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Em 1877, a mal-afamada grande seca, secas", como o açude do Cedro, no Ceará,

que ainda hoje recheia as histórias do que, para ser concluído, levou tanto tem-
grande senão, fez emergir dramaticamen- po que as últimas pedras já nem sabiam
te a questão regional do Nordeste: cente- serem irmãs das primeiras.
nas de milhares de nordestinos tangidos Cem anos depois, nos anos setenta deste
como gado, errantes, desenraizados e fa- nosso século, ocorreu o "milagre brasi-
mintos; e a morte, não a "morte leiro", cujo patrono "Santo" Antonio
Severina" e cotidiana, mas a morte mes- Delfim (ex-de Versalhes) tenta repetir no-
mo — indiana? Diz-se que o imperador vamente, inadvertido talvez do aviso
D. Pedro, o Bom, pensou em vender as muito velho de que a história, quando se
jóias da Coroa para "salvar" os Nordesti- repete, é farsa em vez de tragédia. Dentro
nos, iniciando o ciclo dos "salvadores" e do "milagre brasileiro" teve também um
das obras de redenção, de "combate às "milagre nordestino". E analogamente

NOVOS ESTUDOS N.º 1


às hostes errantes da grande seca do século que encantaram antigos e novos viajantes
passado, surgiram também as hostes er- e fizeram os lauréis de sociólogos de Sala-
rantes de nordestinos vagando empurra- manca e Apipucos...
das pelo vento árido e devastador da ex- O processo da expansão capitalista no
pansão capitalista na região. Parece, po- Nordeste tem as características gerais do
rém, que os nordestinos preferem conti- "modelo" brasileiro e as marcas peculia-
nuar a acreditar no Meu Padim Pade Ciço res que esse processo imprimiu a uma re-
Romão Batista do Juazeiro, cujos "mila- gião que não havia dissolvido suas formas
gres", "refrigéro" para as dores da alma, e relações ainda pré-capitalistas. Os in-
seguramente não aumentam as do centivos fiscais financiaram a exportação
corpo... de capitais do Centro-Sul para o Nordes-
Nos anos cinqüenta, um amplo movi- te, no mesmo momento em que a econo-
mento social, que não contou com apoio mia nacional passava por violentíssimos
apenas dos grandes latifundiários, reivin- ciclos de concentração e centralização do
dicou para a região um programa de de- capital. Verso e reverso do mesmo proces-
senvolvimento e não mais de "combate às so, os incentivos fiscais levaram para uma
secas", desaguando na criação da Sude- região como o Nordeste a estruturação ca-
ne. A questão regional do Nordeste cen- racteristicamente oligopolista que já era
trava-se na ampliação das desigualdades hegemônica em escala nacional.
inter-regionais no Brasil, com a margina- Durante anos seguidos, na segunda
lização crescente da região no contexto de metade dos anos 60 e durante os primei-
uma economia cujo crescimento indus- ros anos da década de 70, a formação bruta
trial, sediado no Centro-Sul, experimen- de capital alcançou a marca de quase
tava recordes inusitados. 50% do produto interno bruto do Nor-
A Sudene, utilizando principalmente a deste, façanha insólita mesmo para o Ja-
dedução do imposto de renda para as em- pão da Restauração Meiji. Financiada
presas que investissem no Nordeste, im- pelos incentivos fiscais, essa formação de-
plementou um programa de desenvolvi- capital tomou a forma de investimentos
mento capitalista que completou a inte- de altíssimo coeficiente de capitalização,
gração da região à economia nacional, ti- com fortes componentes de avanço Tecno-
rando-a da estagnação quase secular. lógico em relação ao parque industrial
Hoje a questão regional do Nordeste preexistente.
não é mais a da estagnação de sua econo- Essa dupla característica possibilitou,
mia: a região acompanha razoavelmente ao mesmo tempo que ampliou, a criação
as taxas e o estilo da expansão capitalista de imensas reservas de mão-de-obra para
no Brasil. Há crescimento industrial nas a indústria que se implantava. Por outro
cidades e crescimento da produção agro- lado, a agricultura regional, premida en-
pecuária. A expansão industrial é presidi- tre as tenazes da concorrência das merca-
da pelas empresas mais importantes do dorias agrícolas do Sul e as próprias modi-
Centro-Sul, quando não diretamente ficações da estrutura interna da produção
multinacionais: não há praticamente ne- industrial do Nordeste, desabou sob esse
nhum grande grupo econômico operando duplo impacto e liberou quantidades
no Brasil que não esteja também no Nor- crescentes de mão-de-obra.
deste. No campo, as tendências de cresci- A marca gritante da década de 70 é es-
mento são bastante semelhantes às que se ta: abriram-se as comportas que represa-
dão no País como um todo: há mecaniza- vam a população sob o guante das velhas
ção e conseqüente desemprego — "vo- estruturas agrária e industrial, e, como
lantes" e "clandestinos" são os "bóias- uma onda gigantesca, praticamente toda
frias" do Nordeste. pessoa válida é incorporada ao mercado
A choradeira "regionalista" é, hoje, de reserva de mão-de-obra para os novos
apenas o ranger de dentes de uma bur- empreendimentos capitalistas na região.
guesia míope e perdulária que, via mode- A exportação de mão-de-obra para ou-
lo Sudene, foi "engolida" pelas burgue- tras regiões do País não cessou, mas sua
sias nacional e internacional já hegemôni- tendência se inverteu; é a migração den-
cas no Centro-Sul. E os latifundiários do tro do próprio Nordeste que hoje é mais
Nordeste, cuja crônica de crimes e rapina importante, como se houvesse um repre-
era a marca de seu atraso histórico, estão samento invisível a obrigar as pessoas a
sendo substituídos por capitalistas tão ra- permanecerem na região.
paces quanto eles, mas sem as maneiras No passado, o excedente populacional
afidalgadas dos antigos barões-ladrões, se convertia em reserva de força de traba-
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ANOS 70: AS HOSTES ERRANTES

