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Ira Levin

Os meninos do Brasil
Título do original: "The boys from Brazil"

Copyright Ira Levin

Tradução de César Tozzi

CIRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil

Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Livraria Francisco Alves
Editora S.A.

É proibida a venda a quem não pertença ao Círculo

Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias

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Este livro é uma obra de ficção.
Os acontecimentos nele descritos são imaginários, e as
personagens — com exceção das pessoas famosas citadas por
seus nomes verdadeiros — são também imaginárias e não têm
a intenção de representar determinadas pessoas vivas.

O autor agradece as informações que lhe foram dadas pelo Dr.


Maurice F. Goodbody, Jr., Mr. e Mrs. Halperin, Mr. Anthony
Koestler e Mr. Edmund C. Wall.
Para
Jed Levin
Nicholas Levin
Adam Levin

E à memória de
Charles Levin
Um
Em setembro de 1947, ao anoitecer, um pequeno avião bimotor, prateado
e preto, aterrissou numa pista auxiliar do Aeroporto de Congonhas, em São
Paulo. Diminuindo a velocidade, fez uma curva e deslizou em direção a um
hangar, onde uma limusine estava à espera. Três homens, um deles de
branco, passaram do avião para o carro, que saiu de Congonhas em direção
aos arranha-céus brancos do centro de São Paulo. Uns vinte minutos depois,
na Avenida Ipiranga, o veículo parava diante do Sakai, restaurante japonês
em estilo de templo.
Lado a lado, os três homens penetraram no espaçoso vestíbulo laqueado
de vermelho do Sakai. Dois deles, de ternos escuros, eram corpulentos e de
aspecto agressivo, um louro e o outro de cabelos pretos. O terceiro homem,
empertigado entre eles, mais magro e mais velho, vestia-se de branco, do
chapéu aos sapatos, à exceção da gravata amarelo-limão. Balançava na mão
enluvada de branco volumosa pasta bege e assobiava uma música, olhando
em torno com aparente satisfação.
Uma recepcionista de quimono inclinou-se, sorriu graciosamente e,
recebendo o chapéu do homem de branco, fez menção de apanhar sua pasta.
Ele esquivou-se, porém, e dirigiu-se a um jovem e esguio japonês que vinha
ao seu encontro de smoking e com um sorriso.
— Meu nome é Aspiazu — anunciou em português endurecido por
ligeiro sotaque germânico. — Reservei uma sala. — Aparentava sessenta e
pouco anos, tinha cabelos grisalhos cortados rentes, olhos castanhos
brilhantes e joviais e um bigode grisalho, fino e bem aparado.
— Ah, Sr. Aspiazu! — exclamou o japonês, em sua versão própria do
português. — Está tudo pronto para a sua reunião! Quer ter a bondade de me
acompanhar por aqui? Somente alguns degraus. Vai ficar feliz, estou certo,
quando vir os preparativos.
— Feliz já estou — retorquiu o homem de branco, sorrindo. — É um
prazer estar na cidade.
— Mora no interior?
O homem de branco, subindo atrás do louro, fez um sinal afirmativo com
a cabeça e suspirou.
— Sim — proferiu secamente. — Moro no interior. O homem de cabelos
pretos seguiu atrás dele, e o japonês foi por último.
— Primeira porta à direita — exclamou para os da frente. — Querem
fazer a gentileza de tirar os sapatos antes de entrar?
O louro abaixou-se a fim de espreitar através de uma abertura octogonal
na parede, depois firmou a mão no umbral da porta, ergueu o pé para trás e
puxou o sapato. O homem de branco espichou um pé calçado de branco no
tapete do corredor, e o homem de cabelos pretos agachou-se e desapertou-
lhe a fivela dourada lateral. O louro, colocando de lado os sapatos, abriu uma
porta intricadamente entalhada e entrou num aposento verde-claro. O
japonês desembaraçou-se das sapatilhas com grande destreza, usando os
dedos dos pés.
— Nossa melhor sala, Sr. Aspiazu — disse. — Muito agradável.
— Certamente, sem dúvida. — O homem de branco premiu os dedos
enluvados de branco de encontro ao umbral, enquanto observava a remoção
de seu segundo sapato.
— Nosso jantar imperial está marcado para as sete, com cerveja em vez
de saque e conhaque e charutos depois.
O louro foi até a porta. Pequenas cicatrizes cerziam-lhe o rosto; uma de
suas orelhas não tinha lóbulo. Acenou afirmativamente com a cabeça e deu
um passo para trás. O homem de branco, agora mais baixo sem os saltos
avantajados, entrou no recinto. O japonês acompanhou-o.
O cômodo era fresco e de odor adocicado, um plácido retângulo de
paredes de seda, envolto no vago verde-claro de suas esteiras de tatami. No
centro, espaldares de bambu com almofadas estampadas em bege e branco
guarneciam três lados de uma mesa retangular escura e baixa, servida com
xícaras e pratos brancos; três lugares com encosto em cada lado da mesa e
uma na cabeceira da direita. Um descanso baixo para os pés via-se por baixo
da mesa. Na extremidade direita do quarto havia outra mesa baixa e escura
junto à parede, com dois lampiões elétricos em cima. A parede oposta era
feita de biombos de papel branco emoldurado de preto.
— Espaço bastante para sete — disse o japonês, indicando a mesa
central. — E serão servidos pelas nossas melhores garotas. As mais bonitas.
— Sorriu, alçando as sobrancelhas.
O homem de branco, apontando os biombos, perguntou:
— O que há ali atrás?
— Outra sala privada, senhor.
— Está ocupada esta noite?
— Ainda não foi reservada, mas talvez um grupo a queira.
— Reservo-a para mim. — O homem de branco fez um gesto para o
louro abrir os biombos.
O japonês olhou para o louro e de novo para o homem de branco.
— É uma sala para seis — disse, inseguro. — Talvez para oito.
— Certamente. — O homem de branco caminhou até o canto da sala. —
Pagarei mais oito jantares. — Curvou-se a fim de examinar os lampiões
sobre a mesa. Sua volumosa pasta bateu contra a calça.
O louro abria os biombos. O japonês aprestou-se a ajudá-lo, talvez para
evitar que os danificasse. O cômodo vizinho revelou-se uma réplica do
outro, a não ser pelo painel de iluminação no teto, que era escuro, e pela
mesa, que estava posta para seis, dois de cada lado e um em cada cabeceira.
O homem de branco voltou-se para olhar. Do outro lado do aposento, o
japonês sorriu-lhe, embaraçado.
— Só cobrarei se alguém pedir a sala — declarou. — E, nesse caso,
apenas a diferença entre o preço lá de baixo e o que cobramos aqui em cima.
O homem de branco, mostrando-se surpreso, exclamou:
— Esplêndido! Obrigado.
— Com licença, por favor — disse o homem de cabelos pretos ao
japonês. Mantinha-se dentro dos limites do aposento, o terno escuro
amarrotado, o rosto redondo e moreno reluzindo de suor. — Existe algum
modo de tapar isto? — Apontava em direção à abertura octogonal na parede.
Falava como um brasileiro.
— É para as garotas — assegurou o japonês. — Para verem se estarão à
espera do prato seguinte.
— Está bem — disse o homem de branco ao homem de cabelos pretos.
— Você fica do lado de fora.
— Julguei que talvez ele pudesse... — tornou o homem de cabelos
pretos, e encolheu os ombros como que se desculpando.
— Considero tudo satisfatório — disse o homem de branco ao japonês.
— Meus convidados chegarão às oito horas e...
— Virei trazê-los.
— Não precisa. Um de meus homens ficará esperando embaixo. E,
depois de comermos, faremos uma conferência aqui.
— Poderão ficar até as três, se quiserem.
— Não haverá necessidade disso também, espero. Uma hora deverá
bastar. E agora faça-me o favor de trazer um cálice de Dubonnet, tinto, com
gelo e casca de limão.
— Sim, senhor. — O japonês inclinou-se.
— E seria possível um pouco mais de luz? Pretendo ler enquanto espero.
— Infelizmente, senhor, só dispomos desta aí.
— Eu me arranjo. Obrigado.
— Obrigado, Sr. Aspiazu. — O japonês inclinou-se novamente, curvou-
se um pouco menos diante do louro e quase nada para o homem de cabelos
pretos, retirando-se rapidamente da sala.
O homem de cabelos pretos fechou a porta e, frente a ela, levantou os
braços para o alto, curvou os dedos e colocou suas pontas no cimo da
moldura da porta, como se fosse tocar num teclado. Foi afastando as mãos
vagarosamente.
O homem de branco postou-se de costas para a abertura na parede,
enquanto o louro se dirigia para o espaldar na cabeceira da mesa e se
agachava ao lado. Apertou as almofadas beges e brancas, retirou-as da
armação de bambu e deixou-as de lado. Examinou a armação, virou-a para
olhar o fundo e largou-a junto às almofadas. Apalpou a esteira de tatami à
volta de toda a extremidade da mesa; com as mãos abertas, inspecionou o
capim entrançado, apertando-o suavemente.
Pondo-se de joelhos, enfiou a cabeça loura embaixo da mesa e olhou
dentro do descanso para os pés. Curvou-se mais, virou a cabeça e espiou
com um dos olhos azuis o reverso da mesa, esquadrinhando-o
vagarosamente de um a outro lado.
Afastou-se da mesa, pegou a armação de bambu, recolocou as duas
almofadas e dispôs o espaldar em ângulo acessível. Erguendo-se, postou-se,
atento, atrás dele.
O homem de branco aproximou-se, desabotoando o casaco. Pôs a pasta
no chão, virou-se e se abaixou cuidadosamente, ao encontro dos braços do
espaldar. Dobrou as pernas embaixo da mesa, com os pés na direção do
descanso.
O louro, curvando-se, empurrou o espaldar, ajustando-o à mesa.
— Danke1 — disse o homem de branco.
— Bite2 — respondeu o louro, e foi se colocar de costas para a abertura
da parede.
1 "Obrigado." Em alemão no original. (N. do E.)
2 "De nada." Em alemão no original. (N. do E.)

O homem de branco retirou uma das luvas, fitando com um ar de


aprovação a mesa à sua frente. O homem de cabelos pretos, braços esguios,
caminhou com lentos passos laterais pela passagem entre os dois aposentos,
tateando o topo de uma saliente verga preta.
Batidas leves soaram. O louro dirigiu-se à porta e o homem de cabelos
pretos voltou-se, baixando os braços. O louro pôs-se à escuta e abriu a porta
para uma garçonete de quimono rosado, que entrou de cabeça inclinada,
trazendo um tilintante cálice sobre uma bandeja. Seus pés cobertos por meias
brancas sussurravam pelo tatami.
— Ah! — exclamou, satisfeito, o homem de branco, dobrando as luvas.
Sua expressão entusiástica esmoreceu quando a garçonete, mulher de rosto
inexpressivo, agachou-se junto dele e removeu o guardanapo e os pauzinhos
do seu prato. — E qual é o seu nome, querida? — perguntou com forçada
jovialidade.
— Tsuruko, senhor — A garçonete colocou um descanso de papel sobre
a mesa.
— Tsuruko! — Olhos arregalados e lábios franzidos, o homem olhou
para o louro e para o homem de cabelos pretos, como se compartilhasse com
eles o assombro causado por notável revelação.
A garçonete, depois de deixar a bebida na mesa, ergueu-se e recuou.
— Até que meus convidados cheguem, Tsuruko, não quero ser
perturbado.
— Sim, senhor. — Ela voltou-se e, em passos curtos, deixou
apressadamente a sala.
O louro fechou a porta e retomou seu lugar diante da abertura da parede.
O homem de cabelos pretos virou-se e ergueu as mãos até o topo da verga.
— Tsu-ru-ko — repetiu o homem de branco, aproximando a pasta.
Acrescentou, em alemão: — Se ela é das bonitas, como serão então as que
não forem tão bonitas assim?
O louro grunhiu uma risada.
O homem de branco acionou com o dedo o fecho da pasta e abriu-a o
suficiente para que não se tornasse a fechar. Enfiou as luvas dobradas num
dos cantos e, folheando as bordas dos papéis e envelopes de manilha, retirou
do meio deles uma revista fina. Colocou-a na mesa, ao lado do seu prato. Era
um exemplar do Lancet, o periódico inglês de medicina. Examinando
atentamente a capa, retirou do bolso superior um estojo forrado de pano
pintalgado de bolinhas, puído e desbotado, do qual puxou um par de óculos
de aros pretos. Abrindo-os, colocou-os, guardou no bolso o estojo e passou a
borda dos dedos pelo bigode fino e eriçado. Tinha as mãos pequenas,
rosadas, imaculadas, de aspecto jovem. Tirou do casaco uma cigarreira de
ouro, na qual estava gravada uma extensa inscrição em letra manuscrita.
O louro permanecia diante da abertura da parede. O homem de cabelos
pretos examinava as paredes, o chão, a mesa de serviço e os espaldares.
Afastou para o lado um dos lugares do meio da mesa, esticou ali o lenço e,
pisando sobre ele, abriu com uma chave de parafusos o painel de iluminação
de bordas cromadas.
O homem de branco lia o Lancet, sorvendo vez por outra o seu Dubonnet
e fumando um cigarro. Silvava absortamente através de uma fenda nos
dentes superiores. Eventualmente parecia surpreso com o que lia. A certa
altura, exclamou em inglês:
— Absolutamente errado, senhor!

