Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OLIVEIRA, Francisco - Anos 70 e As Hostes Errantes
OLIVEIRA, Francisco - Anos 70 e As Hostes Errantes
que ainda hoje recheia as histórias do que, para ser concluído, levou tanto tem-
grande senão, fez emergir dramaticamen- po que as últimas pedras já nem sabiam
te a questão regional do Nordeste: cente- serem irmãs das primeiras.
nas de milhares de nordestinos tangidos Cem anos depois, nos anos setenta deste
como gado, errantes, desenraizados e fa- nosso século, ocorreu o "milagre brasi-
mintos; e a morte, não a "morte leiro", cujo patrono "Santo" Antonio
Severina" e cotidiana, mas a morte mes- Delfim (ex-de Versalhes) tenta repetir no-
mo — indiana? Diz-se que o imperador vamente, inadvertido talvez do aviso
D. Pedro, o Bom, pensou em vender as muito velho de que a história, quando se
jóias da Coroa para "salvar" os Nordesti- repete, é farsa em vez de tragédia. Dentro
nos, iniciando o ciclo dos "salvadores" e do "milagre brasileiro" teve também um
das obras de redenção, de "combate às "milagre nordestino". E analogamente
lho fora da região; agora essa conversão se mocambos e "alagados", que carrega
dá maciça e fundamentalmente dentro da água para seus vizinhos, compondo um
região. Sendo a região agora importadora conjunto de estratégias de sobrevivência,
de capitais, a exportação de mão-de-obra um jogo de soma zero.
pode declinar, não por qualquer correla- É o que faz as delícias da nova classe
ção mecânica entre as duas ordens de fa- média "nordestina por imigração", exe-
tores, mas simplesmente porque tende a cutivos idos do Sul, que podem dispor
haver uma equalização da forma de re- de um verdadeiro exército de empregadas
produção da força de trabalho entre as domésticas, substitutas das mucamas que
duas principais regiões da economia na- faziam as delícias das sinhazinhas e dos
cional: em teoria, chama-se a isso de mer- grão-senhores.
cantilização da força de trabalho. A estrutura social parece ter sido inven-
Essa conjugação — estruturação oligo- tada pelo mesmo criador de Frankenstein.
pólica, subsídios à formação de capital, As classes sociais dominadas são uma es-
elevação do patamar tecnológico das in- pécie de classes "inacabadas": sua sub-
versões, ampliação das fronteiras de recru- missão real e formal ao capital, dado o
tamento da mão-de-obra, importação de enorme contingente de reserva, é sempre
capitais, tendência à permanência da po- intermitente, interrompida periodica-
pulação dentro da região, fortíssima mi- mente. O posseiro e o meeiro não se pro-
gração do campo para as cidades — não letarizam senão parcialmente; o operário
podia produzir outra coisa senão uma das cidades não é sempre operário: ama-
marcada tendência para piorar a distribui- nhã pode estar fazendo um biscate ou
ção da renda: no começo da década a renda vendendo roupa feita e sapato de plástico
já era mais concentrada nas cidades do no comércio "mancha de óleo" que, no
Nordeste e não no campo, que nunca bri- Recife, se espraiou do antigo mercado de
lhou sob esse aspecto. Instaurou-se uma São José para as antigas ruas "bem" do
competição quase mortal entre os pró- bairro de Santo Antônio, e em Fortaleza é
prios trabalhadores pelos postos de em- um vasto calçadão que se estende desde a
prego — e, frise-se, não é que o emprego Catedral, rua Conde D'Eu afora. As clas-
não tenha crescido — a ponto de o turn ses sociais dominadas são "movimentos",
over da mão-de-obra industrial ser igual "massas", menos que classes.
ao próprio efetivo empregado. Noutras E no entanto o Nordeste é o paraíso dos
palavras, a rotatividade da mão-de-obra novos turistas nacionais. Suas cidades re-
industrial no Nordeste é igual a 100%! bolam para encantar quem vai de outras
Frente a isso, e mais, frente à repressão, paragens. A combinação da "cor local"
ao arrocho salarial e à desarticulação dos com as novas classes médias locais, homô-
sindicatos — elementos componentes do
"milagre brasileiro" — os salários no
Nordeste permaneceram ridiculamente
baixos. Em 1972, a PNAD indicava que
69% da força de trabalho urbana ocupa-
da ganhava até 1 salário mínimo! No pe-
ríodo que correspondeu ao "milagre bra-
sileiro", o "milagre nordestino" foi o de
que 89% do aumento do emprego assala-
riado ocorreu na faixa dos que ganham
até 1 salário mínimo! É muita exclamação
para um "milagre" só.
Não há mais distinção, a não ser estatís-
tica, entre quem está empregado e quem
não está. Em tempo: uns 35% da força de
trabalho regional podem ser considerados
desempregados ou subempregados. O
conjunto da população trabalhadora vive
numa corda bamba entre um emprego in-
dustrial, onde é permanente o emprego e
rotativo o empregado, uma ocupação de
biscateiro, outra de dona-de-casa que lava
roupa para fora, outra de aposentado do
Funrural ou do INPS e a de menino dos
DEZEMBRO DE 1981
ANOS 70 - AS HOSTES ERRANTES