era só para mulheres que não havia lugar: também não havia
lugar para quem não ocupava cargos no Estado ou não dirigia
guerras, não importando se fossem homens ou mulheres. Nesta
perspectiva da “história de governantes e de batalhas”, as
mulheres só eram incluídas quando ocupavam, eventualmente, o
trono (em caso de ausência de filho varão) ou então quando se
tornavam a “face oculta” que governava o trono, ou a república,
por trás das cortinas, dos panos, do trono ou seja lá do que for,28
numa clara insinuação sensual/sexual que pensa que as coisas são
decididas nos leitos de amantes. Estes leitos costumam ser
considerados os responsáveis pelas “grandes” decisões da
história, e promovem a queda ou a ascensão de governantes.
Carregadas de estereótipos, estas análises reforçaram mitos
ora da suprema santidade, ora da grande malvadez das poucas
mulheres que ocupam algum cargo de destaque nos governos
e/ou nas guerras. Engrossam este panteão as rainhas, as princesas
e as donzelas guerreiras, das quais Joana D´Arc é uma espécie de
arquétipo do “bem”, enquanto Lucrecia Borgia, por exemplo, é
considerada um exemplo do “mal”.
Nesta forma de escrita da história, baseada principalmente
em fontes narrativas oficiais, não pode haver lugar para a
categoria “gênero”, mas apenas para a categoria “mulher”,
pensada sob o aspecto de categoria universal. Nesta perspectiva,
algumas historiadoras e historiadores, investindo na onda do
movimento feminista, tentaram “resgatar”, para a história, a
narrativa da vida das “grandes mulheres”. É exemplo desta forma
de abordagem um dicionário, recentemente publicado, que se
intitula: “Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade,
29
biográfico e ilustrado”. Este dicionário é fruto de um projeto,
cujo título utiliza a categoria “mulher”. Chama-se “Projeto
Mulher – 500 anos por trás dos panos”. Como se pode observar,
novamente aparece a metáfora do poder escondido. Neste
dicionário existem 900 verbetes com dados biográficos de
mulheres brasileiras.
Este dicionário, publicado em 2000, por outro lado mostra-
nos que o fato de várias historiadoras passarem a usar a categoria
“mulheres”, não significa que “mulher” não continue sendo
[...] tem duas partes e diversas subpartes. Elas são ligadas entre
si, mas deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial
da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações
sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o
gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de
36
poder.
NOTAS
1
Departamento de História – Universidade Federal de Santa Catarina. CEP
88040-900. e-mail: joanapedro@terra.com.br.
Texto preparado para ser apresentado como conferência no evento: III
Seminário Educação e Gênero e II Seminário sobre Infância, a ser realizado
em Tocantinópolis - TO, entre 8 e 10 de março de 2006. Agradeço a leitura
crítica das professoras Roselane Neckel, Cristina Scheibe Wolff, do professor
Marcos Fabio Freire Montysuma e dos estudantes Gabriel Jacomel, Juliano
Malinverni da Silveira, Maria Cristina Athayde, Soraia Mello e Veridiana
Oliveira. Agradeço, ainda, a Aimberê Araken Machado pela revisão da
redação.
2
Estou entendendo, como movimento feminista, as lutas que reconhecem as
mulheres como oprimidas. É a afirmação de que as relações entre homens e
mulheres não são inscritas na natureza e, portanto, são passíveis de
transformação. Como movimento de mulheres, estou entendendo que se trata
de movimentos cujas reivindicações não são de direitos específicos das
mulheres. Tratam-se de movimentos sociais cujos componentes são, em sua
maioria, mulheres. Ver, a este respeito, HIRATA, Helena; et. alii. Dictionnaire
critique du féminisme. Paris: Pressea Universitaires de France, 2000, p.125-130.
Por movimentos gays e lésbicos estou entendendo as lutas que exigem que a
sociedade reconheça indivíduos que consideram seus relacionamentos íntimos,
com pessoas do mesmo sexo, como essenciais à sua identidade pessoal. No
entanto, convém destacar que algumas lésbicas não querem ser consideradas
como pertencentes ao movimento gay. Querem ser identificadas como
12
Afirmavam que as relações que se estabelecem na intimidade dos lares eram
relações de poder e deveriam ser levadas para o espaço público para serem
legisladas. Veja-se o caso da contracepção, do aborto, da violência doméstica
que exigem legislação.
