seara
que também se insere nesta produção textual, temos que princípios contidos na
Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente como proteção
integral, condição peculiar de pessoas em desenvolvimento parecem passar ao largo de
observações e talvez, pelo contrário, sejam alvo de violações com testes como estes
ocorridos com as crianças de Paracatu.
22
Lei n. 11.105/2005, que regulamentou parcialmente os incisos II, IV e V, do § 1º, do art. 225 da CF/88
e estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização e atividades que envolvam os organismos
geneticamente modificados - OGMs e seus derivados.
70
Mais uma vez fica a questão: cria-se um problema para se vender uma solução? A
roupagem humanitária cai realmente bem em empresas transnacionais que ofertam
soluções que envolvem robustos investimentos?
Segundo consta no relatório elaborado pela própria Nutti (2011, p. 08) esta
apresentação foi realizada em julho de 2009, sendo dado o primeiro passo para o
estabelecimento da parceria entre a Embrapa e a PepsiCo, com a proposição do Brasil ser
o local para o desenvolvimento do projeto-piloto para o desenvolvimento de produtos
biofortificados. A autora e José Luiz Carvalho visitaram as unidades de produção e de
pesquisa da Elma Chips, em Itu e Valinhos para avaliar, em conjunto com a equipe,
inclusive jurídica da PepsiCo, as oportunidades de parceria, e no final de 2009, esta foi
oficializada, sendo oficialmente aprovada em 2011, após visita em meados de 2010 de
Mehamood Khan, CEO - Global Nutrition Group e Chief Scientific Officer - PepsiCo ao
Brasil e relevante apoio, ao longo do ano de 2011, de Derek Yach, Vice President, Global
Health Policy- PepsiCo.
71
convencionais - conforme reforça a reportagem do Jornal Nacional23. (NUTTI, 2011, p.
08).
“Seriam aquele alimento, vamos dizer assim, com a sua melhor forma
possível, o máximo que a gente pode tirar de uma planta. Não é um
receituário médico é o almoço e a janta do dia a dia”, explicou o
agrônomo da Embrapa José Luiz Carvalho.
23
Quando em busca de referida matéria, o vídeo já não apresenta conteúdo disponível, mas a matéria escrita
pode ser encontrada em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2011/04/escolas-de-quatro-cidades-
comecam-testar-supermerenda-vitaminada.html>. Acesso em: 05 mar. 2017.
72
esperavam bons resultados. Tal situação é, no mínimo, estranha; primeiro faz-se o teste,
depois o acompanhamento médico e esperam-se bons resultados?
Segundo relata o resumo do artigo, foi conduzido um estudo com 327 crianças
regularmente matriculadas em escolas rurais localizadas no município de Itaguaí – RJ,
com as quais foram realizados testes de aceitação, através de uma escala hedônica facial
de 9-pontos, variando de “super ruim” (1) a “super bom” (9). Os resultados apresentados
pelo estudo demonstraram que os produtos obtiveram boa aceitação pelos alunos, com
médias que variaram de 6,4 até 8,2, sendo concluído que a Biofortificação é uma
alternativa viável a ser empregada na merenda escolar de Itaguaí e que poderá contribuir
para a melhoria na qualidade nutricional da dieta das crianças (NUTTI et. al, 2015, p. 99).
73
produto ao consumidor. O evento contou com participação de 6 membros da rede de
Biofortificação no Brasil, que foi citado como exemplo a ser seguido pelo Diretor Geral
do HarvestPlus, Howdy Bouis durante a abertura da Conferência. Palavras do próprio
Howdy Bouis reproduzidas no documento de Nutti (2011, p. 10) dão conta que: “Se
alguém quiser conhecer o futuro da biofortificação precisa conhecer os trabalhos
desenvolvidos Brasil”.
74
sobre o projeto, mesmo quando solicitada pela Cooperativa de Trabalho, Educação,
Informação e Tecnologia de Autogestão – EITA.24
24
Mais informações em: Nota técnica: Programa de Biofortificação de Alimentos no Brasil: desenvolvendo
produtos agrícolas mais nutritivos. Encaminhada pela Embrapa em resposta à solicitação de informações
feita pelo EITA. Disponível em: <http://www.bf.eita.org.br/resposta_LAI.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2017.
25
Mais informações disponíveis em: Gomes FS. Artificial mends to food systems. In: Dederichs-Bain B
&Ramm WC eds. Food fortification: A “techno-fix” or a sustainable solution to fight hiddenhunger? Bonn:
Welthungerhilfe/terre deshommes, 2014. Disponível em:
<http://www.welthungerhilfe.de/fileadmin/user_upload/Mediathek/Mediathek_int/Fachpapiere/Welthung
erhilfe-Food-Fortification-Study-2013.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2017.
75
20), traz em tom de alerta a informação de que o financiamento da maior parte das
pesquisas neste campo é realizado por empresas interessadas em resultados positivos para
a Biofortificação. Consequentemente, pontos importantes como a investigação dos efeitos
adversos da biofortificação; a realização de análises de custo-benefício que comparem tal
intervenção, com o uso de alimentos da agrobiodiversidade e estratégias de diversificação
alimentar; e a avaliação dos impactos econômicos de tal intervenção sobre e resultante
dos preços, o controle e patente das sementes, bem como os custos ambientais e outros
impactos não são abordados.
26
Mais informações podem ser colhidas no endereço eletrônico da própria Harvest Plus. Disponível em:
<http://www.harvestplus.org/content/about-harvestplus>. Acesso em: 05 mar. 2017.
76
O estudo produzido pelo FBSSAN no ano de 2016 continua sua crítica afirmando
que as pesquisas produzidas pela HarvestPlus são voltadas para estudos que apoiam suas
convicções, interesses e metas e que são poucos os relatos que avaliaram a efetividade da
biofortificação. Destacam, inclusive, duas pesquisas produzidas por Christine Hotz27, que
coordenou e gerenciou um portfólio de pesquisa multimilionário para a HarvestPlus e que
em seus trabalhos descreve estratégias de marketing para criar demanda pelas sementes
em Moçambique e Uganda, mesmo que não se tenha produzido qualquer investigação
sobre efeitos adversos - o que está, frisa o documento do FBSSAN (2016, p. 21): “bem
alinhado com a política do HarvestPlus de promover sementes entres os agricultores e
consumidores.”
27
Para acessar as informações sobre as pesquisas de Christine Hotz, é possível consultar os seguintes
artigos: HOTZ, C; LOECHL C; de BRAUW A; EOZENOU, P; GILLIGAN, D; MOURSI, M;
MUNHAUA, B; VAN JAARSVELD, P; CARRIQUIRY, A; MEENAKSHI, JV. A large-scale
intervention to introduce orange sweet potato in rural Mozambique increases vitamin A intakes
among children and women. Br J Nutr 2012; 108(1):163-76;
HOTZ, C; LOECHL, C; LUBOWA, A; TUMWINE, JK; NDEEZI, G; NANDUTUMASAWI, A;
BAINGANA R, CARRIQUIRY, A; de BRAUW A; MEENAKSHI, JV; GILLIGAN, DO. Introduction of
β-carotene-rich orange sweet potato in rural Uganda resulted in increased vitamin A intakes among
children and women and improved vitamin A status among children. J Nutr 2012; 142(10):1871-80
apud FBSSAN, 2016, p. 21
27
HAAS, JD; VILLALPANDO S; BEEBE S; GLAHN R; SHAMAH T; BOY, E. The effect of consuming
biofortified beans on the iron status of Mexican school children. Conference abstract; The FASEB
Journal. 2011; 25:96.6;
VANJAARSVELD PJ, Faber M; TANUMIHARDJO, SA; NESTEL P; LOMBARD CJ; BENADÉ, AJ.
Beta-carotene-rich orange-fleshed sweet potato improves the vitamin A status of primary school
children assessed with the modified-relative-dose-response test. Am J ClinNutr 2005; 81(5):1080-7.
LOW, JW; ARIMOND, M; OSMAN, N; CUNGUARA, B; ZANO F; TSCHIRLEY, D. A food-based
approach introducing orange-fleshed sweet potatoes increased vitamin A intake and serum retinol
concentrations in young children in rural. Mozambique. J Nutr 2007; 137(5):1320-7.
JAMIL, KM; BROWN KH; JAMIL M; PEERSON, JM; KEENAN, AH; NEWMAN, JW; HASKELL, MJ.
Daily consumption of orange-fleshed sweet potato for 60 days increased plasmaβ-carotene
concentration but did not increase total body vitamin A pool size in Bangladeshi women. J Nutr 2012;
142(10):1896-902.
77
sem informar aos pais os potenciais riscos de participação no estudo, fato este
extremamente grave e, como já comentado ao longo deste capítulo, violador de direitos e
garantias.
Outro ponto preocupante trazido pelo documento do FBSSAN (2016) alerta para
o fato de que o projeto BioFort, apesar de ser apresentado como grande trunfo pelos
entusiastas do projeto é, na verdade, catalisador de preocupação, uma vez que pode gerar
a perda da biodiversidade, perda da autonomia na produção de diversas culturas
tradicionais em cada país.
Além disso, o documento do FBSSAN (2016) informa que foi assim no caso dos
transgênicos, que nos idos da década de 90 prometiam aumentar a produtividade, facilitar
o manejo de culturas e incrementar os ganhos, além de reduzirem a utilização de
agrotóxicos, mas que, após 10 anos de utilização nas lavouras brasileiras, demonstraram
que, contrariamente, cada vez mais as plantas se tornam resistentes e a produtividade cai,
exigindo mais insumos e custando mais caro. 61% da área agricultável do Brasil é
plantada com transgênicos, fato que coloca em risco a soberania do país, pois as sementes
são de propriedade das empresas, além de não ter sido erradicada a fome no mundo e no
Brasil com tanta tecnologia (FBSSAN, 2016, p. 22-23).
78
e da humanidade aposta em um processo de criação de sentidos
(mais do que verdades) e em sua estratégia de poder.
Nesse momento, vale a lembrança de Josué de Castro, que desde a década de 40,
ampliou o reconhecimento das distintas formas e expressões da fome e afirmava que
provocar sistematicamente um aumento considerável e ordenado da produção agrícola
não é uma questão de pura técnica agronômica, sendo um problema econômico
(CASTRO, 1984, p. 08).
79
sem criar a indústria necessária. Não se pode tornar a indústria e a
agricultura fregueses recíprocos, fazê-las interdependentes, sem
distribuir metodicamente a população ativa de acordo com certa divisão
do trabalho e sem que se organize, entre as diversas partes dessa
população, uma distribuição da renda nacional, de modo a permitir o
intercâmbio entre elas. E ainda: não basta criar a capacidade aquisitiva,
a capacidade de intercâmbio. Faz-se mister aumentar progressivamente
essas capacidades, aumentar a renda nacional. Será isso possível? Ainda
neste ponto a resposta é positiva: não é impossível uma vez que tal
desideratum já foi conseguido nos países mais adiantados. (sem
destaque no original).
O que acontecia no passado e relatado por Castro (1946) no trecho acima, parece
continuar a se repetir. Temos, por exemplo, o relatório do IFPRI (sigla em Inglês do
Instituto Internacional de Pesquisa em Política Alimentar) que trata do índice global da
fome e que dedica apenas um parágrafo do documento de 56 páginas para falar das causas
da fome, evitando a menção das pressões de corporações transnacionais para controlar o
sistema alimentar, entre outras causas estruturais. Além disso, em nome da ajuda
humanitária urgente aos flagelados pela fome e para justificar uma suposta solução, forja-
se ou se superestima um problema, conforme já iniciamos uma discussão sobre referida
percepção, ao longo deste 1º capítulo e que aqui é trazido no documento do FBSSAN
(2016), que continua informando que a Organizações ligadas às Nações Unidas, como o
Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola - IFAD, a Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO, o Programa Mundial de Alimentos - WFP
e a Organização Mundial da Saúde - OMS divergem e não apresentam estimativas
robustas do tamanho do problema da fome no mundo (FBSSAN, 2016, p. 09).
80
Fato que merece observação é o que abrange o contexto desafiador de mudanças
climáticas, o qual deveria apontar para um incentivo à diversificação alimentar e
biodiversidade, ao passo que a estratégia da Biofortificação caminha no sentido do
estreitamento da oferta de variedades e concentração de produção de sementes.
As críticas continuam sendo tecidas pelo FBSSAN quando relatam que a iniciativa
de Biofortificação no Brasil, ao avançar de forma dissociada das demais políticas públicas
oficiais de alimentação, saúde, agroecologia e segurança alimentar do país, podem trazer,
por consequência, a exposição do país inteiro à riscos desnecessários para a saúde,
agricultura e meio ambiente.
81
Quadro 3 – Biodiversidade x Biofortificação(FBSSAN, 2016, p. 05).
82
Figura 8 – Boletim FBSSAN (2016, p. 04).
83
Quase ao fim deste primeiro capítulo, lembramo-nos de Bourdieu (2002), ao
percebemos o quanto o campo da solução do problema da fome no mundo é disputado
por diferentes atores que procuram através de eixos estruturantes como governos,
políticas públicas, modelo agroalimentar, entre outros, imprimir significações próprias e
que deem conta da dominação que pretendem incutir.
Temos que disputas simbólicas e retóricas à parte, o fato é que a discussão dos
modelos agroalimentares no Brasil parece passar ao largo de uma discussão que se possa
ter por democrática e que a história revela que nem sempre o interesse público na saúde
da população será a força motriz de criação de insumos para a produção agrícola. Vide o
caso do DDT na década de 60, denunciado por Carson e só retirado oficial e totalmente
de circulação do país em 2009, ou o fato de que ainda não enfrentamos o banimento de
agrotóxicos já banidos em vários países do mundo e uma série de prováveis inseguranças
de ordem ambiental, nutricional e de saúde pública, conforme veremos no capítulo
terceiro deste trabalho.
84
culturas agrícolas, quanto a oposição à “cadeia de valor” e apropriação de terras. Nesse
contexto, a soberania alimentar poderia ser considerada um modelo civilizacional que
combina a crítica conjuntural à “segurança alimentar neoliberal” – como um jogo de
poder de corporações, eivados de estratagemas em que agroexportação não se confundiria
com “alimentar o mundo” e alimento não se confundiria com mercadoria ou commodities
(MCMICHAEL, 2016, p. 36; 201).28
Passamos agora ao segundo capítulo da tese, que se debruçará sobre temas como
sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável, futuras gerações, risco e justiça
ambiental e suas construções conceituais.
28
Para maiores informações sobre o tema da SAN – Segurança Alimentar e Nutricional sugerimos as obras
de Renato Maluf, uma de nossas maiores referências nacionais sobre o tema e que relata a trajetória de
enfrentamento de SAN.
85
2 (R)EVOLUÇÃO SUSTENTÁVEL OU COMPROMETIMENTO DO PRESENTE
DAS FUTURAS GERAÇÕES? Sustentabilidade, risco e justiça ambiental.
Logo no início de sua obra, Boff (2015) mergulha na centralidade do tema quando
discute as contradições e as perspectivas sobre o planeta terra, o qual ele denomina como
“Nossa Casa Comum”. Salientamos que as reflexões trazidas pelo autor em comento são
originadas de outras obras anteriores, uma vez que, desde a década de 1980, o mesmo tem
se dedicado às questões pautadas pela temática ecológica e socioambiental, bem como a
ecoespiritaualidade.29
29
Para maiores informações sobre a vasta obra do autor, colacionamos algumas de suas publicações a
seguir: Ética e ecoespiritualidade (1984), Ecologia, mundialização e espiritualidade (1993), Nova era: a
emergência da consciência planetária (1994), Ecologia: grito da terra, grito dos pobres (1995), Princípio
Terra: a volta à Terra como pátria comum (1995), Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra
(1999), O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil (2001), Terra América:
imagens com Marco Antonio Miranda (2003), Responder florindo: da crise da civilização a uma revolução
radicalmente humana (2004), Mundo eucalipto: os fatos e mitos de sua cultura com José Roberto Scolforo
(2008), Opção Terra: a solução para a Terra não cai do céu (2009), Cuidar da Terra, proteger a vida (2010),
86
Já no prefácio da obra, Boff (2015, p. 09) traz que:
Notamos, inicialmente, a divisão feita pelo autor entre o substantivo que ele
denomina pela palavra sustentabilidade, e o adjetivo cognominado sustentável, e que sua
vasta utilização ocorre pelos mais variados setores, todavia, ele logo alerta para a questão
de que, frequentemente, ocorre de fato o que ele denomina por “falsidade ecológica” ao
se utilizar a palavra sustentabilidade para ocultar reais problemas ambientais como a
agressão à natureza, contaminação química dos alimentos e de marketing comercial,
apenas com o escopo de venda e lucro, pois, na maioria das vezes que se anuncia a
sustentabilidade ou algo sustentável, isso geralmente, não o é (BOFF, 2015, p. 09).
Anotamos aqui compreensão trazida por Boff (2015, p. 10), sobre a atual situação
do planeta, considerada por ele de grande dramaticidade, pois a economia, a política, a
cultura e a globalização seguem um curso que não pode ser considerado sustentável pelos
níveis de pilhagem de recursos naturais, além da geração das desigualdades e de conflitos
intertribais e outros esgarçamentos sociais que se produzem. Desta forma, o autor
considera a mudança como algo iminente, sob o prisma de se colocar em risco o futuro
de nossa espécie e de danificação grave do equilíbrio do planeta e diz que:
El planeta Tierra: crisis, falsas soluciones, alternativas (2011), As quatro ecologias: ambiental, política e
social, mental e integral (2012), O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética
e na espiritualidade (2012) e O TAO da libertação: explorando a ecologia da transformação com Marie
Hathaway (2012). (BOFF, 2015)
30
Nesse momento e antes de continuarmos a discutir a questão da sustentabilidade, nos questionamos de
maneira breve nessa nota em relação ao termo “orgânico”. Será ele também convertido em uma futura
“etiqueta”? Lembramos que vimos no capítulo anterior que a própria Monsanto afirma em sua defesa em
sua Carta aberta ao tribunal Monsanto que fornece produtos para agricultores que praticam o cultivo
orgânico.
87
O pior que podemos fazer é não fazer nada e deixar que as coisas
prolonguem seu curso perigoso. As transformações necessárias
devem apontar para um outro paradigma de relação para com a
terra e a natureza, bem como a invenção de modos de produção e
consumo mais benignos. Isso implica inaugurar um novo patamar de
civilização, mais amante da vida, mais ecoamigável e mais respeitoso
dos ritmos, das capacidades e dos limites da natureza.
[...]
Mencionamos, neste momento, que o discurso trazido por Leonardo Boff parece
se encaixar naquilo que temos denominado como contramajoritário, pois conforme
referido pelo próprio autor, a expressão sustentabilidade tem sido tratada como etiqueta a
ser agregada aos mais variados produtos dos mais diversos setores, além de muitas vezes
ser braço auxiliar do greenwash e de não discutir a fundo mudanças no atual modelo
econômico e paradigma civilizacional global.
88
Em relação ao atual modelo de produção e acumulação, o autor em comento
enfatiza que o planeta não resistirá às explorações e às manipulações oriundas das
tecnologias sujas ou das mais sutis, que utilizam a genética e a nanotecnologia, mas que
agridem sistematicamente o equilíbrio vital do planeta através do uso intensivo de
agrotóxicos e pesticidas que continuamente destroem micro-organismos, modificam a
qualidade do solo e da água e, consequentemente, alteram a vida.
31
Em relação à Conferência de Estocolmo, a ideia embrionária de sustentabilidade está presente nas
referências feitas às presentes e futuras gerações e a proteção ambiental, presentes nos princípios 01 e 02,
os quais reproduzimos a seguir:
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, reunida em Estocolmo de 5 a 16 de
junho de 1972, e, atenta à necessidade de um critério e de princípios comuns que ofereçam aos povos do
mundo inspiração e guia para preservar e melhorar o meio ambiente humano,
Princípio 1 - O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de
vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de
bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e
futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a
discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas
e devem ser eliminadas.
Princípio 2 - Os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente
amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações
presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenamento. (ONU, 1972).
89
Após abordar a pré-história do conceito de sustentabilidade, Boff (2015, p. 34)
adentra na definição clássica de Desenvolvimento Sustentável construída a partir da
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1984, cujo lema era
"Uma agenda global para a mudança" e que resultou, em 1987, no relatório da Primeira-
ministra norueguesa, Gro Harlem Brundtland, intitulado “o Nosso futuro comum” ou
também denominado de Relatório Brundtland.
90
empresas e expresso em discursos corporativos que assim dizem que: “para ser
sustentável o desenvolvimento deve ser economicamente viável, socialmente justo e
ambientalmente correto”. Ou seja, trata-se do famoso tripé chamado de Triple Botton Line
– A linha das três pilastras que deve garantir a sustentabilidade. Referido conceito foi
criado em 1990 pelo britânico John Elkington, fundador da ONG SustainAbility, cuja
proposta é exatamente divulgar esses três momentos como necessários a todo o
desenvolvimento sustentável. Utilizou-se em referida construção os três “pês”, Profit,
People, Planet – produto/renda, população e planeta, como sustentáculos da
sustentabilidade.
91
Todavia, parece-nos que um elemento é comum nas abordagens da ONU como na
Conferência de Estocolmo ou no Relatório Brutdtland: a preocupação com as futuras
gerações, fato que muito nos interessa e que será explorado em tópico próprio neste
mesmo capítulo.
Outro referencial teórico sobre o tema sustentabilidade que faz inserções críticas
sobre o tema é Ignacy Sachs (1993; 2009), através de sua Teoria das Dimensões da
Sustentabilidade, na qual defende que o desenvolvimento sustentável está encoberto por
08 dimensões, quais sejam: ecológica, econômica, social, cultural, psicológica, territorial,
política nacional e internacional. Cada dimensão possui institutos e características
próprias, devendo conceber que o desenvolvimento sustentável somente é alcançado
quando todas estiverem delineadas.
92
Ignacy Sachs, assim como Leonardo Boff, apresenta-nos pressupostos para que
continuemos nos questionando sobre a possibilidade de se pensar em sustentabilidade na
vigência de um sistema capitalista de mercado. Nessa perspectiva de sustentabilidade sem
uma mudança estrutural, referido autor indaga: Os grupos mais vulneráveis teriam as
mesmas condições de desenvolvimento sustentável?
Segundo ele, mesmo ciente que tal dissecação possa levar a conclusão de que se
trata apenas de uma espécie de quadratura no interior do círculo, não se impossibilitaria
que a interpretação do sentido histórico da junção política desses dois termos e de sua
acelerada legitimação global nas últimas três décadas fosse feita, bem como a discussão
do que existe de válido, sério e objetivo nessa noção, o que poderia vir a ser uma ótima
vacina contra muitas das ilusões que ela tende a difundir. Além disso, frisa o autor que
separar o joio do trigo permite que o desenvolvimento sustentável possa ser mais
conscientemente assumido como um dos mais generosos ideais civilizadores.
32
Termo que em italiano significa atualização.
93
Quando enfrenta, especificamente, o termo desenvolvimento, Veiga (2017, p. 35)
informa que há diversas razões para que se considere que a ideia de desenvolvimento
permaneça como objeto de controvérsia. Não apenas porque o uso dessa noção continua
a ser ferrenhamente combatido por ativistas da educação ambiental, mas também porque,
de forma mais implícita, ou indireta, conflita com a tese do “decrescimento”.
Não foi outro o problema que desafiou Tim Jackson a lançar em 2011
o livro Prosperidade sem Crescimento, evitando o termo
desenvolvimento. O propósito dos economistas ecológicos, cujas ideias
foram brilhantemente sintetizadas nessa obra, sempre foi o de
relativizar o papel desempenhado pelo crescimento econômico naquilo
que tanto pode ser chamado de desenvolvimento, como de prosperidade
ou de progresso. Com certeza, um dia será necessário decrescer
crescendo, ou, como disse Edgar Morin (2011, p. 36)
“simultaneamente crescer e decrescer”. Isto é, será necessário fazer
crescer os serviços, as energias renováveis, os transportes públicos, a
economia plural (que inclui a economia social e a solidária), as obras
de humanização das megalópoles, as agriculturas e pecuárias
alternativas.
94
intenso processo de banalização. A ponto de ser apropriada como leitmotiv central de
estratégias de propaganda empresarial. Todavia, diferentemente de alguns autores que
acabam por rechaçar o ideário da sustentabilidade, Veiga (2017, p. 237-238) considera
que apesar das disputas em relação ao tema, é altamente positivo notar que em poucas
décadas referida temática tenha passado de mero alvo de zombarias a trunfo a ser
ostentado e que críticos ao termo como Enrique Leff ou David Deutsch apresentam o
que ele denomina como: um tique bem recorrente entre os que não percebem que
sustentabilidade não é conceito, mas sim um valor.” Emenda, ainda, que esse não é o
deslize central de tais críticos, mas que eles erram pior quando realizam a avaliação
histórica, pois nos 36 anos que se passaram desde que o projeto de um desenvolvimento
sustentável começou a inspirar a estratégia mundial de conservação (IUCN-UNEP-WWF,
1980), ou mesmo um novo ideário político (BROWN, 1981), a sustentabilidade não
cessou de ganhar força social, como ainda há pouco confirmou o lançamento da Agenda
2030 e seus 17 ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Em relação ao campo jurídico, uma obra específica tem sido referência sobre o
tema, trata-se da obra “sustentabilidade, Direito ao Futuro” de Juarez Freitas, a qual foi,
inclusive, agraciada pela Medalha Pontes de Miranda da Academia Brasileira de Letras
Jurídicas.
O autor da presente obra afirma, na introdução, que após revisar boa parte da mais
qualificada produção bibliográfica33 (FREITAS, 2012, p. 15) sobre o tema – a qual ele
não especifica no corpo de seu texto, informa que a sustentabilidade merece acolhida
33
Em consulta às referências do autor ao final da obra encontramos uma série de autores internacionais
como professores estadunidenses e europeus, entre os quais citamos Amartya Sen, William Nor- dhaus,
Thomas Friedman, Jonathan Lash, Edgar Morin, Jeroen C. J. M. van den Bergh, Anthony Giddens Annie
Leonard, Martin Dal, Margo Wilson, Niles Eldredge, Robert Solow, Dale Jamieson, Gabrielle Walke,
David King, Laura Perez Bustamante, Jean-Pierre Dupuy, Ricardo Luis Lorenzetti. Além de autores
nacionais como José Eli da Veiga, Ingo Wolfgang Sarlet, José Rubens Morato Leite, Paulo Affonso Leme
Machado, Eduardo Gianetti, André Trigueiro, Fátima Portilho, Alessandra Galli, Vladimir Freitas, entre
outros.
95
como princípio constitucional que busca promover, a longo prazo, o desenvolvimento
propício ao bem-estar pluridimensional – social, econômico, ético, ambiental e jurídico-
político, com reconhecimento à titularidade dos direitos fundamentais das gerações
presentes e futuras.
34
Juarez Freitas cita nesse momento as críticas de Anthony Giddens ao termo desenvolvimento sustentável.
96
Natureza de princípio constitucional diretamente aplicável; 2) Eficácia – encontro de
resultados justos e não mera aptidão para produzir efeitos jurídicos; 3) Eficiência – uso
de meios idôneos; 4) Ambiente limpo – descontaminado e saudável; 5) Probidade –
inclusão explícita da dimensão ética; 6) Prevenção – dever de evitar danos certos; 7)
Precaução – dever de evitar danos altamente prováveis; 8 – Solidariedade intergeracional
– com o reconhecimento dos direitos das gerações presentes e futuras; 9)
Responsabilidade do Estado e da sociedade e 10) Bem-estar – acima das necessidades
materiais e que nenhum desses elementos deve faltar ao conceito sob pena da ocorrência
de um reducionismo indesejável (FREITAS, 2012, p. 41).
Um especial ponto que nos chama a atenção na obra de Freitas (2012, p. 73; 79),
é o de que a sustentabilidade determina em uma dimensão tópico-sistemática, “a
universalização concreta e eficaz do respeito às condições multidimensionais da vida de
qualidade, com o pronunciado resguardo do direito ao futuro, além de ser empática e
intergeracionalmente solidária”.
Até o presente momento, o que nos parece restar claro é que, sejam em concepções
majoritárias, como as apresentadas pela ONU em Estocolmo ou no Relatório Brudtland,
ou em construções mais holísticas e contramajoritárias, como a de Leonardo Boff, ou
Ignacy Sachs, bem como em abordagens jurídicas, como a de Juarez Freitas, a expressão
“gerações presentes e futuras” se mostra inclusa de forma inequívoca junto ao conceito
de sustentabilidade.
97
2.2 FUTURAS GERAÇÕES E SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL:
NASCIDOS E NÃO NASCIDOS?
“Não herdamos a terra de nossos antepassados, a
tomamos de nossos filhos.”
(Antoine Saint-Exupéry)
Câmara (2016, p. 92 -93) considera que novos perigos afloram com os imparáveis
avanços tecnológicos e que é preciso construir um discurso ético-jurídico que se volte
para a construção da justiça intergeracional, mas traz questionamentos sobre a
concretização desse marco-legal, pois informa que não existe sequer acordo acerca do
lapso temporal que defina o trânsito de uma geração a outra, estimando-se que deva
oscilar entre quinze a quarenta anos e colaciona diferentes opiniões acerca do espaço
tempo que transcorre de uma geração à outra, citando Tácito que fala de quinze anos,;
Heródoto que menciona trinta e três anos e meio; Thomas Jefferson que traz a ideia de
dezenove anos e Bowen, Davis e Kope, que baseados em um modelo científico-
financeiro, propõem a idade de quarenta e quatro anos.
98
A emergência dessa preocupação com a proteção jurídica das futuras gerações
pode ser considerada como expressão do surgimento dos denominados direitos de
solidariedade, haja vista a existência dos denominados perigos transgeracionais
associados aos problemas da acumulação, ou seja, perigos que transcendem de forma
diacrônica a fronteira individual, suplantando os marcos temporais que apartam as
gerações e que podem gerar as denominadas vítimas civilizatórias, frutos da manipulação
genética, contaminação de produtos alimentícios, comercialização de medicamentos
arriscados (CÂMARA, 2016, p. 94-95).
35
Apesar da perspectiva esboçada nesta tese ser de cunho decolonial, a contribuição do liberal John Rawls
acabou por encaixar-se de maneira interessante na abordagem do presente tema.
99
2.2.1 Escolas ético-filosóficas, equidade intergeracional e futuras gerações
John Rawls (2002) elaborou em sua obra, uma Teoria da Justiça, uma análise de
corte pragmático e filosófico que aborda, entre outros temas, a questão da justiça entre
gerações. Em sua teoria da justiça como equidade estabeleceu que a justiça há de se
aplicar a todos os membros da comunidade humana, estejam eles a viver intra ou
intertemporalmente, tendo elencado ao menos três ordens de direitos a que fariam jus às
gerações supervenientes, os quais são: o direito a um adequado nível de poupança; o
direito à conservação dos recursos naturais e ao meio ambiente natural e o direito a uma
política genética racional.
100
em um sentido “bem mais fraco” que os primeiros e que, todavia, os porvindouros –
enquanto entidade coletiva – virão de toda forma (CÂMARA, 2016, p. 102).
Temos, dessa maneira, até agora, marcos temporais rígidos com (Rawls) e marcos
temporais metafísicos (Feinberg e Whitehead). A seguir trataremos de Hans Jonas e o que
ele denomina como princípio da responsabilidade e, conjuntamente, falaremos de
Habermas e sua ideia de expansão da liberdade diacrônica e a emergência de uma
autocompreensão ética da humanidade.
A perspectiva trazida por Hans Jonas deflui de suas reflexões de fundo ético acerca
dos novos perigos existenciais que têm sido enfrentados pela comunidade humana e, para
tanto, alude ao que denomina de uma ética para a “civilização tecnológica”, uma vez que
a ciência que se mostrava como promessa de melhoria da vida humana, tem se convertido
em ameaça. Para ele, o atual estágio da humanidade, denominado de civilização
tecnocientífica, requer uma nova ética capaz de reforçar a expansão da responsabilidade
do homem para com o futuro e, assim, propõe que essa nova ética contribua para a
garantia da permanência da vida humana no planeta e enuncia as seguintes formulações:
a) aja de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de vida
autenticamente humana sobre a terra; b) aja de modo a que os efeitos de tua ação não se
tornem destrutivos para as possibilidades futuras dessa vida (CÂMARA, 2016, p. 107).
Interessante notarmos que dentro da proposta feita por Hans Jonas, parece-nos que
o progresso tecnológico se desvela como uma séria ameaça para a perpetuação da espécie
humana sobre o planeta, e assim, seria irresponsável desenvolver novas tecnologias, tais
quais as atuais técnicas de combinação genética (Revolução Genética), uma vez que
101
representam riscos potenciais para a humanidade e nem a essência e nem a existência das
futuras gerações deve ser posta em risco em face de algum eventual proveito por parte
das gerações atuais.
Quando olhamos para a perspectiva de Hans Jonas para todo o avanço técnico-
científico da humanidade e pensamos na revolucionária proposta do agrobussiness, talvez
cheguemos facilmente à conclusão de que o atual modelo agroprodutivo é
comprometedor da segurança das futuras gerações e lastreador de uma provável ruptura
da solidariedade intergeracional.
Em relação a essa compreensão dos riscos e avanços científicos, bem como sua
relação com o nosso tema de estudo, utilizaremos de estudo um pouco mais detido sobre
a proposta de risco formulada por Ulrich Beck em tópico próprio deste trabalho.