Os convidados chegaram dentro de quatro minutos, o primeiro


entregando à recepcionista o chapéu, mas não a pasta de documentos, três
minutos antes das oito, o último um minuto depois das oito. À medida que
cada um abria caminho através dos grupos e casais até o japonês de smoking,
era cortesmente conduzido até o louro no sopé da escada. Trocavam-se
palavras e o convidado era encaminhado ao andar de cima, até o homem de
cabelos pretos, que apontava a fileira de sapatos junto à porta aberta.
Eram seis homens de negócios bem-vestidos, de cinqüenta e tantos anos,
pele clara, nórdicos. De meias, acenavam com polidez uns para os outros e
prontamente iam se apresentar em português e espanhol ao homem de
branco.
— Ignacio Carreras, doutor. É uma honra conhecê-lo.
— Olá! Como vai? Não posso me levantar, estou entalado aqui. Este é
José de Lima, do Rio. Ignacio Carreras, de Buenos Aires.
— Doutor? Sou Jorge Ramos.
— Meu amigo! Seu irmão era meu braço direito. Desculpe-me estar
sentado, estou entalado aqui. Ignacio Carreras, de Buenos Aires, José de
Lima, do Rio. Jorge Ramos, daqui mesmo de São Paulo.
Dois dos convidados eram velhos amigos, felizes de se encontrarem.
— Em Santiago! E você, onde tem estado?
— No Rio.
Um outro apresentou-se com um bater de calcanhares que falhou:
— Antônio Paz, de Porto Alegre.
Deixaram-se cair nos lados da mesa, com gemidos, gracejando acerca de
sua inabilidade. Instalaram-se com as pastas de documentos bem perto;
abriram os guardanapos com sacudidelas, pediram seus drinques a uma
garçonete jovem e bonita, graciosamente agachada. A inexpressiva Tsuruko
colocou diante de cada conviva um fumegante pano de rosto. O homem de
branco e seus convidados esfregaram com agrado as mãos e a boca.
Aparentemente, era como se estivessem retirando da boca, com o pano, o
português e o espanhol. O alemão começou a emergir. Trocaram-se nomes
em alemão.
— Ah, estou reconhecendo você. Serviu junto a Stangl, não foi? Em
Treblinka?
— Você disse "Farnbach"? Minha esposa é uma Farnbach, de Langen,
perto de Frankfurt.
Serviram-se drinques e pratinhos de antepastos — camarões miúdos e
croquetes de carne. O homem de branco mostrou como se usavam os
pauzinhos. Os que já sabiam ensinaram os inexperientes.
— Um garfo, pelo amor de Deus!
— Não, não! — O homem de branco ria para a garçonete jovem e
bonita. — Vamos fazê-lo aprender! Ele tem que aprender!
O nome dela era Mori. A garota de quimono comum, que levava pratos e
tigelas cobertas para Tsuruko, na mesa de serviço, disse, enrubescendo:
— Yoshiko, senhor.
Todos comiam e bebiam. Falavam do terremoto no Peru e do novo
presidente americano, Ford.
Serviam-se tigelas de sopa clara e mais pratos de comida, frita e crua. E
também chá.
Os homens conversavam sobre a crise do petróleo e a provável
diminuição de simpatia do Ocidente por Israel.
Serviu-se mais comida — espetinhos de carne cozida, porções de lagosta
— e cerveja japonesa.
Falaram sobre as mulheres japonesas. Kleist-Carreras, magro, com um
olho de vidro que se movia com dificuldade, contou uma história muito
engraçada acerca das desventuras de um amigo num bordel de Tóquio.
O japonês de smoking entrou e indagou se tudo corria bem.
— Tudo de primeira! — assegurou-lhe o homem de branco. —
Excelente!
Os demais concordaram, em português-espanhol-alemão. Serviu-se
melão. E mais chá.
Falou-se de pesca e das diferentes maneiras de preparar peixe.
O homem de branco pediu Mori em casamento. Ela sorriu e alegou que
tinha marido e dois filhos.
Os homens se ergueram, fazendo ranger os espaldares, estiraram os
braços, puseram-se nas pontas dos pés, deram pancadinhas na barriga.
Alguns, entre os quais o de branco, saíram para o corredor, em direção ao
banheiro dos homens. Os outros falaram sobre o homem de branco, como
era simpático, jovial e bem conservado para os seus... sessenta e três anos?
Sessenta e quatro?
O primeiro grupo voltou, outro saiu.
A mesa preta estava limpa, arrumada com copos de conhaque, cinzeiros
e uma caixa de charutos acondicionados em tubos de vidro. Mori fez a volta,
baixando a garrafa, cobrindo de âmbar escuro os fundos dos copos. Tsuruko
e Yoshiko cochichavam na mesa de serviço, discordando quanto à melhor
maneira de arrumá-la.
— Fora, garotas — ordenou o homem de branco, dirigindo-se ao seu
lugar. — Queremos conversar em particular.
Tsuruko foi enxotando Yoshiko à sua frente. De passagem, desculpou-
se:
— Depois tiramos a mesa.
Mori serviu a última dose de conhaque, deixou a garrafa na cabeceira
vaga da mesa e apressou-se em direção à porta, detendo-se de lado, com a
cabeça inclinada, enquanto os demais homens entravam.
O homem de branco arriou-se no seu espaldar. Farn-bach-Paz auxiliou-o
a acomodar-se.
O homem de cabelos pretos olhou lá da porta, contou os circunstantes e
fechou-a.
Os homens sentaram-se nos seus lugares, solenemente desta vez, sem
brincadeiras. A caixa de charutos circulou.
A abertura da parede foi encoberta do outro lado pelo pano escuro de um
terno.
O homem de branco tirou um cigarro da sua cigarreira dourada, fechou-
a, olhou-a e ofereceu-a a Farnbach à sua direita, que meneou a cabeça
raspada a navalha. Verificando, porém, que era convidado a ler e não a
fumar, segurou a cigarreira, focalizando a visão. Seus olhos azuis
arregalaram-se, identificando.
— Ah! — Enquanto lia, os grossos lábios franzidos sugaram o ar.
Sorrindo alvoroçado para o homem de branco, exclamou: — Maravilhoso!
Melhor ainda que uma medalha! Permite-me? — e acenou com a cigarreira
em direção a Kleist, ao seu lado.
O homem de branco fez um aceno afirmativo de cabeça, sorrindo, as
faces rosadas, e virou-se a fim de encostar o cigarro à chama de um isqueiro
à sua esquerda. Semicerrando os olhos ante a fumaça, puxou mais para perto
a pasta ao lado e escancarou-a novamente.
— Maravilhoso! — exclamou Kleist. — Olhe, Schwimmer.
O homem de branco localizou e retirou da pasta um maço de papéis.
Colocou-os à sua frente, depois de afastar o conhaque. Pousou o cigarro num
cinzeiro branco. Observando o belo e bem-conservado Schwimmer passar a
cigarreira para o outro lado da mesa, em direção a Mundt, ele tirou um estojo
do bolso de cima e dali os óculos. Sorriu ante os sorrisos de admiração de
Schwimmer e Kleist, embolsou o estojo, abriu numa sacudidela os óculos e
escorregou-os sobre as orelhas, ajustando-os. Um assobio da parte de Mundt,
prolongado e baixo. O homem de branco pegou o cigarro, puxou uma
baforada satisfeita e largou-o de novo no cinzeiro. Endireitou os papéis à sua
frente e examinou o de cima, pegando o conhaque.
— Hummmm! — veio de Traunsteiner.
O homem de branco sorveu o conhaque, folheou o final do maço de
papéis.
A cigarreira voltou para ele, vinda de Hessen, de cabelos prateados,
olhos azuis brilhando no rosto ossudo.
— Que maravilha possuir algo assim!
— Sim — assentiu o homem de branco, com outro aceno afirmativo. —
Tenho imenso orgulho dela. — Pousou a cigarreira ao lado dos papéis.
— Quem não teria? — indagou Farnbach.
O homem de branco afastou o copo de conhaque e disse:
— Vamos ao nosso assunto agora, rapazes. — Inclinando a tosada
cabeça grisalha, baixou os óculos sobre o nariz e fitou os homens por cima
deles. Eles o encaravam atentos, charutos em riste. O silêncio invadiu o
aposento, quebrado apenas pelo gemido baixo do ar-condicionado.
— Vocês sabem o que têm a fazer — disse o homem de branco —, e não
ignoram que se trata de árduo trabalho. Vou fornecer os detalhes agora. —
Curvou a cabeça para a frente, baixando o olhar através dos óculos. —
Noventa e quatro homens têm de morrer, em determinadas datas ou perto
delas, dentro dos próximos dois anos e meio — anunciou, lendo. —
Dezesseis estão na Alemanha Ocidental, catorze na Suécia, treze na
Inglaterra, doze nos Estados Unidos, dez na Noruega, nove na Áustria, oito
na Holanda, e mais dois grupos de seis na Dinamarca e no Canadá. Total,
noventa e quatro. O primeiro deverá morrer por volta de 16 de outubro, o
último, por volta de 23 de abril de 1977.
Recostou-se, fitando novamente os homens.
— Por que estes homens precisam morrer? E por que em datas especiais
ou perto delas? — Meneou a cabeça. — Agora não, mais tarde poderão ser
informados. Mas isto posso lhes dizer agora: suas mortes constituem o passo
final de uma operação à qual eu e os líderes da Organização dedicamos
muitos anos, um esforço imenso e uma grande parte das finanças da
Organização. É a mais importante operação jamais empreendida pela
Organização, e "importante" é uma palavra demasiado fraca para qualificá-
la. A esperança e o destino da raça ariana estão em jogo. Não há exagero
aqui, meus amigos. É a verdade literal: o destino da gente ariana — seu
predomínio sobre os eslavos e semitas, negros e amarelos — será cumprido
se a operação tiver êxito, e não será cumprido se a operação falhar. Portanto,
"importante" não é uma palavra suficientemente forte, não é verdade?
"Sagrada", talvez? Sim, esta cai melhor. É uma operação sagrada esta em
que tomam parte.
Pegou o cigarro, bateu a cinza e levou cuidadosamente aos lábios a ponta
restante.
Os homens entreolharam-se silenciosamente, pasmos. Lembraram-se de
tirar baforadas dos charutos, sorver os conhaques. Voltaram o olhar para o
homem de branco. Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e fitou-os.
— Vocês sairão do Brasil com novas identidades — declarou, tocando
na pasta ao lado. — Está tudo aqui. Negócio tranqüilo, nada de falsificações.
E disporão de abundantes fundos para os próximos dois anos e meio. Em
diamantes — ele sorriu — que, receio, terão de fazer passar pela alfândega
de maneira bem incômoda.
Os homens sorriram, encolhendo os ombros.
— Cada um será responsável pelos homens em um ou dois países. Terão
de treze a dezoito missões cada um; entretanto, alguns deles já terão morrido
de causas naturais. Eles têm sessenta e cinco anos. Não muitos terão
morrido, porém, já que tinham excelente saúde por volta dos cinqüenta e
dois anos, sem sinais de doença.
— Todos têm sessenta e cinco? — indagou Hessen, mostrando-se
intrigado.
— Quase todos — respondeu o homem de branco. — Isto é, quando suas
datas chegarem. Uns poucos terão um ano ou dois a mais ou a menos. — Pôs
de lado o papel no qual lera os países e as cifras e apanhou as outras nove ou
dez folhas. — Os endereços — informou aos homens — são os de 1961 e
62, mas vocês não deverão ter muito trabalho para localizá-los agora. A
maioria provavelmente ainda estará onde estava. São homens de família,
estáveis. Funcionários públicos, na maior parte — fiscais de impostos,
diretores de escolas, e assim por diante. Homens de pouca autoridade.
— Também têm isso em comum? — indagou Schwimmer.
O homem de branco acenou afirmativamente.
— Um grupo extraordinariamente homogêneo — observou Hessen. —
São membros de outra organização, contrária à nossa?
— Nem sequer se conhecem entre si. Nem tampouco a nós — disse o
homem de branco. — Pelo menos, espero que não.
— Devem estar aposentados agora, não é? — indagou Kleist. — Já que
têm sessenta e cinco? — Seu olho de vidro olhava para outro ponto.
— Sim, a maioria estará provavelmente aposentada — assentiu o homem
de branco. — Mas, se mudaram de residência, podem ficar certos de que
tiveram o cuidado de deixar os novos endereços. Schwimmer, você pega a
Inglaterra. Treze, o menor número. — Entregou uma folha datilografada a
Kleist, para que passasse a Schwimmer. — Nenhum desabono às suas
habilidades — e sorriu para Schwimmer. — Pelo contrário, trata-se de um
reconhecimento delas. Sei que você é capaz de se transformar num inglês do
qual a própria rainha não suspeitaria.
— Você de fato sabe lisonjear, meu velho. — Schwimmer arrastou o seu
inglês oxfordiano, acariciando o bigode ruivo, enquanto olhava a folha. — A
verdade é que a velhota não é tão inteligente assim, você sabe.
O homem de branco sorriu.
— Este talento pode muito bem revelar-se útil — disse ele —, embora
sua nova identidade, como a de todos os outros, seja a de um filho da
Alemanha. Serão caixeiros viajantes, rapazes. Talvez entre uma missão e
outra tenham tempo de descobrir algumas filhas de fazendeiros. — Passou o
olhar para a folha seguinte. — Farnbach, você viajará pela Suécia. —
Entregou a folha para a direita. — Com catorze fregueses para as suas finas
mercadorias importadas.
Pegando a folha, Farnbach inclinou-se para a frente, com a testa franzida
até o início da careca.
— Todos eles funcionários públicos idosos — ponderou. — Matando-os,
daremos cumprimento ao destino da raça ariana?
O homem de branco fitou-o por um momento.
— Isto foi uma pergunta ou uma afirmativa, Farnbach? — indagou. —
Pareceu-me uma pergunta ambígua, e se for assim considero-me surpreso.
Porque você, e todos os demais, foram escolhidos para esta operação com
fundamento em sua incontestável obediência, como também em suas outras
características e talentos.
Farnbach recostou-se, os lábios grossos apertados, as narinas frementes,
o rosto ruborizado.
O homem de branco olhou para as próximas folhas grampeadas.
— Não, Farnbach, estou certo de que era uma afirmativa — asseverou
—, e neste caso preciso corrigi-la ligeiramente: matando-os, você preparará
o caminho para o cumprimento do destino, etc. Ele virá. Não em abril de
1977, quando o nonagésimo quarto homem morrer, mas no devido tempo.
Apenas, tratem de obedecer às ordens. Traunsteiner, você tem a Noruega e a
Dinamarca. — Ele passou as folhas. — Dez numa, seis na outra.
Traunsteiner pegou as folhas, o quadrado rosto avermelhado expressando
feroz determinação: Obediência Incontestável.
— A Holanda e a parte alta da Alemanha — disse o homem de branco
— são para o Sargento Kleist. Dezesseis novamente, oito e oito.
— Obrigado, Herr Doktor.
— Oito na baixa Alemanha e nove na Áustria perfazem dezesseis para o
Sargento Mundt.
Mundt, rosto redondo, cabeça tosada, de monóculo, sorria, esperando as
folhas lhe serem passadas.
— Enquanto estiver na Áustria — declarou — vou aproveitar para cuidar
de Yakov Liebermann. — Traunsteiner, passando-lhe as folhas, sorriu,
mostrando os dentes com obturações em ouro.
— Yakov Liebermann — tornou o homem de branco — já recebeu os
devidos cuidados por parte do tempo, má saúde e falência do banco onde
guardava seu dinheiro de judeu. Vive à caça de contratos para conferências,
e não de nós. Esqueça-se dele.
— Evidentemente — assegurou Mundt. — Eu estava apenas brincando.
— E eu não estou. Para a polícia e para a imprensa, ele não passa de
velha praga enfadonha, com um arquivo cheio de fantasmas. Matá-lo
significa transformá-lo em herói desprezado, com inimigos vivos ainda por
capturar.
— Nunca ouvi falar do maldito judeu.
— Quisera poder dizer o mesmo. Os homens riram.
O homem de branco entregou seu último par de folhas a Hessen.
— E para você, dezoito — disse ele, sorrindo. — Doze nos Estados
Unidos e seis no Canadá. Espero que faça jus ao seu irmão.
— Farei — retorquiu Hessen, erguendo a cabeça prateada, uma
expressão de orgulho nas feições marcadas. — Verá que sim.
O homem de branco olhou os circunstantes.
— Eu lhes disse — declarou — que os homens deverão ser mortos na
data, ou nas proximidades dela, fornecida juntamente com o nome de cada
um. "Na" evidentemente é melhor do que "nas proximidades", mas apenas
microscopicamente. Uma semana a mais ou a menos não fará grande
diferença, e mesmo um mês será aceitável, se tiverem razões para julgar que
a missão se tornará menos perigosa. Quanto aos métodos: quaisquer que
escolherem, contanto que variados e que afastem sempre a idéia de
premeditação. As autoridades de nenhum dos países deverão suspeitar que
uma operação está em andamento. Não será difícil para vocês. Tenham em
mente que se trata de homens com sessenta e cinco anos de idade: sua vista
está falhando, têm reflexos lentos, força diminuída. É provável que dirijam
mal, atravessem as ruas descuidadamente, sofram quedas, sejam esfaqueados
e roubados por assaltantes. Existem dúzias de maneiras mediante as quais
tais homens poderão ser mortos sem atrair demasiada atenção. — Ele sorriu.
— Confio em que as descubram.
— Poderemos contratar alguém para se encarregar de uma missão ou
para servir de auxílio? Se esta for a melhor maneira de executá-la? —
indagou Kleist.
O homem de branco espalmou as mãos em atônita surpresa.
— Vocês são homens sensatos, de bom discernimento
— recordou a Kleist. — Por isso os escolhemos. Se acharem que a
missão deva ser executada de certo modo, assim deverão agir. Desde que os
homens morram na época certa e as autoridades não suspeitem de uma
operação, vocês terão completa liberdade de ação. — Ergueu um dedo. —
Não, completa, não, desculpem. Há uma condição, e bastante importante:
não queremos que as famílias dos homens sejam envolvidas, quer como
vítimas, em qualquer espécie de acidente, ou, no caso, digamos, de jovens
esposas que se mostrem acessíveis a propostas românticas, como cúmplices.
Repito: as famílias não deverão ser envolvidas de maneira alguma. Somente
estranhos poderão servir de cúmplices.
— Para que necessitaríamos de cúmplices? — perguntou Traunsteiner.
— Nunca se sabe o que se terá pela frente — respondeu Kleist.
— Viajei por toda a Áustria — asseverou Mundt, olhando uma das
folhas —, e há lugares aqui de que nunca ouvi falar.
— É — resmungou Farnbach, olhando sua única folha.
— Conheço a Suécia, mas certamente nunca ouvi falar de nenhuma
"Rasbo".
— É uma cidadezinha a uns quinze quilômetros a nordeste de Uppsala
— informou o homem de branco. — Trata-se de Bertil Hedin, não? Ele é
agente do correio de lá.
Farnbach fitou-o, as sobrancelhas soerguidas.
O homem de branco sustentou-lhe o olhar e sorriu pacientemente.
— Matar o agente de correio Hedin — asseverou — é por todos os
modos importante — corrija-se, sagrado —, conforme declarei. Vamos lá,
Farnbach, seja o excelente soldado que sempre foi.
Farnbach encolheu os ombros e voltou os olhos para a sua folha.
— Você... é quem manda — disse ele.
— Exatamente — assentiu o homem de branco, ainda sorridente ao se
voltar para a sua pasta.
Hessen, olhando as suas folhas, observou:
— Aqui está uma boa: "Kankakee".
— Nas imediações de Chicago — informou o homem de branco,
apanhando entre as mãos abertas um monte de envelopes de papel manilha.
Derramou-os sobre a mesa, meia dúzia de grandes envelopes abarrotados
cada um com um nome escrito num canto: "Cabral", "Carreras", "de Lima".
Um copo de conhaque foi derrubado na precipitação com que os envelopes
deslizaram.
— Desculpem — disse o homem de branco, recostando-se. Com um
gesto, ordenou que os envelopes fossem distribuídos e retirou os óculos. —
Não abram aqui — determinou, apertando o nariz e esfregando-o. — Eu
mesmo verifiquei tudo esta manhã. Passaportes alemães, com carimbos de
entrada brasileiros e os vistos em ordem, licenças de trabalho, de motorista,
cartões de visita e documentos, está tudo aí. Quando voltarem para seus
quartos treinem suas novas assinaturas e assinem tudo o que for preciso.
Suas passagens aéreas estão aí também, e algum dinheiro dos países a que se
destinam, no valor de uns poucos milhares de cruzeiros.
— E os diamantes? — indagou Kleist, segurando com as duas mãos o
envelope escrito "Carreras".
— Estão num cofre da sede. — O homem de branco guardou os óculos
no estojo estampado de bolinhas. — Apanhem-nos quando estiverem a
caminho do aeroporto — partirão amanhã — e entreguem a Ostreicher seus
atuais passaportes e documentos pessoais, para que fiquem guardados até a
volta.
— Logo agora que já me habituara ao "Gómez" — lamentou-se Mundt,
mostrando os dentes num sorriso. Os outros riram.
— Quanto estamos recebendo? — perguntou Schwimmer, passando o
fecho ecler na pasta. — Em diamantes, quero dizer.
— Cerca de quarenta quilates cada um.
— Ui! — antecipou Farnbach.
— Não, os tubos são muito pequenos. Apenas cerca de uma dúzia de
pedras de três quilates. Vale cada uma uns setenta mil cruzeiros pelo
mercado atual, e mais no futuro, com a inflação. Portanto, terão o
equivalente a pelo menos novecentos mil cruzeiros para os dois anos e meio.
Viverão com muito conforto, digno de vendedores das grandes firmas
alemãs, e disporão de dinheiro mais do que suficiente para todo o
equipamento de que necessitarem. A propósito, tratem de não levar arma
alguma no avião. Estão revistando todo mundo presentemente. Deixem todas
as que tiverem com Ostreicher. Não terão dificuldades em vender os
diamantes. Na verdade, talvez precisem é afastar os compradores. Tudo
entendido?
— E o controle? — indagou Hessen, pondo ao seu lado a pasta.
— Não falei nisso? Primeiro dia de cada mês, por telefone, para a filial
brasileira da sua companhia — a sede, é claro. Da maneira mais natural
possível. Especialmente você, Hessen. Tenho certeza de que nove entre dez
telefones dos Estados Unidos são censurados.
— Não falo norueguês desde a guerra — declarou Traunsteiner.
— Estude. — O homem de branco sorriu. — Alguma coisa mais? Não?
Bem, então tomemos mais um pouco de conhaque, que pensarei num brinde
apropriado para o bota-fora. — Pegou a cigarreira, abriu-a e retirou um
cigarro. Fechou-a, contemplou-a e, aproximando a manga branca do lado
inscrito, deu-lhe enérgico polimento.