13
FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Rio de Janeiro: Vozes, 1971.
14
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1967; e BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo:
fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, s/d.
15
O trabalho de Simone de Beauvoir serviu de inspiração a Betty Friedan, em
seu livro.
16
Françoise Collin, Nuevo Feminismo. Nueva sociedad o el advenimiento de
outra. Boletim Nosotras, Grupo Latinoamericano de Mujeres, ano II, n.21/22,
sept-oct., p.9-12.
17
Evidentemente, nem todas as mulheres consideravam que tinham sido
criadas diferentes dos “meninos”; em entrevista com mulheres identificadas
com o feminismo, as narrativas foram as mais diversas.
18
Este período é chamado de “separatista” devido a esta prática de grupos de
reflexão, do qual os homens estavam proibidos de participar.
19
IRIGARAY, Luce. Ce Sexe qui n’en est pás un. Paris: Minuit, 1977.
20
CIXOUS, Helène. Contes de la différence sexuelle. In NEGRON, Mara
(org.) Leitures de la Différence Sexuelle. Paris: Des Femmes, 1990.
21
MACHADO, Lia Zanotta. Gênero, um novo paradigma? Cadernos Pagu, n.11,
p. 107-125, 1998.
22
STOLCKE, V. Op. cit., p.81.
23
MACHADO, L. Z. Op. cit., p.119.
24
STOLCKE, V. Op. cit., p.92.
25
THÉBAUD, Françoise. Genre et histoire. In: CHRISTINE BARD, Christine;
CHRISTIAN BAUDELOT, Christian; JANINE MOSSUZ-LAVAU, Janine.
Quand les femmes s’en mêlent – genre et pouvoir. Paris: Éd de la Martinière,
2004, p. 44-63.
26
MICHEL, Andrée. O feminismo: uma abordagem histórica. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982, p.78.
27
FOX-GENOVESE, Elizabeth. Cultura e consciência na história intelectual
das mulheres européias. The journal of Women in culture and society, v.12, n.31,
Printed by the University of Chicago, p.529-547, 1987.
28
PERROT, Michelle. As mulheres, o poder, a história. In: _____. Os excluídos
da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e terra,
1988, p.168.
29
SHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil:
de 1500 até a atualidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
30
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
31
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo o século XIX.
São Paulo: Brasiliense, 1984.
32
PERROT, Michelle. Op. cit.
33
São muitas as obras das autoras e autores citadas/os, entre estas destacamos:
PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: UNESP, 1998; DUBY,
Georges; PERROT, Michelle. As mulheres e a história. Lisboa: Dom Quixote,
1995; THÉBAUD, Françoise. Quand nos grand-mères donnaient la vie. – La
maternité en France dans l’entre –deux-guerres. Lyon: Presses Universitaires
de Lyon, 1986; SCOTT, Joan W. A cidadã paradoxal. As feministas francesas e
os direitos do homem. Florianópolis: Mulheres, 2002; DAVIS, Natalie Zemon.
Nas margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1997;
HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino. A luta pelos direitos da
mulher no Brasil. 1850-1940. Florianópolis: Editora Mulheres, Santa Cruz-RS:
Edunisc, 2003.
34
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; LEITE, Miriam Moreira.
(ORG). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de
viajantes estrangeiros. São Paulo: HUCITEC, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1984; ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da
colônia, condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do
Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio & Edunb, 1993; ESTEVES,
Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio
de Janeiro da Belle Èpoque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; SOIHET,
Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem
urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989; DIAS, Maria
Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo o século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1984; DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina,
maternidade e mentalidades no Brasil Côlonia. Rio de Janeiro: José Olympio,
Edunb, 1993; FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e
trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José
Olympio, Edunb, 1993; SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a
família: São Paulo século XIX. São Paulo: Marco Zero, Secretaria de Estado da
Cultura de São Paulo, 1989; PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres
faladas: uma questão de classe. Florianópolis: UFSC, 1998; SOUZA, Maria
Lúcia de Barros Mott de Melo. Parto, parteiras e parturientes; Mme Durecher e
sua época. São Paulo, 1998. Tese (Doutorado em História) – USP.