Compartilhamos, todavia, a impressão de que os mecanismos jurídicos são insuficientes
para lidar com os novos problemas – principalmente quando tratarmos do campo técnico-
jurídico representado pelo MPF e seu GT Agrotóxicos e Transgênicos.
Jünger Habermas, de maneira parecida com a de Hans Jonas, ainda que menos
complexa, trata do estabelecimento de uma nova ética em face da emergência do que ele
denomina como “novíssima genética”, pois são os atuais processos de intervenção no
genoma humana que podem vir a ocasionar o que ele denomina como “o aparecimento
de uma densa cadeia geracional de atos pela qual ninguém poderá ser chamado a prestar
102
contas, visto atravessar, unilateral e verticalmente, a rede contemporânea de interações”
(HABERMAS, 2006, p. 39).
36
Referido autor considera que a proteção das gerações futuras merece ser uma das principais atividades
do direito penal moderno e sustenta que o princípio do bem jurídico não deve ser abandonado, mas ampliado
para fazer do dever de tutela do ambiente uma “norma fundamental de valor universal”. Prioritária, então,
é já a “preservação da própria espécie.”
103
primeira grandeza, além de Claus Roxin que enxerga a proteção das gerações futuras
como desafio do direito penal do futuro e que, apenas de forma gradual, a doutrina começa
a atentar-se para o fato de que a “tutela das gerações futuras” consiste em uma nova área
de atuação do direito penal.
Nesse instante e, após a citação acima, fazemos um aparte para tratarmos de algo
que será melhor explicitado no terceiro capítulo, quando da abordagem da proposta do
Tribunal Monsanto em transformar as práticas da referida empresa como ecocidas e a
própria modificação do Tribunal Penal Internacional, que abarcou em 2016, em seu
arcabouço legal, a possibilidade da existência do crime de ecocídio, ou seja, caso estejam
corretos os argumentos daqueles que advogam pela insustentabilidade e lesividade do
atual modelo agroprodutivo dominante - engendrado pelas grandes corporações do
agronegócio e seu pacote de agrotóxicos e transgênicos. A busca da criminalização de
referidas condutas e modelos produtivos se mostra potencialmente instigante para a
reflexão que nos propomos no presente estudo, pois caso uma empresa como a Monsanto
acabe no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional, acusada por ecocício, as ACPs
do MPF que estudaremos mais adiante, bem como as decisões judiciais que lhe são
correlatas, passariam por prováveis ressignificações.
104
humano. O autor lembra que a própria Constituição Federal37 brasileira reconhece de
forma expressa o dever de solidariedade para com as futuras gerações, o que ao seu ver,
é um dever, no limite, para com a própria espécie humana e considera que a justiça
intergeracional coloca-se a serviço não de uma parcela da humanidade, que pode ser
fragmentada no espaço-tempo isolável ou delimitável, mas sim da humanidade como
substância real atemporal a que o Direito com todas as suas limitações de índole
garantística – deve servir e prestar vassalagem.
Se, por um lado, parece-nos que a seara do Direito Ambiental já lida com a
perspectiva de proteção das futuras gerações com uma maior intimidade e com mais
tempo, haja vista o fato do artigo 225 da CF/8839 brasileira reconhecer expressamente o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações,
todavia, os estudos que encontramos referentes ao tema “futuras gerações”, esposados até
agora, não parecem demonstrar preocupação com o marco temporal do que seriam as
presentes e as futuras gerações.
37
Artigo 225 que trata da proteção ambiental. Trataremos de forma mais detida de textos legais no 4º
capítulo.
38
Ost é um dos que esboçam a preocupação na construção de pontes existenciais entre as gerações humanas,
utilizando a questão ambiental como um dos paradigmas mais evidentes do que ele denomina como “risco
de discronia”, que segundo o autor, revelaria a situação de destemporalização na proteção do meio
ambiente, na medida em que admite que o comportamento dos seres humanos contemporâneos repercute
de forma direta nas condições existenciais das futuras gerações, uma vez que a degradação e a poluição
ambiental aumentam cumulativamente para o futuro.
Ost continua suas afirmações, informando que cabe ao Direito e ao Estado, sem desconsiderar a
responsabilidade de forma individualizada dos membros de determinada comunidade, sincronizar os
diferentes ritmos entre o ser humano e a natureza e entre as gerações presentes e as futuras, de modo que
seja regulada a responsabilidade e os deveres para com os “seres ainda virtuais, colocados em relação a nós,
em relação aos nossos contemporâneos, numa situação de dependência radical e total assimetria” (OST,
1999, p. 39; 81)
39
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (sem destaque no original)
105
Para aclarar um pouco mais referida discussão do presente subtítulo que indaga
sobre a localização das futuras gerações se entre nascidos ou não nascidos e após
atravessarmos algumas análises ético-filosóficas e da seara do Direito Penal, passamos a
algumas abordagens através da perspectiva do Direito Ambiental e da denominada
equidade/solidariedade intergeracional.
De acordo com Ayala (2002, p. 165), o estudo dos novos direitos fundamentais
exige uma proposta de leitura do ambiente pelo direito ambiental através de uma
abordagem que, além de jurídica, seja essencialmente ecológica, solidária e
transdisciplinar. Assim, a consideração jurídica de uma nova ética de interação entre os
sujeitos relacionados passa por uma ética da alteridade; ética do cuidado. O autor continua
informando que afirmar a existência de uma responsabilidade baseada em deveres perante
as futuras gerações reflete-se em mudanças no sentido jurídico genericamente vinculado
à sua compreensão. A responsabilidade que aqui se trata em nada pode ser relacionada à
imputação por faltas, reparação por prejuízos ocorridos em algum momento no passado
ou, ainda, culpar alguém por atos passados, mas importa uma missão assumida
coletivamente perante a proteção de um bem comum e perante as futuras gerações, e de
forma compartilhada (e não acumulada) entre as gerações que se sucedem.
106
integridade, possibilitando a interação dialógica entre o valor ético da alteridade com os
textos jurídicos.
40
Há certas categorias de ações que podem ser identificadas como potencialmente agressivas aos direitos
intergeracionais, enumeradas entre as seguintes: a) danos cujos impactos não podem ser seguramente
contidos através do espaço ou através do tempo, tais como os desastres nucleares; b) danos aos solos,
107
Parece ser perceptível que existem diversos instrumentos de proteção dos direitos
humanos que revelam uma crença fundamental na dignidade de todos os membros da
sociedade humana e na equidade de direitos que se projeta tanto no tempo como no
espaço, ainda que, saliente-se: esse tempo e espaço não se mostram quantificados,
conforme já vimos quando da análise ético-filosófica do que poderia ser considerada
“futura geração”, ou seja, o discurso sobre a proteção do meio ambiente para as futuras
gerações parece ser bem mais sedimentado do que a definição de quem são presentes e
futuras gerações.41
O que parece ser perceptível é que tratar da temática das futuras gerações parece
requerer sempre ajustes em relação à estruturação da dogmática jurídica, quando
percebemos a menção de Morato Leite (2012) no parágrafo acima quando este busca
demonstrar que a percepção de proteção antropocêntrica parece não se adequar à nova
necessidade de proteção das presentes e futuras gerações. Será que encontraremos esse
esforço no ajuste dogmático por parte do MPF em suas Ações Civis Públicas, ou dos
juízes federais em suas decisões em relação às mesmas ações, campo de nosso estudo
técnico-jurídico no quarto capítulo?
tomando-os incapazes de suportar vida animal ou vegetal; c) destruição de florestas tropicais suficiente para
diminuir significativamente a diversidade de espécies na região e a sustentabilidade dos solos; d) poluição
do ar e transformações terrestres que induzam mudanças significativas no clima; e) destruição do
conhecimento essencial para entender os sistemas naturais e sociais; f) destruição de monumentos culturais
que países desconheçam fazer parte do patrimônio comum da humanidade; g) destruição de feitos notáveis
desenvolvidos pelas gerações presentes que possam beneficiar as futuras gerações, como livrarias e bancos
genéticos h) destruição dos elementos das culturas tradicionais. A composição de todos esses elementos
permite que se reconheça fundamentalmente, como aspecto inovador deste princípio, uma dimensão que
será útil ao desenvolvimento desta pesquisa, que é o de enfatizar um controle de resultados decisórios no
direito do ambiente. (WEISS, 1992)
41
Ayala (2002, p. 173) considera que quando as gerações futuras tomam corpo, seus membros adquirem o
direito de utilizar a Terra e de se beneficiarem dela, bem como a obrigação de cuidá-la para seus
contemporâneos e para quem lhes suceda.” Conforme explica o autor, os direitos das futuras gerações como
dado digno de avaliação e interesse e dentro da nova racionalidade ambiental permitem a condição de
realização de um modelo de justiça ambiental, que agora é intergeracional. Ainda que não seja possível
reconhecer e identificar individuadamente os titulares dos interesses a serem protegidos mediante
obrigações impostas em diferentes espécies, espaços e graus, tais direitos podem ser considerados como
coletivos, existindo “[...] seja qual for o número e a identidade dos indivíduos que compõem cada geração”.
108
O parâmetro ético é também trazido à baila pelos juristas ambientais e, nesse
sentido, vale notar a contribuição do ministro do STJ, Hermann Benjamin (2001, p. 57)
que assim diz:
Voltando para Ayala (2002, p. 171), o mesmo trata dos direitos planetários e das
obrigações que coexistem em cada geração, segundo ele - na dimensão intergeracional,
há uma relação entre as futuras gerações – para quem as obrigações são devidas, e as
gerações atuais – que estão vinculadas aos direitos das gerações passadas. Dessa forma,
os direitos das futuras gerações estão vinculados necessariamente a obrigações das
gerações presentes. O autor continua informando que no contexto intergeracional e de
obrigações planetárias, os direitos existentes entre membros das gerações presentes
derivam da constituição do que ele denomina de relação intergeracional, que é explicada
como a relação que cada geração possui com aquelas que a antecederam e aquelas que
ainda virão.42
42
Sinaliza ainda referido autor que os direitos planetários intergeracionais devem também estar vinculados
a certas normas procedimentais que são importantes para a realização de normas substanciais e destaca
entre elas o acesso à informação e à garantia de participação pública, no que se pode reconhecer e considera
que o princípio da equidade intergeracional congrega uma série de princípios que podem ser utilizados
como condições fundamentais para ordenar processos de decisão, pois considera não se tratar de um
compromisso que é apenas jurídico e dogmático, mas é também um compromisso que é antes social e,
principalmente cultural, face ao que Häberle trata por um princípio de abertura da cultura estatal. (AYALA,
2002, p. 174) Observamos que a opção por uma sociedade solidária permite considerar que a cultura estatal
se mantenha aberta aos interesses das futuras gerações, sendo este um aspecto que é antes de jurídico,
cultural.
109
que proteção das futuras gerações encaminha-se para o encontro com a própria proteção
da humanidade e sua perpetuação.
A pergunta que ecoa nessa hora é: seria este o caminho a ser seguido no tratamento
das “futuras gerações”? Juntar-se à “equação mencionada” por Stone, apenas os interesses
dos não-nascidos? E em relação a crianças na primeira infância - seres em peculiar
condição de desenvolvimento, não seriam eles, também - e ao mesmo tempo - presente e
futura geração? Seriam as futuras gerações definidas por padronizações temporais e
biologizantes, ou sua proteção e amparo está ligada à própria perpetuação da espécie
humana como propõem alguns jusfilósofos acima estudados? E mais, caso o atual modelo
agroprodutivo majoritário seja realmente poluente e insustentável como defendem
algumas correntes contramajoritárias, poderíamos considerar que suas potenciais ações e
contaminações poderiam se encaminhar para o comprometimento do presente das futuras
gerações e da própria humanidade, além de romperem com a solidariedade/equidade
intergeracional?
Acselrad (2017, p. 02), informa que nos EUA, a partir do final dos anos 60,
redefiniu-se, em termos ambientais, um conjunto de embates contra as condições
inadequadas de saneamento, de contaminação química de locais de moradia e trabalho e
disposição indevida de lixo tóxico e perigoso. Nos anos 70, houve a mobilização dos
sindicatos que ficaram preocupados com saúde ocupacional, grupos ambientalistas e
organizações de minorias étnicas articularam-se para elaborar em suas respectivas pautas
o que entendiam por “questões ambientais urbanas”.
Sobre esta época, Acselrad (2017, p. 02) comenta que alguns estudos já apontavam
que ocorria a distribuição espacialmente desigual da poluição de acordo com a raça das
populações a ela mais expostas, e que nos idos de 1976-77 diversas negociações foram
realizadas, buscando estruturar coalizões que fizessem entrar na pauta das entidades
ambientalistas tradicionais o combate à localização de lixo tóxico e perigoso,
predominantemente, em áreas de concentração residencial de população negra.
111
Na ocasião, surgiu a percepção de que o critério racial estava fortemente presente
na escolha da localização do depósito daquela carga tóxica. Ocorreu, então, a
radicalização da luta, que resultou na prisão de 500 pessoas. Todavia, a população de
Afton era composta majoritariamente de afrodescendentes - 84% do total e o Condado de
Warren, possuía uma porcentagem significativa de 64% de afrodescendentes, enquanto o
Estado da Carolina do Norte respondia pelo percentual de 24%. Logo, diante de tais
evidências - que se mostravam mais do que meras coincidências, estreitaram-se as
convergências entre o movimento dos direitos civis e dos direitos ambientais (TROY,
1995, p. 278).
112
A partir desta pesquisa, evidenciou-se que a proporção de
residentes que pertencem a minorias étnicas em comunidades que
abrigam depósitos de resíduos perigosos é igual ao dobro da
proporção de minorias nas comunidades desprovidas de tais
instalações. O fator raça revelou-se mais fortemente correlacionado
com a distribuição locacional dos rejeitos perigosos do que o próprio
fator baixa renda. Portanto, embora os fatores raça e classe de renda
tenham se mostrado fortemente interligados, a raça apresentou-se como
um indicador mais potente da coincidência entre os locais onde as
pessoas vivem e onde os resíduos tóxicos são depositados. (sem
destaque no original).
113
Sublinhamos que, um pouco antes, em 1991, os seiscentos delegados presentes a
I Cúpula Nacional de Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor aprovaram os “17
princípios da justiça ambiental”, estabelecendo uma agenda nacional para redesenhar a
política ambiental estadunidense de modo que fosse incorporada a pauta das “minorias”,
as quais compunham-se das comunidades ameríndias, latinas, afro-americanas e asio-
americanas, tentando, desta forma, mudar o eixo de gravidade da atividade ambientalista
nos EUA (BRADEN, 1994, p. 10).
Muitos projetos sociais nas áreas centrais das cidades e áreas industriais
em várias partes do país têm chamado a atenção a respeito da
contaminação do ar, da pintura com chumbo, dos centros de
transferência do lixo municipal, dos dejetos tóxicos e outros perigos
ambientais que se concentram em bairros pobres ou habitados por
minorias raciais. Até muito recentemente a justiça ambiental como um
movimento organizado permaneceu limitado ao seu país de origem,
muito embora o ecologismo popular ou ecologismo dos pobres
constituam denominações aplicadas a movimentos do terceiro mundo
que lutam contra os impactos ambientais que ameaçam os pobres, que
constituem a ampla maioria da população em muitos países.
114
este considera que o ecologismo dos pobres é um movimento mais difuso e estendido em
nível mundial e que ambos podem ser entendidos como integrantes de uma só corrente e
que, nos EUA, um livro sobre o Movimento de Justiça Ambiental poderia ser facilmente
intitulado como “o ecologismo dos pobres e as minorias”, uma vez que esse movimento
luta em favor de grupos minoritários e contra o racismo ambiental no país.
115
Um conceito relacionado à justiça ambiental trazido pelos autores do artigo que
comentamos no presente momento é o do “ecologismo dos pobres” aplicado na esfera
rural e indígena. Mencionamos que a conexão explícita entre o Movimento de Justiça
Ambiental nos Estados Unidos e o ecologismo dos pobres foi estabelecida por Martinez-
Alier, 1997; Guha e Martinez-alier 1997, 1999; Varga et al., 2002, e cimentado após a
morte de Chico Mendes, em 1988,43 em sua luta contra o desmatamento no Brasil, e de
Ken Saro-Wiwa e seus companheiros de Ogoni no Níger Delta, em 1995, quando estes
lutavam contra a extração de petróleo e queima de gás pela Shell. Esse ecologismo dos
pobres se mostra politizado e reconhece a dialética existente entre o capitalismo
expandido e a acumulação em escala global.44
43
Infelizmente o Brasil continua sendo um dos países mais perigoso do mundo para ambientalistas com 50
mortes registradas em 2015, segundo um levantamento da ONG britânica Global Witness, ficando à frente
das Filipinas (33 mortes), Colômbia (26), Peru (12) e Nicarágua (12) também denunciados. No total, 185
pessoas perderam a vida no ano de 2014 defendendo suas terras e o meio ambiente em 16 países. Disponível
em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/brasil-o-pais-com-mais-assassinatos-de-
ambientalistas-no-mundo-diz-ong-19542977#ixzz4lDQZFopAstest>. Acesso em: 27 jun. 2017.
44
Tais tipos de resistência não se limitam aos pobres. Em meados da década de 1990 foram publicados
livros que analisavam a oposição às barragens (MCCULLY, 1996) e plantações de árvores (CARRERE e
LOHMANN 1996), enquanto Leonardo Boff' (1995) fazia as conexões entre pobreza e meio ambiente.
(MARTINEZ-ALLIER; LEAH; DEL BENE E SCHEIDEL, 2016, p. 01).
116
sejam, também, protagonistas na produção do conhecimento e não meramente objetos de
estudos (MARTINEZ-ALLIER; LEAH; DEL BENE E SCHEIDEL, 2016, p. 02).
45
Para mais detalhamentos sobre o Atlas da Justiça Ambiental é possível acessar o link: https://ejatlas.org/.
A plataforma está em inglês e não encontramos local para mudança de idioma o que parece se chocar um
pouco com o discurso da ecologia de saberes, haja vista o fato de que países latino-americanos não possuem
em sua esmagadora maioria o inglês como língua pátria e muitos de seus ativistas não tem uma formação
acadêmica formal. Acesso em: 27 de jun. de 2017.
117
adicionadas, conforme tabela a seguir. Assim, por exemplo, um conflito nascido de um
projeto de mineração de cobre seria classificado como mineral - minérios (1º nível),
embora também se relacione com o 2º nível de "captação de terras" e apresente
consequências sobre a água.
Em relação aos conflitos em áreas rurais, até abril de 2015 a maioria dos conflitos
em Ejatlas eram de áreas rurais - 63%. Interessante notarmos que o Movimento de Justiça
Ambiental dos EUA nasceu em áreas urbanas, ao passo que o Ejatlas concentra-se em
118
conflitos rurais em que diminuíram ou são negados o acesso a recursos ambientais locais
ou envolvem sua degradação, bem como a relação conflituosa com instituições
governamentais e corporações que podem vir a afetar as comunidades locais e seus meios
de subsistência.
Em relação aos atores sociais envolvidos nos conflitos, o artigo mostra através de
gráfico próprio, que os atores que mais frequentemente se mobilizam contra projetos são
grupos organizados localmente, e que os resultados preliminares mostram uma alta
ocorrência de casos envolvendo comunidades indígenas e tradicionais, além de grupos
etnicamente discriminados. O Ejatlas mostra uma preocupação com o recorte de gênero
e busca demonstrar o protagonismo das mulheres em conflitos ecológicos, apesar de
alertar que no gráfico que traz, essas não se encontram suficientemente representadas. A
seguir, reproduzimos a figura, conforme consta no artigo que ora comentamos:
46
Lembramos que a BHP Billiton é uma das responsáveis pela derramamento de rejeitos de mineração que
acabaram por ceifar a vida de 19 habitantes do distrito de Bento Ribeiro, no município de Mariana em
Minas Gerais e que se estendeu com sua lama tóxica por mais de 600 km ao longo do Rio Doce e que até
agora não possui nenhuma condenação nas esferas administrativas, cível e penal no país. O caso ficou
popularmente conhecido como “Caso Vale-Samarco” ou “Tragédia de Mariana” e é um dos maiores
“acidentes” ambientais já ocorridos no planeta e o maior acidente mundial com barragens em 100 anos.
Mais informações sobre o caso podem ser acessadas em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-01/desastre-em-mariana-e-o-maior-acidente-mundial-
com-barragens-em-100-anos>. ou no site do MPF: <http://www.mpf.mp.br>. que designou uma força-
tarefa própria para o caso. Acesso em: 26 de jun. de 2017.
119
(MARTINEZ-ALLIER; LEAH; DEL BENE E SCHEIDEL, 2016, p. 05).
120
Tabela 2 – Conceitos utilizados pelo Movimento de Justiça Ambiental Global
(MARTINEZ-ALLIER; LEAH; DEL BENE E SCHEIDEL, 2016, p. 07-08).
No Brasil, aparece o conceito de "desertos verdes" e que tem sua significação nas
plantações de eucalipto no Espírito Santo e outras regiões. Tal conceito emergiu através
121
do trabalho da Rede Alerta contra o deserto verde, em 1999, e revelou o conflito entre a
explosão de exportação de celulose e camponeses locais, pesquisadores e ativistas.
122
estão se espalhando geograficamente, globalizando suas reivindicações, compartilhando
recursos e tornando-se, cada vez mais, redesenhados entre si. Por fim, mencionam que o
Movimento Global para a Justiça Ambiental é formado, não apenas, por esses muitos
focos locais de resistência, mas também, por organizações intermediárias de base rural ou
urbana que desenvolveram seus próprios conceitos e vocabulários e que, tudo isso, parece
atestar a existência de um movimento global rural e urbano para o meio ambiente
(ALLIER; LEAH; DEL BENE E SCHEIDEL, 2016, p. 14).
47
Neste momento é necessário mencionarmos todo o protagonismo da Universidade Federal Fluminense,
principalmente na pessoa da professora Selene Herculano, bem como do próprio professor Wilson Madeira
Filho e do professor Napoleão Miranda, através de profícuo trabalho entre o ICHF – Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia e o PPGSD – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito na concretização
de tão importante acontecimento para o surgimento do Movimento de Justiça Ambiental no Brasil.
123
praticamente desconhecido, restando a impressão de que o termo Justiça Ambiental, nas
palavras do próprio Madeira Filho (2002, p.11):
O que se percebeu na época, foi que a luta pela construção de uma categoria
denominada como Justiça Ambiental estava sendo construída em seu sentido mais lato e,
não, como integrante de um poder com laivos discricionários como o Poder Judiciário,
em clara renúncia ao positivismo jurídico.
48
Na ocasião da obra que referenciamos, o professor Wilson Madeira Filho continuou informando que o
Movimento por Justiça ambiental no Brasil evitava o Direito também por uma estratégica questão de
conveniência, haja vista o Direito não ser muitas vezes reconhecido como ciência ou como um âmbito do
pensamento acadêmico, e ser confundido com os aportes ideológicos que consideram o Direito e suas
faculdades como sucursais do Poder Judiciário conservador e braço legalista do poder público. (
MADEIRA FILHO, 2002, p. 48).
124
Direito não esteve alijado do conceito de Justiça Ambiental, pois participou da militância,
não ocorrendo qualquer confusão com o Judiciário ou a máquina estatal, uma vez que em
casos, como o de MELA49 – Mães da Zona Leste de Los Angeles, um grupo feminino
havia sido derrotado em todas as instâncias e se reorganizou para provocar a mudança na
legislação e, assim, obter posterior vitória judicial. O que pareceu ficar claro à época é
que a Justiça Ambiental estadunidense angariou sucesso ao superar esse impasse entre
Direito e Movimentos Sociais, pois o Direito acabou por se tornar um parceiro das
reivindicações políticas, ao passo que a técnica jurídica fez emergir novas percepções de
fatos sociais e criar os devidos nexos de causalidade, como, por exemplo, as lesões
corporais em função de distúrbios causados por agrotóxicos, sua indenização,
demonstrando o nexo de causalidade entre a compra do veneno e o financiamento
bancário instituído para esse fim. Dessa forma, a Justiça ambiental passaria pela exigência
de uma responsabilidade social das empresas como cláusula de um contrato entre estas e
a sociedade (MADEIRA FILHO, 2002, p. 53).
Por fim, conclui Madeira Filho (2002, p. 53) que “Justiça Ambiental não evita o
Direito. Justiça ambiental é Direito. E o Direito é uma ciência incompleta que necessita
que as ciências sociais venham ao seu socorro”.50
Uma outra linha interpretativa sobre o conceito de justiça ambiental defende que
“para falar de justiça ambiental é importante falar de injustiça ambiental e isto tem a ver
com o fato de que certas populações são afetadas pelo que o desenvolvimento econômico
produz”, diz Marcelo Firpo Porto, coordenador da pesquisa do Mapa da Injustiça
Ambiental. “Além de sustentabilidade, é preciso haver justiça social, para que nenhum
49
Para mais informações consultar BULLARD, Robert (org). Confrontions environment Racism – voices
from the Grassroots. Boston: South End Press, 1996.
50
Uma interessante crítica proposta por MADEIRA FILHO (2002, p. 48) trata das tendências marxistas
que se pretendeu emprestar ao Movimento por Justiça Ambiental no Brasil, que parecia reproduzir o
“aparelhamento” de diversos movimentos sociais do país, clonando-os, via ambiente acadêmico, em uma
teorização sociológica que teria feito “coincidir” o conceito de conflitos socioambientais com o histórico
de lutas sindicais no país.
125
grupo seja desrespeitado em sua dignidade em nome do progresso econômico”,
completa.51
De acordo com Acselrad, Mello e Bezerra (2009, p. 47), no Brasil ainda são
recentes as pesquisas que buscam examinar, na forma de indicadores, a coincidência
existente entre áreas de degradação ambiental e locais de moradia de populações
despossuídas. Os autores em comento consideram que isso não pode correr de forma
diferenciada, quando se leva em conta o pensamento ecológico hegemônico, além de
parte da pesquisa acadêmica que não opera de forma articulada o tratamento das
condições ambientais e sociais.
51
Entrevista concedida por Marcelo Firpo Porto a Adriano Wild intitulada Pesquisador fala sobre
importância do Mapa da Injustiça Ambiental. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/portal-
ensp/informe/site/materia/detalhe/30657>. Acesso em: 25 jun. 2017.
52
Os conflitos podem envolver a disputa por terras indígenas, quilombolas e da reforma agrária com a
expansão do agronegócio. De acordo com Marcelo Firpo, até mesmo uma alternativa de geração energética
supostamente sustentável pode gerar injustiças ambientais, o pesquisador exemplifica citando o caso de
algumas localidades do Nordeste, como no Ceará, onde a construção e operação de parques eólicos
desestruturaram comunidades tradicionais e geraram diversos impactos socioambientais.
126
Continuando com Acselrad, Mello e Bezerra (2009, p. 48), observamos que os
mesmos questionam a ideia de que todos são igualmente afetados pelos efeitos da crise
ambiental ou a compreensão de que o risco ambiental é democrático, e consideram tal
percepção problemática, visto que referida percepção viabiliza o isolamento da dimensão
ambiental em relação às demais dimensões, excluindo do debate os cenários em que se
produzem e nos quais são sentidos os problemas ambientais53.
Outra obra que destacamos no Brasil é a organizada por Marcelo Firpo Porto,
Tânia Pacheco e Jean Pierre-Leroy e que trata da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil:
53
Além disso, segundo Acselrad (2010) ao identificar a todos como igualmente afetados, também se induz
a compreensão de que todos se apresentam homogeneamente como responsáveis pela produção dessa
realidade. Disso resulta que o problema assim apresentado direciona a solução nos exatos limites em que
foi definido, de modo a excluir as demais dimensões, em especial a social. Tal limitação conduz, portanto,
à elaboração de instrumentos e políticas públicas ambientais de amplitude reduzida. In: LEITE, José Rubens
Morato; FERREIRA, Heline Sivini; BORATTI, Larissa Verri (Orgs.). Estado de direito ambiental:
tendências. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 95.
54
BULLARD, R. D. Dumping in Dixie: Race, Class and Environmental Quality. San Francisco/Oxford:
Westview Press, 1994 apud ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília C.do A.; BEZERRA, Gustavo das
Neves. O que é justiça ambiental. p. 16.
127
o mapa dos conflitos55. No prefácio da obra, informa-se que os mapas foram criados com
base na vivência de movimentos sociais, populações tradicionais e comunidades
impactadas pelos projetos desenvolvimentistas e que utilizam como categorias de análise
as vulnerabilidades socioambientais e sua relação com a saúde coletiva, quando estes se
integram a alguns elementos da complexa cadeia de determinação da saúde –
especialmente entre os grupos populacionais que se situam à margem da inclusão cidadã.
Relatam que as informações detalhadas no mapa não constam da base de dados do IBGE
– Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ou do DATASUS – Dados do Sistema
Único de Saúde, e que o material georreferenciado foi construído tendo por base as
informações existentes sobre situações de conflitos vivenciadas por grupos populacionais
que têm sido atingidos por processos econômicos, além de intervenções que se relacionam
à geração de infraestrutura como energia, e que referidos processos econômicos acabam
por gerar rupturas e impactos nos sistemas sociais, econômicos e ambientais dos
territórios em que vivem.
55
Referida obra é inspirada no trabalho iniciado também em uma plataforma eletrônica e interativa que
pode ser acessada através do link: <http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/>.
56
Por mais que os autores informem não haver modelo semelhante no mundo, encontramos certas
semelhanças de referida base de dados georreferenciada no EJatlas, o qual efetivamente tem alcance global,
conforme apresentado nesse trabalho, bem como temos localmente o trabalho desenvolvido desde 2007
pela UFMG e que mapeou os conflitos ambientais do Estado de Minas Gerais e que pode ser acessado pelo
link: <http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/observatorio-de-conflitos-ambientais/mapa-dos-conflitos
ambientais>. Todavia, acreditamos que o pioneirismo nesse sistema de georreferenciamento partiu dos
organizadores brasileiros, que trazem na introdução da obra um breve histórico do surgimento das pesquisas
e encontros que culminaram com a atual base de dados modelada através de mapas, bem como apontam em
sua base de dados na internet como uma de suas páginas na rede mundial de computadores o próprio EJatlas.
128
vulnerabiliza, de forma diferenciada, determinadas parcelas da população em
determinadas localidades, e destaca que a expansão do agronegócio, do monocultivo e da
utilização de agrotóxicos influencia na migração entre campo e cidade, bem como no
conjunto da população que consome os alimentos contaminados.
Da abordagem acima descrita, destacamos dois pontos: um, é o que parece apontar
que, na leitura feita pelo autor acima, o atual modelo agroprodutivo seria insustentável e
que se trata de um discurso eivado das características contramajoritárias já esposadas ao
longo de várias partes deste trabalho, uma vez que questiona o atual modelo
agroprodutivo, bem como o sistema de produção de riquezas, de socialização dos dados,
entre outros.
Outro ponto que chamamos a atenção no mapa que analisamos informa que a
expansão do monocultivo no país é a principal atividade econômica geradora de conflitos
e injustiças ambientais no mapa, respondendo por cerca de 1/3 dos casos. Em relação à
percepção da amplitude das contaminações químicas e transfronteiriças, a obra traz
intrigante dado que dá conta da contaminação de ursos polares no ártico por DDT, por
exemplo (PORTO, et. al, p. 138).
129
entra em rota de colisão com povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos,
pescadores artesanais, pequenos produtores e grupos ambientalistas que buscam proteger
ecossistemas ameaçados, além da contaminação por agrotóxicos das populações
expostas, sobretudo os trabalhadores e moradores de áreas onde ocorre a pulverização
aérea (PORTO, et. al, p. 145-147).
Figura 10 – Página Inicial do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil.
Disponível em: <http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php>.
57
Citação retirada da obra de ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília C.do A.; BEZERRA, Gustavo das
Neves. O que é justiça ambiental. p. 07.
130
Mencionamos que tais citações, como a reproduzida pelo memorando acima,
parecem ofertar fortes indícios de que, realmente, exista desigualdade em termos de
proteção ambiental no planeta e de que é para as regiões pobres que se têm dirigido os
empreendimentos econômicos mais danosos em termos ambientais e ao traçarmos um
paralelo com a questão explorada neste trabalho, fica difícil não associarmos o mesmo
“espírito do memorando summers” presente em tratativas que tem feito nos países em
desenvolvimento como Brasil e Índia, berços do atual modelo agroprodutivo alocado em
inúmeros insumos químico-dependentes.
Próximos de finalizarmos esta seção, temos que as lutas por Justiça Ambiental,
tal como caracterizadas no caso brasileiro, parecem combinar com as palavras de
Acserald (2010, p. 114):
Acserald (2010, p. 114-115) prossegue sua ilação dizendo que ao ser feita a
ligação entre o discurso genérico sobre o futuro e as condições históricas concretas pelas
quais, no presente, se está definindo o futuro, é possível fazer a junção estratégica entre
justiça social e proteção ambiental, inclusive pela afirmação de que, para barrar a pressão
destrutiva sobre o ambiente de todos, é preciso começar protegendo os mais fracos e
questiona: “como identificar a pressão predatória exercida sobre os mais fracos? ora,
a “chantagem locacional dos investimentos” é o mecanismo central, nas condições de
liberalização hoje prevalecentes” através da imposição de riscos ambientais e de
trabalho às populações destituídas, uma vez que na ausência de políticas ambientais de
licenciamento e de fiscalização de atividades apropriadas e sem políticas sociais e de
emprego consistentes, as populações mais pobres e desorganizadas acabam por
131
sucumbir às promessas de emprego seja em qual condição for, e que a dinâmica desses
movimentos sugere, portanto, que a condição de destituição de certos grupos sociais pode
ser um elemento-chave a favorecer a rentabilização de investimentos em processos
poluentes e perigosos.