Tsuruko inclinou-se e agradeceu ao senhor. Enfiando as notas dobradas


na cintura do quimono, passou de mansinho por ele, rapidamente, em
direção à mesa de serviço, onde Yoshiko juntava as tigelinhas de restos
ressequidos.
— Ele me deu vinte e cinco! — cochichou Yoshiko em japonês. —
Quanto você ganhou?
— Não sei — sussurrou Tsuruko, agachando-se, ajustando a tampa
apenas encostada de uma terrina de arroz embaixo da mesa. — Não olhei
ainda. — Puxou com as duas mãos a larga e achatada terrina laqueada de
vermelho.
— Cinqüenta, aposto!
— Tomara que sim.
Levantando-se, Tsuruko passou apressada, com a terrina, pelo senhor e
um de seus convidados que brincava com Mori, e saiu para o corredor.
Ziguezagueou por entre os outros convidados — que se ajudavam com
calçadeiras, curvados, agachados — e abriu com o ombro uma porta de
vaivém.
Desceu com a terrina um estreito lance de escadas iluminado por
lâmpadas nuas dependuradas de fios e entrou por um corredor igualmente
estreito, com paredes revestidas de madeira.
O corredor dava para uma cozinha fumegante e ruidosa, onde antiquados
ventiladores de teto giravam vagarosamente suas pás por sobre o alarido das
garçonetes, cozinheiros e ajudantes. No seu quimono rosado, Tsuruko
carregou a larga terrina vermelha por entre eles, passando por um ajudante
que picava verduras, e um outro que ergueu o olhar para ela, enquanto
puxava uma bandeja de pratos de uma gotejante máquina de lavar louça
embutida.
Colocou a terrina sobre a mesa, onde estavam empilhadas caixas de
cogumelos, e, virando-se, tirou de uma cesta de lona para guarnição de mesa
um guardanapo usado, que sacudiu e esticou sobre a superfície metálica.
Retirou a tampa da terrina e colocou-a de lado. Dentro da terrina vermelha
havia um gravador preto cromado, um Panasonic, com indicações em inglês
nos controles, as engrenagens do cassete girando suavemente no visor do
aparelho. Tsuruko hesitou, a mão sobre os botões, franziu a testa, indecisa, e
retirou o gravador da terrina, colocando-o sobre o guardanapo e amarrando
as pontas dor cima.
Segurando o gravador embrulhado junto ao peito, dirigiu-se a uma porta
envidraçada e agarrou a maçaneta. Um homem sentado nas proximidades,
costurando um avental, ergueu o olhar.
— São restos — disse ela, exibindo o volume envolto no guardanapo. —
Uma velha vem apanhar.
O homem pousou nela os olhos cansados de seu murcho rosto amarelo e
baixou-os para as mãos que cosiam.
Ela abriu a porta e saiu para uma pequena área. Um gato pulou de umas
latas de lixo e disparou em direção ao fim de uma passagem, onde se
divisavam as luzes da rua e as de néon.
Tsuruko fechou a porta atrás de si e inclinou-se para a escuridão.
— Ei, está aí, Sr. Hunter? — chamou baixinho em português.
Um vulto surgiu rapidamente de um lado da passagem, um homem alto e
magro, com uma bolsa a tiracolo.
— Você fazer o serviço?
— Sim — disse ela, desembrulhando o gravador. — Ainda está girando.
Não achei o botão de desligar.
— Bom, bom, não ter importância. — Ele era moço. A luz da porta
bateu sobre "seu rosto de belas feições e cabelos castanhos crespos. — Onde
você instalar isto? — indagou.
— Numa terrina de arroz embaixo da mesa de serviço. — Entregou-lhe o
gravador. — Com a tampa encostada para eles não verem.
Ele inclinou o gravador em direção à porta; e apertou um dos botões e
depois outro. Um agudo chilrear ressoou. Tsuruko, observando, afastou-se a
fim de lhe dar mais luz.
— Perto de onde eles sentar? — perguntou ele. Falava mal o português.
— Como daqui até ali. — E mostrou com um gesto a distância até a lata
de lixo mais próxima.
— Bom, bom. — O rapaz apertou um botão, acabando com o chilrear, e
premiu outro: a voz do homem de branco falou em alemão, distante,
circundada de um eco.
— Ótimo! — exclamou o rapaz, e parou a voz com outro botão. Apontou
para o gravador. — Quando começar a gravar?
— Depois que eles acabaram de comer, logo antes de nos mandarem
sair. Falaram durante quase uma hora.
— Eles ir embora?
— Estavam saindo quando desci.
— Bom, bom. — O rapaz deu um puxão no fecho ecler da sua bolsa azul
e branca de uma linha aérea. Usava blusão e calças de zuarte azul.
Aparentava ter uns vinte e três anos, e ser norte-americano. — Você ser
grande ajuda minha — disse a Tsuruko, enfiando o gravador na bolsa.
— Minha revista estar muito feliz quando eu levar para casa uma história
sobre o Sr. Aspiazu. Ele ser o mais famoso fazedor de cinema. — Levando a
mão à cintura, retirou uma carteira, abrindo-a em direção à luz.
Tsuruko observava, segurando o guardanapo embolado.
— Uma revista norte-americana? — perguntou.
— Sim — respondeu o rapaz, contando as notas. — Movie Story. Revista
muito importante de cinema. — Sorriu alegremente para Tsuruko e
entregou-lhe o dinheiro. — Cento e cinqüenta cruzeiros. Muito obrigado.
Você ser grande ajuda minha.
— Obrigada. — Ela olhou as notas e sorriu-lhe com uma inclinação
rápida de cabeça.
— O seu restaurante ter cheiro bom — disse ele, embolsando a carteira.
— Ficar com muita fome enquanto esperar.
— Gostaria que lhe arranjasse alguma coisa? — Ela enfiou as notas no
quimono. — Eu poderia...
— Não, não. — Ele tocou-lhe a mão. — Eu comer no meu hotel.
Obrigado. Muito obrigado. — Deu um aperto na mão dela, voltou-se e
afastou-se em largas passadas pela passagem.
— Sempre às ordens, Sr. Hunter! — gritou ela. Ficou olhando por um
momento, depois virou-se, abriu a porta e entrou.