lho fora da região; agora essa conversão se mocambos e "alagados", que carrega
dá maciça e fundamentalmente dentro da água para seus vizinhos, compondo um
região. Sendo a região agora importadora conjunto de estratégias de sobrevivência,
de capitais, a exportação de mão-de-obra um jogo de soma zero.
pode declinar, não por qualquer correla- É o que faz as delícias da nova classe
ção mecânica entre as duas ordens de fa- média "nordestina por imigração", exe-
tores, mas simplesmente porque tende a cutivos idos do Sul, que podem dispor
haver uma equalização da forma de re- de um verdadeiro exército de empregadas
produção da força de trabalho entre as domésticas, substitutas das mucamas que
duas principais regiões da economia na- faziam as delícias das sinhazinhas e dos
cional: em teoria, chama-se a isso de mer- grão-senhores.
cantilização da força de trabalho. A estrutura social parece ter sido inven-
Essa conjugação — estruturação oligo- tada pelo mesmo criador de Frankenstein.
pólica, subsídios à formação de capital, As classes sociais dominadas são uma es-
elevação do patamar tecnológico das in- pécie de classes "inacabadas": sua sub-
versões, ampliação das fronteiras de recru- missão real e formal ao capital, dado o
tamento da mão-de-obra, importação de enorme contingente de reserva, é sempre
capitais, tendência à permanência da po- intermitente, interrompida periodica-
pulação dentro da região, fortíssima mi- mente. O posseiro e o meeiro não se pro-
gração do campo para as cidades — não letarizam senão parcialmente; o operário
podia produzir outra coisa senão uma das cidades não é sempre operário: ama-
marcada tendência para piorar a distribui- nhã pode estar fazendo um biscate ou
ção da renda: no começo da década a renda vendendo roupa feita e sapato de plástico
já era mais concentrada nas cidades do no comércio "mancha de óleo" que, no
Nordeste e não no campo, que nunca bri- Recife, se espraiou do antigo mercado de
lhou sob esse aspecto. Instaurou-se uma São José para as antigas ruas "bem" do
competição quase mortal entre os pró- bairro de Santo Antônio, e em Fortaleza é
prios trabalhadores pelos postos de em- um vasto calçadão que se estende desde a
prego — e, frise-se, não é que o emprego Catedral, rua Conde D'Eu afora. As clas-
não tenha crescido — a ponto de o turn ses sociais dominadas são "movimentos",
over da mão-de-obra industrial ser igual "massas", menos que classes.
ao próprio efetivo empregado. Noutras E no entanto o Nordeste é o paraíso dos
palavras, a rotatividade da mão-de-obra novos turistas nacionais. Suas cidades re-
industrial no Nordeste é igual a 100%! bolam para encantar quem vai de outras
Frente a isso, e mais, frente à repressão, paragens. A combinação da "cor local"
ao arrocho salarial e à desarticulação dos com as novas classes médias locais, homô-
sindicatos — elementos componentes do
"milagre brasileiro" — os salários no
Nordeste permaneceram ridiculamente
baixos. Em 1972, a PNAD indicava que
69% da força de trabalho urbana ocupa-
da ganhava até 1 salário mínimo! No pe-
ríodo que correspondeu ao "milagre bra-
sileiro", o "milagre nordestino" foi o de
que 89% do aumento do emprego assala-
riado ocorreu na faixa dos que ganham
até 1 salário mínimo! É muita exclamação
para um "milagre" só.
Não há mais distinção, a não ser estatís-
tica, entre quem está empregado e quem
não está. Em tempo: uns 35% da força de
trabalho regional podem ser considerados
desempregados ou subempregados. O
conjunto da população trabalhadora vive
numa corda bamba entre um emprego in-
dustrial, onde é permanente o emprego e
rotativo o empregado, uma ocupação de
biscateiro, outra de dona-de-casa que lava
roupa para fora, outra de aposentado do
Funrural ou do INPS e a de menino dos