Pelo que colhemos até agora, sobre a percepção geral dos Movimentos por Justiça
Ambiental em sua amplitude, temos que os mecanismos de mercado trabalham no sentido
da produção da desigualdade ambiental - os mais baixos custos de localização de
instalações com resíduos tóxicos “coincidem” com as áreas onde os pobres moram e para
simbolizar de forma mais explícita o que parece ser uma das ideias mais coesas dos
diversos movimentos que empunham a bandeira da justiça ambiental, reproduzimos a
58
Para mais detalhes é possível acessar o filme “Pontal do Buriti - brincando na chuva de veneno”
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qHQdWwZcGlg>. Acesso em: 22 jun. 2017
59
O Ministério Público Estadual do Mato Grosso iniciou em 2012 um processo de investigação para
levantar possíveis causas que levaram ao alto índice de menores de idade como portadores de algum tipo
de deficiência na cidade de Campo Verde (140 km ao Sul de Cuiabá). Em levantamento preliminar feito
pelo projeto “Jornada da Inclusão” no ano de 2012, apontou-se que das 242 pessoas cadastradas como
portadoras de deficiência, 122 são menores de 18 anos. O Ministério Público investiga a relação entre o
índice de deficiências registrado e o uso indiscriminado de agrotóxico na cidade, uma vez que Campo Verde
é uma das cidades destaque na produção agrícola no Mato Grosso. Segundo o Ministério Público Estadual,
para realizar a investigação, serão consultados especialistas em agrotóxicos, médicos, além de visitas e
entrevistas aos portadores de deficientes. Será observado se as pessoas acometidas por deficiência residem
próximas a áreas de plantio. Também será solicitada uma análise da água consumida pelas pessoas que são
objeto de estudo. Além do levantamento das causas das deficiências, serão verificados aspectos
relacionados às condições em que essas pessoas vivem, se estão tendo acesso à educação, saúde, entre
outros direitos. “Pretendemos, também, fazer um levantamento sobre a situação dos idosos”, ressaltou o
promotor de Justiça responsável pela investigação. O caso da cidade de Lucas de Rio Verde que contaminou
o leite materno também está sendo investigado pelo Ministério Público Estadual. In: Mídia News.
Agrotóxico pode ter gerado deficiência em adolescentes. Disponível em:
<http://www.midianews.com.br/conteudo.php?sid=3&cid=132357>. Acesso em: 02 jul. 2017. A
investigação do MPE ainda não está concluída, tendo sido realizadas uma audiência pública em 2015, além
de ter sido criado um Fórum de Discussão e Combate aos Agrotóxicos, mas em termos de condenações ou
responsabilizações, nada de concreto ainda se realizou.
132
situação abaixo, narrada por Henri Acserald em seu artigo Justiça Ambiental – novas
articulações entre meio ambiente e democracia:
Para efeitos de conclusão do presente tópico, podemos imaginar que, caso a leitura
de realidade ofertada pelas propostas de Justiça Ambiental, assim como os dados que
serão acionados no próximo capítulo através de pesquisas técnico-científicas produzidas
pela ONU, OMS, Abrasco, Fiocruz, entre outros60, como propagadores institucionais,
estejam corretos, podemos supor que o atual modelo agroprodutivo parece, sim, ser
insustentável e comprometedor da solidariedade intergeracional de parcelas específicas
de populações residentes em locais específicos do planeta.
60
Trazemos aqui outro dado que simboliza um pouco do que pretendemos discutir e que informa que uma
pesquisa divulgada em 2006 pela Cruz Vermelha e pelo Grupo de Trabalho Ambiental dos Estados Unidos
a partir do sangue de cordões umbilicais apontou que os bebês começam a se contaminar ainda no ventre
da mãe, pois foram detectadas, nas amostras, substâncias tóxicas como derivados do petróleo, mercúrio e
pesticidas. Entre as cerca de 287 substâncias tóxicas detectadas, 180 causam câncer em seres humanos
ou animais, 271 são tóxicas para o cérebro e para o sistema nervoso, e 208 causam defeitos de
nascença ou desenvolvimento anormal.
133
Aliada à vulnerabilidade ambiental e social, seriam as crianças na primeira
infância, nossas presentes e futuras gerações, símbolos da perpetuação da humanidade
sobre o planeta - além de vulneráveis sociais e ambientais, vulneráveis intergeracionais?
Poderíamos considerar a categoria intergeracional como uma categoria de vulnerabilidade
a ser inserida e pensada pelos movimentos de Justiça Ambiental?
Por fim, encerramos esta seção com indagações que talvez sejam melhor aclaradas
por Ulrich Beck na sequência e questionamos se sua concepção de uma sociedade imersa
em riscos nos auxiliará. Será que a desigualdade ambiental sempre distancia ricos e
pobres? E em relação à primeira infância e futuras gerações: nascidos e não-nascidos, é
possível fazer tal separação? Acompanhemos o tópico a seguir.
134
No que se refere à proteção, o autor em comento distingue dois tipos: a proteção
civil61 e a proteção social e considera que o sentimento de insegurança se refere à
possibilidade de estar à mercê de qualquer eventualidade. Se o indivíduo não estiver
assegurado contra esses imprevistos, passaria a viver a insegurança.
O que podemos intuir, até o presente momento, é que a noção de risco parece estar
atrelada a própria modernidade. Desta feita, nos valemos da teoria da Sociedade de Risco,
que tem em Ulrich Beck um de seus principais idealizadores e que se insere no contexto
das proposições teóricas que procuram explicar as modificações ocorridas,
principalmente, a partir da segunda metade do século XX. Segundo Beck (2011. p.23)
{1986}: “Na modernidade tardia, a produção social da riqueza é acompanhada
sistematicamente pela produção social de riscos”.
61
A proteção civil que diz respeito aos bens e às pessoas em um estado de direito, já a proteção social se
relaciona aos riscos de doenças, aos acidentes, ao desemprego, à incapacidade de trabalho devido à idade
135
O mesmo autor continua explicando em sua obra que contra as ameaças da
natureza, a humanidade aprendeu a construir cabanas e guardar informações e
conhecimento, mas diante das ameaças que ele denomina como de segunda natureza,
absorvidas pelo sistema industrial, somos praticamente indefesos. Salienta Beck (2011,
[1986], p. 9-10) que diante de ameaças da segunda natureza, captadas pelo sistema
industrial, somos praticamente indefesos. Os perigos apresentam-se juntos ao cotidiano e
viajam com o vento, a água, escondendo-se com o que há de mais vital à própria vida –
ar, comida, roupa, objetos domésticos, atravessam barreiras controladas de proteção da
modernidade. Quando, depois do acidente, ações de defesa e prevenção já não cabem,
resta, aparentemente, uma única atividade: desmentir. Ação de apaziguamento que gera
medo e que, associada ao grau de suscetibilidade generalizada condenada à passividade,
alimenta sua agressividade. Essa atividade residual, diante do risco residual realmente
existente, encontra na inconcebilidade e imperceptibilidade do perigo seus cúmplices
mais eficazes.
Todavia, o que nos chama a atenção e nos leva a trazer o pensamento de Ulrich
Beck para o presente trabalho relaciona-se à forma como ele analisa a distribuição de
riquezas e de riscos no seio social e sua relação com o modelo agroprodutivo dominante,
que em alguns momentos parece se aproximar, e muito, das percepções dos Movimentos
de Justiça Ambiental estudados até agora, e em o outros, parece fazer leitura diversa da
mesma realidade por ambos investigada. As críticas tecidas pelo autor em comento
direcionam-se, também, para o fato de que os próprios argumentos críticos trazidos em
relação à tecnologia e indústria se mostram essencialmente tecnocráticos e naturalistas,
sem que ocorra a integração devida com as estruturas sociais de poder e distribuição das
burocracias, normas, racionalidades vigentes, bem como deixam escapar as
consequências sociais, políticas e culturais do risco da modernização.
136
Beck (2011, [1986], p. 29-30) ilustra o que acima mencionamos com um exemplo
que entendemos, por bem, transcrever62 e que assim diz:
A resposta oferecida por Beck (2011, [1986], p. 30) merece comentários, pois o
mesmo defende que talvez seja possível fazer a analogia e a seguinte distribuição:
[...] dois homens tem duas maçãs. Um come ambas. Logo, na média,
cada um comeu uma. Adaptada à distribuição de alimentos em
escala mundial, essa afirmação significaria: “na média”, todos os
seres humanos da Terra estão bem alimentados. O cinismo é
evidente nesse caso. Numa parte do planeta, as pessoas morrem de
fome, na outra, os efeitos decorrentes da sobrenutrição acabaram por se
transformar num ônus de primeira ordem. Pode ser que em relação a
poluentes e toxinas essa afirmação não seja cínica. Que, portanto, a
exposição média também seja a exposição real de todos os grupos
populacionais. Porém, temos certeza? Nãos será necessário, ao menos
para que essa afirmação seja defensável, saber quantas toxinas mais as
pessoas serão obrigadas a inalar e ingerir? Surpreendente é a
naturalidade com que se demanda pela “média”. Quem demanda a
“média” já está nesse modo excluindo as situações socialmente
desiguais de ameaça. Mas é justamente disto que não se tem
certeza? Existem talvez condições de vida e grupos para os quais o
teor de chumbo-e-todo-o-resto “na média inofensivo” represente
um risco de vida? A frase seguinte do laudo afirma: “somente nos
arredores de emissores industriais são encontradas por vezes
concentrações críticas de chumbo entre as crianças.” (sem destaque
no original).
A crítica feita por Ulrich Beck a relatórios, como o que ele questiona na citação
acima, estende-se aos laudos ambientais e de contaminação que, para ele, não costumam
inserir a diferenciação social em suas análises e destaca - quando se refere à menção das
crianças no relatório acima exemplificado, que esta diferença se tangencia por um critério
meramente etário – biologizante, e que não leva em conta peculiaridades regionais e que
percebe que o pensamento científico e social geral, em relação aos problemas ambientais,
62
Salientamos que esse trecho da tese terá um pouco mais de citações diretas do que os demais produzidos
até agora, pois consideramos que a maneira como Ulrich Beck formula algumas de suas proposições se
mostram tão agudas e precisas que talvez a paráfrase pudesse roubar-lhe a riqueza dos detalhes que o autor
busca exprimir com maestria em suas conceituações.
137
são considerados sob o prisma da natureza, tecnologia, medicina e economia, havendo
um déficit de pensamento social em um momento em que a sociedade se mostra altamente
desenvolvida e industrializada, e que nem mesmo os próprios sociólogos têm se dado
conta dessa ausência.
Beck (2011. [1986] p.31) defende que referidas análises sobre substâncias tóxicas
alocadas em categorias das ciências naturais, movimentam-se entre o falacioso discurso
de preocupações biológicas e sociais ou uma consideração da natureza e do meio
ambiente, que deixa de lado a preocupação de grupos de pessoas e os significados sociais
e culturais que possam vir a ser-lhes imputados. Ao mesmo tempo, não se considera que
as mesmas substâncias tóxicas podem vir a ter um significado inteiramente diferenciado
por conta de fatores como idade, sexo, hábitos alimentares, tipo de trabalho, níveis de
informação e educação, entre outros. Inclusive, diz o autor, que um dos problemas mais
graves é a investigação voltada, unicamente, para as substâncias tóxicas isoladas, e que
não levam em conta a concentração tóxica no ser humano.
138
sempre mais inócuas? (BECK, 2011, [1986], p. 31). (sem
destaque no original).
Tudo isso já havia sido ruim o bastante, mas, nesse episódio, o aspecto
mais misterioso e provavelmente mais significativo a longo prazo foi a
descoberta do exterminador de ervas daninhas 2,4D em alguns poços
e reservatórios do Arsenal. Certamente essa presença era o bastante
para explicar os danos às lavouras irrigadas com aquela água. Mas o
mistério estava no fato de que o Arsenal jamais fabricara 2,4D em
nenhum estágio de suas operações.
139
Continuando um pouco mais com Carson (2010, [1962], p. 54-55), a mesma traz
dados expostos de forma dramática e que buscam explicar um pouco do título de seu livro
“Primavera Silenciosa”, em que menciona a mortandade de inúmeros pássaros e,
portanto, o silenciar de seu canto durante a primavera estadunidense. Algumas percepções
da autora parecem corroborar as observações exaladas por Ulrich Beck mais de 20 anos
depois. Segundo ela:
Voltamos para Beck (2011, [1986], p. 33), que também utiliza um exemplo
representativo quando diz que:
Para Beck (2011, [1986], p. 33), exemplos como os citados por ele e até mesmo o
que colacionamos, podem nos remeter a duas reflexões: “primeiro, que riscos da
140
modernização emergem ao mesmo tempo vinculados espacialmente e desvinculadamente
com um alcance universal; e segundo, quão incalculáveis e imprevisíveis são os
intricados caminhos de seus efeitos nocivos.”
Todavia, para não nos alongarmos muito, nos concentraremos a partir de agora na
perspectiva Beckiana de riscos específicos de classe e globalização dos riscos
civilizacionais que oferecerão, em determinado momento, uma aproximação da
perspectiva dos Movimentos de Justiça Ambiental, estudados no tópico anterior e, em
outros momentos, um aparente e frontal afastamento.
141
Tipo, padrão e meios de distribuição de riscos diferenciam-se
sistematicamente daqueles da distribuição da riqueza. Isto não anula o
fato de que muitos riscos sejam distribuídos de um modo especificado
pela camada ou classe social. A história da distribuição de riscos
mostra que estes se atêm, assim como as riquezas, ao esquema de
classe – mas de modo inverso: as riquezas acumulam-se em cima,
os riscos embaixo. Assim, os riscos parecem reforçar, e não revogar, a
sociedade de classes.
142
se numa espécie de química alimentar implícita, numa espécie de cozinha do diabo com
pretensão minimizadora. Ainda assim, é muito provável que, em resposta às notícias de
contaminação na imprensa e na televisão, surjam hábitos de alimentação e de vida que se
orientem pela antiquimificação e que, em meio às camadas mais educadas e abastadas
ocorra a maior conscientização em relação à alimentação (BECK, 2011, [1986], p. 42).
143
industrial é acompanhada por um universalismo das ameaças,
independentemente dos lugares onde são produzidas: cadeias
alimentares interligam cada um a praticamente todos os demais da
face da Terra. Submersas, elas atravessam fronteiras. O teor de acidez
do ar carcome não apenas esculturas e tesouros artísticos, mas há muito
corroeu também os marcos de fronteira. Mesmo no Canadá acidificam-
se os mares, mesmo nos extremos setentrionais da Escandinávia
morrem as florestas. (sem destaque no original).
Desta feita, produz-se o que o autor denomina como “efeito bumerangue” e que é
explicado por Beck (2011, [1986], p. 44) da seguinte maneira:
Ulrich Beck parece estar ciente de vários pontos de tensão que englobam o atual
modelo agroprodutivo, pois já lemos aqui suas colocações sobre as retóricas de
desqualificação e ocultação de dados técnico-científicos; presenciamos sua percepção
acerca do risco da bioacumulação de produtos tóxicos e o quanto estes podem afetar de
forma desproprocional algumas populações mais vulneráveis; percebemos seu olhar para
145
com o futuro da humanidade; e, no que tange à utilização de agrotóxicos e a própria
realidade da Revolução Verde e seu discurso de combate à fome, Beck (2011, [1986], p.
50; 59) também faz interessantes ilações que reproduziremos abaixo:
Uma outra interessante passagem da obra de Beck (2011, [1986], p. 55-56) trata
da perseguição científica, a qual será melhor estudada no próximo capítulo. Assim diz a
citação:
146
importância social e política do conhecimento, e consequentemente do
acesso aos meios de forjar o conhecimento (ciência e pesquisa) e
disseminá-lo (meios de comunicação de massa). A sociedade do
risco, é nesse sentido, também a sociedade da ciência, da mídia e da
informação. Nela, escancaram-se assim as novas oposições entre
aqueles que produzem definições de risco e aqueles que as consomem.
Essas tensões, entre subtração do risco e comércio, produção e consumo
de definições de riscos, atravessam todos os âmbitos de atuação social.
Encontram-se aí as origens primárias das “disputas definitórias” em
torno da “extensão, do grau e da urgência dos riscos”.
No que tange a uma solidariedade global, Beck (2011, [1986], p. 57-58) também
traz alusiva consideração, que reproduzimos abaixo:
147
proposta por Ulrich Beck (2011, [1986], p. 59-60), começa a diferenciar-se a qualidade
da solidariedade, e o lugar do sistema axiológico da sociedade “desigual”, ou de classes,
é ocupado pelo sistema da sociedade “insegura” ou de risco. Assim, o sonho da sociedade
de classes seria fornecer acesso a todos que querem e devem compartilhar do bolo. A
meta da sociedade de risco, por seu turno, guia-se pela máxima: “todos devem ser
poupados do veneno”. A força motriz da sociedade de classes pode ser resumida na frase:
“tenho fome!” enquanto o movimento desencadeado com a emergência da sociedade de
risco, ao contrário, é expresso pela afirmação: “tenho medo!” A solidariedade da carência
de recursos foi substituída pela solidariedade do medo. O modelo da sociedade de risco
marca, nesse sentido, uma época social na qual a solidariedade, por medo, emerge e torna-
se uma força política.
148
3 “OS FILHOS” DA (R)EVOLUÇÃO EM CAMPO: agro(tech) ou agro(tóxico)?
Assim, este será o nosso campo técnico-científico de análise, o qual, depois, será
interrelacionado com as ações do MPF no GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR e
suas respectivas decisões judiciais.
150
apontamentos neste tópico, boa parte da pesquisa científica sobre o tema é subsidiada
pelas gigantes corporações do agrobusiness, que aparentam não pretender se oporem ou
se aprofundarem em discussões sobre segurança alimentar, proteção à saúde humana,
efeitos sobre a infância e similares, mas tão somente garantir o incremento das vendas e
a manutenção de seu modelo agroprodutivo como o único capaz de “saciar a fome do
mundo”.
63
A parte introdutória da obra, informa que a parceria conjunta com a ANA - Articulação Nacional de
Agroecologia e a RBJA - Rede Brasileira de Justiça Ambiental busca tratar da visão dos movimentos
sociais sobre esse processo e afirma que os textos apresentados ao longo do livro demonstram acurado e
minucioso cuidado com as fontes e referências, baseando-se em pareceres de pesquisas e documentos
oficiais para que não se abra espaço para a desqualificação rotineira feita por grupos econômicos e até
mesmo alguns cientistas quando da produção de dados por essas organizações.
A abordagem é interdisciplinar e trata de saúde, meio ambiente e agricultura e objetivou funcionar como
um guia para a articulação das redes de agroecologia, justiça e saúde ambiental, soberania alimentar e
economia solidária.
151
Nas palavras de Fernando Ferreira Carneiro, prefaciador da obra, trata-se de uma
produção considerada histórica e de leitura essencial, uma vez que ainda é reduzido o
material educativo produzido pelo setor público informando à população sobre os riscos
do uso dos agrotóxicos no Brasil, sendo o campo de produção de dados sobre o uso de
agrotóxicos no país hegemonizado por quem produz e que preconiza a ideia de um uso
seguro, fato mítico segundo os autores da obra.
152
Relatório tratando da temática do Direito Humano à Alimentação Adequada, o
qual foi amplamente noticiado nos mais diversos meios de comunicação de mídia
de massa com uma chamada inicial muito parecida e que dizia de forma geral que
a “ONU desmentia a necessidade da utilização de pesticidas para alimentar o
mundo”64, inclusive com disponibilização para os leitores do “link” para acesso
ao relatório que ainda não se encontra disponível em português, mas foi
publicizado nos 6 idiomas oficiais da ONU: inglês, francês, espanhol, árabe,
chinês e russo.
64
Seguem alguns links onde foram veiculadas as reportagens sobre o tema, o qual alcançou variadas
publicações nacionais e com diferentes orientações ideológicas e de pauta comunicativa. Relatório da
ONU denuncia “mito” de que pesticidas são essenciais para alimentar o mundo. Disponível em:
<http://www.theuniplanet.com/2017/03/relatorio-da-onu-denuncia-mito-de-que.html>. Acesso em: 09
mar. 2017. ONU desmente mito de que pesticidas são-necessários para alimentar população mundial.
Disponível em: <http://www.hypeness.com.br/2017/03/onu-desmente-mito-de-que-pesticidas-sao-
necessarios-para-alimentar-populacao-mundial/>. Acesso em: 09 mar. 2017. Necessidade de pesticidas
no combate à fome é um mito, diz ONU: Relatório sustenta que é possível alimentar as 9,6 bilhões de
pessoas que vão habitar a terra em 2050 sem o uso dessas substâncias. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/ciencia/necessidade-de-pesticidas-no-combate-a-fome-e-um-mito-diz-onu/>.
Acesso em: 09 mar. 2017. Pesticidas matam 200 mil pessoas por intoxicação aguda todo ano, alertam
especialistas. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pesticidas-matam-200-mil-pessoas-por-
intoxicacao-aguda-todo-ano-alertam-especialistas/>. Acesso em: 09 mar. 2017. ONU denuncia “mito”
sobre pesticida ser essencial para lavoura. Disponível em:
<https://catracalivre.com.br/geral/sustentavel/indicacao/onu-denuncia-mito-sobre-pesticida-ser-essencial-
para-lavoura/>. Acesso em: 09 mar. 2017.
153
Proteção Ambiental Internacional e Código Internacional de Condutas e Práticas não
vinculantes. A parte 04 trata dos desafios planetários diante do atual sistema
agroprodutivo com agrotóxicos, e na parte A trata dos distintos níveis de proteção e na
parte B de outros desafios. A quinta parte do relatório apresenta a agroecologia como
alternativa ao atual modelo extensivo de uso de pesticidas e a sexta e última parte trata
das conclusões e recomendações finais do relatório.
• Tribunal de Opinião Monsanto (2017): Outro documento extremamente crítico
aos efeitos de agrotóxicos e transgênicos na saúde humana e meio ambiente e o
atual sistema agroprodutivo dominante foi produzido pelo denominado “Tribunal
Internacional Monsanto” que pode ser considerado como um “Tribunal de
Opinião”. Os denominados “tribunais de opinião” não se enquadram na ordem
judicial de um Estado, podendo ser considerados como “tribunais
extraordinários", nascidos da determinação da sociedade civil que buscou a
iniciativa e participou ativamente.
65
Mais informações em: <http://pt.monsantotribunal.org/>.
66
Mais informações em: <http://permanentpeoplestribunal.org/>.
154
O início do Tribunal Monsanto67 ocorreu no dia 14 de outubro de 2016 em Haia,
Holanda e as sessões do Tribunal ocorreram nos dias 15 e 16 no Institute of Social Studies
- ISS. Cinco juízes internacionais ouviram cerca de 30 testemunhas e especialistas de 5
continentes. O parecer jurídico foi comunicado pelos juízes em 18 de abril de 2017 e
também se encontra comentado neste trabalho.
67
O Funcionamento do Tribunal operacionalizou-se através da utilização das seguintes diretrizes jurídicas:
Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, aprovados pelo Conselho
dos Direitos Humanos da ONU em junho de 2011 e Estatuto de Roma, que está na origem da criação do
Tribunal Penal Internacional (TPI), o qual é competente para julgar os autores presumidos de crimes de
genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. Os Princípios Orientadores
das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos de 2011 formularan da forma mais legítima no
plano internacional as responsabilidades das empresas no que tange aos direitos humanos e estabeleceram
que as empresas devem respeitar a totalidade dos direitos humanos, incluindo o direito à vida, o direito à
saúde e o direito a um ambiente saudável. Antes do evento, grupos de trabalho estudaram o impacto das
atividades da Monsanto nas seguintes seis áreas: direito a um ambiente saudável; direito à saúde; direito à
alimentação; liberdade de expressão; liberdade de investigação acadêmica; crime de ecocídio. Informação
disponível em: <http://pt.monsantotribunal.org/Como_>. Acesso em: 22 abr. 2017.
68
Por fim, colacionamos, de acordo com as informações do site do “Tribunal Internacional Monsanto” os
membros do Comitê de Organização. Temos como primeiro nome citado, Vandana Shiva , já mencionada
no primeiro capítulo deste trabalho e que é portadora de um discurso contramajoritário; Corinne Lepage,
advogada desde 1975 e especialista em questões ambientais, ex-ministra do Ambiente na França, ; Marie-
Monique Robin, jornalista, autora do documentário mais vendido no mundo, cujo livro tem o mesmo nome,
"O Mundo segundo a Monsanto”; Olivier De Schutter, Co-presidente do Painel Internacional de
Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (IPES-Food), professor na Universidade Católica da
Lovaina (Bélgica) e antigo Relator Especial da ONU sobre o Direito à Alimentação (2008-2014); Gilles-
Eric Séralini , professor de biologia molecular desde 1991 e pesquisador do Instituto de Biologia
Fundamental e Aplicada (IBFA) da Universidade de Caen; Hans Rudolf Herren, presidente e diretor-
executivo do Instituto Millenium e presidente-fundador da Biovision; Arnaud Apoteker, autor do livro “Du
poisson dans les fraises, Notre alimentation manipulée” e coordenador da campanha contra os OGMs do
grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia; Emilie Gaillard, professora de Direito Ambiental e Direitos
Humanos Internacionais na Faculdade de Ciências Políticas de Rennes (França) e autora de uma tese
155
• FAO (2014): Seguindo nossa abordagem, tratamos do relatório de 2014 da FAO,
que anunciou a saída do Brasil do Mapa da Fome mundial, todavia, não nos
ateremos a este aspecto da insegurança alimentar, mas aos resultados e abordagens
sobre o tema dos agrotóxicos na publicação.
• OMS e o Atlas sobre a saúde das crianças e o meio ambiente: “herdando um
mundo sustentável” (2017): Após 13 anos sem publicar o Atlas da Saúde das
Crianças e do Meio Ambiente, a OMS lançou em 2017, na data de 06 de março, a
versão atualizada do Atlas que informa que mais de 25% das mortes de crianças,
com menos de cinco anos são causadas por fatores ambientais como poluição,
falta de saneamento e uso de água imprópria para o consumo. Anualmente, 1,7
milhões de meninos e meninas nessa faixa etária morrem porque vivem em locais
insalubres, sendo exploradas, em tópico próprio do Atlas, as contaminações por
agrotóxicos na infância.
Salientamos, por fim, que referidas pesquisas têm, por vezes, um misto de caráter
técnico-científico e operativo, uma vez que alguns de seus subscritores são pesquisadores
com papel ativo na militância contra o atual sistema agroprodutivo alocado em produtos
químicos, conforme perceberemos na sequência deste capítulo.
intitulada "Gerações futuras e direito privado: para uma lei das gerações futuras"; Valerie Cabanes,
advogada especialista em direito internacional, com experiência em direito humanitário e direitos humanos;
Ronnie Cummins, coordenador global da campanha “Milhões contra a Monsanto” e coautor do livro
“Genetically Engineered Food: A Self-Defense Guide for Consumers”; Andre Leu, autor do livro, "The
Myths of Safe Pesticides", e presidente da IFOAM Organics Internacional, o órgão de cúpula mundial para
o setor orgânico e que agrega cerca de 800 organizações em 125 países.
156
partilhar da compreensão de que não existe um uso seguro de agrotóxicos para a saúde,
nutrição humana e meio ambiente de presentes e futuras gerações.
157
elaborado, o mapa abaixo, para mostrar o número de mortes por agrotóxicos no país entre
os anos de 1999 a 2009.
Mapa 1 – Brasil: Mortes por Agrotóxico de Uso Agrícola - por Circunstância (1999-2009)
(BOMBARDI, 2016, p. 11).
158
A obra capitaneada por Londres (2011) registra, semelhantemente a Bombardi
(2016), o fato de que a maior parte das intoxicações notificadas refere-se às tentativas de
suicídio e não à exposição aos venenos no ambiente de trabalho, o que seria motivador
da não evolução no número de casos registrados nos últimos dez anos, ao mesmo passo
em que informa que aumentou o consumo de venenos agrícolas no país, pois o Brasil
alcançou, em 2008, o recorde mundial do uso de agrotóxicos.69
Gráfico 2 – Evolução dos casos registrados de intoxicação humana por agrotóxicos no Brasil entre 1999 e 2008 –
Dados do Sinitox
(LONDRES, 2011, p. 40).
69
Segundo a obra que ora se comenta, na última década o uso de agrotóxicos no Brasil assumiu as
proporções mais assustadoras. Entre 2001 e 2008 a venda no país saltou de pouco mais de US$ 2 bilhões
para mais US$ 7 bilhões, quando alcançou-se a posição de maior consumidor mundial de venenos. Foram
986,5 mil toneladas de agrotóxicos aplicados. Em 2009 ampliou-se ainda mais o consumo e ultrapassou-se
a marca de 1 milhão de toneladas – o que representa nada menos que 5,2 kg de veneno por habitante! Dado
este que veremos mais adiante, continuam a crescer, conforme trará o Dossiê Abrasco (2015). Os dados
aqui colacionados são do próprio Sindag (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa
Agrícola), o sindicato das indústrias de agrotóxicos. (LONDRES, 2011, p. 19)
159
Gráfico 3 – Circunstância da Intoxicação (LONDRES, 2011, p. 40).
A obra de Londres (2011, p. 53) informa que há uma série de estudos que indicam
haver forte relação entre o uso de certos agrotóxicos e o alto índice de suicídios entre
agricultores, uma vez que algumas substâncias podem afetar o sistema nervoso central,
provocando transtornos psiquiátricos como ansiedade, irritabilidade, insônia ou sono
conturbado - com excesso de sonhos e/ou pesadelos, depressão e, muitas vezes, levar a
pessoa intoxicada ao ato extremo de eliminar a própria vida – comumente bebendo o
veneno usado na lavoura. A autora rememora algumas pesquisas emblemáticas sobre o
160
tema, entre elas destaca-se estudo de 1996 e que teve grande repercussão na imprensa
intitulado “Suicídio e Doença Mental em Venâncio Aires - RS: consequência do uso de
agrotóxicos organofosforados?”
A obra coordenada por Flávia Londres continua trazendo uma série de outras
informações sobre pesquisas que tratam da temática entre uso de agrotóxicos e suicídios.
Entre as informações e pesquisas apresentadas tem-se a referência de que, em fevereiro
de 2007, a revista Galileu publicou uma reportagem investigativa que buscava relacionar
o uso de agrotóxicos e os suicídios, divulgando, entre muitas outras informações, que
pesquisadores da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, da Universidade Estadual
de Campinas - UNICAMP e da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ pareciam
ter encontrado novos indícios de que o manganês, presente em alguns fungicidas, poderia
provocar danos à saúde humana muito mais graves do que os próprios organofosforados.
A mesma obra informa também que, em julho de 2010, o jornal Folha de São
Paulo publicou longa reportagem relatando casos em que fica evidente a relação entre os
161
agrotóxicos e os suicídios cometidos por agricultores de Fátima do Sul, no Mato Grosso
do Sul, município com destaque na produção de algodão, com intensivo uso de venenos,
em especial os organofosforados. Segundo a reportagem, em 2004 e 2005 um grupo de
pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS fez um
levantamento sobre os estados depressivos em 261 agricultores expostos a
organofosforados no município. Deles, 149 (57,1%) relataram algum sintoma após o uso
de agrotóxicos e 30 apresentaram distúrbios psiquiátricos menores. Três tentaram o
suicídio. (LONDRES, 2011, p. 52).
No Dossiê Abrasco (2015) os autores ressaltam, por seu turno, que, no Brasil, a
quantidade de sub-registros das intoxicações por agrotóxicos é muito grande, sendo esse
fator apontado como uma das grandes vulnerabilidades institucionais do país, entre outras
que se relacionam ao controle e monitoramento do uso de agrotóxicos em todo o território
nacional. Relatam os autores:
162
Os mesmos autores salientam que o Brasil não conta com um sistema de registros
eficiente, capaz de identificar especificamente os agrotóxicos envolvidos nos casos de
intoxicações agudas e crônicas.
163
agrotóxicos, bem como o elevado consumo destes produtos no país de forma muito
próxima as já apresentadas pelas pesquisas até aqui acionadas.
Gurgel (2017, p. 44), inclusive, utiliza uma terminologia parecida com a de Rachel
Carson quando trata os agrotóxicos como potenciais biocidas. Ela também faz
proposições parecidas com questionamentos feitos ao Tribunal Monsanto e menciona a
relação entre agrotóxicos e seu histórico como agentes de guerra, conforme trecho abaixo:
Gurgel (2017, p. 52) conclui seu artigo dizendo que o modelo produtivo baseado
no uso de insumos químicos tais como os agrotóxicos, revela-se insustentável e
incompatível com a vida, devendo ser substituído por práticas que privilegiem a proteção
da saúde e da vida como a agroecologia..
Sparovek (2017, p. 75), por sua vez, na mesma obra, diz em seu artigo que:
164
gráfico abaixo, no qual ela enumera uma diversidade de culturas marcadas pelo
monocultivo e que estão presentes na linha de frente do agrobusiness brasileiro.
Gráfico 5 – Brasil: uso de agrotóxicos por cultura (2009). (BOMBARDI, 2016, p. 24).