Tiveram uma rodada de drinques de cortesia no bar, a isso persuadidos


menos pela instância do japonês de smoking — que se apresentou como
sendo Hiroo Kuwayama, um dos três donos do Sakai — do que pela
presença ali da novidade de um jogo de pingue-pongue eletrônico, que se
revelou tão atraente que foi pedida e consumida outra rodada, e ainda
proposta outra, que afinal não foi pedida.
Por volta das onze e meia, dirigiram-se em massa à recepção, a fim de
apanharem os chapéus. A garota de quimono, entregando a Hessen o seu,
sorriu e disse:
— Um amigo seu veio à sua procura, mas não quis subir sem ter sido
convidado.
Hessen olhou-a por um momento.
— Ah, sim — fez ele.
Ela fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Um rapaz. Norte-americano, acho.
— Ah — tornou Hessen. — Claro. Sim. Sei quem é. Veio me procurar,
segundo diz.
— Sim, senhor. Quando o senhor subia as escadas.
— Perguntou aonde eu ia, claro.
Ela fez um aceno afirmativo de cabeça.
— E lhe disse?
— Que era uma reunião particular. Ele julgou saber quem a estava
oferecendo, mas enganou-se. Eu lhe disse que era o Sr. Aspiazu. Ele também
o conhece.
— Sim, sei — disse Hessen. — Somos todos bons amigos. Ele devia ter
subido.
— Disse que provavelmente se tratava de encontro de negócios e que
não queria perturbar. Além do mais, não estava vestido direito. — Desceu as
mãos ao longo do corpo, com ar de pena. — Estava de blue jeans. — Roçou
os dedos finos no pescoço. — E sem gravata.
— Ah — fez Hessen. — Bem, de qualquer maneira, foi uma pena ele
não ter subido, quando mais não fosse para dizer "olá". Foi embora logo?
Ela fez um aceno afirmativo.
— Está bem. — Hessen sorriu e deu-lhe um cruzeiro. Foi falar com o
homem de branco. Os outros, segurando os chapéus e as pastas,
aglomeraram-se em volta.
O louro e o homem de cabelos pretos dirigiram-se rapidamente às
entalhadas portas de entrada. Traunsteiner entrou apressado no bar e voltou
um momento depois acompanhado de Hiroo Kuwayama.
O homem de branco pousou a mão enluvada de branco no ombro negro
de Kuwayama e falou-lhe com ar grave. Kuwayama ouviu, respirou fundo,
mordeu o lábio, meneou a cabeça. Respondeu com gestos tranqüilizadores e
dirigiu-se às pressas aos fundos do restaurante.
Com um gesto brusco, o homem de branco afastou os outros homens.
Foi para o outro lado do saguão e pousou o chapéu e a pasta, menos
volumosa agora, sobre uma mesa preta com abajur. Permaneceu olhando
para os fundos do restaurante, franzindo a testa e esfregando as mãos
enluvadas. Baixou os olhos para elas e desceu-as junto ao corpo.
Vieram dos fundos do restaurante Tsuruko e Mori, de slacks e blusas
coloridas, e Yoshiko, ainda de quimono. Kuwayama empurrou-as à frente.
Pareciam confusas e preocupadas. Os fregueses lançaram-lhes olhares.
O homem de branco curvou a boca num sorriso amistoso.
Kuwayama entregou as três mulheres ao homem de branco, inclinou-se e
colocou-se de lado, assistindo de braços cruzados.
O homem de branco sorriu, meneou tristemente a cabeça, correu a mão
enluvada pelos tosados cabelos grisalhos.
— Meninas — anunciou —, uma coisa realmente ruim aconteceu. Ruim
para mim, quero dizer, não para vocês. Boa para vocês. Vou explicar. —
Respirou fundo. — Sou fabricante de maquinaria agrícola — disse ele —,
um dos maiores da América do Sul. Os homens que estão comigo esta noite
— apontou por cima do ombro — são meus vendedores. Reunimo-nos aqui a
fim de que eu pudesse lhes falar a respeito de umas novas máquinas que
estamos pondo em produção, dar-lhes todos os detalhes e características,
vocês sabem. Tudo ultra-secreto. Agora descobri que um espião de uma
empresa norte-americana rival soube de nossa reunião logo antes de ela
começar, e, conhecendo a maneira como essa gente age, estou propenso a
apostar que ele se dirigiu à cozinha, pegou uma de vocês, ou mesmo todas
vocês, e pediu-lhes que escutassem nossa conversa de algum... esconderijo
secreto, ou, talvez, tirassem fotografias.
— Levantou o dedo. — Olhem — explicou —, alguns de meus
vendedores trabalharam anteriormente para essa empresa rival, e eles não
sabem — os da empresa não sabem — quem trabalha comigo atualmente.
Portanto nossas fotografias lhes seriam igualmente úteis. — Inclinou a
cabeça, com um sorriso pesaroso. — É uma atividade muito competitiva
— observou. — A lei do cão.
Tsuruko, Mori e Yoshiko, com um olhar inexpressivo, meneavam de
leve as cabeças.
Kuwayama, que se pusera de lado, por trás do homem de branco,
proferiu severamente:
— Se alguma de vocês fez o que o senhor...
— Deixe comigo! — O homem de branco lançou a mão aberta para trás,
mas sem se voltar. — Por favor. — Baixou a mão, sorriu, deu meio passo à
frente. — Este homem — prosseguiu, com bom humor —, um jovem norte-
americano, lhes teria oferecido dinheiro, claro, e lhes teria contado algum
tipo de história, referente a uma brincadeira ou coisa parecida, uma
travessurazinha inofensiva que fazia conosco. Agora, posso entender
inteiramente como garotas, que não são, estou certo, lá muito bem pagas...
— vocês não são, não é mesmo? Acaso meu amigo aqui as estará pagando
muito bem? — Seus olhos castanhos cintilaram à espera de uma resposta.
Dando risadinhas, Yoshiko meneou com veemência a cabeça.
O homem de branco riu também e estendeu a mão em direção ao seu
ombro, recolhendo-a, porém, antes de tocá-la.
— Bem que eu achei! — exclamou. — É o que eu achava! Quer dizer,
eu tinha certeza que não! — Sorriu para Mori e Tsuruko. Elas sorriram-lhe
de volta, hesitantes. — Ora, posso entender muito bem — continuou,
novamente sério — que garotas na situação de vocês, trabalhadoras, com
responsabilidade de família — você com seus dois filhos, Mori —, posso
entender muito bem que concordariam com uma oferta dessas. Na verdade,
não posso é entender como não haveriam de concordar com ela. Seriam
imbecis se não o fizessem! Uma brincadeirazinha inofensiva, alguns
cruzeiros extras. As coisas andam caras hoje em dia, eu sei. Por isso dei-lhes
boas gorjetas lá em cima. Portanto, se a oferta foi feita, e foi aceita,
acreditem-me, garotas: não há raiva de minha parte, nem ressentimento.
Somente compreensão e a necessidade de saber.
— Senhor — protestou Mori —, dou-lhe minha palavra, ninguém me
ofereceu coisa alguma ou me pediu para fazer qualquer coisa.
— Ninguém — reiterou Tsuruko, meneando a cabeça. E Yoshiko,
meneando a sua, confirmou:
— Sinceramente, senhor.
— Como prova de minha compreensão — tornou o homem de branco,
abrindo o casaco e procurando dentro dele — vou dar-lhes o dobro do que
ele lhes ofereceu, ou seja, duas vezes o que ele gastou. — Retirou uma
grossa carteira de crocodilo, abriu-a de chofre e mostrou a margem interna
de dois maços de notas. — Foi isto que quis dizer antes — disse — quanto a
ser uma coisa ruim para mim, mas boa para vocês. — Olhou de uma mulher
para outra. — O dobro do que ele lhes deu — insistiu. — Para vocês, e a
mesma quantia para o senhor... — virou para trás a cabeça, em direção a
Kuwayama, que logo declinou o seu nome. — Para que ele também não
fique zangado com vocês. Hein, garotas? Por favor! — O homem de branco
mostrou o seu dinheiro a Yoshiko. — Anos foram gastos nisto, nestas novas
máquinas — disse-lhe. — Milhões de cruzeiros! — Mostrou o dinheiro a
Mori. — Se eu soubesse quanto o meu rival sabe, então poderia tomar
medidas a fim de me proteger. — Mostrou o dinheiro a Tsuruko. — Posso
acelerar a produção, ou talvez encontrar este rapaz e... fazê-lo passar para o
meu lado, dar dinheiro para ele, com também para vocês e o senhor...
— Kuwayama. Vamos, garotas, não tenham medo. Digam ao Sr.
Aspiazu. Não ficarei zangado com vocês.
— Estão vendo? — instou o homem de branco. — Somente o bem pode
vir. Para todos!
— Nada há para contar — insistiu Mori, e Yoshiko, olhando para a
carteira aberta, com seus maços de notas, insistiu tristemente:
— Nada. Sinceramente. — Ergueu o olhar. — Eu contaria com
satisfação, senhor. Mas realmente não há nada.
Tsuruko olhava para a carteira. O homem de branco observava-a.
Ela ergueu os olhos para ele e, hesitante, embaraçada, fez um aceno
afirmativo com a cabeça.
Ele soltou a respiração, fitando-a atentamente.
— Foi justamente como disse — reconheceu ela. — Estava na cozinha,
na hora em que nos preparávamos para servi-los, e aí um dos rapazes veio
me dizer que um homem lá fora queria falar com alguém que tivesse sido
destacado para servi-lo. Era muito importante. Por isso saí, e ali estava ele, o
norte-americano. Deu-me duzentos cruzeiros, cinqüenta antes e cento e
cinqüenta depois. Disse que era repórter
de uma revista, e que o senhor fazia filmes e nunca dava entrevistas.
O homem de branco, olhando-a, ordenou:
— Prossiga.
— Disse que seria uma boa reportagem se descobrisse que filmes o
senhor estava planejando. Falei-lhe que o senhor ia conversar com os seus
convidados depois — conforme nos disse o Sr. Kuwayama — e ele...
— Pediu-lhe que se escondesse e escutasse.
— Não, senhor, ele me deu um gravador, eu o trouxe e devolvi-o quando
acabaram de conversar.
— Um... gravador?
— Ele me ensinou a fazê-lo funcionar. Dois botões de uma vez. — E
com os dois indicadores ela apertou o ar à sua frente.
O homem de branco fechou os olhos e permaneceu imóvel, a não ser por
um leve balanço de um lado para o outro. Abriu os olhos e olhou Tsuruko,
sorrindo fracamente.
— Um gravador esteve ligado durante nossa conferência? — indagou.
— Sim, senhor — respondeu ela. — Dentro de uma terrina de arroz,
embaixo da mesa de serviço. Deu muito certo. O homem experimentou antes
de me pagar, e ficou muito satisfeito.
O homem de branco aspirou ar pela boca, passou a língua pelo lábio
superior, deixou sair o ar, fechou a boca e engoliu. Levou a mão enluvada de
branco à testa e limpou-a vagarosamente.
— Duzentos cruzeiros ao todo — confirmou Tsuruko.
O homem de branco fitou-a, aproximou-se mais e respirou fundo. Seu
sorriso caiu sobre Tsuruko, meia cabeça mais baixa que ele.
— Minha cara — falou suavemente —, quero que me conte tudo o que
puder sobre o homem. Era jovem, de que idade? Que aspecto tinha?
Desconcertada com sua proximidade, Tsuruko disse:
— Tinha vinte e dois ou vinte e três, acho. Não pude vê-lo claramente.
Era muito alto. Bonito, gentil. Tinha cabelos castanhos crespos.
— Está bem — disse o homem de branco —, esta é uma boa descrição.
Estava de blue jeans...
— Sim. E com um blusão igual, sabe, curtinho e azul. E tinha uma bolsa
de alça de uma companhia aérea. — Fez um gesto por cima do ombro. —
Era onde guardava o gravador.
— Muito bom. Você é muito observadora, Tsuruko. De que companhia
aérea?
Ela pareceu mortificada.
— Não reparei. Era azul e branca.
— Uma bolsa azul e branca de uma companhia aérea. Bastante bom. E o
que mais?
Ela franziu a testa, meneou a cabeça e lembrou-se, feliz:
— O nome dele é Hunter, senhor!
— Hunter?
— Sim, senhor! Hunter. Ele disse bem claramente. O homem de branco
sorriu ironicamente.
— Estou bem certo de que o fez. Prossiga. Que mais?
— Falava mal o português. Disse que eu fui "grande ajuda" dele e
cometeu todo tipo de erro. E tinha pronúncia errada.
— Então ele não se demorou muito aqui, não foi? Está sendo uma
"grande ajuda" para mim, Tsuruko. Continue.
Ela franziu a testa e encolheu debilmente os ombros.
— É só isto, senhor.
— Por favor, procure lembrar-se de alguma coisa mais, Tsuruko —
insistiu. — Você não faz idéia de como isso é importante.
Ela mordeu um dos nós do punho fechado e, olhando-o, meneou a
cabeça.
— Ele não lhe disse como entrar em contato com ele, no caso de eu
convocar outra reunião?
— Não, senhor! Não! Nada disso. Eu haveria de lhe dizer.
— Continue pensando.
Seu rosto aflito de repente se iluminou.
— Ele está num hotel. Isto ajuda?
Os olhos castanhos fitaram-na interrogativamente.
— Ele disse que ia comer no seu hotel. Perguntei-lhe se queria alguma
comida — ele tinha ficado com fome esperando — e foi isto o que
respondeu, que ia comer no seu hotel.
O homem de branco olhou para Tsuruko e disse:
— Está vendo? Havia alguma coisa a mais. — Deu um passo para trás e,
baixando o olhar, abriu a carteira. Retirou quatrocentos cruzeiros e entregou-
os a ela.
— Obrigado, senhor! Kuwayama aproximou-se, sorridente.
O homem de branco deu-lhe quatro notas, e uma de igual valor para
Mori e Yoshiko. Guardando a carteira no casaco, sorriu para Tsuruko e
repreendeu-a:
— Você é uma boa garota, mas no futuro deve pensar mais nos
interesses de seus fregueses.
— É o que farei, senhor! Prometo! E a Kuwayama, aconselhou:
— Não seja muito duro com ela.
— Oh, não, agora não! — Kuwayama arreganhou os dentes num sorriso,
retirando a mão do bolso.
O homem de branco pegou o chapéu e a pasta de cima da mesa do abajur
e, sorrindo para as mulheres e para Kuwayama, inclinados numa mesura,
voltou-se e dirigiu-se aos homens que estavam à espera, observando-o.
Seu sorriso morreu, seus olhos estreitaram-se. Ao chegar junto aos
homens, sussurrou em alemão:
— Puta amarela, chupadora e fodida, gostaria de cortar-lhe as tetas!
Contou-lhes acerca do gravador.
— Examinamos a rua e todos os carros — disse o louro. — Não há sinal
de nenhum norte-americano jovem de blue jeans.
— Vamos achá-lo — assegurou o homem de branco. ,— Ele trabalha
sozinho. Os grupos ainda ativos são todos de homens do Rio e de Buenos
Aires. Além do mais é um amador, não apenas pela idade — vinte e dois ou
vinte e três —, mas também por dar o nome de "Hunter", que é "caçador" em
inglês. Ninguém com experiência se preocuparia com tais brincadeiras. E
deve ser imbecil, do contrário não teria deixado aquela puta saber que está
num hotel.
— A menos — ponderou Schwimmer — que de fato não esteja.
— Neste caso, é esperto — retorquiu o homem de branco —, e amanhã
de manhã eu me enforcarei. Vamos descobrir. Hessen, nosso paulista, que se
deixou seguir por um "caçador" amador, irá agora penitenciar-se, fornecendo
a cada um de vocês o nome de um hotel. — Olhou para Hessen, que
levantou os olhos, deixando de examinar o chapéu. — Um hotel de categoria
suficiente para servir comida tarde da noite — orientou-o o homem de
branco —, mas não tanto a ponto de desencorajar o uso de blue jeans.
Ponha-se no lugar dele: você é um rapaz dos Estados Unidos que veio a São
Paulo atrás de Horst Hessen ou talvez mesmo Mengele. Em que hotel se
hospedaria? Você tem dinheiro suficiente para oferecer subornos excessivos
a garçonetes — não creio que a puta tenha mentido quanto à quantia —, mas
é romântico. Quer se sentir um novo Yakov Liebermann, não um turista
tranqüilo. Cinco hotéis, por favor, Hessen, por ordem de probabilidade.
Olhou para os outros.
— Quando Hessen disser os nomes dos hotéis — disse ele —, cada um
de vocês apanhará uma caixa de fósforos daquele recipiente ali e repetirá o
nome para um motorista de táxi. Quando chegarem ao hotel, procurarão
saber se eles têm lá um jovem norte-americano alto, de cabelos castanhos
crespos, que voltou há pouco de blusão e calças blue jeans, e com uma bolsa
azul e branca de uma companhia aérea a tiracolo. Telefonarão, então, para o
número que está na caixa de fósforos. Estarei aqui. Se a resposta for "sim",
eu, Rudi e Tin-Tin logo estaremos lá. Se a resposta for "não", Hessen dará o
nome de outro hotel. Tudo claro? Bom. Dentro de meia hora haveremos de
pegá-lo, e ele nem terá tido tempo de acabar de ouvir a maldita fita. Então,
Hessen?
Hessen disse a Mundt:
— O Nacional.
Mundt repetiu:
— O Nacional.
E foi apanhar uma caixa de fósforos. Hessen disse a Schwimmer:
— O Del Rey.
E a Traunsteiner:
— O Marabá.
A Farnbach:
— O Comodoro.
A Kleist:
— O Savoy.