NOVOS ESTUDOS N.º 1


nimas das que, cm Ipanema, Leblon, rua mais de olho nos "dengues" da terra...
Henrique Schaumann (a Ipanema de São Por cima, pairando sobre o bem e o mal,
Paulo), pululam na noite, dá o tom. E a os novos executivos, o rosto de uma bur-
vasta orla marítima — desde o Porto da guesia sem rosto, e os restos das antigas
Barra e Itapoã, em Salvador, passando oligarquias transformadas em servos do
por Atalaia em Aracaju, Ponta Verde em Estado, a repetirem monotonamente as
Maceió, Boa Viagem em Recife e Olinda arengas regionalistas modernizadas em
(sim, é necessário citar Olinda outra vez, epigramas de economistas.
senão ninguém tem direito a pular no car- A estrutura do poder é "transregio-
naval), Tambaú em João Pessoa, Ponta nal": de um lado, as classes dominantes,
Negra em Natal, Praia do Futuro em For- em associação com o Estado, não são lo-
taleza — é o cenário onde a "transa" se cais; de outro, as classes dominadas são
dá entre esses homônimos sociais, de lá e "inacabadas", são "massas", menos que
de cá (de cá de onde, "pau de arara"?). classes. Formar um sindicato autêntico no
Essas classes médias foram criadas em Recife ou em Salvador, as suas cidades
"pacotes": são implantadas, enxertadas, mais industrializadas, é um suplício de
seja pela organização do trabalho buro- Prometeu: o trabalhador teria que asso-
cratizado dos grandes oligopólios, seja pe- ciar-se praticamente a todos os sindicatos,
la igualmente burocrática organização nas pois transita de uma categoria para outra
instituições estatais. Elas são fruto da re- ou para nenhuma no decurso de um ano.
produção da estruturação oligopolizada, Nas cidades menores, como João Pessoa
centralizada. (onde esse admirável Dom José Maria Pi-
Ao contrário dos salários da ampla mas- res simboliza, com sua recusa em inaugu-
sa trabalhadora, sua remuneração é deter- rar agências bancárias, a recusa das classes
minada no interior do pacto burocrático, "inacabadas" a esse capitalismo que as
no Estado e nas grandes empresas. Nada recusa, esse "Dom Pelé" que, tomando o
tem a ver com demanda e oferta, nem apelido daquele que foi "rei" do fute-
com trabalho qualificado. Isso explica sua bol, nos diz outra vez que o "mau caratis-
explosão no Nordeste, que confunde o mo" de "reis" é um produto da corrup-
observador menos atento à realidade e ção mercantil e não um atributo da
"raça" manhosamente louvada mas racis-
tamente detratada pelo sociólogo de Api-
pucos), o operário não entra sequer nos
templos da Santa Madre: se entrar, recebe
um "carimbo" de subversivo que equivale
à baixa de seu contrato na carteira de
trabalho, do Ministério que não é do Tra-
balho mas do Capital (com a permissão
de Dom Angélico Sândalo, bispo do
"Lestão" da Capital de São Paulo).
Disso decorre que a politização das lu-
tas econômicas e sociais no Nordeste
é mais imediata que em qualquer outra
parte do País. Quando a população rei-
vindica diretamente do Estado, quando
até o mais humilde camponês diz que se o
"gumverno não acudir, não dé um refri-
géro" a situação não melhora, ele está ex-
pressando, nas condições de sua lingua-
gem, uma realidade cruel e uma lição ain-
da não aprendida de política. As classes
"inacabadas" não cabem dentro do pa-
drão capitalista: estão condenadas a "cem
anos de solidão", se esperarem que a ex-
pansão capitalista absorva esse enorme
contingente de reserva que ela amplia ao
tempo em que se expande. A luta assume
imediatamente uma dimensão política;
trata-se, afinal, da questão do poder e da
questão do Estado.