É possível notar que a cultura que mais utiliza agrotóxicos no país (em
termos gerais) é a soja. Percebe-se que a soja, sozinha, respondeu por
quase metade de todo o agrotóxico vendido no Brasil. Após a soja,
seguem milho e cana com o segundo e o terceiro lugares,
respectivamente. Vale lembrar que, em geral, o milho é utilizado como
cultura de rotação com a da soja. A soja e a cana praticamente
tiveram sua área de cultivo duplicada nos últimos anos, a soja
atingindo, mais de 22 milhões de hectares e a cana 10 milhões de
hectares. Importante relembrar que o Brasil é o segundo maior produtor
de soja e milho e primeiro em produção de cana, não é fortuita,
portanto, a conexão entre o agronegócio e uso de agrotóxicos, seja
pela dimensão destes cultivos, seja pelo modelo agrícola adotado.
165
lavouras, principalmente de herbicidas, fungicidas e inseticidas.
(IBGE/SIDRA, 1998- 2011; SINDAG, 2011). (sem destaque no
original).
O Dossiê informa que alguns alimentos adotados no cotidiano de boa parte dos
brasileiros (arroz, feijão e mandioca) continuam com a mesma área plantada, enquanto
soja, milho, sorgo e algodão tiveram aumentos significativos de área plantada, o que
parece corroborar o fato de que o monocultivo e o sistema agroindustrial de produção de
sementes é de fato algo tangível no país (ABRASCO, 2015, p. 51).
Gráfico 6 – Evolução da área plantada de arroz, feijão, mandioca, cana-de-açúcar, soja e milho, no Brasil, entre 1990
e 2014 (ABRASCO, 2015, p. 424).
166
Gráfico 7 – Participação das 13 maiores empresas de agrotóxicos nas vendas mundiais (BOMBARDI, 2016,
p. 27)
167
O Dossiê Abrasco, inclusive, menciona em tom de alerta, que dados mais recentes,
do ano de 2015, divulgados pelo Instituto Nacional de Câncer - INCA, informam que o
cidadão brasileiro consome, em média, 7,5 litros de veneno por ano em consequência da
utilização de agrotóxicos. No Rio Grande do Sul, este nível é ainda mais elevado,
chegando a 8,3 litros. Na região noroeste do Estado, é ainda pior, superando os 16 litros
por ano (ABRASCO, 2015, p. 50; 113).
Outro fato que nos chamou a atenção, quando da observação e análise das
pesquisas que ora comentamos, é a preocupação dos críticos do sistema monocultor e
agroquímico em buscar, em sua exposição científica, a apresentação de dados que
contemplem os rigorismos técnicos-científicos do campo onde atuam. Conforme já
comentamos e continuaremos a tecer considerações em momento oportuno, a disputa que
ora se opera é de ordem técnica e seu enfrentamento se dá de acordo com as regras do
campo em que estão inseridas. Isso explica a variedade de gráficos, números, mapas,
tabelas e similares que buscamos apresentar aqui de forma sucinta, mas que são vitais
para a melhor visualização da forma como são apresentados os elementos de disputas de
termos que englobam a temática que nos propomos a pesquisar, ou como diria Bourdieu
(2014, p. 32): “O paradoxo dos campos científicos, entretanto, é que eles produzem, ao
mesmo tempo, essas pulsões destrutivas e o controle dessas pulsões. Se você deseja
triunfar sobre um matemático, é preciso fazê-lo matematicamente pela demonstração ou
refutação.”
Quadro 4 – evolução no consumo de agrotóxicos e fertilizantes no Brasil entre os anos de 2002 e 2011.
(ABRASCO, 2015, p. 52).
168
calculado com base em informações divulgadas pelo Sindicato Nacional da Indústria de
Produtos para Defesa Agropecuária (SINDAG, 2009; 2011) e compreende o período de
2008 a 2011. Para o período de 2002 a 2007 foi feita estimativa, utilizando-se o consumo
médio em cada cultura por hectare, através da base nos dados divulgada pelo IBGE (2011)
e sobre a produção anual e em projeção elaborada pelo Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (BRASIL. MAPA, 2010). No tocante à quantidade de
fertilizantes químicos por hectare (kg/ha), foi feito o cálculo com base em dados
divulgados pela Associação Nacional para Difusão de Adubos (ANDA, 2011), sendo feita
especial referência pelos autores do Dossiê aos casos da soja (200 kg/ha), do milho (100
kg/ha) e do algodão (500 kg/ha). (DOSSIÊ ABRASCO (2015, p. 50).
169
Quadro 5 – quadro demonstrativo dos efeitos e/ou sintomas agudos dos efeitos crônicos dos agrotóxicos
(ABRASCO, 2015, p. 59).
170
Figura 11 – Agricultura e a agroindústria e seus impactos para a saúde da população e meio ambiente (ABRASCO, 2015, p. 110- 111).
171
Essa mesma preocupação com o meio ambiente e com a saúde do trabalhador
parece se mostrar em outras obras por nós pesquisadas, pois nas palavras da professora
Raquel Rigotto, revisora técnica da obra de Londres (2011) e colaboradora do artigo: “O
uso seguro de agrotóxicos é possível?”:
172
experiência profissional [...] O pulverizador costal, que é o
equipamento de aplicação que apresenta maior potencial de
exposição aos agrotóxicos, é o utilizado em 973 mil estabelecimentos.
As embalagens vazias são queimadas ou enterradas em 358 mil
estabelecimentos. (RIGOTTO, 2011, p. 51). (sem destaque no
original).
Corroborando o alerta emitido por Raquel Rigotto na obra organizada por Flávia
Londres, temos pesquisas como a de Abreu e Alonzo (2016), que em trabalho junto à
UNICAMP, têm realizado a análise da viabilidade do cumprimento das medidas ditas
como “seguras” para o uso de agrotóxicos no contexto socioeconômico da agricultura
familiar na cidade de Lavras/MG. Os pesquisadores utilizaram como método de estudo a
aplicação de questionário em 81 pequenas propriedades rurais do município de
Lavras/MG, em 2013, nos quais constatou-se que:
173
vazias são os principais motivos para a sua não realização; a lavagem
das vestimentas e EPIs contaminados é feita como atividade
doméstica sem infraestrutura de segurança. (ABREU; ALONZO,
2015. p. 01). (sem destaque no original).
Ainda que não nos prolonguemos muito no estudo de Abreu e Alonzo (2016),
apresentamos a conclusão dos pesquisadores, os quais afirmam que a tecnologia
agroquímica não pode ser utilizada de forma segura dentro do contexto geral de produção
da agricultura familiar.
Observamos que, ainda que não seja citado claramente o termo justiça ambiental,
podemos compreender que as críticas feitas pelos pesquisadores em comento se encaixam
em situações contempladas pelo Movimento de Justiça Ambiental em suas variadas
matizes.
174
violações do direito humano à alimentação adequada, indicando situação de insegurança
alimentar e a possibilidade de desenvolvimento de diversas doenças agudas e crônicas
(Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, 2012).
175
servem para analisar apenas a exposição a um princípio ativo ou produto formulado,
sendo que, na prática, as populações estão expostas a misturas de produtos tóxicos cujos
efeitos sinérgicos (ou de potencialização) são desconhecidos, ou não são levados em
consideração. Além da exposição mista, as vias de penetração no organismo também são
variadas, podendo ser oral, inalatória e/ou dérmica, simultaneamente. (ABRASCO, 2015,
p. 73).
Outro ponto que parece preocupar os autores do Dossiê trata do fato de que os
desenhos experimentais com animais70 de laboratório que verificam a toxicidade de um
agrotóxico são realizados utilizando uma única via de exposição em cada estudo:
inalatória, oral ou dérmica. Nas palavras dos autores: “Trata-se, pois, de mais uma
70
Mencione-se ainda que em um dado preocupante, relatado pelo promotor de Justiça do Ministério Público
do Rio Grande do Sul em Catuípe, Nilton Kasctin dos Santos, o mesmo informa que os testes de agrotóxicos
torturam animais, mas são incapazes de mensurar seu real perigo à saúde humana e ao meio ambiente.
Como exemplo é o caso do Teste Draize que consiste em aplicar a substância química nos olhos ou na pele
(raspada) de animais para medir a toxicidade. Principalmente coelhos (porque têm olhos grandes e
salientes), são amarrados em um instrumento fixo, ficando apenas com a cabeça para fora. O veneno a ser
testado é pingado de quando em quando dentro dos olhos (mantidos abertos com grampos ou fitas adesivas).
E também pelo método LD50, o agrotóxico é ministrado (via oral ou venosa) aos poucos a um grupo de
animais (cães, macacos, coelhos, ratos etc.), até que morram 50%. Todo o grupo, normalmente em torno
de 200 indivíduos, sofre longo processo de tortura, definhando lentamente até a morte. Essa forma cruel de
experiência científica foi inventada em 1927 e até hoje é utilizada em larga escala pela indústria química.
176
limitação dos métodos experimentais e das extrapolações de resultados para situações
descontextualizadas no tocante à realidade das exposições humanas” (ABRASCO,
2015, p. 74) e que não encontramos similaridade nos outros estudos apontados na
pesquisa em relação a essa abordagem específica.
Se, por um lado, parecemos ter aqueles que desejam conservar o status quo das
Revoluções verde, genética e biofortificação, outros grupos parecem querer transformar
estruturas nevrálgicas desta revolução agroprodutiva, pois demonstram em suas pesquisas
dúvidas quanto a própria segurança no uso dos agrotóxicos, além de questionarem a
incidência dos efeitos dos “filhos da revolução” sobre grupos vulneráveis como
71
Os autores do dossiê chamam a atenção para as plantas transgênicas as quais não dispensam o uso de
agrotóxicos em sua produção, ainda que seu discurso inicial dispusesse que seria uma tecnologia para inibir
o uso de agrotóxicos, pois no caso da soja Roundup Ready® tolerante ao glifosato, por exemplo, isso não
corresponde à verdade, pois o seu cultivo induz ao maior consumo desse herbicida. O glifosato representa,
sozinho, em torno de 40% do consumo de agrotóxicos no Brasil. Também se observa o fenômeno de
resistência a esse veneno das plantas não desejadas, exigindo maior quantidade de sua aplicação e
associação com outros agrotóxicos. Além disso, no processo de colheita dessa soja transgênica são
utilizados, como dessecante/maturador, outros herbicidas extremamente tóxicos, como o paraquat, o diquat
e o 2,4-D. (ABRASCO, 2015, p. 82).
177
trabalhadores rurais, mulheres e crianças, os quais acabam por receber doses
desproporcionais de dano – (in)justiça ambiental, sem mencionarmos os riscos
demonstrados em tais pesquisas e que parecem querer alertar para um potencial
compartilhamento mundial de risco em toda a sociedade.
72
Segundo os autores da pesquisa, a mesma foi realizada no banco de dados da Plataforma Lattes do CNPq,
porque a estrutura de financiamento da pesquisa pública brasileira é fortemente baseada nessa ferramenta,
principalmente na auferição da produção acadêmica de um pesquisador. Desse modo, foi necessário
produzir um mecanismo de extração que acessou cada currículo, e dele tentou obter informações relevantes.
Como a marcação semântica dos documentos HTML gerados pela plataforma é quase inexistente, alertam
que pode ter havido falhas na extração de alguns dados e que a ferramenta desenvolvida, juntamente com
seu código fonte está disponível na versão virtual deste dossiê (www.greco.ppgi.ufrj.br/ DossieVirtual). Na
obtenção dos dados, os autores explicam que, primeiramente, foi realizada uma busca entre os currículos
dos pesquisadores/pesquisadoras com título de doutor, utilizando-se as palavras-chave agrotóxico,
defensivo agrícola, pesticida, praguicida. Para que esses currículos fossem considerados dentro do tema
“agrotóxicos”, os seguintes termos também foram buscados: herbicida, fungicida, inseticida, pulveriza,
controle, praga, controle, aplicação, calda, pesticide, organofosforado, piretroide, organoclorado,
carbamato, carbamate, organofosforado (organophosphate), organoclorado (organochlorine), piretroide
(pyrethroid). Posteriormente, foram anotadas as ocorrências dos termos acima e das seguintes palavras:
toxicidade, estudo experimental, estudo epidemiológico, saúde do trabalhador, exposição ambiental,
toxicologia ambiental, monitoramento de resíduo, alimento, solo, água, toxicidade aguda, neurotoxicidade,
imunotoxicidade, carcinogenicidade, mutagenicidade, teratogenicidade, desregulador endócrino. No
levantamento, foram encontrados 4.896 currículos de pesquisadores brasileiros que publicaram artigos,
capítulos de livro, resumos e correlatos. A figura 11, colacionada neste trabalho apresenta a distribuição
desses pesquisadores nas regiões brasileiras.Dentre as palavras que são utilizadas como sinônimos para o
termo agrotóxico definido na legislação brasileira, as mais citadas foram: agrotóxico (60% dos
pesquisadores), pesticida (39%), defensivo agrícola (19%) e praguicida (6%). A maioria dos currículos cita
o termo agrotóxico, porém 34% utilizaram exclusivamente termos que não estão citados na Lei n.7.802, de
1989, que define agrotóxico. (ABRASCO, 2015, p. 236-237).
178
Figura 12 – Localização dos pesquisadores que citaram agrotóxico, defensivo agrícola ou pesticida em seu currículo
lattes.
O dossiê cita como fonte o endereço eletrônico: <http://www.greco.ppgi.ufrj.br/DossieVirtual>.
(ABRASCO, 2015, p. 237).
Figura 13 – Distribuição, por estados do Brasil, dos pesquisadores que citaram agrotóxico, defensivo agrícola ou
pesticida em seu currículo lattes.
179
(ABRASCO, 2015, p. 238).
Gráfico 8 – Distribuição por região de pesquisadores brasileiros que citaram em seus currículos algum tipo de efeito
crônico de agrotóxico (%)
(ABRASCO, 2015, p. 242).
Notamos pelo mapeamento feito pelos pesquisadores que eles buscam revelar o
pequeno número de pesquisadores em regiões do agronegócio do país, o pequeno número
de pesquisadores que tratam do trabalhador rural, toxicidade de agrotóxicos ou de
questões afetas ao meio ambiente.
181
Sem falsa modéstia, a Abrasco sabe que o nosso dossiê colocou esse
debate – a partir do lugar de uma ciência não subordinada – na
agenda nacional e latino-americana. O dossiê mostrou significativa
potência para a produção de conhecimentos em processo de diálogos e
convergências de saberes, exercitando a ecologia de saberes, um
caminho que reinstala o desejo que esteve presente na 8ª Conferência
Nacional de Saúde em 1986 e que pode ser sintetizado na definição da
saúde como direito humano. A identificação de numerosos estudos
que comprovam os graves e diversificados danos à saúde
provocados por agrotóxicos impulsiona esta iniciativa. Constatar a
amplitude da população à qual o risco é imposto sublinha a sua
relevância: trabalhadores das fábricas de agrotóxicos, da agricultura, da
saúde pública e de outros setores; população do entorno das fábricas e
das áreas agrícolas; os consumidores de alimentos contaminados – ou
seja, quase toda a população, como evidenciam os dados oficiais.
(ABRASCO, 2015, Apresentação). (sem destaque no original).
182
sobre isso? O que tem sido feito sobre os outros alimentos
contaminados? (ABRASCO, 2015, p. 476-477). (sem destaque no
original).
Pela citação acima e por outros trechos da seção final do Dossiê, parece-nos que
seus autores se mostram preocupados com o modo como a Anvisa tem abordado a
relevância das contaminações, pois, diferentemente do observado nos relatórios
anteriores a 2013, o tom crítico e protetor da saúde pública desapareceu no último
relatório divulgado (ABRASCO, 2015, p. 477).
[...]
183
pesquisadores de universidades públicas; possui pessoas que atuam como propagadoras
– ANA e RBJA; colaciona casos em que os meios de comunicação deram espaço para
tratar da relação entre saúde e agrotóxicos – Folha de São Paulo, Revista Galileu.
Ao mesmo tempo, ressaltamos o que Bourdieu nos fala em sua obra “Os usos
sociais da ciência”, pois percebemos que os críticos técnico-científicos aos agrotóxicos
parecem cair na tentação de uma pretensa construção de uma ciência pura e autônoma, o
que, segundo o autor em comento:
73
Se você é pobre, provavelmente sua vida não será muito longa. (tradução livre).
184
justiça ambiental e risco, além de outros termos e temas que se mostrarem pertinentes à
compreensão do tema que estudamos.
Outro ponto que se destaca nos presentes estudos se relaciona à menção das
questões legais e de potenciais violações, bem como propostas para que soluções globais
e jurídicas possam vir a ser executadas. Semelhante acesso ao campo jurídico só foi
possível de verificar-se, de forma mais clara, nas pesquisas nacionais, mais
especificamente no artigo para o Greenpeace, de autoria de Karen Friederich (2017, p.
58-67), no qual ela, mesmo sendo biomédica e pesquisadora da área de saúde pública da
Fiocruz, faz menções a violações da lei de registro de agrotóxicos, direito humano à
alimentação adequada e saúde e meio ambiente equilibrado, além de concluir em seu
artigo que existe uma fragilidade na legislação brasileira.
74
Corroborando as afirmações feitas, o relatório apresenta a FAO, OMS e o PNUMA como fontes de
pesquisa, conforme referências a seguir, as quais também podem ser acessadas no relatório original em
espanhol, na página 3: 1- Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la Agricultura (FAO)
y Organización Mundial de la Salud (OMS): International Code of Conduct on Pesticides Management:
Guidelines on Highly Hazardous Pesticides (Roma, 2016), pág. vi. En el informe, los autores examinan
185
É interessante notarmos que o argumento das subnotificações e contaminações é
trazido agora por uma instituição do porte da ONU, que é criticada, por exemplo, na
pesquisa de Flávia Londres (2011, p. 17-18) por ter trabalhado através da FAO e do Banco
Mundial como promotora da difusão do pacote tecnológico da Revolução Verde.
Estaríamos diante de uma quebra institucional entre setores do agronegócio e a ONU,
FAO e similares? Caso positivo, o que geraria essa ruptura?
O relatório continua dizendo que existem efeitos adversos no uso dos praguicidas
mas que se mostra difícil demonstrar a existência de um vínculo definitivo entre a
exposição a agrotóxicos e o surgimento de doenças, mas explica que essa dificuldade
advém da negação sistemática por parte da agroindústria dos danos infligidos pelos
produtos por elas produzidos e comercializados, além das potentes e agressivas táticas de
marketing que são muitas vezes antiéticas e que permanecem trabalhando em prol da
negação dos danos dos agrotóxicos ao meio ambiente e à saúde humana.
Nessa hora, lembramos de que o Dossiê Abrasco (2015, p. 28-34) traz em suas
páginas o alerta sobre as dificuldades de pesquisa e divulgação dos dados, pois os
cientistas não comprometidos com o agronegócio padecem de perseguições através de
estratégicas retóricas de desqualificação, ocultação e justificação.
únicamente los plaguicidas empleados en la agricultura y no los denominados plaguicidas “con fines de
salud pública” empleados en el control de enfermedades. 2- Måns Svensson et al., “Migrant Agricultural
Workers and Their Socio‐Economic, Occupational and Health Conditions – A Literature Review”,
Universidad de Lund (1 de enero de 2013). 3- Lynn Goldmann, Intoxicación por plaguicidas en niños:
Información para la gestión y la acción (Ginebra, FAO, Programa de las Naciones Unidas para el Medio
Ambiente (PNUMA) y OMS, 2004), pág. Site da FAO.
186
humano à alimentação adequada e o direito à saúde e que os Estados devem proteger os
grupos vulneráveis nesses referidos direitos e citam como grupos vulneráveis os
trabalhadores rurais, as comunidades agrícolas, as crianças e mulheres grávidas (ONU,
2017, p. 04).
A parte introdutória do relatório vai sendo finalizada com a afirmação, por parte
do relator, de que utilizando de forma mínima os agrotóxicos, ou mesmo não utilizando,
é possível produzir alimentos mais saudáveis e ricos em nutrientes e com maiores
rendimentos a longo prazo e sem contaminar os recursos ambientais e a saúde humana e
sem violar o direito humano à alimentação adequada e que é preciso fazer essa transição
para práticas agrícolas sustentáveis.
187
se através da realização do Tribunal, responsabilizar referida empresa por violações aos
direitos humanos, crimes contra a humanidade e ecocídio.75
75
O Tribunal Penal Internacional decidiu, no final do ano de 2016, reconhecer o ecocídio como crime
contra a humanidade. O termo ecocídio serve para designar a destruição em larga escala do meio ambiente.
O novo delito, de âmbito mundial, vem ganhando adeptos na seara do Direito Penal Internacional e entre
advogados e especialistas interessados em criminalizar as condutas que sejam agressivas ao meio ambiente.
Com o novo dispositivo, em caso de ecocídio comprovado, as vítimas terão a possibilidade de entrar com
um recurso internacional para obrigar os autores do crime, sejam empresas ou chefes de Estado e
autoridades, a pagar por danos morais ou econômicos. A responsabilidade direta e penas de prisão podem
ser emitidas, no caso de países signatários do Tribunal Penal Internacional, mas a sentença que caracteriza
o ecocídio deve ser votada por, no mínimo, um terço dos seus membros. O Brasil aceita a jurisdição do
TPI. CONJUR. Tribunal Penal Internacional reconhece "ecocídio" como crime contra a humanidade.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-fev-12/tpi-reconhece-ecocidio-crime-humanidade>.
Acesso em: 22 abr. 2017.
188
de monitoramento e matriz de indicadores:
189
Observamos pelo quadro acima exposto que o sistema de monitoramento de SAN,
em suas matrizes de indicadores, apresentam pontos de convergência com o tema da
contaminação de agrotóxicos, como o item 1.2, que trata da quantidade produzida em
toneladas de verduras e legumes, segundo o uso de agrotóxicos, e o item 5.9, que trata do
alimento seguro e informa no seu subitem 5.9.1 a contaminação de alimentos por
agrotóxicos e a porcentagem de amostras irregulares (FAO, 2014, p. 31-32). Percebemos
que as referências aos agrotóxicos não são contundentes, apesar da consciência do embate
entre agronegócio e agricultores familiares no país e preocupações com temas correlatos
às contaminações como a soberania alimentar.
O relatório também trata dos impactos ambientais nos animais não-humanos e cita
o caso do desaparecimento de abelhas em todo o mundo e que pode ser comprometedor
da polinização de cultivos diversos e sua relação com a utilização de inseticidas.
76
Mais informações em Centro Internacional de Investigaciones sobre el Cáncer, “Evaluation of five
organophosphate insecticides and herbicides”, monografías, vol. 112 (20 de marzo de 2015); y Daniel Cressey, “Widely
used herbicide linked to cancer”, Nature News (24 de marzo de 2015) (ONU, 2017).
190
Em outro momento, que destacamos no relatório, é tratada da gestão do ciclo de
vida e dos impactos dos agrotóxicos. Assim como o Dossiê Abrasco demonstrou, em
forma de figura, a série de malefícios provocados, o documento da ONU tece alguns
apontamentos interessantes, como a rememoração da catástrofe de Bhopal na Índia.
Segundo estudos epidemiológicos, o documento da ONU explica que, pouco depois do
acidente, ocorreram aumentos significativos no número de abortos e mortalidade de
bebês, como concepção de fetos com menor peso, anomalias cromossômicas, deficiências
de aprendizagens e desenvolvimentos de enfermidades respiratórias (ONU, 2017, p. 20).
O mesmo documento informa que há acusações que pesam sobre essas empresas
de que elas estariam “comprando” cientistas para que estes reformulem os aspectos
chaves que envolvem os debates relativos ao setor. Outra prática flagrante desse
conglomerado de empresas é a de se infiltrar nos organismos federais de regulação dos
países, no movimento conhecido por “porta giratória”, dinâmica na qual os empregados
se alternam entre os setores chaves de decisão na esfera pública e privada, ou seja, há
191
alternância entre os órgãos reguladores da indústria de agrotóxicos e as próprias indústrias
fabricantes. 77
O documento traz também que os cientistas que decidem revelar os riscos para a
saúde e meio ambiente de alguns dos produtos comercializados por essas gigantes
corporações do setor agroprodutivo passam a enfrentar graves ameaças à sua reputação,
e até mesmo para si. São citadas, como exemplo, as ações coletivas da Novartis
(Syngenta, após), produtora de atrazina, que financiou uma campanha para
desqualificação dos cientistas cujos estudos sugeriram adversidades para a saúde e
impactos ambientais negativos de referido pesticida.78
77
Para maior ilustração desta prática sugere-se o documentário “o mundo segundo Monsanto”.
78
Para maiores informações, Rachel Aviv, “A Valuable Reputation”, The New Yorker, 10 de febrero de
2014 e Thomas O. McGarity y Wendy Elizabeth Wagner, Bending Science: How Special Interests Corrupt
Public Health Research (Harvard University Press, 2012).
192
algumas práticas da Monsanto resultaram em condenações judiciais para a empresa, e
entre as más práticas, podem ser citadas: plantações ilegais de OGMs, estudos que são
evasivos ou distorcem os impactos negativos do Roundup ao limitar as análises somente
ao glifosato, quando o produto é uma combinação de substâncias, além das campanhas
expressivas de desqualificação dos resultados dos estudos científicos independentes. Para
o parecer do Tribunal, esse tipo de estratégia criada pela Monsanto levou, por exemplo, à
remoção de um estudo publicado em uma revista internacional e a perda do emprego de
um cientista em uma agência de saúde governamental. (TRIBUNAL MONSANTO, 2017,
p. 45)
193
Monsanto busca, em seu parecer, se municiar de elementos que possam, inclusive,
criminalizar referido modelo agroprodutivo como conduta ecocida ou apontam que o
Tribunal considera que o modelo agroindustrial dominante merece severas críticas e que
a agroecologia é um modelo alternativo e que respeita o direito humano à alimentação
adequada. (TRIBUNAL MONSANTO, 2017, Sumário, p. 01-02).
Em relação às conclusões, o relatório da ONU enfatiza que, pelo que foi possível
colher do presente documento, não existe falta de legislação nacional e internacional em
relação ao tema, todavia os instrumentos legais e normativos hoje existentes não têm se
mostrado aptos a proteger os seres humanos e o meio ambiente do perigo trazido pelos
pesticidas, seja pela falta de aplicação, ou implementação efetiva do princípio da
precaução. Outro fator apontado trata da ineficiência das legislações para tratarem das
demandas transfronteiriças e empresarias que englobam o mercado global de pesticidas e
citam como exemplo a prática generalizada de exportar pesticidas já proibidos em
determinadas partes do planeta para países em desenvolvimento. Para a resolução dessa
problemática, apontam como conclusão a utilização dos mecanismos presentes nas
legislações de direitos humanos para suprimir as lacunas e deficiências já apontadas e que
precisam ser urgentemente enfrentadas (ONU, 2017, p. 24-25).
Nas mesmas conclusões, o relatório da ONU aponta novamente que mais do que
proibir ou regulamentar a utilização de determinados pesticidas, o método mais eficaz de
longo prazo para reduzir a exposição a esses produtos tóxicos é afastar-se no atual modelo
agroprodutivo.
194
O documento também traz as palavras do Diretor-Geral da FAO que fala que se
chegou a um ponto de inflexão na agricultura e que o modelo atualmente dominante de
produção agrícola é extremamente problemático, não apenas por conta dos danos
causados pelos agrotóxicos, mas também por seus efeitos nas alterações climáticas, perda
da biodiversidade e incapacidade de garantir a soberania alimentar dos povos. Para que o
direito à alimentação chegue ao seu pleno potencial é preciso que seja tratada de forma
interligada esse conjunto de fatores e que os esforços para combater a toxicidade dos
agrotóxicos só será bem sucedida se abordar os fatores ecológicos, econômicos e sociais
que são incorporados pelas políticas agrícolas e que devem estar articulados aos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável, sendo necessária a vontade política para reavaliar e
desafiar os interesses, incentivos e relações de poder que mantém a agricultura industrial
dependente dos agroquímicos.79
79
Panel Internacional de Expertos sobre Sistemas Alimentarios Sostenibles, From Uniformity to Diversity,
(ONU, 2017, p. 6).
195
proteção adequada capazes de salvaguardar mulheres grávidas e crianças, além de outros
grupos particularmente sensíveis à exposição a agrotóxicos; que sejam financiados
estudos científicos capazes de abranger de forma ampla os possíveis efeitos para a saúde
dos pesticidas, incluindo a exposição combinada e múltipla de agrotóxicos ao longo do
tempo; que seja garantida uma análise regular e rigorosa dos alimentos e bebidas para
determinar os níveis de resíduos perigosos nos alimentos e bebidas, sendo enfatizados os
alimentos para o público infantil e gestantes e que referidas informações sejam
publicizadas de forma adequada para a população em geral; organizar programas de
treinamento para agricultores para conscientizá-los sobre os efeitos nocivos dos
agrotóxicos e mostrar-lhes métodos alternativos de produção; regular as corporações de
modo que estas respeitem os direitos humanos e evitem danos ambientais durante todo o
ciclo de vida dos pesticidas; imposição de sanções às empresas que inventem provas ou
difundam informações errôneas sobre os riscos para a saúde e meio ambiente de seus
produtos; incentivar a produção orgânica de alimentos mediante subsídios e assistência
financeira e técnica e, ao mesmo tempo, eliminar os subsídios aos agrotóxicos e em seu
lugar taxar com impostos os agroquímicos e criar tarifas de importação e pagamento de
taxas pela utilização de agrotóxicos (ONU, 2017, p. 26-27).
196
bem como têm um impacto negativo no direito à alimentação adequada e que as atividades
da Monsanto afetam a disponibilidade de alimentos para indivíduos e comunidades e que
interferem na soberania alimentar dos indivíduos e comunidades com suas sementes
geneticamente modificadas, que são custeadas pelos agricultores sempre, que ameaçam a
biodiversidade e que a contaminação genética dos campos tem forçado os agricultores
ao pagamento de royalties.
O glifosato também não deixa de ser mencionado pelo Tribunal, pois o Roundup
é considerado por alguns pesquisadores como um produto cancerígeno enquanto outros
relatórios, como o da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar – EFSA (em inglês),
197
concluem exatamente o oposto. Em um parecer emitido em 15 de março de 2017 e com
relação à classificação do glifosato, a Agência Europeia de substâncias e produtos
químicos – ECHA (em inglês) estimou que o glifosato não pode ser classificado como
cancerígeno, mutagênico ou tóxico para a reprodução.
O Tribunal, todavia, enfatiza que essa classificação não leva em conta os riscos da
exposição a resíduos presente nos alimentos, água potável e até na urina humana.
198
Vietnã e as consequências para a saúde humana e para o meio ambiente. O Tribunal
entendeu que caso o crime de ecocídio fosse adicionado à Legislação Internacional, os
fatos relatados poderiam ser enfrentados pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional
– TPI. (TRIBUNAL MONSANTO, 2017, Sumário, p. 5).80
Após esses relatos, relembramo-nos do capítulo que trata dos contexto histórico-
evolutivo da Revolução Verde e o quanto alguns pesquisadores afirmam que a
mecanização da agricultura, sua instrumentalização científica e tecnológica acabou por
servir como local de escoamento e absorção da técnica bélica quando já não mais existiam
guerras mundiais a serem travadas, não entre nações, pois agora a guerra mundial era
contra o inimigo comum chamado fome.
80
Suspeitamos que a inserção do crime de ecocício, logo após a realização do Tribunal Monsanto, e antes
da emissão do parecer, possa ser indicativo de que o primeiro caso de ecocídio a ser julgado pelo Tribunal
Penal Internacional será com a Monsanto sentada no banco dos reús.
199
ser identificadas por essa infração que tem causado dano ambiental extenso, de larga
duração e grave e afetado de forma frontal o direito das futuras gerações.
Neste momento, talvez surja uma indagação: e a Monsanto? Como encarou o fato
de ter um Tribunal de opinião com seu nome e nas dimensões acima apresentadas?
Mais uma vez, vislumbramos as arenas de disputas que ora encaramos, em que,
nos resultados de pesquisas científicas, termos como sustentabilidade, risco, justiça
ambiental e futuras gerações são acionados e usados em contextos que podem ser
frontalmente divergentes.
Para melhor aclararmos o quanto esse uso de termos pode ser diferenciado,
passamos, a seguir, a tratar da Carta Aberta da Monsanto divulgada no mesmo dia da
publicização do parecer do Tribunal Monsanto em 18 de abril de 2017.
81
Essa nota inicial de esclarecimento da empresa é seguida de marcações em sua página eletrônica que
remetem ao link <http://descubri.monsanto.com.ar/conversemos/> e que traz uma série de questionamentos
de pessoas sobre a segurança dos produtos da empresa. Apresenta no mesmo parágrafo um outro link que
traz perguntas sobre sustentabilidade e mostra os relatórios dos últimos anos sobre o tema:
<http://www.monsanto.com/global/ar/nuestros-compromisos/pages/reporte-de-sustentabilidad.aspx>.
Acesso em: 24 abr. 2017.
200
Monsanto e que estes atuaram não apenas como organizadores, mas como juízes e
jurados. Afirma a Monsanto que o Tribunal não analisou evidências científicas existentes
e os antecedentes jurídicos de vários temas, e que o Tribunal se organizou com um
resultado já pré-determinado.
A carta aberta prossegue tratando o Tribunal como uma simulação apoiada pela
Fundação Internacional para Agricultura Orgânica (IFOAM, em inglês), que é uma
espécie de organização que abarca as demais organizações de agricultura orgânica e que
seus associados são fundamentalmente contra a agricultura moderna. Por conta disso, a
Monsanto alega que seguirá participando e se dedicando aos questionamentos e consultas
daqueles que estão autenticamente interessados em quem a empresa é e no que faz. A
empresa solicita em sua carta que fique registrado que estão posicionados com
transparência em relação ao direito humano à alimentação, saúde e meio ambiente, bem
como a produção sustentável de alimentos.83
82
Nesse momento a empresa deixa mais uma vez o link de perguntas e respostas já enfatizado no início de
seu texto: <http://descubri.monsanto.com.ar/conversemos/>.