Ele ouviu durante cerca de cinco minutos, depois parou, voltou atrás e
começou de novo, a partir de quando tinham acabado de admirar qualquer
coisa que estavam admirando, e "Aspiazu" disse "Lasst uns jetzt Geschäft
reden, meine Jungens", e entraram mesmo no assunto. Assunto! Santo Deus!
Ouviu a coisa inteira desta vez, exclamando: "Santo Deus!", e: "Deus
todo-poderoso!", e vez por outra: "Que filho da puta!" Depois de um ruído e
de um longo silêncio, que deveria corresponder à garçonete trazendo para
baixo a terrina, parou, voltou uma parte e tornou a passar alguns pedaços e
trechos, só para se certificar de que estavam ali, e ele não estava delirando
por fome ou qualquer outra coisa.
Em seguida, andou o quanto lhe permitia o espaço do aposento,
balançando a cabeça e cocando a nuca, tentando imaginar que diabo fazer
naquele lodaçal, onde sabe-se-lá-quem-não-é-um-deles-ou-pelo-menos-não-
estará-por-eles-sen-do-pago.
Havia somente uma coisa a fazer, decidiu finalmente. E quanto mais
cedo melhor, não importava a diferença de horas. Levou o gravador para a
mesinha-de-cabeceira e colocou-o junto ao telefone. Retirou sua carteira e
sentou-se na cama. Encontrou o cartão com o nome e o número escritos,
enfiou-o por baixo do aparelho e pegou o fone, embolsando a carteira. Pediu
ligação internacional.
— O senhor será chamado quando eu completar a ligação. — A voz dela
era agradável e sensual.
— Ficarei ao telefone — disse ele, a fim de que ela não se aproveitasse
para ir sambar em algum lugar. — Depressa, por favor.
— Vai demorar cinco ou dez minutos, senhor. Ouviu-a dar o número a
uma telefonista internacional
e ensaiou de cabeça o que iria dizer. Supondo, evidentemente, que
Liebermann estivesse lá e não fora, fazendo alguma conferência ou seguindo
uma pista. Esteja em casa, por favor, Mr. Liebermann!
Soou leve batida na porta.
— Já era tempo — disse ele em inglês e, segurando o fone, levantou-se,
estirou-se, mal conseguindo dar à maçaneta o giro que abria. A porta se abriu
de encontro à sua mão, e o garçom de bigode caído entrou com um prato
coberto com um guardanapo e uma garrafa de Brahma, mas sem copo sobre
a bandeja.
— Desculpe a demora — explicou ele. — Às onze todos eles saem. Tive
de preparar eu mesmo.
— Está bem — retorquiu em português. — Pôr a bandeja na cama, por
favor.
— Esqueci o copo.
— Está bem. Não precisar de copo. A nota e o lápis, por favor.
Assinou a nota de encontro à parede, firmando-a ali com a mão que
segurava o fone. Acrescentou uma gorjeta além da taxa de serviço.
O garçom saiu sem agradecer e arrotou ao fechar a porta.
Jamais deveria ter saído do Del Rey.
Sentou-se de volta na cama, o fone sibilando cavamente no ouvido.
Virou-se para endireitar a bandeja, e olhou com desconfiança o guardanapo
amarelo com "Miramar" gravado em grandes letras pretas, um seguro contra
ladrões, num canto. Levantou-o, e, o que quer que fosse, retirou num puxão:
o sanduíche era grosso e bonito, tudo frango, sem alface ou qualquer outra
merda. Perdoando o garçom, agarrou metade dele, curvou a cabeça ao seu
encontro e deu uma grande e deliciosa mordida até o meio. Deus, como tinha
fome!
— Ich möochte Wien¹ — pedia uma telefonista. — Wien!
1 "Eu queria falar com Viena." Em alemão no original. (N. do E.)

Pensou na fita e no que ia dizer para Yakov Liebermann, e pareceu ter a


boca cheia de papelão. Mastigou, mastigou e de alguma forma conseguiu
engolir. Pousou o sanduíche e apanhou a cerveja. Era uma cerveja realmente
esplêndida e no entanto lhe caiu mal.
— Aguarde mais um pouquinho — disse a telefonista agradável e
sensual.
— Assim espero. Obrigado.
— Sua ligação está pronta, senhor. A campainha tocou.
Tomou outro gole, pousou a garrafa, enxugou a mão no joelho do blue
jeans, chegou-se mais para o telefone. O outro telefone tocou, tocou e aí
atenderam.
— Ja?² — ressoou, tão perto como se fosse na esquina.
— Mr. Liebermann?
— Ja. Wer'st da?³
2 "Sim?" Em alemão no original. (N. do E.)
3 "Sim. Quem é?" Em alemão no original. (N. do E.)