DEZEMBRO DE 1981
ANOS 70 - AS HOSTES ERRANTES

surrealismo buñuelesco os anjos barro-


cos, crianças barrigudas de fartura de fo-
me, flutuando em torno do sociólogo de
Apipucos que disserta fleumaticamente,
britanicamente, sobre as delícias da cu li-
nária inglesa —, barra-pesada glauberia-
na em que Antônio das Mortes é a "morte
severina" lutando contra a morte lati-
fundiária, o Nordeste é uma Guernica a
interrogar severamente os donos do po-
der. Contam que Picasso respondeu aos
alemães (deu-se esse encontro?), a respeito
do mural de Guernica; interrogado:
Quem fez esse horror? — foram vocês.
Revendo o Nordeste de hoje, capital
way of life. seu poeta-maior pediu apenas
à sua cidade:

"Embora não me s i n t a o direito de


te dizer sim, não, dar conselho,

conto com que todo esse progresso


que derruba o onde fui (e ainda le-
v o)

faça mais fácil o mão-a-mão de mão


a mão distribuir o pão

e que tua gente volte ao "bom dia" de


quando lá toda se sabia" ( l ).
Nenhuma ortodoxia, nenhum etapis-
Juntar Gal com Lula, a voz e a rouqui-
mo, nenhum bom-mocismo teórico e po-
dão, Gregório Bezerra com Chi c o Buar-
lítico será capaz de compreender esse
que. a saga do facão e a saga da canção,
complexo movimento, nem de radicalizar
Caetano Veloso com Dom Paulo Evaristo
sua radicalidade. Nenhum "milagre" Arns, o gênio inventivo e o pastor da i n -
produz mais nenhum efeito. Se em São venção, Mestre Vitalino com os peões
Paulo, Rio, Minas, Rio Grande, os movi- gaúchos, a arte do boi pobre com os pas-
mentos classistas, ao se estruturarem, po- tores do boi nobre, Graciliano Ramos
dem não apenas fazer abortar os "novos com os "bóias-frias", as "vidas secas"
milagres" que se pretende "obrar" (não com as vidas a secas, Luiz "Lua" Gonza-
com a graça de Deus mas com os fogos do ga com os "macarroni" de São Paulo, o
Inferno), primeira pinça de uma ampla es- forró com a tarantela, Dom Helder Câ-
tratégia de revolução social, necessária pa- mara com os "nissei", o profeta desarma-
ra que a superexploração no Sul não pro- do com o futuro sem utopia, e i s a tarefa:
duza os superexcedentes que no Nordeste
vão terminar em selvagem, a segunda "Para que voltemos a sentir,
pinça é combinar esses movimentos com O calor na face,
os aparentemente não-classistas do Nor- O tremor na voz,
deste. O ABCD de São Paulo e todas as O coração em disparada,
outras letras do imenso alfabeto de sua re- Como no encontro
serva no Nordeste. Com a primeira namorada".
O Nordeste não cabe no quadro: con-
forme um antigo mestre da caricatura na-
cional, dos tempos de O Malho, ele está NOTA
sempre fora da moldura. ( 1 ) João Cabral de Melo Neto,"Ao Novo Recife" , in A Es-
Cola das Facas.
Cenário e personagens bertoluccianos,

NOVOS ESTUDOS N.º 1

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