83
Importante mencionar que nas afirmações da carta sobre direitos humanos, saúde, meio ambiente,
transparência e produção sustentável existem links que dirigem o leitor para áreas específicas que buscam
tratar do tema. Frise-se que são todas muito bem trabalhadas em termos gráficos e visuais, parecendo muito
mais uma tentativa de marketing e mais um dos portfólios da empresa do que uma real intenção de
comunicação e discussão de referidas categorias jurídico-sociais.
201
continua a crescer. Assim, diz a carta, que a empresa trabalha, diariamente, para oferecer
aos agricultores do planeta uma ampla gama de soluções para que possam obter melhores
colheitas, fazendo com que a terra, a água e outros recursos naturais produzam melhor e
gerem um prato de alimento equilibrado e, cada vez mais, acessível para todos.
Para abordar os desafios cada vez maiores e de forma cada vez mais colaborativa,
a carta aberta afirma que promove o compromisso com os direitos humanos e dá boas
vindas às genuínas e construtivas conversações com diversidade de ideias e perspectivas
sobre a produção de alimentos e agricultura. Considera que os diálogos são muito
necessários para ajudar a encontrar soluções sustentáveis84 a estes desafios.
84
Na carta aberta é marcado um “*” que remete ao informe atualizado sobre sustentabilidade da empresa,
relatório de 2016 e que se encontra disponível no site da empresa e que em muito lembra a tal “etiqueta de
sustentabilidade” mencionada por alguns autores estudados no capítulo que trata do termo sustentabilidade
de forma mais conceitual.
202
A carta continua afirmando o comprometimento da Monsanto com o diálogo para
que se considere de forma mais ampla as ações da empresa, seus impactos e sua liderança
com responsabilidade e que tem consciência de que os consumidores, agricultores e a
indústria de alimentos e da agricultura têm participação em como se realizam e se
cultivam e produzem os alimentos, e que a empresa se esforça em ser transparente acerca
do que faz, da ciência que apoia suas pesquisas e da inovação de seus produtos, bem como
do registro de segurança de seus produtos aprovados e revisados pelos pares científicos.
203
pesquisas e serviços são tão úteis para ambas as modalidades de produção: orgânica e
convencional.
Por fim, a carta observa que 60% das sementes cultivadas não são comerciais, mas
sementes conservadas e replantadas pelos agricultores e que estas práticas tradicionais de
replantio e distribuição de sementes coexistem com as sementes comerciais com sucesso
em todo o mundo e que permite que os agricultores façam pessoalmente suas escolhas.
85
A entrevista completa pode ser acessada no link: <https://www.brasildefato.com.br/2017/05/12/morre-o-
critico-e-sociologo-antonio-candido-leia-uma-de-suas-ultimas-entrevistas/>. BRASIL DE FATO. Morre o
crítico e sociólogo Antonio Candido; leia uma de suas últimas entrevistas. Acesso em: 14 maio 2017.
204
A carta aberta continua ratificando sua crença de que o evento do Tribunal foi
encenado e com um resultado predeterminado e que não conduz ao diálogo aberto e
profundo que os direitos humanos e a agricultura necessitam e merecem para que sejam
encontrados desafios para a fome, segurança alimentar e o papel dos agricultores para
nutrir a crescente população de maneira sustentável.
A Carta vai sendo finalizada em forma de lamento pela empresa, que afirma que
algumas pessoas da sociedade podem vir a ler ou escutar acerca do “Tribunal” e não se
darem conta de que não existe nenhuma conexão legítima com o verdadeiro Tribunal
Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional.
Mencionamos que esse argumento da Carta Aberta pode ser percebido como
inverídico, uma vez que o Tribunal Penal Internacional de fato acolheu a possibilidade do
ecocídio em momento posterior à realização do Tribunal de opinião e o Relatório da ONU
da Comissão de Direitos Humanos mencionou a necessidade da atuação Tribunal de
Justiça Internacional, ou seja, há uma visível tentativa de esvaziamento do conteúdo
técnico-jurídico de referidas iniciativas.
205
Por fim, a carta busca manifestar um sentimento de honradez por parte da empresa
que vem recebendo reconhecimento pelos esforços empreendidos em várias comunidades
em todo o planeta e que também sabe que pode realizar muito mais e que entende que as
pessoas têm distintos pontos de vista sobre o tema e que é muito importante que todos
possam compartilhá-lo. Finaliza, afirmando que a empresa segue comprometida com sua
política e prática de direitos humanos, com a transparência e o diálogo e colaboração e
que dá boas-vindas a quem queira saber mais sobre a Monsanto, direcionando, assim
como no início da carta, para o link dentro do site da empresa que comporta perguntas e
respostas dos leitores da carta.
86
Crianças são um terço de nossa população e todo o nosso futuro. (Tradução Livre da autora).
206
O tema da contaminação do leite humano por agrotóxicos não é novo.
Rachel Carson, em sua obra sobre contaminação ambiental e humana por
pesticidas, já trazia a questão em tom de alerta e no decorrer deste item iremos
colacionar mais algumas pesquisas nacionais e internacionais que, em algum
momento, abordam a temática.
Palma (2011, p. 52-53) prossegue sua pesquisa explicando que estudos realizados
em várias partes do mundo indicam contaminação do leite humano por organoclorados e
que o uso indiscriminado dessa classe de substâncias ao longo do tempo fez com que
ocorresse a denominada bioacumulação ao longo da cadeia alimentar, inclusive em
humanos. A pesquisadora acrescenta dados mostrando diversos estudos realizados no
Brasil que podem ser vistos como evidência da contaminação do leite humano em
diferentes regiões do país.
207
Em um estudo realizado por OLIVEIRA (1997), em Cuiabá, com 32
mulheres, observou-se que 100% das amostras encontravam-se
contaminadas com algum tipo de substância organoclorada. Os
maiores níveis foram detectados em mulheres que residiam em zona
rural ou que referiram já ter residido e/ou trabalhado em zona rural.
Palma (2011, p. 53-55), relata em sua dissertação que as cidades de São Paulo e
Belo Horizonte demonstraram contaminação multiresidual por agrotóxicos
organoclorados em ambas localidades. No estudo, foram analisadas duas amostras
compostas, uma de cada cidade. As amostras faziam parte de um pool de 10 amostras
coletadas em ambas as cidades. Em todas as amostras os níveis mais elevados foram
encontrados para p,p’DDE, 0,596 mg/g de gordura em São Paulo, e 0,155 mg/g de
gordura em Belo Horizonte, seguido do β-HCH, 0,027 mg/g de gordura e 0,022 mg/g de
gordura respectivamente. As concentrações dos outros compostos analisados foram
similares, ou na maioria dos casos, abaixo do limite de detecção do método utilizado
(0,001 mg/g de gordura).
A autora que ora pesquisamos traz dados de Azeredo et.al (2008), que verificaram
níveis de DDT total em amostras de doadoras ao longo do Rio Madeira, Amazônia, uma
região conhecida por seu grande número de casos de malária. Segundo o estudo em
comento, foram analisadas 69 amostras e todas apresentaram contaminação por DDT e
seus metabólitos, variando entre 25,4 a 9361 ng de DDT total/g de lipídeos.”
A autora traz na página 55 de sua dissertação, uma tabela com as pesquisas sobre
contaminação do leite humano por agrotóxicos no mundo, a qual apresentamos a seguir
e que reflete o levantamento bibliográfico feito pela pesquisadora sobre o tema:
208
Tabela 3 – Resultado de pesquisas sobre a contaminação do leite humano por organoclorados.
(PALMA, 2011, p.55).
209
municipal, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural e
Agricultura Familiar (Sedraf) irá formar uma comissão para
promover ações em cima dos resultados apresentados.
210
Através da análise da tabela acima e de relatos da pesquisadora, entende-se que
foram reunidas 62 nutrizes residentes em Lucas do Rio Verde-MT, que participaram de
questionário e fornecimento de amostras de leite no período de fevereiro a junho de 2010.
Em relação aos dados profissionais, Palma (2011, p. 68) informa que foi possível
verificar que 21% das nutrizes já trabalharam na lavoura e que apenas uma nutriz (1,6%)
declarou trabalhar com agrotóxico, na função de engenheira agrônoma responsável por
um armazém de grãos. Temos também que algumas nutrizes (6,5%) trabalham na zona
rural, mas não trabalham em contato direto com agrotóxico. Quanto a residir na zona rural
43,5% declaram já ter residido por algum período na zona rural.
87
Espécie de tumor cardíaco.
211
Tabela 5 – Total de amostras detectadas e frequência de detecção de agrotóxicos analisados em leite humano em
amostras (n=62) de nutrizes residentes em Lucas de Rio Verde – MT, 2010. (PALMA, 2011, p. 77).
Palma (2011, p. 84) se posiciona de forma crítica em sua pesquisa e destaca que o
processo produtivo agrícola adotado no município de Lucas do Rio Verde leva o
município a um desenvolvimento insustentável, pois degrada o meio ambiente local, polui
os recursos hídricos, o solo, o ar, afetando sua população, acarretando sérios problemas
88
Mais uma vez nos lembramos das denúncias de Carson (2010, {1962}) que já nos idos da década de 60
denunciou o mal do DDT, fato que refletiu na retirada do produto dos EUA na década de 70, mas que,
conforme já comentamos em excerto próprio desse trabalho, só foi retirado totalmente de circulação do país
há poucos anos.
212
de saúde, sendo a contaminação do leite das nutrizes residentes em Lucas do Rio Verde
apenas um dos múltiplos efeitos desencadeados por esse processo produtivo. A
pesquisadora também considera que os serviços de saúde pública municipal devem ficar
atentos aos indicadores de saúde que possam estar relacionados ao uso intensivo de
agrotóxicos no município e enumera a incidência de abortos, malformações, neoplasias e
doenças neurológicas como sinalizadores, pois vários agrotóxicos possuem ação
mutagênica, teratogênica, carcinogênica, desregulação endócrina e distúrbios
neurológicos e psiquiátricos.
Por fim, conclui que apesar de 100% das amostras analisadas de leite materno
restarem contaminadas, não se deve desprezar os benefícios da amamentação para o bebê
do ponto de vista nutricional, imunológico, psicológico e na promoção da saúde, ainda
que danos possam advir por conta da exposição dos bebês aos agrotóxicos e considera
que existe uma necessidade urgente de se ampliar as avaliações e análises dessas
contaminações do leite humano por agrotóxicos provindos do processo produtivo
agropecuário, coordenado pelo agronegócio, para que seja possível a implantação de
medidas de saúde coletiva, com participação dos afetados ou agravados, dos técnicos da
saúde, da agricultura e ambiente, num movimento com a sociedade civil organizada e
articulada com a democracia e justiça ambiental, em busca de outro modelo de
213
agricultura, seja ele agroecológico ou algum que se relacione com o desenvolvimento da
vida, da saúde, da democracia e da felicidade (PALMA, 2011, p.86).
Na pesquisa feita por Sarcinelli (2003, p. 47), é feita a estimativa de que cerca de
80% a 90% de todos os cânceres sejam atribuídos a fatores ambientais e relata que em
1997, a EPA (Agência de Proteção Ambiental) estadunidense, através do seu
Departamento para a Proteção da Saúde da Criança, promoveu uma conferência sobre
causas de câncer passíveis de prevenção em crianças, visando a ampliação do
conhecimento e o direcionamento de esforços na prevenção de câncer em crianças
relacionados às causas ambientais, e que as recomendações concentraram-se em quatro
áreas de pesquisa, quais sejam: fatores de susceptibilidade; fatores epidemiológicos e de
risco; marcadores biológicos de exposição e efeito; e medidas quantitativas de exposição.
Algo que nos chamou a atenção nesse instante e se refere, especificamente, ao que
tratamos acima, ou seja, ao fato de que a EPA, surgida alguns anos após o lançamento do
214
livro de Carson (1962), ter criado um departamento específico de proteção à saúde da
criança. O Brasil, apesar de possuir avançadíssima legislação de proteção ambiental não
desenvolveu similarmente nenhum mecanismo de gestão pública - pelo menos que
tenhamos conhecimento de forma institucionalizada - que conjugue a agenda de proteção
ambiental e a agenda de proteção à criança de forma expressa, conforme vem sendo feito
nos EUA.
215
laborais da família, através do contato com os pais, quando estes lidarem com algum
destes agroquímicos durante o trabalho. O mais grave é que a própria poeira domiciliar
de um ambiente doméstico no entorno de uma área rural pode conter um grau mais
elevado de concentração de agrotóxicos do que o próprio ar, solo e alimentos
(SARCINELLI, 2003, p. 43-44).
216
irritabilidade (Hartman, 1988). A exposição aos agrotóxicos pode
representar, portanto, um risco de contaminação e
consequentemente de comprometimento do desenvolvimento físico,
emocional e cognitivo de crianças e adolescentes, e também do
processo de aprendizagem na escola e no trabalho. Em suas
atividades laborais, a situação é ainda mais grave devido aos riscos de
acidentes a que, certamente, ficam expostos em decorrência das
alterações das funções neurocomportamentais.
O pesquisador defende o consumo dos alimentos orgânicos por considerar que são
alimentos que estão isentos da contaminação por agrotóxicos e resíduos de forma geral e
colaciona em seu artigo informações de Heloísa Pacheco, coordenadora do ambulatório
de Toxicologia da UFRJ, a qual afirma que a exposição a agrotóxicos possui uma
responsabilidade muito maior do que se imagina em casos de câncer e neoplasias
(NAIME, 2015).
89
Sônia Stertz é doutora em Tecnologia de Alimentos, presidente da Sociedade Brasileira de Ciência e
Tecnologia de Alimentos na Regional do Paraná.
217
Segundo o artigo de Naime (2015), o agrotóxico no alimento, ao ser ingerido, gera
um efeito cumulativo, podendo levar a uma série de doenças crônicas neurológicas,
endócrinas, imunológicas e do aparelho reprodutor, como infertilidade, diminuição do
número de espermatozoides e câncer e que os agrotóxicos podem ser hidrofílicos ou
lipofílicos quando se combinam com moléculas de água ou gorduras respectivamente, e
se acumulam no organismo, desta forma, são capazes de induzir a moléstias muito tempo
depois de serem acumulados.
218
desenvolvimento do feto, enquanto que outros produtos químicos tóxicos podem afetar
adversamente seu sistema imunológico. 90
90
O documento da ONU colaciona as seguintes pesquisas ao trazer referidas informações: Alaska Native
Health Board, “Traditional Food Contaminants Testing Projects in Alaska”, julio de 2002; y Gretchen
Welfinger-Smith et al., “Organochlorine and Metal Contaminants in Traditional Foods from St. Lawrence
Island, Alaska”, Journal of Toxicology and Environmental Health, Parte A, vol. 74, num. 18 (septiembre
de 2011); Beyond Pesticides, “Children and Pesticides Don’t Mix”, folleto informativo.; Eyhorn, Reducing
Pesticide Use, pág. 9; Enrique Ostrea, Dawn Bielawski y N. C. Posecion, “Meconium analysis to detect
fetal exposure to neurotoxicants”, Archives of Disease in Childhood, vol. 91, núm. 8 (septiembre de 2006);
Red de Acción en Plaguicidas, respuesta al cuestionario sobre los plaguicidas y el derecho a la alimentación,
pág. 3; Council on Environmental Health, “Policy statement: Pesticide Exposure in Children”, Pediatrics,
vol. 130, núm. 6 (diciembre de 2012). 29 Köhler, “Wildlife Ecotoxicology of Pesticides”. (ONU, 2017, p.
08).
219
Karen Friederich (2017, p. 59), no mesmo documento do Greenpeace, insere a
imagem abaixo já na introdução de seu artigo, talvez numa tentativa simbólica de
expressar o fato de que é preciso pensar nas futuras gerações.
91
0 à 19 (zero à dezenove) anos na divisão trazida pela autora, que não explicita a razão de sua divisão, -
se jurídica, psicológica, sociológica, biológica, etc.
220
Mudando-se o período de análise, segundo Bombardi (2016, p. 21), entre os anos
de 2007 a 2013, o Ministério da Saúde registrou 25.106 intoxicações por agrotóxicos de
uso agrícola (notificadas junto a este órgão). Na faixa etária de 0 a 14 anos - houve a
notificação de 181 crianças intoxicadas, sendo que nos estados do Centro-Sul do país as
crianças entre 01 e 04 anos, ou seja, crianças na primeira infância, responderam por mais
de 30% dos casos e, no Mato Grosso e em Minas Gerais, essa mesma faixa etária
respondeu por mais de 40% dos casos de intoxicação dentro do intervalo de 0 a 14 anos.
Conforme ilustra o gráfico abaixo:
Dentro dessa realidade, a maior parte das intoxicações ocorre por via acidental,
seguida pelo suicídio (em segundo lugar), o qual se concentra entre crianças e
adolescentes de 10 a 14 anos. Se já não bastasse termos entre 25% (gráfico 03) a 40%
(gráfico 04) de crianças e adolescentes envenenados, temos ainda esse mesmo grupo
cometendo suicídio.
221
Em obra mais recente, Bombardi (2017) apresentra mapa que trata,
especificamente, da contaminação de bebês, conforme visualizaremos a seguir:
São apresentados, acima, 142 casos de intoxicações de bebês, fato que para a
autora em comento pode ser considerado como a “ponta do iceberg” das intoxicações no
país e revelador da vulnerabilidade das comunidades de forma geral.
222
a população infanto-juvenil na faixa de idade entre 0-19 anos, mesmo padrão etário
utilizado por Larissa Bombardi em seu Pequeno Ensaio Cartográfico.
223
exposição de adultos, pois fisiologicamente e comportamentalmente, as crianças são,
particularmente, sensíveis aos agrotóxicos em decorrência de sua alta permeabilidade
intestinal e da imaturidade do seu sistema de detoxificação (ATSDR, 2000), sendo
necessário levar-se em consideração tais peculiaridades, quando se avaliam riscos dos
agrotóxicos (ABRASCO, 2015, p. 126).
Percebemos dos dados acima expostos que a ideia de Beck (2011, [1986], p.30 -
31), esposada no capítulo anterior, que os questionamentos sobre as distribuições de
poluentes, toxinas, impactos sobre a água, o ar, o solo e os alimentos que ocorre através
da exposição em mapas coloridos a um público assustado, ao mesmo tempo em que não
levam em conta a consequência para grupos em particular, mas para todas as pessoas –
analisando-se, unicamente as substâncias tóxicas, seus efeitos e sua distribuição regional,
não parece encontrar eco na maior parte das pesquisas contramajoritárias aqui acionadas.
Após 13 anos sem publicar o Atlas da Saúde das Crianças e do Meio Ambiente, a
OMS lançou em 2017, na data de 06 de março, a versão atualizada do Atlas que informa
que mais de 25% das mortes de crianças com menos de cinco anos são causadas por
fatores ambientais como poluição, falta de saneamento e uso de água imprópria para o
consumo. Anualmente, 1,7 milhões de meninos e meninas nessa faixa etária morrem
porque vivem em locais insalubres.
O documento produzido pela OMS possui 164 páginas e apesar de ter sido
amplamente noticiado em nossa imprensa e na própria página da OMS do Brasil, não
apresenta tradução, até o presente momento da pesquisa, de sua versão em inglês ou
espanhol.
224
relacionadas à nutrição, saúde e bem estar das crianças e que estas representam um futuro
a ser nutrido e gerido pela humanidade (OMS, 2017, p. 12).
O prefácio da obra destaca que mais de uma década após a publicação “Herança
do mundo: O atlas da saúde das crianças e do ambiente em 2004” esta nova edição não
se trata de mera atualização, mas de revisão mais detalhada sobre os desafios contínuos e
emergentes para a saúde ambiental das crianças e que foram levadas em conta as
mudanças nos principais riscos ambientais para a saúde das crianças nos últimos 13 anos,
devido à crescente urbanização, industrialização, globalização e mudanças climáticas.
Salienta o prefácio da obra que referida produção técnica está alinhada com a
Estratégia Global para a Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, lançada em 2015,
que buscou enfatizar o fato de que toda criança merece a oportunidade de prosperar em
ambientes seguros e saudáveis e que os ODS – Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável são um importante quadro de referência para que seja possível trabalhar e
melhorar a vida de todas as crianças (OMS, 2017, p. 12).
O documento que ora analisamos informa que as crianças estão no cerne dos ODS,
pois são elas que herdarão o legado de políticas e ações ou omissões dos líderes de hoje.
A publicação, inclusive, está dividida de acordo com os ODS, sendo que os ODS 1, 2 e
10 abordam a equidade e a nutrição; o ODS 6 foca em água, saneamento e higiene; os
ODS 7 e 13 chamam a atenção para a energia, poluição do ar e mudanças climáticas; os
ODS 8, 9 e 11 tratam de infraestrutura de estudos e pesquisas e os ODS 3, 6 e 12 terão
nossa especial , pois focam nas exposições químicas (OMS, 2017, p. 13).
225
Para melhor entendimento do que sejam a proposta dos ODS, neste momento,
mais mencionado do que em todos as pesquisas anteriormente acionadas, consultamos a
ONU, que informa que o Brasil participou de todas as sessões da negociação
intergovernamental quando chegou-se a um acordo que contempla 17 Objetivos92 e 169
metas, envolvendo temáticas diversificadas, como erradicação da pobreza, segurança
alimentar e agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero, redução das desigualdades,
energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo, mudança
do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas
terrestres, crescimento econômico inclusivo, infraestrutura e industrialização, governança
e meios de implementação
Abaixo, para melhor visualização dos quadros relacionados aos ODS acima
descritos, temos a seguinte imagem:
92
Os objetivos são: Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares;
Objetivo 2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a
agricultura sustentável; Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em
todas as idades; Objetivo 4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover
oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos; Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e
empoderar todas as mulheres e meninas; Objetivo 6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da
água e o saneamento para todos;
Objetivo 7. Assegurar a todos o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia;
Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e
produtivo e trabalho decente para todos; Objetivo 9. Construir infraestruturas resilientes, promover a
industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação; Objetivo 10. Reduzir a desigualdade dentro
dos países e entre eles; Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros,
resilientes e sustentáveis; Objetivo 12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis; Objetivo
13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e os seus impactos (*); Objetivo 14.
Conservar e usar sustentavelmente os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento
sustentável; Objetivo 15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir
de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a
perda de biodiversidade; Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento
sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e
inclusivas em todos os níveis; Objetivo 17. Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria
global para o desenvolvimento sustentável. (ONU, 2016)
226
Figura 16 – ODS relacionados de forma integrada e multissetorial (OMS, 2017, p. 112).
Como pode ser visto no mapa abaixo, dados atualizados foram fornecidos sobre
os níveis de PCBs (espécie de POP) - no leite materno e a dose de produtos químicos aos
93
Exposição precoce na vida (Grandjean et al, 2015). A exposição precoce a certos pesticidas pode estar
associada a doenças neurodegenerativas, tais como a doença de Parkinson, numa fase posterior da vida
(Grandjean et al., 2015). Os efeitos de alguns POPs incluem problemas reprodutivos e de desenvolvimento.
Alguns produtos químicos podem danificar o sistema imunológico, interferir com os hormônios, afetar a
função neurológica ou causar câncer (PNUMA, OMS, 2013a, OMS, 2010b).
228
quais os bebês podem ser expostos através da amamentação:
O Atlas da OMS afirma que os contaminantes de POP nas dietas das mães podem
afetar o feto com implicações precoces e de longo prazo e informa que os efeitos podem
ter longos períodos de latência, sendo os lactentes mais sensíveis aos poluentes químicos
do que os adultos e crianças mais velhas e que essas contaminações podem causar uma
variedade de distúrbios em diferentes fases da vida, sendo elas divididas no documento
da OMS nas seguintes etapas:
- Na infância - asma, câncer e efeitos neurológicos e comportamentais;
- Na puberdade - alterações no desenvolvimento normal e diminuição
da capacidade reprodutiva;
- Em adultos - câncer, doenças cardíacas e distúrbios neurológicos e
comportamentais degenerativos. (OMS, 2017, p. 72).
229
funções do sistema endócrino e, subsequentemente, causam efeitos adversos para a saúde
em organismos ou seus descendentes (OMS, 2017).
Por fim, o documento traz informações de que, em alguns casos, os níveis
"seguros" podem ser difíceis de determinar e que os efeitos das misturas químicas são
complexos e quase desconhecidos e que o uso de alternativas mais seguras, quando
disponíveis, são a forma mais eficaz de prevenir a exposição.
Assim, percebemos que as informações expostas no Atlas em muito se
assemelham as pesquisas nacionais e internacionadas colacionadas neste capítulo e que
tratam do viés crítico ao sistema agroprodutivo quimificado.
Ao longo do Atlas, vários desenhos são trazidos como os expostos abaixo - do
lado esquerdo, e o Atlas encerra-se com a gravura à direita e ambas imagens trazem a
frase: “don’t pollute my future” – não polua o meu futuro (tradução livre), que parecem
querer demonstrar que as contaminações ambientais, entre elas, as realizadas pelo atual
sistema agroprodutivo dominante afetam o presente e o futuro de gerações.
Parece-nos cada vez mais perceptível, ao longo dos estudos aqui relatados, que
estamos em um campo de embates técnicos com tantas informações que parecem se
contrapor de forma contundente em seus próprios campos de atuação e então lembramos
que na década de 1950, Jacques Ellul (1958), filósofo francês, abordava um pouco dessa
discussão quando dizia que:
230
Mais o progresso técnico cresce, mais aumenta a soma de efeitos
imprevisíveis. Certos progressos técnicos criam incertezas
permanentes e em longo prazo [...] Processos irreversíveis foram já
implementados, particularmente no campo do meio ambiente e da
saúde. Os problemas ambientais são exemplares. Criados pelo
desenvolvimento tecnológico desenfreado e irrefletido, necessitam
sempre de novos instrumentos e técnicas para resolvê-los. Os
problemas de saúde pública ou de segurança alimentar são
sistematicamente reformulados de modo que possam receber
soluções técnicas ao invés de soluções politicas.
[...]
Se a técnica não suporta julgamento moral, como tratou Jacques Ellul, ela
suportaria discussões como a de um desenvolvimento sustentável que prevê o
equacionamento e pretenso equilíbrio entre economia, ambiente e sociedade para com as
atuais gerações e futuras? E o que falarmos dos direitos dos recém nascidos, bem como
dos ainda não-nascidos em face do sistema agroprodutivo dominante (químico) e diante
de marcos teóricos, como sociedade de risco (BECK) e Justiça Ambiental (BULLARD,
HERCULANO, MARTINEZ‐ALIER, ET AL.)?
231
Por fim, antes de fazermos a transição para o próximo capítulo e aproveitando as
dramatizações visuais (Hannigan, 1995) em relação à contaminação da infância por
agrotóxicos, expostas em uma série de estudos aqui apresentados, exibimos a premiada
exposição de fotos do argentino Pablo Ernesto Piovano intitulada “O custo humano dos
agrotóxicos”, onde o fotógrafo percorreu mais de 6 mil quilômetros na Argentina,
retratando famílias afetadas pelo uso massivo de agrotóxicos.
232
4 REVOLU-AÇÃO? O GRUPO DE TRABALHO (GT) AGROTÓXICOS E
TRANSGÊNICOS DA 4ª CÂMARA DE COORDENAÇÃO E REVISÃO (CCR)
DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF)
Para fins de análise dessas instâncias jurídico-operativas iremos nos guiar pelos
termos sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável, risco, justiça ambiental e
futuras gerações, dentro da perspectiva de alguns de nossos objetivos específicos, já
informados na introdução desta tese e aqui novamente reproduzidos, quais sejam:
Examinar junto ao GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR do Ministério Público
Federal – MPF, os usos que são feitos das produções técnico-científicas sobre agrotóxicos
nas formulações das Ações Civis Públicas – ACPs e nas decisões judiciais94 correlatas e
identificar a emergência nos processos e nas decisões judiciais, de questões relacionadas
aos termos em tela, bem como compreender as circunstâncias e os sentidos que são
atribuídos a tais temas.
94
Referidas decisões judiciais a serem analisadas serão aquelas disponibilizadas pelo próprio GT que ora
analisamos ou aquelas que conseguimos encontrar os processos nos Tribunais e que disponibilizaram
digitalmente o processamento das ações com referidas decisões. Salientamos também que no site do MPF
existe o campo chamado consulta processual no qual realizamos as buscas pelos Inquéritos Civis que
geralmente antecedem a existência de uma ACP, todavia, referida área de consulta processual não apresenta
o inteiro teor dos inquéritos, mas apenas sua movimentação entre diferentes setores do próprio órgão.
233
Agrotóxicos e Transgênicos, inserido na Temática Meio Ambiente e Patrimônio Cultural
da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) e que, segundo informações constantes
na própria página do sítio eletrônico do MPF, trata, especificamente, dos temas
relacionados à flora, fauna, áreas de preservação, gestão ambiental, reservas legais, zona
costeira, mineração, transgênicos, recursos hídricos e preservação do patrimônio cultural,
entre outros95.
Em relação a uma definição do que seja o Ministério Público, este foi legalmente
definido como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, e que
tem por finalidade a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis, inclusive através de ações civis públicas, objetos
específicos de nossa atenção no presente capítulo.97
95
4ª CCR – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-
tematica/ccr4>. Acesso em: 15 ago. 2017.
96
GT Agrotóxicos e Transgênicos. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr4/dados-
da-atuacao/grupos-de-trabalho/gt-transgenicos. Acesso em: 15 de agosto de 2018>. Acesso em: 15 ago.
2017.
97
Para maiores detalhamentos das funções e atribuições do Ministério Público temos os artigos 127 ao 130-
A da Constituição Federal de 1988.
234
Abaixo, para melhor visualização de como se processa a divisão em Grupos de
Trabalho – GTs, no site do MPF, segue figura:
Assim, pela singularidade que envolve referido órgão jurisdicional, sua recente
notoriedade de atuação funcional frente ao caso Lava Jato e seus desdobramentos
operativos, bem como pelo fato de que podemos encontrar na própria página deste um
GT específico e uma coletânea de documentos atinentes ao tema agrotóxicos e
transgênicos é que optamos por esse campo de observação em busca de mais informações
que nos auxiliem na resposta da questão-problema esposada no início deste trabalho e
98
Como o presente estudo não visa fazer uma análise detalhada daquele que alguns doutrinadores referem-
se como o 4º poder, a saber, o Ministério Público, sistematizamos nossas informações da forma mais clara
e sintética possível, informações mais acuidadas podem ser colhidas nos livros de Direito Constitucional
ou simplesmente serem consultadas em sites do governo federal em links como:
<http://www.brasil.gov.br/governo/2010/01/ministerio-publico>. Acesso em: 15 ago. 2017.
235
cujo cenário de composição de análise do problema buscamos conhecer ao longo dos
capítulos anteriores.
99
Referidos documentos estão disponíveis no link:< http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr4/dados-
da-atuacao/grupos-de-trabalho/gt-transgenicos/documentos-diversos/oficios-1>, tivemos três momentos
em que consultamos referida base de dados, uma vez por ocasião da banca de qualificação, em maio de
2016 e outra agora por conta da finalização da pesquisa e banca de defesa de tese. Em relação à inserção de
ACPs, não houve inserção de nova ação quando das consultas para a escrita deste capítulo em 2017. Ao
procedermos a revisão do texto final, em janeiro de 2018, realizamos nova consulta, onde foi possível
verificar que não existiram mudanças na inserção de novas ações e nem mesmo de novas atas. Sendo a
última ata datada de abril de 2017.
100
Referidos documentos encontram-se assim referenciados: ACP 0021371-49.2014.4.01.3400 - ANVISA
– 2014; Decisão Processo n. 0021371-49.2014.4.01.3400 - 7ª vara federal; ACP - Helicoverpa – 2014; OF
090_gea-anvisa-24d – 2014; Recomendação 01-2014 IC 112-2014-26;
Recomendacao.anvisa.reavaliacao.24d – 2013; Recomendacao.ctnbio.sementes.24d – 2013;
236
Após, apresentam Tabela com informações acerca de Procedimentos
Administrativos - PAs instaurados no MPF, sobre a temática OGM.101
237
Geneticamente Modificadas - Ministério do Desenvolvimento Agrário; PGM e riscos
ambientais; PGM e os riscos para a saúde; Revista dos Tribunais; Smith, Jeffrey M.
Genetic Roulette - The documented healtuh risks of genetically engineered foods/Jeffrey
M. Smith. Farfield: yes Books, 2007. 319, sem, contudo, haver disponibilização de tais
materiais.
Por fim, apresentam a seção onde ficam as atas das reuniões do GT entre o período
de 2007 a 2017, são elas: Atas 2017 - Reunião 10/04/2017; 2016: Reunião 23/11/2016;
Reunião 23/08/2016; Reunião 11/04/2016; Reunião 03/02/2016. 2015: 4° Reunião -
06/11/2015; 3° Reunião 05/10/2015; 2° Reunião - 03/08/2015; 1° Reunião - 06/07/2015;
2011; 14ª Reunião (06/07/2011); 13ª Reunião (05/07/2011); 12ª Reunião (08/06/2011);
2010: 11ª Reunião (02/02/2010); 2009; 10ª Reunião (10/03/2009); 2008: 9ª Reunião
(17/06/2008); 8ª Reunião (13/05/2008); 7ª Reunião (15/04/2008); 6ª Reunião
(18/02/2008); 2007: 5ª Reunião (26 e 27/11/2007); 4ª Reunião (10/10/2007); 3ª Reunião
(17/09/2007); 2ª Reunião (27 e 28/06/2007);1ª Reunião (09/05/2007).