— Aqui é Barry Koehler. Lembra-se, Mr. Liebermann? Procurei-o no


início de agosto, querendo trabalhar para o senhor. Barry Koehler, de
Evanston, Illinois.
Silêncio.
— Mr. Liebermann?
— Barry Koehler, não sei que horas serão em Illinoise, mas em Viena
está tão escuro que não posso enxergar o relógio.
— Não estou em Illinois, e sim em São Paulo, Brasil.
— Isto não torna as coisas mais claras em Viena.
— Desculpe, Mr. Liebermann, mas tenho um bom motivo para telefonar.
Espere até saber.
— Não me diga, já adivinhei: avistou Martin Bormann. Numa estação
rodoviária.
— Não, Bormann, não. Mengele. E não o vi. Tenho é uma fita dele
falando. Num restaurante.
Silêncio.
— Dr. Mengele! — lembrou ele. — O homem que dirigia Auschwitz! O
Anjo da Morte!
— Obrigado. Pensei que se referisse a um outro Mengele. O Anjo da
Vida.
— Desculpe — tornou Barry. — O senhor estava tão...
— Enxotei-o até a selva. Conheço Josef Mengele.
— É que o senhor estava tão calado, tive de dizer alguma coisa. Ele
deixou a selva, Mr. Liebermann. Estava num restaurante japonês esta noite.
Ele não usa o nome de Aspiazu?
— Ele usa muitos nomes: Gregory, Fischer, Breitenbach, Rindon...
— E Aspiazu, não? Pausa.
— Ja. Mas acho que talvez seja usado também por pessoas que se
chamam assim.
— É ele — insistiu Barry. — Tinha a metade das ss lá. E vai enviá-la
para matar noventa e quatro homens. Hessen estava lá, e mais Kleist,
Traunsteiner, Mundt.
— Ouça, não tenho certeza de estar acordado. Você está? Sabe do que
está falando?
— Sim! Vou ligar a fita! Está aqui do lado!
— Espere um minuto. Comece pelo princípio.
— Está bem. — Pegou a garrafa e bebeu um pouco mais de cerveja. Que
ele agora ouvisse um pouco de silêncio, para variar.
— Barry? Aah!
— Estou aqui. Estava só bebendo um pouco de cerveja.
— Ah.
— Um gole apenas, Mr. Liebermann. Estou morrendo de sede. Não
jantei ainda e estou tão cheio desta fita que não consigo comer. Tenho aqui
uma beleza de sanduíche de frango e nem sequer posso engoli-lo.
— O que está fazendo em São Paulo?
— O senhor não quis me aceitar, por isso resolvi vir aqui por minha
conta. Minha motivação é maior do que o senhor pensa.
— É questão das minhas finanças, e não de sua motivação.
— Eu disse que trabalharia de graça. Quem está me pagando agora?
Olhe, deixemos isto de lado. Vim aqui, farejei por aí, e finalmente verifiquei
que a melhor coisa a fazer seria ficar rondando a fábrica da Volkswagen,
onde Stangl trabalhou. Foi o que fiz. Aí, uns dois dias atrás, localizei Horst
Hessen. Pelo menos julguei tê-lo feito, não tinha certeza. O cabelo dele está
meio prateado agora, e deve ter feito alguma cirurgia plástica. Mas, de
qualquer forma, julguei que era ele e comecei a segui-lo. Ele foi para casa
cedo hoje — mora na casinha mais bonita que o senhor possa imaginar, com
uma esposa de endoidar a gente e duas filhas —, e às sete e meia saiu de
novo, tomando um ônibus para o centro. Segui-o até o tal restaurante japonês
e aí ele foi para o andar de cima, a uma reunião particular. Havia um nazista
de guarda na escada, e a reunião era convocada pelo "Sr. Aspiazu". Dos
Aspiazu de Auschwitz.
Silêncio.
— Prossiga.
— Então dei uma volta e abordei uma das garçonetes. Duzentos
cruzeiros mais tarde, ela me forneceu uma fita inteira de "Mengele
despachando seus soldados". Mengele está claro que nem cristal. Os
soldados variam de "razoavelmente claro" a "ininteligível". Mr. Liebermann,
eles vão partir, amanhã, para a Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos,
Escandinávia, o mundo todo! É uma operação da Kameradenwerk, pomposa,
maluca, estou arrependido de me ter metido nisso, ela deverá...
— Barry.
—...dar cumprimento ao destino da raça ariana, por Deus do céu!
— Barry!
— O que ê?
— Acalme-se.
— Eu estou calmo. Não, não estou. Está bem. Agora estou calmo.
Realmente. Vou voltar a fita e ligá-la para o senhor. Apertarei o botão.
Ouviu?
— Quem vai partir, Barry? Quantos?
— Seis. Hessen, Traunsteiner, Kleist, Mundt, e dois outros, deixe ver,
Schwimmer e Farnbach. Ouviu falar deles?
— Schwimmer, Farnbach e Mundt, não.
— De Mundt? Não ouviu falar de Mundt? Ele está no seu livro, Mr.
Liebermann! Foi lá que eu vim a saber dele.
— Um Mundt, no meu livro? Não.
— Sim! No capítulo sobre Treblinka. Tenho na minha mala. Quer que
lhe dê o número da página?
— Nunca ouvi falar de Mundt, Barry. Trata-se de um engano da sua
parte.
— Oh, Cristo. Está bem, esqueça. De qualquer forma, são seis deles, e
vão estar em campo durante dois anos e meio, e dispõem de certas datas em
que deverão matar determinados homens, e aí é que vem a parte maluca.
Está preparado, Mr. Liebermann? Esses homens que eles vão matar são
noventa e quatro, e são todos funcionários públicos de sessenta e cinco
anos. Sentiu a barra?
Silêncio.
— Barra?
O outro suspirou.
— É uma expressão.
— Barry, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Esta fita é em alemão, hein?
Você...
— Entendo-a perfeitamente! Não spreche muito bem, mas compreendo
perfeitamente. Minha avó não fala outra língua e meus pais utilizaram-na
para segredinhos. Não adiantava nem quando eu era criança.
— A Kameradenwerk e Josef Mengele estão enviando homens...
— Para matar funcionários públicos de sessenta e cinco anos. Alguns
deles têm sessenta e quatro e sessenta e seis. A fita já está virada, e vou ligá-
la, e depois o senhor vai me dizer para quem devo levá-la, alguém de alta
categoria e de confiança. O senhor telefonará para ele, e lhe dirá que irei
procurá-lo, para que ele me receba, e depressa. Eles têm de ser detidos antes
de partirem. A primeira morte está marcada para 16 de outubro. Agora
espere, tenho de encontrar o lugar certo. Antes tem muita história de sentar e
ficar admirando não sei que troço.
— Barry, é ridículo. Seu gravador não deve estar muito bom. Ou então...
eles não são os homens que você está pensando.
Houve uma tripla batida na porta.
— Vão embora! — berrou ele, cobrindo o fone. E lembrando-se do
português: — Eu falar no interurbano!
— São outras pessoas — veio a voz pelo fone. — Estão fazendo uma
brincadeira com você.
— Mr. Liebermann, quer ouvir a fita? Batidas mais fortes, sem parar.
— Merda. Espere aí. — Pondo o fone sobre a cama, levantou-se, dirigiu-
se para a porta barulhenta, segurou a maçaneta. — O que é?
Ouviu-se uma voz de homem, num português vertiginoso.
— Devagar! Devagar!
— Senhor, há uma senhora japonesa aqui, à procura de alguém que se
parece com o senhor. Diz que precisa avisá-lo sobre uma coisa que um
homem está...
Ele girou a maçaneta e da porta explodiu um sombrio touro humano. Foi
agarrado, virado, a boca apertada, o braço torcido para trás, a ponto de
quebrar. O nazista da escada vibrou uma estocada com uma faca de quinze
centímetros de cintilante agudez. Sua cabeça foi puxada para trás, o teto
deslizou, pintado de filigranas de um marrom esmaecido. O braço doeu, e
mais o estômago, lá dentro.
O homem de branco entrou no quarto, de chapéu e pasta. Fechou a porta
e, detendo-se diante dela, assistiu ao louro furar e furar o jovem americano.
Cravar, torcer, puxar. Cravar, torcer, puxar. Por baixo da mão, agora, a faca
raiada de vermelho por entre as costelas cobertas pela camisa justa.
O louro, ofegante, parou de furar, e o homem de cabelos pretos arriou
mansamente o rapaz de olhar surpreso até o chão, depositando-o ali, metade
sobre o tapete cinzento, metade sobre a madeira envernizada. O louro
manteve a mão na faca, sobre o rapaz, e pediu ao homem de cabelos pretos:
— Uma toalha.
O homem de branco olhou em direção à cama, aproximou-se dela e
pousou a pasta no chão.
— Barry? — chamou o fone sobre a cama.
O homem de branco olhou o gravador na mesinha-de-cabeceira.
Comprimiu o último botão com a ponta branca do dedo. A tampa levantou, a
fita saltou. O homem de branco pegou-a, olhou-a, e fê-la escorregar no bolso
do casaco. Vislumbrou o cartão enfiado sob o telefone, tirou-o, e avistou o
fone sobre a cama.
— Barry! — Vinha dali. — Responda!
O homem de branco estendeu vagarosamente a mão e apanhou o fone.
Ergueu-o, levou-o ao ouvido. Escutou, com os olhos castanhos estreitados,
as narinas raiadas de veias palpitando. Os lábios abriram-se para o bocal,
permaneceram abertos. E se fecharam, cerrando-se firmemente, o bigode
eriçando-se.
Pôs o fone no gancho, esgueirou os dedos, fitou o telefone. Voltando-se,
disse:
— Quase falei com ele. Não me faltou vontade.
O louro, a faca avermelhando a toalha, olhou-o, curioso. O homem de
branco confessou:
— Odiando um ao outro tanto tempo. Ele estava aqui, na minha mão.
Falar finalmente com ele! — Voltou-se de novo para o fone, meneou a
cabeça, pesaroso. Suavemente, sibilou: — Liebermann, canalha judeu. Seu
ajudante morreu. Quanto ele lhe terá revelado? Não faz diferença. Ninguém
aqui lhe dará ouvidos, pelo menos sem provas. E a prova está no meu bolso.
Os homens voarão amanhã. O Quarto Reich está a caminho. Adeus,
Liebermann. Encontro-o à porta da câmara de gás. — Meneou a cabeça,
sorrindo, e voltou-se, pondo o cartão no bolso. — Afinal de contas, seria
uma tolice — disse ele. — Eu poderia estar gravando outra fita.
O homem de cabelos pretos, junto ao armário embutido, apontou a mala
lá dentro e perguntou em português:
— Arrumo as coisas dele, doutor?
— Rudi o fará. Desça onde está Traunsteiner. Encontre uma porta nos
fundos que você possa abrir e onde possa encostar o carro. Depois, um de
vocês sobe para nos ajudar a descer. E não lhe diga que o rapaz estava ao
telefone. Diga que estava ouvindo a fita.
O homem de cabelos pretos assentiu e saiu.
O louro disse em alemão:
— Eles não serão apanhados? Os homens, quero dizer.
— O serviço tem que ser feito — disse o homem de branco, retirando o
seu estojo de óculos. — Tanto quanto possível, a qualquer preço. Com sorte,
hão de cumpri-lo todo. Alguém dará ouvidos a Liebermann? Ele próprio não
acreditou. Você ouviu como o rapaz argumentava com ele. Deus nos
ajudará. Um número suficiente dos noventa e quatro há de morrer.
Pôs os óculos e, tirando uma caixa de fósforos do bolso, virou-se para o
telefone. Ergueu o fone e leu um número para a telefonista.
— Olá, minha amiga — disse animadamente —, Sr. Hessen, por favor.
— Desviou o olhar, cobrindo o bocal. — Esvazie os bolsos dele, Rudi. E tem
uns tênis ali debaixo da escrivaninha. Hessen? É o Df. Mengele. Está tudo
ótimo, não há com que se preocupar. Exatamente o amador que eu esperava.
Acho que nem entendia alemão. Mande os rapazes para casa, para treinarem
as assinaturas. Apenas uma emoção para completar a noite. Não, pelo menos
até 1977, receio. Volto para o vilarejo, logo que arrumarmos tudo. Portanto,
vá com Deus, Horst. E transmita-o aos outros por mim: "Vão com Deus". —
Desligou e disse: — Heil Hitler.
Dois
O Burggarten, com o lago e o monumento a Mozart, seus gramados,
alamedas e o eqüestre Imperador Franz, fica suficientemente perto dos
escritórios de Viena da Reuters, a agência internacional de notícias, para que
os correspondentes e as secretárias tragam seus lanches para ali, nos meses
mais amenos do ano. Segunda-feira, 14 de outubro, fazia um dia frio e
encoberto; mesmo assim, quatro funcionários da Reuters vieram ao jardim.
Acomodaram-se num banco, desembrulharam sanduíches e deitaram vinho
branco em copos de papel.
Um dos quatro, o que servira o vinho, era Sydney Beynon,
correspondente veterano da Reuters em Viena. Um egresso de Liverpool de
quarenta e quatro anos, com duas ex-esposas vienenses, Beynon se parecia
muito com um abdicante Rei Eduardo de óculos de aro de chifre. Ao
descansar a garrafa no banco ao seu lado e sorver apreciativamente do copo,
avistou, com um repentino sobressalto de culpa, Yakov Liebermann vindo
tropegamente em sua direção, de chapéu marrom e um impermeável preto
aberto.
Durante toda a semana anterior, Beynon recebera várias vezes recados de
Liebermann pedindo-lhe que lhe telefonasse. Ainda não o fizera, embora
fosse geralmente um escrupuloso retribuidor de telefonemas. Defrontando-se
agora com sua involuntária esquivança, sentiu-se duplamente culpado:
primeiro, porque Liebermann, nos seus anos de apogeu, na época das
capturas de Eichmann e Stangl, constituíra a fonte de algumas de suas
melhores e mais recompensadoras matérias, e depois porque o caçador de
nazistas fazia sempre todos se sentirem culpados. Alguém dissera dele (teria
sido Stevie Dickens?): "Leva preso às abas do casaco todo o maldito cenário
dos campos de concentração. E legiões de judeus gemem em suas sepulturas
cada vez que Liebermann entra no aposento". Era triste mas verdadeiro. E
talvez Liebermann tivesse consciência disso, pois sempre se apresentava,
como naquele instante diante de Beynon, um passo atrás da distância social
comum, com um ligeiro ar de desculpas. Ou melhor, pensou Beynon, como
um urso deferente, com alguma coisa de contagioso.
— Olá, Sydney — disse Liebermann, o urso, tocando a aba do chapéu.
— Por favor, não se levante.
A culpa de Beynon era mais incômoda do que todo aquele sanduíche
sobre o seu colo, por isso ainda assim fez um esforço, soerguendo-se.
— Olá, Yakov! Prazer em vê-lo. — Estendeu a mão e Liebermann,
inclinando-se, alcançou-a e envolveu-a, sem apertá-la, no calor de sua mão
maior. — Desculpe ainda não lhe ter telefonado — disse Beynon. — Fiquei
indo e vindo de Linz durante toda a semana passada. — Voltou a sentar-se e
esboçou as apresentações com a mão que segurava o copo:
— Freya Neustadt, Paul Higbee, Dermot Brody, este é Yakov
Liebermann.
— Puxa! — Freya limpou a mão ossuda na saia e estendeu-a, sorrindo
animadamente. — Como vai? Que grande prazer. — Ela parecia culpada.
Vendo Liebermann acenando e apertando as mãos em fila, Beynon ficou
consternado ao perceber o quanto ele envelhecera e minguara desde seu
último encontro, dois anos antes. Ainda tinha o mesmo porte, mas não era
mais tão imponente, nem trazia mais implícito o vigor de um urso. Os
ombros largos pareciam arriados sob o escasso peso do impermeável, e o
rosto outrora enérgico estava enrugado e pardacento, os olhos abatidos sob
pálpebras caídas. O nariz pelo menos não mudara — aquele gancho semítico
proeminente —, mas o bigode tinha traços grisalhos e precisava ser aparado.
O pobre homem perdera a mulher, um rim ou coisa parecida, e os fundos do
seu Centro de Informação de Crimes de Guerra. As perdas estavam todas
estampadas em sua aparência — o velho chapéu amarrotado e com marcas
de uso, o laço escurecido da gravata — e Beynon, lendo aquele registro,
verificou por que, no seu íntimo, bloqueara o telefonema de resposta. Sua