35
SCOTT, J. Op. cit.
36
Idem, p.14.
37
Este artigo foi traduzido e publicado no Brasil em SCOTT, Joan W. Prefácio
a gender and politics of history. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27, 1994, p. 11.
38
Idem, p.13.
39
Idem.
40
Idem, p.14
41
O pós-estruturalismo questiona a idéia de uma estrutura fixa e objetiva de
significado ou relações sociais – que eram a base do estruturalismo. Ver
WOUTHWAIT, William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social
do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.276.
42
SCOTT, J. W. Op.cit. p.17.
43
Idem, p.19.
44
Idem, p.25.
45
Idem, p.16.
46
DAVIS, Natalie. Women’s History in Transition: the European case. Feminist
Studies, v.3, n.3/4, 1976, p.83-103, apud THÉBAUD, Françoise. Genre et
histoire. In: CHRISTINE BARD, Christine; CHRISTIAN BAUDELOT,
Christian; JANINE MOSSUZ-LAVAU, Janine. Quand les femmes s’en mêlent –
genre et pouvoir. Paris: Éd de la Martinière, 2004, p.44-63
47
SCOTT, J. W. Op. cit. p.14.
48
FAVARO, Cleci Eulália. Imagens femininas. Contradições, ambivalências e
violências. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.
49
SOIHET, Rachel. Violência Simbólica. Saberes Masculinos e representações
femininas. Estudos Feministas, v.5, n.1, p.7-29, 1997.
50
RAMOS, Maria Bernardete. O Brasil dos meus sonhos: feminismo e
modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v.10, n.1,
p.11-37, 2002.
51
THÉBAUD, Françoise. A grande guerra. O triunfo da divisão sexual. In:
DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente (O
século XX), v.5. Porto: Afrontamento; São Paulo: Ebradil,1995, p.68.
52
Idem.
53
PETERSEN, Aurea Tomatis. Trabalhando no banco: trajetória de mulheres
gaúchas desde 1929. Porto Alegre, 1999. Tese (Doutorado em História) –
PUCRS.
54
FAVERI, Marlene de. Memórias de uma (outra) guerra. Cotidiano e medo
durante a Segunda Guerra em Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, Itajaí:
Univali, 2004.
55
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; RAGO, Margareth. Entre a
história e a Liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo:
UNESP, 2001; MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim:
alcoolismo e masculinidade. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2001; WOLFF,
Cristina Scheibe. Mulheres da Floresta: uma história do Alto Juruá – Acre (1890-
1945). São Paulo: HUCITEC, 1999; NECKEL, Roselane. Pública vida íntima: a
sexualidade nas revistas femininas e masculinas (1969-1979). São Paulo, 2004.
Tese (Doutorado em História) – PUC-SP.
56
LAQUEUR, Thomas. La construcción Del sexo: cuerpo y género desde los
griegos hasta Freud. Madrid: Cátedra, 1994.
57
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1986.
58
LAQUEUR, T. Op. cit., p.23.
59
É importante destacar, embora não seja minha questão neste texto, as
discussões sobre a teoria queer, as quais tem se amparado nos aportes teóricos
trazidos por estas discussões de Thomas Laqueur e Judith Butler.
60
BUTLER, J. Op. cit.
61
Idem, p.25.
62
Idem.
63
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista Estudos, v.8, n.2, p.9-
41, 2000.
64
MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e
a produção do sexo (como se fosse) natural. Cadernos Pagu, Campinas, n.24,
p.249-281, jan.-jun., 2005.
65
Uma historiadora brasileira que tem trabalhado dentro desta perspectiva é
Tânia Swain. Ver SWAIN, Tânia Navarro. Feminismos: teorias e perspectivas.
Textos de História: revista do Programa de pós-graduação em História da UNB.
Brasília: UNB, v. 8, n.1/2, 2000.