Frisamos que havia uma contagem contínua das reuniões no período entre 2007 a
2011. Após, o site não explica, mas interrompe a postagem de atas de reuniões do GT e
reinicia-se a postagem de atas no ano de 2015, com nova contagem inicial. Informamos
que a ata da única reunião ocorrida até o presente momento do ano de 2017, apesar de se
apresentar “linkada”, abre, apenas, para um documento em branco, sendo feitas tentativas
consecutivas de abertura até o fechamento deste capítulo. Em relação às reuniões do ano
Na sequência, para efeitos de melhor visualização do que informamos, segue a listagem de artigos atinentes
ao PGM e falta de controle: , Arnaud et al, 2003, Proc Lond Bio; Brault et al, 2002, Mol Plant Inter Bio;
Cipriano, Carrasco et Arbóis, 2006, Greenpeace; Collonnier et al, 2003, 7ICPMB; Dalton, 2001, Nature;
Domingo, 2000, Science; Greenpeace, 2007; Gregersen et al, 2005, Trans Resh; Hernández et al, 2003,
Trans Resc; Ho et Ching, 2003, ISP; Hofs et al, 2006, INRA, CNRS, MEDD; Jank et Haslberger, 2000,
Trends Biotech; Kohli et al, 1999, Plant J; Mellon et Rissler, 2004, UCS; Meza et al, 2001, Trans Research;
Quist et Chapela, 2002, Nature; Rönning et al, 2003, Eur Food Res Tech; Steinbrecher, 2002, Econexus;
Tabashnik et Chilcutt, 2004, PNAS.
238
de 2016, todas as atas abriram e em relação às atas de 2015, as quais, inclusive, apontam
a existência das atas de um período entre 2006 a 2014, apenas tivemos a informação ao
clicar nos links sugeridos que a página não existia, estando, portanto, indisponíveis as
informações até o momento de conclusão deste trabalho.
De forma inicial, informamos que, para o recorte na escolha das ACPs, utilizamos
aquelas disponibilizadas pelo próprio GT, cujas petições iniciais disponibilizadas
perfazem um total de 05 ações103, ajuizadas no período compreendido entre os anos de
2006 a 2014, com atuação local ou nacional. Para melhor sistematização e entendimento,
as classificaremos em ordem cronológica, através da atribuição de número, ano e local de
atuação do procurador subscritor.
Assim temos:
103
Apesar da seção Ações Civis Públicas e Procedimentos Judiciais apresentar uma relação maior de
documentos enumerados, conforme já descrevemos na nota 96 desse trabalho, apenas essas 05 ACPs
encontram-se disponibilizadas. O restante dos documentos é uma mistura de decisões judiciais, notas
técnicas, acórdãos de tribunais e outros que não se inserem no recorte por nós especificado.
239
armazenamento irregular de embalagens vazias do agrotóxico e irregular descarte
das embalagens do herbicida glifosato. A ação é da lavra do procurador da
República, Alexandre Silva Soares, na data de 05 de abril de 2013, na seção
judiciária de São Luiz/MA e a designaremos de ACP 02/2013/MA
• 03/2014/DF - ACP em face da União e da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), visando compelir a ANVISA a reavaliar a toxidade de 8
(oito) ingredientes ativos publicados na Resolução ANVISA RDC n. 10/2008,
quais sejam, parationa metílica, lactofem, forato, carbofurano, abamectina, tiram,
paraquate e glifosato, bem como determinar à União, por meio do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que suspenda os registros de
produtos que tenham como princípio ativo as 8 (oito) substâncias mencionadas,
até que seja realizada a reavaliação, pela ANVISA, sobre a toxicidade daqueles
ingredientes ativos. A ação é da lavra do procurador da república, Anselmo
Henrique Cordeiro Lopes, e é datada de 20 de março de 2014, na seção judiciária
de Brasília/DF que chamaremos de ACP 03/2014/DF.
• 04/2014/DF – ACP em desfavor da União, Ministério da Agricultura Pecuária e
Abastecimento – MAPA – e Comissão Técnica Nacional de Biossegurança –
CTNBio. Seu objetivo foi tutelar a saúde humana e o meio ambiente
ecologicamente equilibrado para que fosse determinado à União, por meio do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que suspendesse o
registro dos agrotóxicos que contivessem o herbicida 2,4-D em suas formulações,
enquanto a ANVISA não divulgasse os resultados conclusivos acerca da
reavaliação toxicológica do 2,4-D e que, por meio da Comissão Técnica Nacional
de Biossegurança (CTNBio). A ação é também da lavra do procurador da
república, Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, sendo, também, datada em 20 de
março de 2014, na seção judiciária de Brasília/DF que chamaremos de ACP
04/2014/DF.
• 05/2014/MT – ACP em face do Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de
Mato Grosso (INDEA/MT) e Estado de Mato Grosso (MT), com base na
legislação aplicável, a fiscalizar e não permitir o uso de produtos agrotóxicos
formulados a base da substância denominada Benzoato de Emamectina, uma vez
que tal componente químico não possui registro no órgão federal competente
(Ministério da Agricultura), nem cadastro no órgão estadual responsável
(INDEA), como exige a legislação, existindo ainda parecer técnico da Agência
240
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), afirmando que o produto é altamente
neurotóxico e contraindicando a sua utilização em todo o território nacional,
devido aos graves riscos para a saúde humana. O procurador que a subscreve é
Felipe A. Bogado Leite, da seção judiciária de Cuiabá/MT, na data de 24 de março
de 2014, que chamaremos de ACP 05/2014/MT.
Nesta ação, de forma única, notamos que o apoio técnico-acadêmico trazido como
um dos objetivos propulsores da ACP acabou por contribuir com reflexões sociais, haja
vista ser produzido pelo departamento de Ciências Sociais da UFMA. Reflexões estas que
são, também, acolhidas pelo MPF, segundo o relatório acionado pelo MPF em sua petição
241
inicial para a instauração da ACP. Alguns dos principais impactos verificados, em
referido relatório, dão conta de destruição de amplas áreas de chapadas, contaminação
por agrotóxico de recursos hídricos e de áreas utilizadas para a produção de alimentos
pelos camponeses, destruição de nascentes, assoreamento de cursos d’água, entre outros
(MPF, 2013, p. 02).
242
Referido trecho acima destacado parece nos dar pistas de uma certa comunicação
interna entre as seccionais do MPF de diferentes regiões do país, o que também pode ser
observado em relação as ACPs 03/2014/DF, 04/2014/DF e 05/2014/DF, com datas de
elaboração próximas e com linhas de construção técnica semelhantes, conforme
comentaremos mais adiante. Outro ponto a ser destacado no presente trecho e observado
em outros momentos da ACP relaciona-se com a utilização do termo “agrotóxico” e
“herbicida” como sinônimos.
O uso de termos como “veneno” ou “pesticidas” aparece apenas uma vez na ACP
em comento, quando de reprodução de mais um trecho do relatório da UFMA, o qual
transcrevemos a seguir:
243
Encontramos, neste momento e mais uma vez ao longo desta tese, a
presença do carro-chefe da Monsanto - o Roundup, que parece ser objeto de acuidada
análise do Ibama em seu relatório e que serve como uma das bases para a instrução da
ACP que ora analisamos
Outro ponto que se destaca na ACP 02/2013/MA e que talvez explique a razão da
mesma estar entre uma das 5 ACPs colacionadas como documentos publicados no site do
MPF, no já mencionado GT de Agrotóxicos e Transgênicos, é quando ela trata da área
produtora de soja no estado, bem como do uso do glifosato em limite superior ao definido
em lei ou regulamento, e irregularidades no armazenamento e descarte de embalagens
vazias, fazendo uma abordagem dos impactos ambientais e sociais.
104
O relatório é reproduzido em um trecho mais amplo e que parece demonstrar o quanto a técnica científica
é um dos instrumentais que embasam referida ACP, segue trecho: “isso não significa que não haja
interferência crônica do glifosato sobre o metabolismo animal e é preciso considerar que na formulação do
Roundup, por exemplo, pois é a marca comercial com maior aceitação no mercado, constam outros produtos
que, em consonância com o glifosato e outras substâncias no solo, meio ambiente e organismos vivos,
acabam tendo diferentes efeitos colaterais. Para aumentar a eficácia do herbicida e facilitar sua penetração
nos tecidos vegetais, a maioria das formulações comerciais possui uma substância química surfatante (um
composto químico que reduz a tensão superficial do líquido). Ainda seguindo o exemplo anterior, porém
não devendo ser desconsideradas as demais formulações comerciais no mercado, a formulação do Roundup
é composta de surfatante polioxietileno-amina, ácidos de glifosato relacionados, sal de isopropilamina e
água. Em função dessa composição, a formulação do Roundup possui uma toxicidade aguda maior que o
próprio glifosato puro. O surfatante presente no Roundup está associado com 1-4 dioxano, um agente
causador de câncer em animais e potencialmente causador de danos ao fígado e aos rins de seres humanos.
Em decorrência da decomposição do glifosato registra-se uma substância potencialmente cancerígena
conhecida como formaldehido. E a combinação do glifosato com nitratos no solo ou em combinação com
a saliva origina o Nnitroso glifosato” (fl 2 do relatório). (MPF, 2013, p. 04/05).
244
realização de uma operação batizada de CERES, que em 2008 levantou a informação de
que 34 municípios maranhenses eram responsáveis por toda a produção de soja no Estado
e que destes 34, 13 eram responsáveis por 94% de toda a soja produzida. A seguir,
reproduzimos o mapa constante na ACP:
Figura 21 – Municípios responsáveis pela produção de soja no estado do Maranhão (MPF, 2013, p. 6).
245
Voltando ao mapa acima reproduzido, ele destaca 13 municípios cuja disposição
territorial é bem visualizada em supramencionado mapa, ainda que a leitura das
localidades esteja parcialmente comprometida. Citamos que as regiões destacadas
compõe-se dos municípios de Balsas, Tasso Fragoso, Sambaíba, Riachão, São Raimundo
das Mangabeiras, Alto Parnaíba, Fortaleza dos Nogueiras, Buriti, São Domingos do
Azeitão, Loreto, Anapurus, Carolina, e Brejo.
246
A ACP também destaca trecho sobre a dificuldade de atuação e fiscalização do
Ibama, quando de sua atuação em campo, buscando demonstrar, talvez, o quanto seja
difícil a própria produção de dados técnicos-operativos, conforme se depreende do trecho
abaixo:
247
04/2014/DF em sua relação com a Anvisa e CTNBio, por exemplo, conforme veremos a
seguir.
Inicialmente, esclarecemos que optamos por tratar as duas ACPs acima nominadas
de forma conjunta pelo fato delas serem da lavra do mesmo procurador da república,
mesma data de elaboração e mesma seção judiciária. Além disso, conforme traremos mais
à frente, as fundamentações legais, bem como as argumentações apresentadas e estudos
técnico-científicos acionados têm muitos pontos convergentes.
Na imagem abaixo, temos os “prints” das telas da Justiça Federal que mostram a
indisponibilidade digital dos Inquéritos Civis mencionados na ACP 03/2014/DF e na ACP
04/2014/DF.
248
Figura 23 – Processo n. 21372-34.2014.4.01.3400, originário da ACP 04/2014/DF.
(http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/96b246804f309971be99
bec88f4b6a31/Nota+t%C3%A9cnica+da+Parationa+Met%C3%ADlic
a.pdf?MOD=AJPERES; acessado em 14/03/2014)
(http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/c480ff804f1d75bba8ddb
cc88f4b6a31/Nota+T%C3%A9cnica+do+forato.pdf?MOD=AJPERES
; acessado em 14/03/2014)
[...].
249
Finalmente, devemos atentar para a literatura científica atualizada
[...]. (sem destaque no original). (MPF, 2014, p. 07).
Do excerto acima, colhemos expressões tratadas pela Anvisa e aqui acionadas pelo
MPF como “neurotoxicidade”, “imunotoxicidade”, “mutagenicidade”, “efeitos
tóxicos”, “carcinogênicos”, entre outros termos que nos remetem a um variado número
de estudos e documentos tratados no capítulo anterior desta tese e que, conforme
entendimento do MPF, parecem se alinhar aos mesmos pressupostos de risco, insegurança
e contaminação para a saúde, nutrição humana e meio ambiente das pesquisas
contramajoritárias já analisadas.
A ACP 03/2014/DF informa que em seu inquérito civil já foi possível apurar que,
através das respostas da Anvisa, 06 princípios ativos já foram reavaliados, sendo eles:
Cihexatina, Endossulfam, Triclorfom, Fosmete, Metamidofós e Acefato. Estando
pendentes de reavaliação as 8 substâncias informadas no objetivo da presente ação.
Após essa exposição, ainda na seção “dos fatos” da ACP 03/2014/DF, assim
afirma o membro do MPF em sua ação:
250
ativos restantes, dos quais, se for mantida a mesma proporção de
resultado das avaliações anteriores, presumivelmente, cerca de dois
terços também serão banidos do país por demonstrarem alto risco e grau
de toxidade.
A ACP 04/2014/DF, por sua vez, apresenta como objeto a tutela da saúde humana
e o meio ambiente ecologicamente equilibrado e prevê que seja determinado à União, na
figura do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, que suspenda o
registro dos agrotóxicos que contenham o herbicida 2,4-D em suas formulações, enquanto
a Anvisa não divulgar os resultados conclusivos acerca da reavaliação toxicológica do
2,4-D, e que, por meio da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio, a
União seja proibida de liberar a comercialização de sementes transgênicas tolerantes ao
251
2,4-D enquanto, mais uma vez, tal autarquia federal não finalizar a reavaliação
toxicológica do referido princípio ativo.
Um ponto que aparece apenas narrado nessa seção dos fatos da ACP faz menção
de reunião realizada pela 4ª CCR do MPF, ocasião em que se instaurou o Inquérito Civil
n. 1.16.000.002778/2013-61, momento em que foi oportunizada a discussão sobre o
aumento da utilização de agrotóxicos pela própria utilização de OGMs – Organismos
Geneticamente Modificados, os quais funcionariam como agentes multiplicadores do
próprio consumo de agrotóxicos e que isso colocaria – ainda que virtualmente, em risco
os direitos humanos fundamentais à saúde de toda população brasileira, bem como o
direito à alimentação adequada, o direito à biodiversidade dos biomas brasileiros e ao
meio ambiente equilibrado e saudável, segundo o MPF.
252
impactados e ao meio ambiente equilibrado e saudável. (sem destaque
no original). (MPF, 2014b, p. 07).
253
Agente Laranja, utilizado pelos Estados Unidos durante a Guerra
do Vietnã. Ele é o terceiro agrotóxico mais utilizado no Brasil (5%),
depois do glifosato (29%) e do óleo mineral (6%).” (MPF, 2014, p. 08-
09).
A ACP 04/2014/DF continua sua narrativa dos fatos informando alguns dos
desdobramentos da audiência pública - que na visão do subscritor da presente ação,
através dos assuntos abordados e dos inúmeros estudos por ele colacionados nos
inquéritos civis, são evidências de que o uso do 2,4-D pode causar grandes malefícios
para a saúde humana e meio ambiente.
254
O MPF finaliza sua seção “dos fatos” na ACP 04/2014/DF, informando que a
atuação de ambos os órgãos – MAPA, CTNBio e ANVISA deve ocorrer de forma
sistemática com vistas à priorização da tutela da saúde humana e do meio ambiente e
comenta que não pretende desprestigiar a CTNBio ou invalidar suas atribuições legais105,
mas que entende que a espera de referido órgão pela deliberação da Anvisa, poderá lhe
ofertar estudo científico conclusivo sobre a toxicidade do 2,4-D, conforme exposto no
trecho abaixo:
Neste momento, ainda que o MPF não tenha trazido à baila os bastidores que
envolvem a gerência-geral de toxicologia da Anvisa, comentamos que no ano de 2012
105
Parece-nos que a situação transcrita evidencia uma certa dose de conflito institucional-operativo entre
MPF e demais órgãos responsáveis pela reavaliação toxicológica de agrotóxicos no país. Referidos conflitos
institucionais entre MPF e diversos órgãos dos poderes públicos explodiram no país em dimensões muito
maiores nos anos de 2015 e seguintes. Inclusive, trataremos em seção própria desse trabalho, a razão de,
pelo menos, aparentemente, o MPF ter diminuído sua pressão sobre a seara dos agrotóxicos em suas ACPs
e na própria documentação constante do GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR, além de tratarmos de
forma abreviada onde estão atuando alguns procuradores da república como o que subscreve as ACPs que
estudamos no presente momento.
255
houve grande ruído midiático e institucional com a saída do gerente-geral Luiz Cláudio
Meirelles106, que trabalhou durante mais de uma década na referida autarquia e que foi
exonerado após ter denunciado irregularidades no processo de liberação de seis
agrotóxicos.
Assim, percebemos que mais do que não existir um acesso da Anvisa a alguns
estudos técnicos atualizados, existem pressões de toda a sorte a envolver referidas
reavaliações. Fato este que se coaduna a algumas das situações descritas em documentos
e estudos técnicos do capítulo anterior que trataram da falta de liberdade científica,
retóricas de ocultação, desqualificação, perseguição de cientistas e outras situações
similares descritas pelo Dossiê Abrasco, ONU e Tribunal Monsanto, de forma mais
acentuada.
106
Para melhor ilustração da situação acima descrita, rememoramos trecho do Dossiê Abrasco de 2015,
comentado no segundo capítulo desse trabalho, que trata em seção própria da exoneração do gerente
Meirelles, através de entrevista do mesmo para a Fiocruz, no endereço eletrônico:
<http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista-2>. Bem como a parte 4 do Dossiê denominada “A crise
do paradigma do agronegócio e as lutas pela agroecologia”. (DOSSIÊ ABRASCO, 2015, p. 467). Por fim,
existe a própria Carta de Luiz Claudio Meirelles tratando do ocorrido e disponível em:
<http://bit.do/ana2012>. Acesso em: 15 ago. 2017.
256
manifestações clínicas se apresentaram com fraquezas e espasmos
muscular, miotonia, mialgia, ocorrendo logo após a ingestão e
progredindo para fraqueza muscular, confusão, cefaleia, tontura, fadiga,
visão dupla, hiporreflexia, parestesias, neuropatia; no sistema
cardiovascular, os sintomas identificados foram taquicardia,
arritmia, fibrilação muscular, vasodilatação; as manifestações
clínicas dérmicas foram caracterizadas por eritema, irritação,
considerando que extensas áreas expostas poderiam causar alterações
sistêmicas, com fraqueza muscular, contrações musculares e
inconsciência; além da verificação de manifestações clínicas oculares e
outras decorrentes da ingestão do referido herbicida.
Por outro lado, no que tange aos efeitos crônicos ocasionados pelo
herbicida 2,4-D, foram verificadas perturbações endócrinas,
genotoxicidade, reprotoxicidade e potencial cancerígeno para o
homem.
Apesar da citação acima ser extensa, consideramos por bem mantê-la, pois ela nos
fornece algumas pistas de análise, senão vejamos: primeiramente, verificamos que o
discurso técnico-científico de base contramajoritária é aqui apropriado como discurso
técnico-jurídico, uma vez que compõe o corpo da seção “do Direito” de referida ACP
04/2014/DF, sem fazer, todavia, neste instante, ligação com qualquer documento anexado
ao inquérito civil originador dessa ACP ou estudo científico similar.107
107
Explicamos que o Ministério Público Federal, na figura de seus procuradores e diferentemente de juízes
de direito - sejam de quais esferas forem, podem e devem apresentar parcialidade, pois eles representam a
figura do “fiscal da lei”, podendo, portanto, ter postura acusatória diante de fatos por ele arguidos. Assim,
nada mais natural que em sua construção discursiva/retórica e ao mesmo tempo técnica-jurídica, o MPF
257
Outro ponto que nos chama a atenção é que, em algumas das partes que grifamos
na citação direta acima, percebemos uma preocupação do MPF em descrever as
perturbações de ordem reprodutiva e correlatas, como a referência à malformação de fetos
de ratos ou amamentação dos mesmos, por exemplo. O que pode nos passar uma certa
impressão de que, ainda que não se encontre expressa, na ACP em exame, a tutela de
grupos vulneráveis como crianças, ou a proteção e perpetuação da espécie humana diante
da exposição ambiental e de sua saúde à potencial contaminação por 2,4-D. Esta
preocupação ou referência parece estar, embrionariamente, presente na ação patrocinada
pelo MPF e aqui revelada pelo uso de documentos científicos e não de conceitos e termos
como futuras gerações, justiça ambiental ou desenvolvimento sustentável.
Nesse instante, é interessante observarmos que o MPF parece não ter deixado de
lado tal questionamento, quando se utiliza, em ambas ACPs, do argumento da precaução,
o qual não advoga pelo que ele denomina como “risco-zero”, conforme percebemos nos
trechos abaixo:
tome por verdadeira, assim como um advogado faria em uma causa que patrocina, os dados que considera
mais favoráveis aos pedidos que pleiteia perante a justiça.
108
Em consulta a referida base de dados, a qual se encontra em inglês, percebemos que a PubMed parece
se tratar de uma base de dados com citações e resumos de artigos de investigação médicas oferecidos pela
Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos, a qual também será acionada pela ACP 05/2014/MT.
258
Dessa forma, ante à existência de uma ameaça de danos irreversíveis à
saúde da população brasileira, nasce a obrigação das autoridades
competentes em agir. Nesse diapasão, está-se invocando o princípio da
precaução que, atuando na incerteza científica, não advoga “pelo risco
zero”, mas exige que se dê importância à proteção da saúde pública
contra riscos desconhecidos ou insuficientemente esclarecidos. (MPF,
2014 a, p. 16)
Ressalta o MPF, nessa seção, por fim, que não há risco de irreversibilidade do
provimento antecipado: caso o juízo entenda que não seja caso de suspensão dos registros
de produtos que contenham os mencionados ingredientes ativos, pois poderá revogar a
determinação de modo que os produtos formulados à base desse organoclorado possam
ser novamente utilizados (MPF, 2014 a, p. 21-22 e MPF, 2014b, p. 27-28).
259
Tabela 6 – petição n. 6969/2014 (ACP 03/2014/DF).
260
O teor da ACP em comento é eminentemente técnico, pois a possibilidade de
utilização de agrotóxicos com o benzoato de emamectina ocorreu, através de um contexto
ligado à autorização dos estados em situação de emergência fitossanitária a implementar
o plano de combate da lagarta "helicoverpa armígera" nas lavouras de soja e algodão.
Referida autorização foi aberta por intermédio do MAPA. Na ocasião, dentre as ações
autorizadas pelo governo federal para combater os ataques da lagarta, restou a referida
medida, que permitiria, equivocadamente, segundo sustenta o MPF em sua ACP, a
importação e utilização de agrotóxicos com o ingrediente ativo benzoato de emamectina.
O procurador esclareceu em sua ACP que não são contrários às ações administrativas para
o controle de casos que levem a situações de emergência fitossanitárias, mas que é preciso
observar a legislação pertinente, bem como as normativas das instâncias técnico-
operativas, além de se resguardarem os interesses da coletividade.
Interessante fato que permeia a presente ACP e que delineia de forma muito clara
o campo de disputas que envolve a temática que estudamos, dá conta de que o Ministério
da Agricultura chegou a tentar a aprovação do uso de agrotóxicos que contivessem o
benzoato de emamectina no Comitê Técnico de Assessoramento para Agrotóxicos –
CTA. Todavia, o comitê manifestou-se contrariamente à utilização da substância. O
Ibama também se manifestou sobre o uso do benzoato de emamectina, afirmando que não
há elementos que permitam justificar seu uso, pelas razões apontadas pela Anvisa.
Diferentemente e, talvez, até mais gravemente do que o caso do 2,4-D estudado na ACP
04/2014/DF, aqui temos um consenso técnico-científico entre instâncias operativas como
ANVISA e IBAMA, por exemplo.
109
Trecho reproduzido de reportagem noticiando a ACP pela própria assessoria de comunicação do MPF.
Mais informações encontram-se disponíveis em: <http://www.gvces.com.br/mpf-mt-tenta-impedir-o-uso-
de-agrotoxico-a-base-de-benzoato-de-emamectina?locale=pt-br>. Acesso em: 31 ago. 2017.
261
importação de agrotóxicos à base de benzoato de emamectina para o controle da praga de
lagartas, conferindo aos órgãos estaduais de fiscalização agropecuária a atribuição para
autorizar o uso desses agrotóxicos. Ocorre que no estado do Mato Grosso, o INDEA não
exigiu o registro dos agrotóxicos no MAPA, nem mesmo o cadastro perante o órgão
estadual para a utilização nas lavouras.110
110
A ACP estudada traz mais detalhamentos dessa disputa em página e nota de rodapé da na própria ação
em estudo quando diz que: “Logo em seguida, mesmo diante do posicionamento contrário do CTA, o
Ministro da Agricultura decidiu unilateralmente atender aos pleitos dos produtores rurais e fez publicar a
Instrução Normativa MAPA n° 13, de 3 de abril de 2013, através da qual permitiu que a Secretaria de
Defesa Agropecuária – SDA, autorizasse a importação de agrotóxicos a base de benzoato de emamectina,
para o controle da praga de lagartas. Ou seja, o MAPA, em tese, autorizou a importação de agrotóxicos que
não possuem o devido registro no Brasil [...] A liberação da importação de tais agrotóxicos sem registro no
Brasil causou forte polêmica em Brasília, por não observar os procedimentos aplicáveis, caso registrado
pelos meios de comunicação. A decisão gerou questionamentos, inclusive, dentro do próprio setor
produtivo, vindos, e.g., da AENDA (Associação Brasileira dos Defensivos Genéricos), que achou estranho
o fato de agrotóxicos sem registro terem obtido liberação mais célere do que outros já registrados no país,
sendo que todos teriam como alvo o combate à helicoverpa spp
<http://www.agrolink.com.br/biotecnologia/noticia/5-inseticidas-podemcontrolar
lagartahelicoverpa_168885.html>. Tal fato sugere a possibilidade da ocorrência de forte lobby de empresas
produtoras/comercializadoras da molécula benzoato de emamectina. O fato gerou, também,
questionamentos junto à Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos
Deputados <http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/
comissoes/comissoespermanentes/cmads/noticias/sarney-filho-questiona-liberacao-deagrotoxico-sem-
registro-no-pais>. Ministério Público Federal in: (MPF, 2014c, página 06).
262
instituto para visitarem centros de pesquisas e diversas fazendas australianas nas regiões
de Moree, Goondiwindi, Wee Waa e Narrabri, os quais ficaram impressionados com a
forma como os cotonicultores australianos lidam com a Helicoverpa spp. (Helicoverpa
armigera e Helicoverpa punctigera), praga-chave da cultura do algodoeiro na Austrália e
responsável por grandes perdas na produção desde o início do cultivo do algodão naquele
país.
Assim como em boa parte das ACPs estudadas até agora, a valoração e disputa
em relação a dados técnico-científicos fazem parte da construção de muitos argumentos
utilizados pelo MPF. Um dado que diferencia a presente ação, é que esta, ao invés de ter
uma disputa com órgãos operativos como a Anvisa e o CTNBio, conforme observamos
nas ACPS 03/2014/DF e 04/2014/DF, contrariamente, apoia-se nos dados produzidos
263
pela Anvisa e também traz estudos, como o Dossiê Abrasco do ano de 2012 111 e a obra
de Flávia Londres – Agrotóxicos no Brasil, um guia em defesa da vida, ambos tratados
no capítulo 03 desta tese, além de utilizarem-se de doutrina e jurisprudência referentes à
área específica do Direito Ambiental, com obras de Paulo Affonso Leme Machado,
Superior Tribunal de Justiça e obras correlatas.
111
Na ocasião da propositura da presente ACP não havia saído ainda o dossiê ABRASCO que trabalhamos
no capítulo 03, uma vez que a ação é da data de 2014 e o novo dossiê é do ano de 2015.
112
Referido trecho por nós citado, possui duas importantes notas que aqui colacionamos. Uma traz o site
do EPA pesquisado pelo MPF, o qual pode ser encontrado nesse link:
<http://www.epa.gov/pesticides/chem_search/cleared_reviews/csr_PC-122806_25-Jul-08_a.pdf>. e outra
nota fala dos impactos em relação às populações de abelhas e diz que: “Os impactos extremamente nocivos
dos agrotóxicos sobre as abelhas tem despertado a preocupação dos órgãos ambientais por todo o mundo,
tendo em vista que estudos sobre a ação das abelhas no meio ambiente apontam a extraordinária
contribuição desses insetos na preservação da vida vegetal e também na manutenção da biodiversidade.
Nos ecossistemas mundiais, as abelhas são os principais polinizadores. No Brasil, sobre o tema, o IBAMA
264
O MPF resume suas colocações nesse ponto informando que estudos realizados
em outros países comprovam o elevado potencial nocivo do benzoato de emamectina para
o meio ambiente, mas que no Brasil vigora a incerteza científica quanto à extensão desses
impactos negativos sobre os biomas nacionais, fato esse que deve levar à utilização do
princípio da precaução e do princípio in dubio pro natura113, sendo assim finalizada a
ACP.
publicou trabalho intitulado Efeitos dos Agrotóxicos sobre Abelhas Silvestres no Brasil
<http://www.ibama.gov.br/publicadas/publicacao-do-ibama-aponta-efeitosdos-agrotoxicos-sobreasbelhas-
silvestres-no-brasil>, no qual são indicadas as consequências dos agrotóxicos sobre as abelhas e propostas
medidas para mitigar esses danos.
113
Assim como o Direito Penal possui o princípio do “in dubio pro reu”, o direito ambiental aloca-se no
princípio do “in dubio pro natura” que pode ser traduzido como “na dúvida, proteja-se a natureza”.
265
No item II – Dos fatos, destacamos o seguinte trecho:
114
Fiscal da Lei ou Custos legis são termos que servem para descrevermos o Ministério Público e que fazem
parte do denominado jargão jurídico ou “juridiquês” como preferem alguns. Outra referência que podemos
encontrar em relação ao Ministério Público é o vocábulo de origem francesa denominado parquet que
provém da tradição francesa, inclusive, Lebouch, jurista francês, afirmou a existência de duas espécies de
magistraturas: a sentada, representada pelo Juiz, que trabalha sentado nas audiências e exerce suas funções
passivamente; e a magistratura de pé, representada pelo Parquet, que é o Ministério Público, que trabalha
em pé, uma vez que seria um órgão provocador, funcionando de forma ativa.
266
Aproveitamos para informar que esse é o único momento em que o termo futuras
gerações aparece, sendo acionado como objeto jurídico a ser tutelado nesta ACP que
também faz alusão ao princípio n. 15 da Declaração do Rio de Janeiro, mas não apresenta
expressa preocupação com o efeito da insegurança jurídica das sementes transgênicas
para parcelas etárias específicas da população, parecendo-nos que a preocupação com o
futuro da humanidade fica revelada através da invocação ao princípio da precaução e
prevenção que comporta de forma extensiva um certo vislumbre de preocupação com o
futuro da humanidade e a perpetuação da espécie. Destacamos, inclusive, referido trecho
da ACP que faz alusão a uma obra da doutrina jurídica ambiental do já mencionado autor
Paulo Affonso Leme Machado:
267
4.2.2 ACP 02/2013/MA
Na seção “Do Direito”, a ACP, inicialmente, apoia-se na Lei n. 7.802/89 que trata
do ciclo de vida dos agrotóxicos e, em especial, nos artigos 3º e 6º que tratam do registro
de agrotóxicos e dos requisitos das embalagens, respectivamente, além dos artigos 9º e
12º que tratam das competências da União e da fiscalização do Poder Público. Após, foi
citado o Decreto n. 4.074/2002 que veio regulamentar referida Lei n. 7.802/89 e,
novamente, o MPF evoca a questão das competências, controle, inspeção e fiscalização -
Arts. 68 a 80A do referido Decreto e cuja reprodução dos artigos ocupam várias páginas
da ACP, mais especificamente, páginas de 16 a 20 com a reprodução dos textos legais.
268
da área ambiental dentro do Direito, hoje promotor aposentado do Estado de São Paulo e
ainda combatente da área ambiental, tendo sido, inclusive, um dos idealizadores da Lei n.
6.938/81 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente no país, primeiro marco
legal de uma proteção ambiental macro.
Todavia, a referência doutrinária a Paulo Affonso Leme Machado não toma mais
de um parágrafo das 27 páginas da ACP 02/2013/MA e reproduzimos na íntegra seu
trecho logo abaixo:
Nesse contexto, também Paulo Affonso Leme Machado pontua que “o
Poder Público precisa prevenir na origem os problemas de poluição e
de degradação da Natureza”, acrescentando que “o risco na produção
(da energia nuclear, por exemplo), na comercialização, no emprego de
técnicas (como biotecnologia) e de substâncias (como agrotóxicos),
tem que ser controlado pelo Poder Público (art. 225, §1º, V)” (sem
destaque no original). (MPF, 2013, p. 22).
115
BRASIL. CF/88 - Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 64, de 2010);
BRASIL. CF/88 – Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
270
Geral da ONU em 1966 e ratificado pelo Brasil no ano de 1992
(promulgado pelo Decreto n. 591/1992), apresenta como um dos
principais instrumentos internacionais de proteção dos Direitos
Econômicos, Culturais e Sociais. Dentre os direitos sociais, o referido
Pacto consolidou o direito à alimentação e ao mais elevado nível de
saúde física e mental, com a seguinte previsão [...]. (sem destaque no
original). (MPF, 2014 a, p. 8-9; MPF, 2014 b, p. 12-13).
116
PIDESC - Artigo 11 - 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um
nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia
adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão
medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância
essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar
protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas,
inclusive programas concretos, que se façam necessárias para: a) Melhorar os métodos de produção,
conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e
científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos
regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos
naturais; b) Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às
necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de
gêneros alimentícios.
PIDESC - Artigo 12 - 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de
desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.
2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno
exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar:
a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento é das crianças;
b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o
tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas
doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso
de enfermidade.
117
Protocolo de San Salvador - Artigo 10 - Direito à saúde - 1. Toda pessoa tem direito à saúde, entendida
como o gozo do mais alto nível de bem-estar físico, mental e social; 2. A fim de tornar efetivo o direito à
saúde, os Estados Partes comprometem-se a reconhecer a saúde como bem público e, especialmente, a
271
argumentam que, após demonstrarem essas legislações nacionais e internacionais, não
resta dúvida de que o direito à saúde e à alimentação foram recepcionados como direitos
humanos fundamentais, e relacionam o acesso permanente e estável da população a
alimentos saudáveis e seguros com o direito à saúde, trazendo na sequência o artigo 225
da Constituição Federal que trata do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mais
uma vez, as ACPs buscam mostrar que ao se assegurar o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, estão sendo protegidos, também, os direitos individuais à
vida e à dignidade humana e, por consequência, se estaria garantindo a promoção dos
direitos civis e econômico-sociais, aí incluídos o direito à saúde e alimentação adequada.
adotar as seguintes medidas para garantir este direito: a. Atendimento primário de saúde, entendendo-se
como tal a assistência médica essencial colocada ao alcance de todas as pessoas e famílias da comunidade;
b. Extensão dos benefícios dos serviços de saúde a todas as pessoas sujeitas à jurisdição do Estado; c. Total
imunização contra as principais doenças infecciosas; d. Prevenção e tratamento das doenças endêmicas,
profissionais e de outra natureza; e. Educação da população sobre prevenção e tratamento dos problemas
da saúde; e f. satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais alto risco e que, por sua situação
de pobreza, sejam mais vulneráveis. (sem destaque no original).
Protocolo de San Salvado - Artigo 12 - Direito à alimentação - 1. Toda pessoa tem direito a uma nutrição
adequada que assegure a possibilidade de gozar do mais alto nível de desenvolvimento físico, emocional e
intelectual; 2. A fim de tornar efetivo esse direito e de eliminar a desnutrição, os Estados Partes
comprometem-se a aperfeiçoar os métodos de produção, abastecimento e distribuição de alimentos, para o
que se comprometem a promover maior cooperação internacional com vistas a apoiar as políticas nacionais
sobre o tema.
272
de abordagem do MPF é contundente, porém limitado a aspectos legislativos e técnico-
científicos.
Observamos também que o MPF utiliza diversas vezes a menção à palavra risco,
sempre associando-a às consequências da não reavaliação toxicológica dos princípios
ativos que são objeto das ações em comento e sua relação com a saúde humana e meio
ambiente, ou seja, não há menção à construção sociológica esposada por Ulrich Beck e já
comentada em capítulo próprio deste trabalho, mas existe uma percepção de risco.
Ainda na seção “do Direito”, ambas ACPs se subdividem no item 6.2 que possui
o mesmo título: “Necessidade de Observância dos Princípios da Precaução, da Prevenção
e da Proteção da Saúde Humana”, e invocam a já referenciada Lei n. 7.802/89 – conhecida
como Lei dos Agrotóxicos e já arguida em outra ACP comentada neste capítulo, bem
como no Decreto n. 4.074/2002.
Assim, o MPF advoga que, além dos requisitos de qualidade, eficácia e segurança
referentes às práticas e produtos de interesse da saúde, a Vigilância Sanitária deve fazer
valer, intransigentemente, o princípio bioético do benefício, além dos princípios da
prevenção e da precaução para que seja garantida a proteção da saúde da coletividade.
118
Declaração de Estocolmo – Princípio 1º - “(o) homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade
e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar
uma vida digna, gozar de bem-estar, e é portador solene de obrigação de melhorar o meio ambiente, para
as gerações presentes e futuras...”
Declaração de Estocolmo – Princípio 2º - “(o)s recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a
flora e a fauna e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados
em benefício das gerações atuais e futuras...”.
273
4.2.4 ACP 05/2014/MT
Apenas para relembrar, mencionamos que a presente ACP se deu contra o Estado
do Mato Grosso e o Instituto de Defesa Agropecuária - INDEA para impedir o uso de
agrotóxicos que contenham a substância benzoato de emamectina em sua composição.
Referida substância não possuía registro no Ministério da Agricultura para ser utilizado
no Brasil, e a Anvisa não indicava a utilização da substância, por conta de sua alta
toxicidade para a saúde humana, ao mesmo tempo em que o INDEA já havia recebido
pedidos para utilização de 63 toneladas do agrotóxico nas lavouras matogrossenses.
No que tange à percepção de risco como a proposta por Ulrich Beck, temos que a
palavra risco aparece muitas vezes ao longo das páginas da ACP 05/2014/MT, mas que
está sempre ligada às interpretações da legislação ou dos estudos técnico-científicos
adotados na ação como o Dossiê Abrasco e a obra de Flávia Londres, que tratam, de forma
específica, da relação entre agrotóxicos e seus desdobramentos e riscos para a saúde e
meio ambiente.
274
No tocante ao termo Justiça ambiental, temos uma citação da obra de Flávia
Londres na página 19 da ACP 05/2014/MT que menciona que as pessoas mais expostas
aos perigos da contaminação pelos agrotóxicos são aquelas que têm contato com eles no
campo e cita os aplicadores, preparadores de caldas e responsáveis por depósitos, que têm
contato direto com os produtos, bem como, os trabalhadores que têm contato indireto com
os venenos quando realizam suas atividades de colheita, roçados e similares. Referida
citação reconhece que tais grupos são alvos de grande risco, mas não adentra de forma
mais específica na questão e nem tece comentários mais aprofundados em relação à
percepção do risco e da construção social deste.
Parece-nos que a dúvida no MPF não reside no fato de que “o agro seja tech ou
que o agro seja pop”, pois o arcabouço técnico-científico utilizado nas ACPs entra em
275
consonância com estudos que tratam das revoluções agroprodutivas e o alto consumo de
agrotóxicos no país e seu modelo monocultor. A questão a ser respondida pelo MPF,
assim como a de estudos técnicos do capítulo anterior, aparenta ser: o agro é tóxico em
níveis comprometedores ao meio ambiente, saúde humana e segurança alimentar? Em
caso positivo, ou em caso de dúvidas, podemos continuar a arriscar direitos em nome de
potenciais suspeitas?
119
Referido processo pode ser consultado através do número referenciado no site:
<https://www2.jfrs.jus.br/>.
277
o MPF peticiona (fls. 1670-1671)120 requerendo, em vista do cumprimento integral dos
termos acordados, o arquivamento do processo.
Na sentença, em relação aos termos pelos quais nos referenciamos, temos que a
expressão “futuras gerações” aparece apenas quando é citado o artigo 225 da Constituição
Federal, não se aprofundando o questionamento sobre a segurança do modelo
agroprodutivo desenvolvido na região, mas apenas mencionando-se, na parte denominada
“Relato”121 da sentença, os argumentos trazidos pelo MPF em sua ACP.
120
Observamos que em pouco mais de 10 anos, o processo já ultrapassou as 1500 páginas, o que parece ser
revelador de que, desde o início das ACP’s escolhidas pelo GT de Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR
do MPF, os temas são densos e se prolongam no tempo e no espaço.
121
O elemento “relato”, assim como os “fundamentos” e “dispositivo” são partes legalmente obrigatórias
na elaboração de uma sentença.
122
A movimentação processual pelo número da presente ação pode ser conferida no site do TRF 1, no
seguinte endereço eletrônico: <http://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php>. Acesso em:
23 de agosto de 2017.
278
federal substituto, Caio Castagine Marinho, foi proferida a seguinte decisão inicial:
“decisão com deferimento de tutela definida em partes”.
Comentamos que as respostas das partes que integram o polo passivo da presente
demanda chegam a ser pueris, pois a impressão que nos passam é de que a AGED informa
estar plenamente em dia com suas obrigações, enquanto a União parece tentar mandar o
recado de que “não tem muito o que fazer” em relação à problemática exposta pelo MPF
em sua ACP 02/2013/MA.
279
Justiça123. O magistrado continua sua linha de convencimento informando que é visível o
risco de dano ao meio ambiente e a outros interesses difusos e que é preciso, através da
jurisdição, assegurar a eficácia e a integridade dos direitos fundamentais - proteção ao
meio ambiente, à integridade física e à vida de um elevado número de pessoas, e considera
o manejo da ACP 02/2013/MA como instrumento adequado à proteção de referidos
direitos fundamentais, sobretudo por causa da alta significação ambiental e segurança
pública de tal atuação.
123
Mencionamos que é comum ao “modus operandi” do universo jurídico ou campo jurídico (Bourdieu)
seja por parte de advogados, membros do ministério público ou juízes a utilização das jurisprudências dos
tribunais superiores – STJ e STF, principalmente e TST para o caso da justiça do trabalho, como elementos
basiladores de sua produção documental de petições, decisões, sentenças e similares, sempre acompanhadas
da doutrina – que são os estudos feitos por mestres e doutores da área que alguns denominam por ciência
jurídica. As jurisprudências nada mais são do que a manifestação daquilo que é interpretado e decidido
pelos Tribunais em relação a determinados aspectos. No caso mencionado, o juízo de primeiro grau evoca
a posição do STJ para basilar seu entendimento de que a União tem sim responsabilidade e, portanto,
legitimidade para ser parte passiva na presente ACP.
280
(cento e oitenta) dias, sob pena de multa diária no valor de R$
30.000,00 (trinta mil reais), o levantamento das condições das
lavouras de soja e demais culturas agrícolas que empreguem o
herbicida Glifosato no Estado do Maranhão, relatórios de vistorias
em todas elas e estudos técnicos necessários a definição da
contaminação do solo e em corpos hídricos afetados pelo lançamento
do herbicida, com as medidas de correção pertinente; II) à União e ao
Estado do Maranhão, que realizem. no mesmo prazo e sob pena de
incidência da mesma multa diária do item anterior, análise de
resíduos de Glifosato nos produtos de origem vegetal, a fim de
monitorar a presença excessiva do referido agrotóxico; III) ao
Estado do Maranhão, que no procedimento de concessão de novas
licenças ambientais, ou renovação dos anteriormente concedidas
aos empreendimentos agrícolas que façam uso do herbicida
Glifosato observe as seguintes condicionantes/requisitos: a.
constatação, da utilização do Glifosato anteriores dentro dos limites
ideais (...); b. demonstração de correto descarte das embalagens
utilizadas, conforme dispõe as normas legais sobre o tema; c. vedação
da utilização do uso de aeronaves na aplicação do Glifosato.
Percebemos que, até aqui, não apareceu nenhuma terminologia que nos remeta a
aos termos de análises que nos propusemos. Assim, ainda que se fale de risco e saúde
humana e proteção ambiental, parece haver carência de um maior enfrentamento jurídico
ou sociológico de conceitos como risco (Beck), justiça ambiental, sustentabilidade e
proteção das presentes e futuras gerações.
281
documento do processo não se encontrar disponibilizado digitalmente. Atualmente o
titular da vara onde corre o processo é Ricardo Felipe Rodrigues Macieira.
A primeira decisão ocorreu na data de 23 de abril de 2014 por parte do juiz federal
em auxílio na 7ª Vara, José Márcio da Silveira e Silva, que apresentou sua decisão em
pouco mais de 03 páginas.
Após seu sucinto relato, o juiz passa a sua decisão, que passamos a reproduzir em
sua quase totalidade na citação abaixo, onde afirma que:
282
Além disso, a própria Anvisa, em sua manifestação prévia, reforça a
necessidade de longo prazo de análise, cercado das cautelas de
reavaliação toxicológica está em pleno curso, e uma decisão judicial
precipitada traria prejuízos não só para a indústria de defensivos
agrícolas, como, também, para os agricultores, que utilizam tais
produtos ao longo de anos e não contariam com a reposição de
outros, em substituição, em curto prazo de tempo.
Outro ponto que nos chamou a atenção na análise de referida decisão, é o fato de
que em nenhum momento o juiz chama agrotóxicos de agrotóxicos, como esposado em
toda a ACP 03/2014/DF do Ministério Público Federal, pois percebemos a utilização de
termos como defensivos agrícolas e produtos, o que parece deixar transparecer um certo
entendimento de que, para o magistrado, talvez, a ideia da toxicidade dos elementos
utilizados nas lavouras brasileiras seja tida como um tanto quanto exagerada, sendo mais
seguro encampar a expressão utilizada pelos setores do agronegócio. Corroborando tal
entendimento, temos o trecho no qual o decisor informa que: “tais produtos vêm sendo
utilizados nas lavouras brasileiras há muitos anos sem registros notórios de danos à
saúde.”
283
Percebemos ainda, pela curta decisão judicial, que não são concedidas muitas
justificativas em relação a não consideração dos elementos técnico-científicos carreados
pelo MPF nos autos da ação em questão, todavia parece ser esposada uma preocupação
de viés econômico, pois o magistrado afirma que referida decisão favorável à suspensão
dos defensivos agrícolas geraria prejuízos a indústria produtora e também aos
agricultores.
Outro ponto que nos causou curiosidade é porque antes da determinação de citação
e intimação das partes rés, o Sindiveg – Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para
Defesa Vegetal e a FMC Química do Brasil Ltda já se apresentavam como assistentes
litisconsorciais das rés, mesmo sem citação ou intimação formal, como ficaram sabendo
da demanda? Estariam de sobreaviso desde, provavelmente, a instauração do Inquérito
Civil? O nome do Sindicato também chama a atenção, Sindicato de Defesa Vegetal, ou
seja, não se busca o nome agrotóxico, mas a aparência de “defesa vegetal” contra as
pragas nas lavouras do país.
284
aprovada a proposta de RDC para regular seu banimento [...] Quanto a
esses dois ingredientes, portanto, fica evidenciada a perda
superveniente do objeto, considerando que já não há mais interesse
processual pela reavaliação toxicológica, posto que realizada.
Subsistem, no entanto, os outros seis ingredientes ativos, cuja
reavaliação toxicológica encontra-se em andamento. Neste particular,
a Anvisa informou, em manifestação prévia, que pretendia finalizar
os processos de reavaliação até julho de 2015 (fls. 246). Embora tal
prazo, estabelecido pela própria Anvisa, esteja próximo de seu
termo, não se pode ignorar que esta ação prolonga-se por mais de
quatorze meses, tendo como resultado concreto o banimento de
apenas dois dos oito ingredientes ativos sujeitos à reavaliação e,
destes dois, um aguarda a publicação da regulamentação há quase
seis meses. Considerando, ainda, as novas notas técnicas, que
abrangem os ingredientes lactofem, carbofurano, abamectina,
tiram e paraquate, com recomendação de banimento em todos os
casos, urge que a Anvisa, como órgão de especial atuação em todos
os setores relacionados a produtos e serviços que possam afetar a
saúde da população brasileira, finalize os processos de reavaliação
toxicológica, os quais se arrastam desde o ano de 2008.
Além disso, mesmo considerando que existam novas técnicas capazes de auferir
a toxicidade dos elementos objetos da ACP, a juíza entende que a totalidade de estudos
técnico-científicos trazidos pelo MPF é ainda insubsistente, sem maiores explicações
sobre a base em que ela se sustenta para auferir tal convencimento sobre a subsistência
ou não de estudos científicos da própria OMS – Organização Mundial da Saúde, através
285
da sua agência de combate ao câncer – Iarc, entre outros, como é o caso da ACP em
comento.
Até o fechamento deste capítulo, em janeiro de 2018, fizemos uma rápida busca
ao site da Anvisa, onde foi possível encontrar um link com o seguinte questionamento:
“quais reavaliações encontram-se em andamento na Anvisa?”, vindo logo abaixo a
resposta de que, atualmente, há seis reavaliações toxicológicas em andamento, dos
seguintes ingredientes ativos de agrotóxicos: Determinada pela RDC 124A/2006: n-
Ácido 2,4-diclorofenoxiacético (2,4-D) e Determinada pela RDC 10/2008: Abamectina,
Carbofuran,Glifosato, Tiram e Paraquate.124
124
Maiores informações podem ser vistas no site da ANVISA, setor de regularização de produtos –
Agrotóxicos. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/registros-e-
autorizacoes/agrotoxicos/produtos/reavaliacao-de-agrotoxicos>. Acesso em: 27 ago. 2017.
286
futuras gerações. Quanto à percepção de risco, apenas, menciona-se o risco inerente aos
insumos químicos e nada é acionado em relação a proposta feita por Ulrich Beck.
No que pertine à ACP que tratou da substância ativa 2,4-D, a primeira decisão
data de 04 de abril de 2014 e se apresenta em 12 páginas, sendo da lavra do juiz titular da
de 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, Jamil Rosa de Jesus Oliveira.
Referido ação ganhou o seguinte n. de processo: 0021372-34.2014.4.01.3400.
Diz a União, em sua resposta, que o 2,4-D é uma das substâncias químicas mais
estudadas no mundo e que está registrado em mais de 70 países e também informa que o
MPF se equivoca quando associa o 2,4- D ao “agente laranja” que é o 2,45-T, sendo esse
componente jamais utilizado na agricultura brasileira. Informa, ainda, que a Justiça
Federal do Paraná julgou improcedente pedido idêntico ao exposto na ACP 04/2014/DF,
sendo produzida, segundo a União, prova pericial conclusiva no sentindo de que o 2,4-D
não causa danos aos lençóis freáticos e tampouco às águas superficiais e que não existem
evidências de seu caráter teratogênico, carcinogênico e nenhum perigo ao meio ambiente
ou à saúde humana.
Por fim, aduz a União no relato da decisão, ora examinada, que não estão presentes
elementos para a não concessão da tutela e destaca que existe um alto uso do 2,4-D nas
culturas de soja, cana-de-açúcar, milho, trigo, arroz, café, assim como nas pastagens,
arguindo que toda a população brasileira que depende da produção agrícola seria
287
absurdamente prejudicada, no caso de concessão de liminar, além dos prejuízos de
enorme conta causados para o país.
288
níveis permitidos para os seres humanos e para o meio ambiente, e assim como as decisões
da 7ª vara federal em ACP correlata – ACP 03/2014/DF, diz o magistrado que: “Os
estudos e opiniões em que o Autor se baseou para requerer a providência de suspensão
dos registros não são conclusivos no sentido de que referido produto tem sua toxicidade
acima dos níveis considerados seguros para o ser humano e o meio ambiente, em ordem
a reclamar uma tão drástica medida, sobretudo se se considerar seu uso há tanto tempo
no país e sem notícias ministradas pelo Autor no seu manuseio ou em decorrência do seu
uso na agricultura, que podem correr aqui e ali, como ocorrem com outros produtos
tóxicos, perigosos e inflamáveis” (decisão 4 de abril de 2014, item 13, p. 05).
125
Em relação à aplicação tratorizada, lembramos que o Brasil é um dos poucos países que possuem ainda
a pulverização aérea como método de aplicação de agrotóxicos e que o mencionado apagão parece não
condizer com os dados já ofertados ao longo desse estudo, uma vez que o país pode ser considerado o maior
consumidor de agrotóxicos do mundo e o 2º maior consumidor de transgênicos. Já a pretensa culpabilização
pelo uso inadequado dos agrotóxicos caber aos aplicadores de produto, já tratamos da questão em capítulo
próprio desse trabalho.
289
O magistrado também reproduz os argumentos contrários ao 2,4 –D, muitos deles
já abordados quando da análise da ACP 04/2014/DF, os quais orbitam em torno do
desrespeito dos órgãos técnicos, estudos científicos, além da influência da toxicidade do
2,4-D nas colmeias de abelhas e contaminação de mulheres grávidas.
A expressão utilizada pelo julgador quando considera a situação por ele analisada
como “sem sentido e que nada, absolutamente nada é conclusivo” pode ser reveladora
do quanto o judiciário pode não estar preparado para tratar da materialização de disputas
em torno da técnica, ao mesmo tempo em que nos causa um certo estranhamento, pois
acreditamos que o juiz poderia esperar consenso se estivéssemos em um simpósio da
Monsanto para sojicultores e similares ou em um Congresso de agroecologia e afins, não
em uma audiência pública que pretendeu colacionar, nas próprias palavras do magistrado:
“uma plêiade de pessoas expressivamente interessadas na manutenção ou erradicação
do uso do herbicida.”
290
Temos a impressão, diante de afirmações como as acima expostas, que parece
faltar ao magistrado a percepção de elementos que compõe a sua própria atuação
jurisdicional (técnica-operativa), entre os quais podemos destacar o de decidir em
momentos de dissenso e, mais ainda, ter sempre em mente que a seara jurídica é elemento
de constante evolução e transformação por conta da presença de posicionamentos
antagônicos. O Direito e a lei, inclusive, se materializam e se aplicam em meio aos mais
amplos dissensos, nas mais variadas épocas126. Assim, imaginamos que diante de uma
discussão que claramente orbita entre discursos técnico-científicos que defendem ou
criticam a utilização do 2,4-D na agricultura, há muito sentido na existência de
contrapontos, ao contrário do que argumenta o juiz em comento.
O vocábulo acionado pelo juiz, através do uso da expressão “trechos tirados aqui
e ali”, sem demonstrar um esforço de sistematização de pensamento ou de reprodução
dos “trechos aqui e ali” por ele mencionados parecem ser indicativos de uma linha
decisória mais intuitiva do que propriamente técnica, fato que talvez fique mais claro
quando analisarmos a decisão da ACP 05/2014/MT, onde a magistrada utiliza-se de outras
construções frasais e aciona uma base técnica-operativa diferenciada ao observado até
aqui.
126
Apenas para utilizarmos uma analogia, sabemos que, certamente, não havia consenso entre abolicionistas
e escravagistas no século XIX no nosso país, sem falar nos terríveis reveses econômicos que a ideia da
abolição deveria provocar na mente da sociedade abastada da época, fato que, pretensamente, poderia
compor os argumentos dos juízes da época da escravidão. Vale lembrarmos, inclusive, que quando da
existência da escravidão no país, o Direito produzia seus juristas e sua doutrina “pró-escravidão”, a qual
dava conta, inclusive, no Código Civil da época, de que escravos não eram coisas, mas também não eram
seres humanos dotados de personalidade e dignidade humana completa, mas seres de natureza jurídica
híbrida.
291
Sugere o julgador em sua decisão que sejam criados debates amplos e em foros
apropriados e que se forneçam aos órgãos competentes, inclusive ao Poder Legislativo,
informações suficientes, claras e tecnicamente irrespondíveis e que não se pode paralisar
a produção e o uso de tão importante herbicida, com reflexos na produção de alimentos,
pastagens e matérias-primas para a produção de biocombustível, bem como das empresas
geradoras de empregos, divisas e tributos. Por fim, considera que, embora louvável o
trabalho do MPF, o pedido de antecipação de tutela não pode ser deferido.
Percebemos, até o presente exposto, que ambos juízes, das distintas varas (7ª e 14ª
vara federal de Brasília), parecem decidir ancorar seus argumentos na ideia de que a
agricultura no país já funciona dessa forma há muitos anos e sem o que eles denominam
como “graves prejuízos” e que a perda maior para a nação se daria com a suspensão de
referidos ingredientes ativos por conta dos reflexos comentados no parágrafo acima e que
tratam da produção de matérias-primas, pastagens, alimentos, biocombustíveis e ganhos
das empresas, não se comentando, entretanto, sobre saúde, meio ambiente, nutrição
humana ou se acionando termos como sustentabilidade e justiça ambiental.
No que tange aos usos e contextos dos termos de nossa análise, temos que não se
faz presente a menção as futuras gerações, mesmo quando se trata da contaminação por
agrotóxicos de mulheres grávidas, pois a informação é vista pelo magistrado apenas
“como um estudo inconsistente e inconclusivo, embora louvável, apresentado pelo
MPF”.
Um ponto que chamou a atenção do MPF nesta decisão, tratou da expressão usada
pelo magistrado quando este afirma que há “um quadro de incerteza científica”. Referida
afirmação foi objeto de recurso por parte da procuradoria da república denominado de
“embargos de declaração”, pois conforme esmiúça a legislação atinente ao caso, na
ocasião de incerteza científica, é cabível a utilização do princípio do Direito Ambiental
denominado de “princípio da precaução”127.
127
Aproveitamos para comentar de forma breve que o desconhecimento de boa parte dos juristas em relação
aos temas ambientais, mesmo aqueles dentro da seara jurídica, são notórios, sendo vista referida área com
um certo desdém pelos operadores do Direito. Inclusive, neste momento, saio da 3ª pessoa e me comunico
292
Por ocasião da resposta aos embargos, o juiz - que não acolheu referido recurso
ofertado pelo MPF, na data de 14 de abril de 2014 informa que:
na 1ª para informar que como professora de Direito Ambiental que sou há alguns anos, enfrento,
diuturnamente, o desafio de demonstrar o quanto o Direito Ambiental é tema relevante e necessário ao
desenvolvimento da denominada ciência jurídica.
293
Observamos que a ênfase de que o atual modelo agroprodutivo não parece ser
danoso ao longo dos anos é novamente acentuada, assim como em sua decisão inicial e
que, portanto, não há porque determinar a suspensão, pois os riscos ainda são pouco
conhecidos e os “estudos e opiniões” trazidos pelo Ministério Público Federal são
cientificamente inseguros”, além de não existir consenso técnico algum, na percepção do
decisor
Referidas afirmações, por parte do magistrado, podem ser explicadas pela postura
extremamente normativista, comum ao campo jurídico, onde escolhe-se um lado e
posiciona-se “como dono da verdade”, sem maiores explicações. No caso em tela,
observamos que as conclusões do MPF e da justiça federal de contrapõem frontalmente,
ficando cada um enfileirado em seu lado da trincheira e com linhas de defesa que,
basicamente, parecem oscilar entre a convicção do MPF de que o agro é tóxico e a
convicção do juiz federal de que o agro é tecnicamente (tech) seguro por conta do tempo
que vem sendo aplicado como modelo agroprodutivo no país.
No segundo parágrafo, o juiz traz um argumento que, mais uma vez, não
demonstra a preocupação com o acionamento da técnica jurídico-operativa ou da técnica-
científica, mas que parece estar muito mais próximo ao senso comum e mera oposição ao
posicionamento do MPF, pois afirma que: “até a gasolina, que se vende por todos os
lugares é potencialmente deletéria.” E mais adiante, emenda no mesmo parágrafo,
argumentando que: “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose ministrada”.
294
Todavia, ao mesmo tempo em que finaliza o penúltimo parágrafo de sua decisão
dizendo que não há certeza científica para a antecipação da tutela pretendida pelo MPF
em sua ACP, o magistrado legitima os estudos técnicos da Anvisa, quando diz que “os
agrotóxicos presumem-se legitimamente aprovados” até prova em contrário.
Por fim, noticiamos que o presente processo que envolve a ACP 04/2014/DF está
em trâmite ainda na 14ª Vara Federal do Distrito Federal, sendo sua última decisão datada
de 08 de março de 2017, onde foi deferida a entrada da Associação Brasileira de
Produtores de Soja – APROSOJA, como assistente dos requeridos na ação. O juiz federal
atualmente responsável pelo caso é, Waldemar Cláudio de Carvalho128 - o mesmo da
decisão que em setembro de 2017 ampliou a margem de interpretação da Resolução
01/1990 do Conselho Federal de Psicologia, dando margem à aplicação da reversão de
reorientação sexual, ou como alguns popularmente denominam: “cura gay”.129
Importante notarmos que prazos na justiça sempre se revelam muito mais elásticos
do que estamos acostumados, pois 48 horas transformam-se em pouco mais de 1 mês,
haja vista que foi preciso intimar as partes, as mesmas manifestarem-se, foram juntadas
respectivas manifestações e, só então, decidido.
128
No final do ano de 2014, o juiz Jamil Rosa de Jesus Oliveira foi promovido como desembargador federal
pelo critério da antiguidade, conforme notícia do TRF – Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Mais
informações em: <https://trf1.jusbrasil.com.br/noticias/137366061/trf-indica-o-juiz-federal-jamil-rosa-de-
= jesus-pelo-criterio-de-antiguidade-e-define-lista-triplice-para-segunda-vaga-de-desembargador-
federal>. Acesso em: 30 ago. 2018.
129
BETIM, Felipe. ‘Cura gay’: o que de fato disse o juiz que causou uma onda de indignação. Disponível
em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/19/politica/1505853454_712122.html>. Acesso em: 20 set.
2017. Tal fato nos fez questionar, ao fim da análise da presente decisão, se a dificuldade em tomar decisões
polêmicas não seria um problema para alguns juízes federais, mas a dificuldade residiria em tomar decisões
contramajoritárias.
295
Produtores de Algodão – AMPA e a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado
de Mato Grosso – APROSOJA apresentou petição com documentos e informações que
consideraram ser de grande valia na tomada de decisões pelo Juízo acerca do caso dos
autos e que entenderam que a liminar requerida nos autos deveria ser negada e o pedido
ser julgado improcedente.
A juíza então informou que, embora não tenham formulado pedido expresso de
intervenção no feito, as associações AMPA e APROSOJA manifestaram interesse em
prestar informações e acompanhar o trâmite do presente processo, já que possuem grande
número de associados e que não vislumbrou empecilho na participação dessas associações
no feito, na qualidade de amicus curiae, principalmente pelo fato de que são constituídas
para defenderem os interesses de seus associados, os quais certamente, serão atingidos
em suas esferas jurídicas por eventual decisão exarada nos autos.
Traz, também, à lume, a Lei n. 12.873, que trata em seu artigo 52 das emergências
fitossanitárias ou zoossanitárias, quando for constatada situação epidemiológica que
indique risco iminente de introdução de doença exótica ou praga quarentenária, ausente
no país, ou haja risco de surto ou epidemia de doença ou praga já existente e artigos
seguintes que tratam da questão e, em nível estadual, traz a Lei n. 8.588/2006
296
Importante notarmos que na questão suscitada no presente processo, existe uma
disputa entre a aplicação da chamada Lei de Agrotóxicos – Lei n. 7.802/89, já mencionada
pelo MPF em várias de suas ações e a Lei n. 12.873, de 24 de outubro de 2013, que
dispensou a exigência de registro, dispondo, in verbis, que: “A importação, produção,
comercialização e o uso de agrotóxicos, seus componentes e afins, ao amparo da
autorização emergencial temporária, prescindem do registro de que trata o art. 3º da Lei
n. 7.802, de 11 de julho de 1989”. Na decisão a juíza entendeu que não é caso de aplicação
da Lei n. 7.802/89, mas informa que ainda existem outras questões que merecem análise,
a despeito do afastamento do registro do agrotóxico que possua o princípio ativo benzoato
de emamectina em órgão federal.
A magistrada elenca uma série de itens a serem analisados em sua decisão, e que
o primeiro deles é saber se os agrotóxicos que possuem em sua composição tal princípio
ativo são os únicos que se mostram eficazes no combate à lagarta Helicoverpa armigera,
e informa que os réus e as intervenientes associações sustentam que sim, enquanto o MPF
entende que não.
297
Assim, ao confronto desses dois documentos com as alegações
dos réus permite-se concluir que há outras alternativas menos
gravosas ao meio ambiente e à saúde humana. (sem destaque no
original). (MPF, 2014c, p. 8-9).
A terceira questão enfrentada pela juíza diz respeito aos danos que a utilização do
benzoato de emamectina pode causar à saúde humana e ao meio ambiente e argumenta
que a documentação trazida pela União, em especial a que se refere ao processo
instaurado no âmbito do Ministério da Agricultura (processo n, 21000.001367/2014-66),
indica que o produto oferece grande possibilidade de causar graves danos ao meio
ambiente. Neste tópico de análise, o peso de elementos técnico-científicos também é
sentido, pois mencionam-se informações sobre intervalo de entrada de pessoas nas
culturas e áreas tratadas, limitações de uso, precauções de uso e advertências quanto aos
cuidados de proteção ao meio ambiente - produto altamente perigoso ao meio ambiente e
altamente tóxico para abelhas, peixes e organismos aquáticos.
130
Segue trecho do parecer constante na página 09 da decisão que ora comentamos: Referido parecer
conclui que “A substância benzoato de emamectin demonstra um perfil toxicológico bastante desfavorável,
tanto do ponto de vista agudo como crônico. Particularmente, os efeitos neurológicos são tão marcantes e
severos que as respostas de curto e longo prazos se confundem, isto é, efeitos tipicamente agudos são
observados nos ensaios de longo prazo, e vice-versa. O produto revelou sinais de neurotoxidade para todas
as espécies e em doses tão baixas, por exemplo, 0,1 mg/kg (LOAEL) em camundongos CF-1 e 0,5 mg/kg
em cães, mesmo em estudos nos quais este efeito não estava sendo investigado. Como demonstrado, cabe
ainda destacar, que efeitos neurotóxicos foram evidenciados em todos os estudos que não tinham por
finalidade avaliar a neurotoxidade do agrotóxico. Incertezas no que diz respeito aos possíveis efeitos
teratogênicos, e as certezas dos efeitos deletérios demonstrados nos estudos com animais corroboram de
forma decisiva para que não se exponha a população a este produto, seja nas lavouras ou pelo consumo de
alimentos. Assim sendo, o produto técnico ora em pleito é considerado impeditivo de registro, do ponto de
vista da saúde humana” (fls. 58/59, item IV, CONSIDERAÇÕES FINAIS).
298
com a pele, provocando irritação moderada à pele e irritação ocular. Traz, também, a
classificação toxicológica Anvisa, onde o produto está classificado na Classe I –
Extremamente tóxico (fls. 481). Na Classificação do Potencial de Periculosidade
Ambiental IBAMA: Classe I – Produto Altamente Perigoso ao Meio Ambiente.
A quarta questão a ser abordada pela magistrada é a que diz respeito à previsão do
art. 53, § 4º, inciso II, qual seja, de que o produto agrotóxico tenha antídoto ou tratamento
eficaz no Brasil e informa que não existe antídoto específico para o produto no Brasil e
que isso já justificaria sua concessão de liminar ao MPF.
Por fim, a última questão a ser abordada pela juíza trata do fato de que o Estado
de Mato Grosso somente permite a admissão, no território estadual, para armazenamento,
comercialização e uso os agrotóxicos e afins já cadastrados e cujas instruções de uso
estejam integralmente atualizadas no INDEA/MT, conforme estabelece o art. 10 da Lei
Estadual n. 8.588, de 27 de novembro de 2006. O § 2º do referido diploma legal
estabelece, ainda, que o cadastramento de agrotóxicos e afins fica condicionado ao prévio
registro no órgão federal competente e, que, segundo o MPF, os produtos agrotóxicos que
tenham o princípio ativo benzoato de emamectina não se encontram cadastrados no
Estado de Mato Grosso e que as partes adversas silenciaram sobre a questão em suas
manifestações.
Assim, considera, que após explanar esses 5 pontos de análise, não vislumbra que
exista obstáculo para a concessão de medida liminar, mas que, pelo contrário, estão
presentes os requisitos para a concessão de tutela e chega à conclusão de que existem
outros métodos eficazes e menos nocivos no combate à praga; que a Anvisa já proibiu o
uso de tais produtos; que os produtos agrotóxicos que possuam o princípio ativo benzoato
de emamectina em sua composição podem causar sérios danos à saúde humana e graves
danos ao meio ambiente, sendo altamente tóxicos; que não há antídoto específico para o
caso de contaminação; que há expressa vedação na legislação estadual para a admissão
299
de produtos agrotóxicos que não estejam cadastrados no órgão estadual e que não estejam
registrados no órgão federal competente.
300
aos autos, no prazo de 30 (trinta) dias, provas da efetiva realização
das providências impostas, inclusive cópias das autorizações de
importação e de aplicação já expedidas e dos atos administrativos
correlatos.
O que nos chama a atenção nesse instante é que, diferentemente, das decisões dos
juízes das ACPs 03/2014/DF e 04/2014/DF que analisamos anteriormente, na construção
131
A audiência foi promovida pelo Comitê Multi-Institucional do Sistema Judicial de Mato Grosso,
composto pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Ministério Público do Estado de Mato Grosso, Ordem
dos Advogados do Brasil - Seccional de Mato Grosso, Justiça Federal, Defensoria Pública de Mato Grosso,
Defensoria Pública da União, Associação Matogrossense de Magistrados (AMAM) e Escola Superior da
Magistratura de Mato Grosso (ESMAGIS), na sede da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no
município de Sorriso – MT.
301
do convencimento judicial da presente ação, existe um esforço visível por parte da
magistrada de se cercar de elementos técnico-científicos que sustentem sua linha decisória
e posterior sentença. Alie-se a isto, o fato de que os juízes das ACPs 03/2014/DF e
04/2014/DF estavam em um centro de acesso a informações muito mais vasto -
Brasília/DF, do que Cuiabá, no Mato Grosso, mas ainda assim, não demonstraram o
esforço esboçado pela magistrada do presente processo.
302
Em 22/4/2013, foi publicada a Instrução Normativa n. 12 da SDA, a
qual dispõe que fica a cargo do órgão estadual de vigilância sanitária
todo o controle sobre a aplicação do produto.
Não nos parece obra do acaso tantos movimentos em instâncias operativas, como
CTA, MAPA e similares e, logo em seguida, a existência de uma nova legislação e de um
novo decreto regulamentador que flexibiliza a entrada de determinados agrotóxicos no
país sem os procedimentos de registro, haja vista as situações de emergência
fitossanitária.
303
Assim, conclui a juíza que as instruções normativas expedidas pelo MAPA foram
totalmente dissonantes do previsto na legislação, pois, primeiramente, era necessário
registro, mesmo nos casos de emergências quarentenárias, fitossanitárias, sanitárias e
ambientais. Além disso, registra que não há determinação que se sigam as diretrizes e
exigências dos órgãos responsáveis e que, tanto a Anvisa, como o Ibama se manifestaram
contrariamente à entrada do produto no país, ressalvando os danos à saúde e ao meio
ambiente.
Em item próprio da sentença, ainda na seção “do mérito”, surge uma seção
intitulada “da controvérsia sobre o uso do benzoato de emamectina” e são trazidos novos
dados técnico-científicos, nos quais a juíza informa que, em pesquisa sobre o tema em
apreço, facilmente identificam-se estudiosos e instituições que tratam de uso de
agrotóxicos contrários à aplicação do benzoato de emamectina e inicia sua descrição de
dados técnico-científicos informando que o Paraguai, em 2014, suspendeu o uso da
substância, pois o Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal e de Sementes do
Paraguai – SENAVE, divulgou nota informando que havia a falta de estudos conclusivos
para garantir a segurança do produto para a saúde ambiental e humana.
A magistrada também reserva duas páginas de sua sentença para descrever como
o site da Embrapa, no campo que trata sobre o "alerta Helicoverpa", "perguntas e respostas
sobre o uso de Benzoato de Emamecina", traz esclarecimentos sobre o tema e cita também
reportagem veiculada no Globo Rural, que informava que agricultores do oeste baiano
estariam superando o problema da Helicoverpa armígera com defensivo biológico, a
exemplo do que ocorreu na Austrália e Estados Unidos. Ainda sobre o controle biológico,
cita a juíza que o site do Sistema Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas
Gerais – FAEMG, que representa os produtores rurais daquele estado, veiculou
reportagem que dizia que a saída contra a Helicoverpa armigera estava no combate
biológico e que a EMBRAPA trabalha com o que denominam de biofábrica que utilizam
cerca de 100 mil vespinhas por hectares, sendo 10 por metro quadrado e que conseguiram
controlar a lagarta em comento. Na sequência, a sentença traz reportagem do site da
Pioneer sementes, onde foi publicado um artigo de autoria do MSc. Eng. Agrônomo
André Aguirre Ramos, com o título "Helicoverpa armigera, o novo desafio da agricultura
brasileira", em que este defende os bioinseticidas, ressaltando os bons resultados obtidos
na Austrália.
304
Assim, aduz a magistrada que muito do que se sustentou nos autos - e também na
audiência pública realizada em 11 de setembro de 2015, que o benzoato de emamectina é
substância com uso liberado em vários países, merece ser melhor analisado, pois vários
dos países que liberaram o uso do benzoato de emamectina possuem clima totalmente
diferente do brasileiro, tais como EUA, França, Japão e Canadá e que nas localidades em
que existe o clima frio, este, por si só, já ajuda no combate às pragas. Para corroborar sua
análise, a juíza traz à colação trecho de reportagem veiculada no Portal DBO, empresa
jornalística do ramo da agropecuária, que informa que a agricultura desenvolvida em
países de clima tropical, como é o caso do Brasil, é propícia ao aparecimento de muitas
pragas, diferente de culturas desenvolvidas na Europa e Estados Unidos, onde as pragas
e doenças desaparecem durante o período frio.
305
Por fim, traz a magistrada em sua sentença que, em pesquisa realizada no Portal
PubMed - US National Library of Medicine National Institutes of Health, existem estudos
reconhecidos pela comunidade científica sobre a toxidade do benzoato de emamectina.132
DISPOSITIVO
132
Na sentença são citados os 03 estudos a seguir: O artigo "Developmental neurotoxicity evaluation of the
avermectin pesticide, emamectin benzoate, in Sprague-Dawley rats" que conclui que houve evidência de
neurotoxicidade na prole F1 dos ratos Sprague-Dawley, [...]; O "Toxic effects of sub-chronic exposure of
male albino rats to emamectin benzoate and possible ameliorative role of Foeniculum vulgare essential
oil" que aponta resultados que mostram diminuição dos parâmetros da imunidade como total de leucócitos,
linfócitos, monócitos, plaquetas, proteínas totais, albumina, globulinas IGG e IGM, bem como dano
hepático com aumento das enzimas ALT e ALP e evidências histopatológicas de necrose de coagulação e
congestionamento dos vasos no fígado de ratos albinosmachos; "Detection on emamectin benzoate-induced
apoptosis and DNA damage in Spodoptera frugiperda Sf-9 cell line" que conclui que houve efeitos
citotóxicos (dano no DNA e apoptose celular) em celulas Sf-9 in vitro, sendo que essas ações citotóxicas
de EMB também passaram para as célusa HE-Lcancerosas humanas usadas como um grupo de células
controle e no ano de 2004, foi registrada na literatura médica um relato de caso de intoxicação aguda por
benzoato de emamectina, em humano, em Taiwan, o que está registrado no artigo "Acute poisoning with
emamectin benzoate". (JUSTIÇA FEDERAL, 2016, p. 26-27).
306
2. julgo procedente o pedido, com resolução do mérito (CPC, art.
487, inciso I), para determinar que o INDEA e o Estado de Mato
Grosso não autorize a manipulação, a produção, a pesquisa, a
experimentação, o transporte, o armazenamento, a
comercialização e a utilização, no Estado de Mato Grosso, de
agrotóxicos não registrados e não cadastrados nos órgãos
competentes e que utilizem a substância benzoato de emamectina,
devendo indeferir a emissão do termo de autorização de aplicação,
inclusive quanto aos pedidos já feitos;
Do exposto na presente sentença, temos que houve um farto uso por parte da
magistrada de produções técnico-científicas. Quanto ao uso e contexto do acionamento
de termos, percebemos que em relação ao conceito de sustentabilidade e/ou
desenvolvimento sustentável, a expressão não aparece em nenhum momento das decisões
ou sentença. Em relação a referência às futuras gerações, observamos que a mesma apenas
se encontra nominada quando reproduzido o teor do artigo 225 da Constituição Federal.
307
compreensão de que possa estar ocorrendo, no presente caso do processo, uma injustiça
ambiental.
Outro ponto que nos causou reflexão na presente decisão, trata do fato de que para
negar a tutela antecipada de algumas ACPs analisadas anteriormente, verificamos que as
decisões foram sucintas e de pouca argumentação técnica, enquanto que para deferir a
liminar ou para sentenciar, as argumentações por parte da presente magistrada foram
numerosas.
Assim, temos que, para o presente caso, a ação judicial proposta pelo MPF quando
voltar a ser movimentada, perderá seu objeto, haja vista a mudança de panorama em
relação a toxicidade do benzoato de emamectina, que no início do desenrolar do presente
308
processo foi considerado inseguro pela própria Anvisa e Ibama e que agora está registrado
como algo seguro para o meio ambiente e saúde humana.
309
Informamos que muitas postagens sobre Lava Jato e seus procuradores são feitas,
mas que dada a diversidade de áreas de atuação temática do MPF, vários outros temas são
abordados em linguagem criativa e própria das redes sociais, como direitos indígenas,
questões atinentes ao direito do consumidor, direito ambiental, entre outros, ainda que as
postagens sobre a atuação da Lava Jato sejam em número irremediavelmente superior na
página de referida rede social.
Figura 24 – Facebook MPF - 11 de janeiro de 2015. Figura 24 - Facebook MPF - 03 de junho de 2015.
De maneira nada sutil, no avançar do ano de 2015, a página do MPF vai ofertando
imagens como as colacionadas a seguir. À esquerda, alusão a um bordão comum na
internet que diz originalmente: “keep calm and carry on”, que pode ser traduzido
livremente como mantenha a calma e prossiga, aqui substituído pelos dizeres: “don’t keep
calm, você pode estar sendo envenenado” e a imagem de uma caveira.
310
um tom emergencial e de espanto, que parece demosntrar que, para o MPF, sua posição
em relação ao uso de agrotóxicos no país é muito clara e o quanto ele busca gerar através
de suas postagens um sentimento de preocupação em relação a sua toxicidade. Talvez,
referida sensibilização em relação aos agrotóxicos, sirva como estrategia, haja vista as
derrotas sofridas judicialmente no ano anterior de 2014 nas decisões das ACPs
03/2014/DF e 04/2014/DF já estudadas.
311
MPF. Na imagem da direita, por exemplo, podemos visualizar facilmente que se trata da
ACP 03/2014/DF.
Figura 28 – Facebook MPF - 27 de novembro de 2015. Figura 29 – Facebook MPF - 21 de abril de 2016.
312
Figura 31 – Facebook MPF - 06 de agosto de 2016. Figura 32 – Facebook MPF - 25 de outubro de 2016.
313
Figura 34 – Facebook MPF - 17 de agosto de 2016. Figura 35 – Facebook MPF - 24 de agosto de 2016.
Figura 36 – Facebook MPF - 17 de outubro de 2016. Figura 37 – Facebook MPF - 21 de outubro de 2016.
314
Até mesmo a percepção em relação ao tema das futuras gerações parece se
encontrar albergado nas mídias do MPF quando se observam imagens como a abaixo:
Ao final da exposição das imagens acima referenciadas, temos que alguns dos 6
fatores expostos por Hannigan (1995, p. 74-75) apresentados na introdução deste
trabalho, podem ser aqui identificados, como por exemplo: Atenção por parte dos meios
de comunicação, nos quais o problema é visto como algo novo e relevante, aqui
representada pela comunicação via mídias sociais; dramatização do problema em termos
simbólicos e visuais, perceptível pelas inúmeras caveiras, palavras e cores escolhidas para
as postagens no facebook e emergência de um patrocinador institucional que assegure
legitimidade e continuidade, representado pelo próprio MPF e ACPs por ele patrocinadas.
Por fim, seja através das imagens capituladas neste trabalho, seja através das ACPs
selecionadas pelo GT Agrotóxicos e Transgênicos da 4ª CCR do MPF, parece-nos que o
discurso contramajoritário foi apropriado não apenas pelas ACPs, mas pelas próprias
postagens do facebook do Ministério Público Federal como bandeira a ser defendida por
referida instância técnica-operativa, ainda que não encontre eco, muitas vezes, nas
instâncias judiciais de decisão.
315
CONSIDERAÇÕES FINAIS
316
produção agrícola. Exemplo emblemático foi o caso do DDT, na década de 60,
denunciado por Carson, e só retirado oficial e totalmente de circulação do Brasil em 2009,
ou o fato de que ainda não enfrentamos o banimento de agrotóxicos já banidos em vários
países do mundo. Também percebi, através da pesquisa no capítulo primeiro, o quanto o
discurso da “erradicação da fome no mundo” se fez presente nos marcos revolucionários
de produção alimentar do planeta.
Assim, ainda de forma inicial, ficou a lembrança das palavras ditas por Philip
McMichael (2016), que apontou para o fato de que a agroexportação não se confunde
com “alimentar o mundo” e alimento não se confunde com mercadoria ou commodities.
133
O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) do ordenamento jurídico brasileiro
definiu por critérios etários e biologizantes o que sejam crianças na primeira infância (até 06 anos
incompletos), crianças (até 12 anos incompletos) e adolescentes (entre 12 e 18 anos incompletos).
134
Perceptível em divisões etárias e biologizantes feitas em estudos como o de Larissa Bombardi e Flávia
Londres no 3º capítulo.
317
injustiça ambiental e saúde, o modelo agroprodutivo alocado em monocultura e
agrotóxicos é visto como catalisador de lutas por justiça ambiental no Brasil e fora dele.
318
de que não existe um uso seguro de agrotóxicos para a saúde, nutrição humana, meio
ambiente e presentes e futuras gerações. Desta forma, para eles, o uso de agrotóxicos
implicaria, automaticamente, em insegurança, contaminação e intoxicação das pessoas
expostas.
Outro fato que me chamou a atenção, quando da observação e análise dos temas
supramencionados, ligou-se a percepção de que existe uma preocupação dos críticos do
sistema monocultor e agroquímico em demonstrar, em sua exposição científica, a
apresentação de dados que abarquem os rigorismos técnicos-científicos do campo onde
atuam, cujo enfrentamento se dá de acordo com as regras deste mesmo campo e que se
materializa visualmente através da inserção de mapas, tabelas, gráficos e similares em
suas publicações, reproduzidas, de forma muito sucinta, nesta tese.
319
mesmo que os conhecimentos científicos disponíveis não confirmem o risco de forma
indubitável.
Inclusive, foi possível concluir, na análise das ACPs, o quanto a busca por uma
decisão judicialmente favorável é acionada por parte dos mais diversos procuradores do
MPF em uma base técnico-científica, muito mais do que em uma base conceitual de
termos como sustentabilidade, riscos, justiça ambiental e futuras gerações ou até mesmo
em bases doutrinárias e jurisprudenciais.
135
Exemplo simbólico disso foi a condenação do ex-presidente Lula no ano de 2017, objeto, inclusive, de
obra coletiva denominada “Comentários a uma sentença anunciada - o processo Lula”, assinada por mais
de 120 juristas e que busca demonstrar a parcialidade do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, bem
como, as atecnias e violações legais produzidas de forma conjunta com o MPF de Curitiba.
320
acima comentados, pois em relação ao próprio princípio da precaução foi possível
visualizar entendimentos díspares entre MPF e juízes federais e o quanto a compreensão
mais aprofundada de conceitos como justiça ambiental, sustentabilidade, sociedade de
risco e futuras gerações poderiam modificar o operar técnico-jurídico.
Para a hipótese que tratou dos usos e produções técnico-científicas por parte do
MPF e dos juízes federais serem tão acionados quanto a própria legislação atinente ao
tema durante a produção das respectivas peças processuais, percebi que esse uso é mais
evidente e abrangente por parte do MPF do que dos juízes federais.
Por fim, na hipótese que tratou das circunstâncias e sentidos que são atribuídos
aos temas sustentabilidade e/ou desenvolvimento sustentável, futuras gerações, risco e
justiça ambiental pelo campo técnico-jurídico, confirmou-se o fato de que a utilização das
questões relacionadas a estes conceitos ainda são muito inexpressivas tanto por parte do
MPF e da justiça federal e, quando existentes, apresentam um viés conceitual
multivariado.
Assim, tem-se que dentro dos objetivos específicos perquiridos e das hipóteses
levantadas, boa parte da pesquisa conseguiu ser atendida de forma satisfatória.
Além disso, em alguma medida, parece-me que existe uma conexão entre a
aparente perda de combatividade em relação à emergência do tema agrotóxicos e
transgênicos na instância operativa do MPF, comentada no capítulo quatro, em razão da
emergência de uma pauta com muito mais “aceite” popular e apoio midiático – afinal de
contas o slogan: “o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”136 do horário nobre, é repetido
diariamente para milhões de famílias brasileiras, ao mesmo tempo em que a luta contra a
corrupção – ainda que ‘delimitada onde está’, conforme nos lembrará para sempre o
senador Romero Jucá, continua a pleno vapor.
Ao fazer uma pesquisa no site google com o nome do magistrado que assina as
decisões da ACP 04/2014/DF, por exemplo, constatei que ele foi o mesmo responsável
pela decisão que suspendeu o passaporte diplomático do filho do ex-presidente Lula137.
Obviamente, não estou aqui para discutir o cabimento, ou não, da concessão ou retirada
de referido passaporte, mas o quanto alguns juízes federais e procuradores da república
podem se mostrar parciais e voltados ao que alguns chamam de antipetismo ou
antilulismo e talvez seja por isso que o procurador da república subscritor das ACPs
136
Alusão à propaganda veiculada no horário nobre da Rede Globo de Televisão. Para visualização da
campanha que vem sendo passada desde o ano de 2016 é possível acessar o link:
<https://www.youtube.com/watch?v=nfkcWJQzjH8>. Acesso em: 30 ago. 2017.
137
G1. Justiça manda suspender passaporte diplomático dado a filho de Lula. Disponível em:
<http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/07/justica-manda-suspender-passaporte-diplomatico-dado-
filho-de-lula.html>. Acesso em: 13 ago. 2017.
322
03/2014/DF e 04/2014/DF, que analisei, tenha decidido “focar em Lula” em suas
posteriores ações.
138
Na ocasião o procurador utilizou as redes sociais para se defender da repercussão de sua entrevista, o
que nos faz lembrar do fato observado nacionalmente através do procurador-chefe da operação Lava-Jato
Deltan Dallagnol que sempre recorre à entrevistas em mídias de massa e a sua conta pessoal na rede social
“Twitter”. Recentemente, inclusive, o próprio MPF noticiou um curso sobre a utilização da rede social
“Twitter”, conforme informação obtida no twitter de Wellington C Saraiva - Conta verificada no twitter:
@Wsarai e coordenador da Assessoria Constitucional da Procuradoria Geral da República e que trazia o
seguinte tweet em 14 de agosto de 2017: “Oficina Conhecendo Boas Práticas de Uso do #Twitter, na
#PGR. O Procurador @AlanMansur, Diretor da @ANPR_Brasil, fala sobre uso da rede”, a informação
estava acompanhada de imagens e ao se fazer busca em referida mídia social, encontramos várias imagens
e tweets sobre o evento. Mais informações disponíveis em: https://twitter.com/WSarai. Acesso em: 14 de
ago. de 2017.
139
Notoriamente são notícias veiculadas por mídias de massa e que tiveram protagonismo acentuado
quando da ocorrência dos fatos narrados, mais informações em: BRONZATTO, Thiago e COUTINHO,
Filipe. As suspeitas de tráfico de influência internacional sobre o ex-presidente Lula: O Ministério Público
Federal abre uma investigação contra o petista – ele é suspeito de ajudar a Odebrecht em contratos
bilionários. Disponível em: <http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/04/suspeitas-de-trafico-de-
influencia-internacional-sobre-o-ex-presidente-lula.html>. Acesso em: 30 ago. 2017; LEITÃO, Matheus.
Anselmo Lopes é procurador que Joesley queria ‘trocar’. Disponível em:
<http://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/procurador-anselmo-lopes-e-o-investigador-que-
joesley-queria-trocar.html>. Acesso em: 12 ago. 2017.
140
Em rápida busca ao google, encontramos as seguintes referências ao nome do procurador subscritor das
ACPs 03 e 04 - Procurador é alvo de ataques e se defende após reportagem de ... Disponível em:
epoca.globo.com/.../procurador-e-alvo-de-ataques-e-se-defende-apos-reportagem-de [...] Época - O
procurador da República Anselmo Henrique... | Facebook
<https://www.facebook.com/epoca/posts/10152829009876430>. O procurador da República Anselmo
Henrique Cordeiro Lopes diz que está sendo alvo de críticas infundadas, calúnias e difamações na internet
após [...]. ConJur - CNMP começa a discutir limites de procuradores da República. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2015-nov.../cnmp-comeca-discutir-limites-procuradores-republica>. - Foram
discutidos os casos dos procuradores da República Anselmo Henrique Cordeiro Lopes e Valtan Timbó
Mendes Furtado [...] Lula faz queixa contra procurador que pediu sua investigação | Valor ... Disponível
em: www.valor.com.br/.../lula-faz-queixa-contra-procurador-que-pediu-sua-investigacao - O ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva entrou com uma reclamação disciplinar contra o procurador Anselmo
Henrique Cordeiro Lopes [...]. Acesso em: 12 de ago. de 2017.
323
tese e percebo que, enquanto o país trava sua luta contra a corrupção e se divide entre
“coxinhas e mortadelas” e o Lavajatismo impera em grandes áreas do judiciário, a
ascensão de Michel Temer à presidência da República fortaleceu ainda mais a pauta do
modelo agroprodutivo alocado em commodities e agrotóxicos. Símbolo disso, foi a
própria nomeação de Blairo Maggi141 para Ministro da Agricultura que, com sua bancada
no Congresso, vem fazendo articulações que envolvem o que alguns chamam de “pacote
de veneno” e que visa flexibilizar o processo de registros de agrotóxicos no país.142
141
Inclusive, em uma de suas primeiras viagens como ministro, Blairo Maggi foi a Índia – a mesma de
Bhopal que aqui estudamos e anunciou investimento de R$ 1 bilhão através da implantação de uma fábrica
de agrotóxicos indiana no Brasil. Mais informações em:
<http://outraspalavras.net/deolhonosruralistas/2016/09/22/mais-agrotoxicos-maggi-anuncia-investimento-
indiano-de-r-1-bilhao/>. Acesso em: 30 ago. 2017.
142
Em relação ao “pacote de veneno”, um projeto de lei merece atenção especial, trata-se do PL 3200/2015,
do deputado Covatti Filho (PP-RS), que altera toda a normatização e revoga a lei n. 7.802 de 1989, criando
uma legislação completamente diferente. Atualmente, ele está apensado ao PL 6299/2002, de Blairo Maggi.
Há vários projetos tramitando juntos, constituindo o que está sendo chamado de pacote do veneno. O PL
3200 é o mais preocupante, pois altera toda a legislação. Informamos, inclusive, que uma questão muito
importante da nossa legislação vigente sobre agrotóxicos é que ela submete o registro dos produtos a um
órgão ambiental (IBAMA), a um órgão da Saúde (ANVISA) e ao Ministério da Agricultura. Pela proposta
do deputado Covatti Filho, a avaliação será feita apenas por um órgão novo a ser criado, a CTNFito, nos
moldes da CTNBio, com 23 membros nomeados pelo ministro da Agricultura – imaginemos a disparidade
em relação à representatividade, já que deste total, um integrante será indicado pelo Ministério da Saúde,
um pelo Meio Ambiente e um por algum órgão de proteção à saúde do trabalhador. Mais informações
disponíveis através da entrevista da procuradora da república Ana Paula Carvalho de Medeiros ao site Sul
21 pelo link: <https://www.sul21.com.br/jornal/temos-um-pacote-do-veneno-tramitando-no-congresso-
nacional-alerta-procuradora/>. Acesso em: 24 ago. 2017.
324
Trago, inclusive, uma breve analogia com tal indústria que durante anos produziu
e financiou estudos com o escopo de criar uma imagem de um pretenso debate científico
quando, na verdade, já sabia da periculosidade do fumo143.
143
Para uma maior elucidação sobre o tema, vale assistir o documentário “the human experimente”,
disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=qTZDmTI-kIQ ou ler a entrevista da Revista ihu
on-line, intitulada “O engano de negar a mudança climática” feita com Naomi Oreskes, professora de
História da Ciência e professora associada de Ciências da Terra e do Planeta na Universidade de Harvard,
com tradução de André Langer e que faz um paralelo entre o negacionismo hoje presente em relação às
mudanças climáticas e o negacionismo produzido pela indústria do tabaco há décadas passadas. Disponível
em: <http://www.ihu.unisinos.br/544133-o-engano-de-negar-a-mudanca-climatica>. Acesso em: 25 ago.
2017. Seria o atual modelo agroprodutivo outro elemento-alvo do negacionismo mercadológico ancorado
em estudos técnicos-científicos que visam suscitar dúvidas muito mais do que esclarecimentos?
144
Sugiro o documentário “A Experiência Humana” que trata a partir de seu 25º minuto da contaminação
e desinformação sistemática provocada pela indústria do tabaco a partir da década de 50, quando se
iniciaram os questionamentos de seu potencial cancerígeno.
145
As expressões originais vêm da língua inglesa e são: “does not bite”; “didn’t bite you”; “Bite. Didn’t
hurt” e “wasn´t my fault.”
325
produto químico não são suficientes para a contaminação da população 146 e já discutido
nesta tese, no terceiro capítulo; e, por fim, 4 – “Meu cão mordeu você, machucou, mas
não foi culpa dele” – quando a corporação admite a sua culpa, mas a transfere, afirmando
que foi uma escolha individual consumir determinado produto.
Outro ponto que me trouxe reflexões e inquietações para futuras pesquisas, ligou-
se a ideia de que a provável epidemia contaminante trazida pelo modelo agroprodutivo
baseado no monocultivo e agrotóxicos seja apenas um sintoma da própria “epidemia da
superprodução” - inerente ao sistema capitalista, sendo o envenenamento do agronegócio
um desdobramento da própria crise que alimenta esse mesmo sistema capitalista e que o
faz incessantemente se transformar, pois paralelo a todo esse movimento de potenciais
contaminações de alimentos, percebo o alto custo dos produtos orgânicos, os quais
precisam de certificação e etiquetas para sua comercialização. Ao mesmo tempo em que
angaria em suas fileiras grupos sociais voltados à métodos alternativos de produção
agroalimentar, traz em sua esteira empresários e todo um mercado de economia verde,
ainda que ao custo do greenwashing147, mais compatível com uma noção de alimento-
mercadoria.
Pergunto-me: não deveria ser o inverso? O alimento que possui agrotóxico é que
deveria vir etiquetado e certificado, pois o natural e embrionário é o alimento puro de
modificações genéticas e de veneno. Percebo nesta inversão um fato sintomático do
próprio domínio do sistema agroprodutivo monocultor e quimificado.
146
Talvez já se esteja nesta atual esfera de defesa da indústria agroprodutiva, pois o parecer 01/2015
disponível nos documentos do GT Agrotóxicos e transgênicos da 4ª CCR do MPF, realizado pelos
professores da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Sonia Corina Hess e Rubens Onofre Nodari
informam que o Decreto n. 2.914/2011 que permitiu 0,5ppm de concentração máxima de glifosato está
acima dos padrões aceitáveis para o ser humano (2015, p. 07).
147
Em livre tradução, “lavagem verde” ou “pintando de verde” e consiste na estratégia de promover
discursos, anúncios, ações, documentos, propagandas e campanhas publicitárias sobre ser
ambientalmente/ecologicamente correto, green, sustentável, verde, eco-friendly e similares, com a intenção
primordial de relacionar a imagem de quem divulga essas informações à defesa do ambiente, mas, na
verdade, medidas reais que colaborem com a minimização ou solução dos problemas ambientais não são
realmente adotadas e, muitas vezes, as ações tomadas geram impactos negativos ao meio ambiente.
326
aquelas com capacidade de adquirir “ovos e alfaces felizes”, como pontuou Ulrich Beck
(2011), e que parecem compor o mesmo grupo social com maiores tendências à opção
pelo vegetarianismo ou veganismo.
Ainda que isso não seja meu objeto específico de tese, mas dentro desta
perspectiva de fim de pesquisa e começo de novas inquietações, percebo que, ao mesmo
tempo em que certos setores da sociedade parecem sinalizar preocupações com riscos de
ordem alimentar e com o próprio funcionamento do sistema agroprodutivo, temos grandes
corporações e empresários, como Bill Gates148, investindo, não apenas, em alimentos
biofortificados, mas na denominada “carne vegetal”. Seriam sintomas da crise
superprodutiva e agrointoxicante produzida pelo sistema capitalista e que agora precisa
ser vendida como solução de um problema por ele mesmo criado?
148
Bill Gates e Richard Branson investem em ‘carne artificial’. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/bill-gates-richard-branson-investem-em-carne-
artificial-21744719>. Acesso em: 16 out. 2017.
327
riscos como algo iminente? Seriam recomendações como a da ONU, OMS e Tribunal
Monsanto simples recomendações ou fariam parte de alguma estratégia maior? O
potencial julgamento da empresa Monsanto como ecocida pelo Tribunal Penal
Internacional seria sinalizador de mera evolução legislativa? Essas estratégias teriam o
viés meramente protetivo de riscos ou seriam incubadoras de uma transição entre modelos
agroalimentares capitaneados pelos setores mais abastados da sociedade? 149
149
Nesse instante caio no risco de me inserir em teorias de tom conspiratório e de começar não mais a
analisar, mas a profetizar prognósticos sobre o sistema agroprodutivo do mundo e resolvo parar minhas
ilações.
150
A entrevista complete pode ser acessada no link: <https://www.brasildefato.com.br/2017/05/12/morre-
o-critico-e-sociologo-antonio-candido-leia-uma-de-suas-ultimas-entrevistas/>. BRASIL DE FATO. Morre
o crítico e sociólogo Antonio Candido; leia uma de suas últimas entrevistas. Acesso em: 14 maio 2017.
151
Fazendo uma alusão à antiga e popular expressão que relaciona o trabalho árduo ao papel dos
mantenedores da casa e garantidores, portanto, do “leitinho das crianças.”
328
só sabe bem aquilo que não entende” e que através de sua alma sertaneja me ensina
sempre que: “eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa.” 152
Finalmente, tenho entre minhas maiores desconfianças, após o trilhar deste longo
caminho de pesquisa, a percepção de que o agrotóxico, (pop)ularizado em nosso modelo
agroprodutivo, visto como elemento (tech)nológico e revolucionário no controle de
pragas no campo é tóxico, insustentável, eivado de perigos e riscos, comprometedor do
desenvolvimento das presentes e futuras gerações, bem como não promotor de justiça
ambiental e intergeracional.
152
Trechos retirados das páginas 25 e 311 in: ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 21 ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
329
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338
ANEXOS
339
340
341
B - Atas das 7ª e 8ª reuniões ocorridas em 23 de novembro de 2016 e 10 de abril de 2017:
342
343
344
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346