culpa avolumou-se, mas ele reprimiu-a, dizendo a si mesmo que esquivar-se
aos derrotados era um instinto natural e saudável, mesmo — ou talvez
especialmente — àqueles que antes foram vencedores. Contudo, havia a
disposição de ser amável, é claro.
— Sente-se, Yakov — convidou calorosamente, fazendo um gesto para a
extremidade do banco ao seu lado, e puxando mais para perto a garrafa de
vinho.
— Não quero perturbar o seu lanche — retorquiu Liebermann, no seu
inglês de forte sotaque. — Não poderíamos conversar mais tarde?
— Sente-se — insistiu Beynon. — Já aturo bastante estes camaradas lá
no escritório. — Pôs-se de costas para Freya e empurrou-a um bocadinho.
Ela cedeu alguns centímetros e virou para o outro lado. Beynon abriu o
espaço para a ponta do banco e, sorrindo para Liebermann, indicou-o com
um gesto.
Liebermann sentou-se e suspirou. Segurando os joelhos com as mãos
volumosas, espiou por entre eles com uma careta, gingando os pés.
— Sapatos novos — lamentou-se. — Estão me matando.
— Afora isso, como vai você? — indagou Beynon. — E como está sua
filha?
— Estou bem. Ela está ótima. Tem três filhos agora, duas meninas e um
menino.
— Oh, que bom. — Beynon tocou no gargalo da garrafa. — Lamento
não termos outro copo.
— Não, não. De qualquer modo, não posso. Nada de álcool.
— Soube que esteve no hospital...
— Entrei, saí, entrei, saí. — Liebermann encolheu os ombros e pousou
seus fatigados olhos castanhos em Beynon.
— Recebi uma chamada telefônica muito maluca — disse.
— Algumas semanas atrás. No meio da noite. Um rapaz dos Estados
Unidos, de Illinois, me telefonou de São Paulo. Com uma fita de Mengele.
Você sabe quem é Mengele, não?
— Um de seus nazistas procurados, não é?
— Um de todos — corrigiu Liebermann —, não apenas meu. O governo
alemão ainda oferece sessenta mil marcos por ele. Era o médico principal de
Auschwitz. Chamavam-no "O Anjo da Morte". Dois títulos, de doutor em
medicina e em filosofia, e realizou milhares de experiências com crianças,
gêmeos, tentando fabricar bons arianos, mudar olhos castanhos para azuis,
mediante produtos químicos, através do gene. Um homem com dois títulos!
Matou milhares de gêmeos de toda a Europa, judeus e não-judeus. Está tudo
no meu livro. — Beynon pegou metade do seu sanduíche de salada e ovo e
mordeu-o com decisão.
— Ele foi para a Alemanha depois da guerra — prosseguiu Liebermann.
— Tem família rica lá, em Günzburg, maquinaria agrícola. Mas seu nome
começou a aparecer nos julgamentos, a ODESSA expulsou-o e ele foi parar na
América do Sul. Nós o descobrimos e o perseguimos de cidade em cidade:
Buenos Aires, Bariloche, Assunção. Desde 59 vive na selva, num vilarejo à
margem de um rio, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Tem um exército
de guarda-costas e cidadania paraguaia, portanto não pode ser extraditado.
Mas, de qualquer forma, tem de se precaver, pois grupos de jovens judeus
locais ainda tentam pegá-lo. Alguns são encontrados boiando rio abaixo, no
Paraná, com os pescoços cortados.
Liebermann calou-se. Freya bateu no braço de Beynon e pediu vinho.
Ele passou-lhe a garrafa.
— O rapaz, então, consegue uma fita — tornou Liebermann, olhando em
frente, as mãos sobre os joelhos. — Mengele num restaurante enviando
antigos homens das SS para a Alemanha, Inglaterra, Escandinávia e Estados
Unidos. Para matar uma quantidade de homens de sessenta e cinco anos. —
Virou-se, sorrindo, para Beynon. — Que loucura, hein? E é uma operação
muito importante. A Kameradenwerk está envolvida também, não apenas
Mengele. A Organização dos Camaradas, que os mantém seguros e com
empregos. Sentiu a barra, como se diz agora? Beynon fitou-o, pestanejando,
e sorriu.
— Não, acho que não. E você ouviu mesmo a tal fita? Liebermann
meneou a cabeça.
— Não. Justamente quando ele se preparava para tocá-la para mim,
houve uma batida na porta, na porta dele, e ele foi atender. Ouvi colisões e
baques, e pouco depois o telefone foi desligado.
— Sincronização perfeita — observou Beynon. — Cheira mais a
mistificação, não acha? Quem é ele?
Liebermann encolheu os ombros.
— É um rapaz que me ouviu falar há dois anos, na sua universidade,
Princeton. Procurou-me em agosto, e disse que queria trabalhar para mim.
Mas eu preciso de novos colaboradores? Estou usando apenas alguns dos
antigos. Você sabe, presumo, que todo o meu dinheiro, todo o dinheiro do
Centro, estava no Allgemeine Wirtschaftsbank.
Beynon fez um aceno afirmativo.
— O Centro fica agora no meu apartamento: os arquivos todos, algumas
mesas, eu e minha cama. O teto no andar de baixo está rachando. O senhorio
me processa. Os únicos novos colaboradores de que necessito são os
angariadores de fundos, o que não constitui o campo de interesse do rapaz.
Por isso, ele foi para São Paulo, por conta própria.
— Não seria precisamente a pessoa em quem eu depositaria muita fé.
— Exatamente o que pensei enquanto ele falava comigo. E ele mesmo
ainda não conseguiu coligir todos os seus fatos. Um dos homens das SS
chama-se Mundt, diz ele. Ouviu falar desse Mundt através do meu livro. Ora,
no meu livro sei que não existe Mundt algum. Nunca ouvi falar de um
Mundt. Portanto, isto não contribui para aumentar minha confiança. Mas
ainda assim... após as colisões e baques, enquanto o chamava de volta ao
telefone, houve um determinado som, não muito alto, mas bastante claro. Só
podia significar uma coisa e nada mais: o som de uma fita ejaculada de um
gravador.
— Ejetada — corrigiu Beynon.
— Não é ejaculada? Expulsa?
— É ejetada. Ejaculada é outra coisa.
— Ah! — assentiu Liebermann. — Obrigado. Ejetada de um gravador. E
mais um pormenor: houve silêncio então, por muito tempo, e fiquei também
calado, aliando as colisões e baques ao som da fita. Mas durante aquele
longo silêncio — lançou um olhar de augúrio sobre Beynon — o ódio veio
pelo telefone, Sydney. — Fez um aceno afirmativo. — Ódio como jamais
senti antes, nem mesmo quando Stangl me olhou no tribunal. Chegou-me tão
claro como a voz do rapaz, talvez devido ao que ele revelou. Tive absoluta
certeza de que o ódio provinha de Mengele. E quando o fone foi desligado,
tive absoluta certeza de que Mengele é que havia desligado. — Desviou os
olhos e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, uma das
mãos segurando o punho da outra.
Beynon fitou-o, incrédulo, apesar de emocionado.
— O que fez? — indagou.
Liebermann sentou-se empertigado, esfregou as mãos, olhou para
Beynon e encolheu os ombros.
— O que poderia eu fazer em Viena às quatro da manhã? Anotei o que o
rapaz me contara, tudo o que podia me lembrar, li-o, e disse a mim mesmo
que ele estava maluco e eu também. Só que... quem teria ejetado a fita e
desligado o telefone? Talvez não tenha sido Mengele, mas foi alguém. Mais
tarde, quando amanheceu, telefonei para Martin McCarthy, da embaixada
dos Estados Unidos em Brasília. Ele telefonou para a polícia de São Paulo, e
lá eles ligaram para a companhia telefônica e descobriram de onde viera a
chamada. De um hotel. Um rapaz desaparecera dali durante a noite.
Telefonei para Pacher aqui e perguntei-lhe se poderia alertar as autoridades
brasileiras sobre os homens das SS. O rapaz havia dito que eles estavam de
partida naquele dia. Pacher não chegou propriamente a rir de mim, ruas
recusou-se a fazê-lo, a menos que lhe apresentasse alguma coisa de concreto.
Um rapaz que desaparece de um quarto de hotel sem pagar a conta não é
algo concreto. E tampouco eu estar dizendo que os homens das ss estavam
de partida, porque foi o que o rapaz me revelou. Tentei falar com o promotor
alemão encarregado do caso Mengele, mas ele não estava. Se ainda fosse
Fritz Bauer, estaria em casa para mim; o novo, não. — Encolheu novamente
os ombros, esfregou o lóbulo da orelha. — Portanto, os homens deixaram o
Brasil, se o rapaz estiver certo, e ele ainda não foi encontrado. O pai dele
está lá, pressionando a polícia, um homem de posses, segundo me constou.
Mas tem um filho morto.
Beynon proferiu em tom de desculpa:
— Você não acha que é muito difícil para mim apurar uma história em
Viena sobre...
— Não, não, não — interrompeu Liebermann, pousando suavemente a
mão sobre o joelho de Beynon. — Não lhe peço que apure uma história. O
que quero pedir é outra coisa, Sydney. Estou certo de que é possível e espero
que não dê muito trabalho. O rapaz disse que a primeira morte aconteceria
depois de amanhã, 16 de outubro. Mas não disse onde. Será que você obteria
da sua agência principal de Londres recortes ou relatos de suas outras
agências? A respeito de homens de sessenta e quatro a sessenta e seis anos
de idade, assassinados ou mortos em acidentes? Qualquer coisa, exceto
mortes naturais, a partir de quarta-feira. Somente homens com sessenta e
quatro a sessenta e seis anos.
Beynon franziu a testa, empurrou os óculos e no olhar expressou suas
dúvidas a Liebermann.
— Não foi mistificação, Sydney. Ele não era um rapaz que fizesse isso.
Está desaparecido há três semanas, e escrevia para casa regularmente,
telefonava até mesmo quando mudava de hotel.
— Admitamos que provavelmente esteja morto — disse Beynon. — Mas
não teria sido morto simplesmente por se intrometer onde não era chamado,
mais um outro rapaz atrás de Mengele? Ou então não teria sido roubado e
morto por um assaltante comum? Sua morte de modo algum prova que... um
plano nazista está sendo posto em prática no sentido de matar homens de
certa idade.
— Ele tinha isso na fita. Por que haveria de me mentir?
— Talvez não o tenha feito. A fita talvez tenha sido uma mistificação
forjada para ele. Ou talvez a estivesse interpretando erradamente.
Liebermann respirou, expeliu o ar e fez um aceno afirmativo.
— Eu sei — assentiu. — Isso é possível. Foi o que pensei a princípio. E
ainda penso às vezes. Mas alguém precisa investigar um pouco, e, se eu não
o fizer, quem o fará? Se ele estava errado, estava errado. Perdi tempo e
importunei Sydney Beynon por nada. Mas se ele estava certo, então estamos
diante de coisa muito grande, e Mengele deve ter motivos para realizá-la.
Preciso encontrar alguma coisa de concreto, de modo que os promotores
estejam em casa para conseguir detê-la antes que se complete. Vou lhe dizer
uma coisa, Sydney. Sabe o que é?
— Sim?
— Existe um Mundt no meu livro. — Assentiu gravemente. —
Exatamente onde ele disse que havia, numa lista de guardas de Treblinka que
cometiam atrocidades. Hauptscharführer Alfried Mundt. Eu me esquecera
dele. Quem pode se lembrar de todos? Sua ficha é muito pequena: uma
mulher de Riga viu-o partir o pescoço de uma garota de catorze anos e um
homem da Flórida que foi castrado por ele ainda está disposto a depor se eu
apanhá-lo. Alfried Mundt. Portanto, se o rapaz acertou uma vez, talvez tenha
acertado duas. Pode então arranjar os recortes, por favor? Ficaria agradecido.
Beynon respirou fundo, e consentiu.
— Verei o que posso fazer. — Aconchegou mais o copo e apanhou no
interior do casaco o caderno de notas e a caneta. — Que países você disse?
— Bem, o rapaz falou na Alemanha, Inglaterra, Escandinávia —
Noruega, Suécia, Dinamarca — e Estados Unidos. Mas, da maneira como
falou, parece que havia outros lugares que não estava citando. Por isso você
deve se informar também na França e na Holanda.
Beynon lançou rápido olhar a Liebermann e anotou em taquigrafia.
— Obrigado, Sydney — disse Liebermann. — Estou muito grato.
Qualquer coisa que eu descubra, você será o primeiro a saber. Não apenas
disto, mas de tudo.
— Tem idéia de quantos homens de sessenta e poucos anos morrem
diariamente? — indagou Beynon.
— Por assassinato? Ou em acidentes que poderiam ser assassinatos? —
Liebermann meneou a cabeça. — Não, não são muitos. Espero que não. E
alguns eu conseguirei eliminar pelas profissões.
— Como assim?
Liebermann passou a mão no bigode e segurou o queixo, o dedo
atravessado sobre os lábios. Um momento depois, baixou a mão e encolheu
os ombros.
— Não é nada — respondeu. — São mais outros detalhes que o rapaz
deu. Escute — apontou para o caderno de notas de Beynon —, não esqueça
de pôr aí "entre sessenta e quatro e sessenta e seis".
— Eu pus — retorquiu Beynon, olhando-o. — Que outros detalhes?
— Nada de importante. — Liebermann enfiou a mão no casaco. —
Voarei para Hamburgo às quatro e meia — anunciou. — Farei conferências
na Alemanha até 3 de novembro. — Retirou uma carteira marrom, grossa e
usada. — Portanto, tudo o que conseguir, remeta por favor para meu
apartamento, a fim de que eu me informe quando regressar. — Entregou um
cartão a Beynon.
— E se eu descobrir o que se afigura uma matança nazista?
— Quem sabe? — Liebermann recolocou a carteira no casaco. — Dou
apenas um passo de cada vez. — Sorriu para Beynon. — Especialmente
nesses sapatos. — Apoiou as mãos nas coxas e levantou-se, olhando em
volta e abanando a cabeça com ar de desaprovação. — Hum. Dia feio. —
Voltou-se, numa censura a todos eles.
— Por que comem ao ar livre num dia assim?
— Formamos o Clube Mozart das Segundas-Feiras — retorquiu Beynon,
sorrindo e virando o polegar em direção ao monumento.
Liebermann estendeu a mão. Beynon apertou-a. Sorriu para os demais e
disse:
— Minhas desculpas por afastar dos senhores esse homem encantador.
— Ele está à sua disposição — respondeu Dermot Brody.
— Obrigado, Sydney — disse Liebermann a Beynon.
— Sabia que poderia confiar em você. Ah, escute. — Curvou-se e falou
mais baixo, segurando a mão de Beynon. — Peça-os de quarta-feira em
diante. Continuamente, quero dizer. Pois, se o rapaz revelou que iam partir
seis, a troco de que Mengele haveria de enviá-los de uma vez, se alguns
ficariam sem nada fazer por muito tempo? Portanto, deverá haver mais dois
assassinatos não muito depois do primeiro
— isto, se estiverem trabalhando em equipes de dois — ou cinco mais,
que Deus não permita, se trabalharem isolados. E também se, é claro, o rapaz
estiver certo. Fará isto?
Beynon assentiu.
— Quantos assassinatos deverá haver ao todo? — perguntou.
Liebermann fitou-o.
— Muitos. — Largou a mão de Beynon, aprumou-se e se despediu dos
outros com acenos de cabeça. Enfiando as mãos nos bolsos do casaco,
voltou-se e partiu apressado em direção ao alvoroço do tráfego da
Ringstrasse.
Os quatro no banco observaram-no afastar-se.
— Oh, Deus — proferiu Beynon, e Freya Neustadt meneou tristemente a
cabeça.
Dermot Brody inclinou-se para a frente e indagou:
— Como é que foi aquele último pedaço, Syd?
— Se eu podia pedir-lhes que continuassem enviando recortes. —
Beynon guardou o caderno de notas e a caneta dentro do casaco. — Haverá
três ou seis assassinatos, não apenas um. E mais outros ainda.
Paul Higbee retirou o cachimbo da boca e observou:
— O engraçado é que ele pode estar absolutamente certo.
— Ora, deixe disso — retrucou Freya. — Nazistas odiando-o pelo
telefone?
Beynon pegou o copo e agarrou a metade de um sanduíche.
— Os dois últimos anos foram terrivelmente duros para ele — disse.
— Que idade ele tem? — indagou Freya, mordaz.
— Não sei bem — respondeu Beynon. — Ah, sim, percebo. Por volta de
sessenta e cinco, me parece.
— Está vendo? — tornou Freya a Paul. — Então os nazistas estão
matando homens de sessenta e cinco anos. Trata-se de uma fantasia
paranóica minuciosamente delineada. Daqui a um mês estará dizendo que
estão no seu encalço.
Inclinando-se de novo para a frente, Dermot Brody perguntou a Beynon:
— Vai mesmo arranjar os recortes?
— Claro que não — asseverou Freya, e voltou-se para Beynon. — Não
vai, não é mesmo?
Beynon sorveu o vinho, segurando o sanduíche.
— Bem, eu disse que ia tentar — declarou. — Se não o fizer, quando ele
voltar não me largará. Além do mais, Londres pensará que estou trabalhando
em alguma coisa. — Sorriu para Freya. — Nunca faz mal causar boa
impressão.
Ao contrário da maioria dos homens da sua idade, Emil Döring, de
sessenta e cinco anos de idade, outrora segundo-assistente administrativo do
diretor da Comissão de Transportes Públicos de Essen, não se deixara
transformar num escravo dos hábitos. Atualmente aposentado e morando em
Gladbeck, uma vila ao norte da cidade, empenhava-se em variar a rotina
diária. Não tinha hora certa para ir comprar os jornais da manhã, não visitava
a irmã em Oberhausen em tardes determinadas, e não passava as noites —
para não falar de quando decidia ficar em casa no último minuto — em
nenhum bar favorito das vizinhanças. Ao contrário, eram três os seus bares
favoritos, e só escolhia um na hora de sair do apartamento. Às vezes estava
de volta dentro de uma hora ou duas, outras vezes só depois da meia-noite.
A vida inteira Döring estivera de sobreaviso quanto a inimigos à sua
espreita, e protegia-se não apenas andando armado, como também tornando
seus movimentos os mais imprevisíveis possíveis. Primeiro, foram os irmãos
maiores de colegas pequenos que o haviam acusado injustamente de os ter
maltratado. Depois, seus colegas soldados, todos uns obtusos, começaram a
se mostrar ressentidos com a sua habilidade em granjear a simpatia dos
oficiais e obter missões fáceis e seguras. Posteriormente, surgiram rivais na
Comissão de Transportes, alguns capazes de dar lições de perfídia a
Maquiavel. Que histórias não tinha Döring para contar da Comissão de
Transportes!
E agora, nos que deveriam ser seus anos propícios, quando julgara poder
finalmente baixar a guarda e afrouxar, deixando a velha Mauser na gaveta da
mesinha-de-cabeceira i— agora mais do que nunca reconhecia-se em real
perigo de ataque.
Sua segunda esposa, Klara — que era, conforme nunca se cansava de lhe
lembrar através de maneiras sutis, vinte e três anos mais moça —,
alimentava, disso tinha certeza, um caso com o antigo professor de clarinete
do seu filho, um desprezível sujeito abicharado de nome Wilhelm Springer,
mais novo, ainda por cima, do que ela — trinta e oito anos! — e pelo menos
metade judeu. Döring não tinha quaisquer dúvidas de que Klara e o seu
judeu bicha, Springer, ficariam felizes em afastá-lo do caminho, pois não
apenas ela ficaria viúva, como também viúva rica. Ele dispunha de mais de
trezentos mil marcos (de cuja existência ela sabia, e mais quinhentos mil dos
quais ninguém sabia, enterrados em dois cofres de aço no quintal da sua
irmã). O dinheiro é que impedia Klara de se divorciar. Estava à espera, e
sempre fora assim desde o dia em que se casaram, aquela puta.
Pois bem, ela que continuasse esperando. Ele gozava de ótima saúde e
estava pronto para enfrentar uma dúzia de Springers que saltassem de becos
escuros. Freqüentava o ginásio duas vezes por semana — não em tardes
certas —, e, com sessenta e cinco ou não, era ainda danado de bom em luta
livre, embora já não o fosse tanto naquela de outro tipo, a de homem com
mulher. Era ainda danado de bom e sua Mauser ainda danada de boa,
gostava de dizer a si mesmo, sorrindo ao acariciar a volumosa saliência dura
através do casaco, junto ao sovaco.
Contara isso também a Reichmeider, o vendedor do equipamento
cirúrgico que encontrara no Bar Lorelei, na noite passada. Que sujeito
simpático o Reichmeider! Mostrara-se realmente interessado nas histórias de
Döring da Comissão de Tranportes — quase caíra da sua banqueta rindo das
conseqüências do negócio de apropriação de 58. Conversar com ele fora a
princípio um pouco embaraçoso, devido à maneira extravagante como movia
um olho — era obviamente artificial —, mas Döring logo se acostumou e
falou-lhe não apenas sobre o negócio da apropriação como também sobre a
investigação governamental de 64 e o escândalo de Zellermann. Depois
atingiram plano mais pessoal — cinco ou seis cervejas já tinham descido
pelas comportas, nessa altura — e Döring abriu-se acerca de Klara e
Springer. Foi quando dera as pancadinhas na Mauser e revelara o que havia
entre os dois. Reichmeider não conseguia acreditar que ele tivesse mesmo
sessenta e cinco anos.
— Juraria que não tinha mais de cinqüenta e sete, no máximo! —
insistira.
Que bom sujeito! Pena que ficasse ali apenas por uns dias. Sorte, no
entanto, que permanecesse em Gladbeck, em vez de Essen propriamente
dita.
Tinha sido para encontrar Reichmeider de novo, e falar-lhe sobre a
ascensão e queda de Oskar Sabe-Tudo Vowinckel, que Döring voltara ao
Bar Lorelei aquela noite. Mas as nove horas já haviam transcorrido há muito
tempo e nem sinal de Reichmeider, apesar de haverem combinado o
encontro na noite anterior. Havia um bando ruidoso de rapazes e moças
bonitas, uma delas com a metade dos seios de fora, e somente alguns velhos
fregueses — Fürst, Apfel, sei-lá-quem —, nenhum deles bom ouvinte.
Parecia mais uma sexta ou um sábado do que uma quarta. Um jogo de
futebol flutuava de cá para lá na televisão. Döring observou-o, bebeu
vagarosamente e olhou pelo espelho os esplêndidos peitos jovens. Vez por
outra inclinava-se para trás na banqueta e tentava pegar um vislumbre dos
recém-chegados pela porta, esperando ainda que Reichmeider fizesse a
prometida aparição.
E ele o fez, mas da maneira mais estranha e repentina, uma mão
agarrando o ombro de Döring, numa premência de cochichos e olhar torto:
— Döring, venha aqui fora depressa! Preciso lhe dizer uma coisa! — E
saiu.
Confuso e intrigado, Döring chamou com um sinal a atenção de Franz,
jogou uma nota de dez sobre o balcão e abriu caminho até a saída.
Reichmeider acenou com decisão, afastando-se Kirchengasse abaixo. Um
lenço envolvia-lhe a mão esquerda, como se estivesse machucada. As pernas
e os ombros do seu terno cinzento, de aparência cara, tinham manchas de
poeira de cal.
Apressando-se em sua direção, Döring perguntou:
— O que há? Que aconteceu com você?
— É a você que as coisas podem acontecer, não a mim! — exclamou
Reichmeider alvoroçadamente. — Andei aos tropeços por aquele edifício
que estão demolindo, lá embaixo na rua do próximo quarteirão. Escute,
como é o nome dele, daquele sujeito de quem você me falou, o que anda
metido com sua mulher?
— Springer — disse Döring, profundamente intrigado, mas contagiando-
se com o alvoroço de Reichmeider. — Wilhelm Springer!
— Sabia que era isto! — exclamou Reichmeider. — Sabia que não
estava enganado! Que sorte por acaso eu ter... Escute, vou explicar tudo.
Vinha por esta rua aqui, para o bar, quando tive de dar uma mijada, não
havia jeito de prender. Chegando junto ao prédio, esse que estão demolindo,
entrei no beco ao lado. Mas havia muita luz ali, por isso procurei uma
entrada pelas portas que existem no local e enfiei-me de mansinho. Fiz o que
tinha de fazer e, justamente quando me preparava para sair, dois homens
chegaram e pararam bem no lugar onde eu entrara. Um chamou o outro de
Springer — lentamente, acenou com a cabeça, enquanto Döring respirava
fundo — e este então disse para o primeiro coisas assim: "Ele está no Lorelei
nesse instante, o velho maldito", e: "Vamos espremer as tripas daquele corno
manso". Eu sabia que Springer era o nome que você tinha falado! Este é
mesmo o seu caminho de casa, não?
Döring, de olhos fechados, respirou fortemente e engoliu parte da sua
fúria.
— Às vezes — murmurou, abrindo os olhos — tomo caminhos
diferentes.
— Pois bem, esta noite eles estão esperando você naquele trajeto.
Encontram-se lá, à espreita, com uns paus, bonés sobre os olhos, golas
viradas para cima, exatamente como você disse ontem à noite, Springer
prestes a saltar de um beco. Percorri o prédio e descobri uma saída do lado
de cá.
Döring respirou fundo outra vez e bateu a mão no ombro poeirento de
Reichmeider, agradecido.
— Obrigado — disse. — Obrigado. Sorridente, Reichmeider prosseguiu:
— Tenho certeza de que você poderá dar conta dos dois com uma das
mãos amarrada nas costas. O outro sujeito é um magricela insignificante,
porém o mais sensato, é claro, seria simplesmente voltar para casa por outro
trajeto. Posso acompanhá-lo, se quiser. A menos que prefira se livrar desse
Springer de uma vez por todas.
Döring encarou-o, interrogativo.
— É uma oportunidade de ouro, realmente — salientou Reichmeider —,
e de qualquer modo ele há de atacá-lo uma outra noite, se não aproveitar
esta. É muito simples: você vai até lá, eles investem — baixou o olhar para o
casaco de Döring e sorriu de olho enviesado — e aí você dá cabo deles.
Estarei alguns passos atrás, para servir-lhe de testemunha, e na improvável
eventualidade de eles lhe darem trabalho — inclinou-se mais para perto e,
abrindo a lapela, mostrou uma coronha de arma surgindo do coldre —
cuidarei deles e você será minha testemunha. De uma maneira ou de outra,
ficará livre dele, e o máximo que lhe poderá acontecer será levar uma ou
duas pauladas.
Döring encarou Reichmeider. Levou a mão ao casaco, apertou a dura
saliência lá dentro.
— Deus meu! — exclamou, assombrado. — E pensar que vou mesmo
usar esta coisa!
Reichmeider desenrolou o lenço da mão e soprou um arranhão sangrento
no dorso.
— Isto dará à sua esposa alguma coisa em que pensar —observou.
— Deus do céu! — exultou Döring. — Nem tinha pensado nisso! Ela vai
desmaiar aos meus pés! "Escute, Klara, lembra-se de Wilhelm Springer, o
professor de clarinete de Erich? Atacou-me na rua esta noite — não faço
idéia por quê — e matei-o." — Agarrou as bochechas, radiante, e assobiou.
— Meu Deus, isto há de matá-la também!
— Venha, vamos fazê-lo! — instou Reichmeider. — Antes que eles
percam a coragem e fujam!
Apressaram-se pelo escuro declive da Kirchengasse. Faróis em subida
varriam-nos de luzes e passavam, velozes.
— Quem disse que não há justiça, hein?
— "Corno manso"? Ah, seu bichinha de merda, hei de acertá-lo bem no
coração!
Atravessaram a Lindenstrasse deserta. Agora andavam devagar e em
silêncio, rentes às portas fechadas das lojas. E chegaram junto aos quatro
andares do arcabouço de pedra de um edifício, o topo semidemolido
recortando-se numa silhueta de encontro ao céu enluarado, percorrido à
frente e aos lados por passagens de tábuas e portas pintadas. Reichmeider
puxou Döring para a escuridão da passagem lateral.
— Fique aqui — sussurrou. — Vou me certificar se não pegaram mais
outros dez como reforço.
— É, acho bom. — Döring sacou da arma.
— Agora sei o caminho e tenho uma lanterninha de bolso. Não me
demoro. Fique aqui mesmo.
— Não deixe que eles o vejam!
Já se afastando, Reichmeider cochichou:
— Não se preocupe.
À obscura luz oscilante, surgiu a passagem, de teto de pranchas e murada
de portas. O vulto alto e magro de Reichmeider entrou por ela, contornando
a parede interna, e desapareceu, deixando a escuridão atrás de si.
Ligeiro e agitado — e com vontade de mijar — Döring segurava a
Mauser maravilhosamente pesada, há tantos anos carregada e agora prestes a
ser usada. Levou-a até junto da entrada da passagem e examinou-a à luz
fraca da Lindenstrasse. Acariciou-lhe o cano liso e destravou-a. Ei-la pronta
para atirar.
Voltou a recostar-se na parede, onde Reichmeider o deixara. Que amigo!
Que homem de fato! Amanhã à noite iria convidá-lo para jantar no
Kaiserhof. E dar-lhe de presente alguma coisa de ouro. Abotoaduras, talvez.
Sentindo volumosa a arma em sua mão, quedou-se na passagem,
tornando-se agora cada vez mais visível. Imaginou-se despejando sua carga
mortífera sobre Wilhelm Springer.
E depois — resolvida a questão com a polícia — voltando para casa e
contando a Klara. Morra, sua puta.
Haveria até reportagens nos jornais! "Administrador da Comissão de
Tranportes aposentado mata assaltantes." Um retrato dele também. E as
entrevistas na televisão?
Precisava mesmo mijar. Era a cerveja. Empurrou de novo a trava e
devolveu a arma ao coldre. Virando-se para a parede, abriu o fecho ecler da
braguilha e, de pernas bem abertas, deixou sair. Que alívio!
— Você está aí, Döring? — Baixinho, veio de cima a voz de
Reichmeider.
— Sim! — respondeu erguendo o olhar para as pranchas. — O que está
fazendo aí em cima?
— É que fica mais fácil andar por aqui. Embaixo, há porcarias de toda
espécie. Dentro de um minuto estarei com você. Fique aí. A luz acabou e não
vou conseguir encontrá-lo se você se mexer.
— Chegou a avistá-los?
Não veio resposta. Continuou mijando, olhando por uma fresta entre as
portas desbotadas. Será que Reichmeider conseguiria descer direito sem luz?
E teria avistado Springer e o outro, ou ainda estaria a caminho? Depressa,
Reichmeider!
Ressoou um tamborilar acima. Ergueu novamente o olhar. Era cascalho
ou qualquer outra coisa caindo sobre as tábuas. Saltaram sobre ele, com um
trovão atrás. Atônito, dolorido, morreu rapidamente.

Quando falara pela última vez em Heidelberg — fora em 1970 — o


auditório tinha sido uma magnífica catedral antiga de carvalho enegrecido,
abarrotada além da sua capacidade de mil lugares. Desta vez era uma nova
concha acústica cor de areia, para quinhentas pessoas, muito moderna e bem
planejada, com as duas últimas fileiras vazias. A voz corria muito mais fácil,
é claro, era como falar numa espaçosa sala de estar de alguma residência.
Um verdadeiro contato cara a cara com todos aqueles jovens inteligentes.
Mas ainda assim...
Bem, a coisa ia muito bem, como em todas as noites até então. As
platéias alemãs, as jovens, eram sempre as melhores. Verdadeiramente
interessadas, atentas, preocupadas com o passado. Levavam-no a dar o
melhor de si, por estar, mais uma vez, diante de uma sensibilidade autêntica,
ao passo que as platéias americanas e inglesas, menos envolvidas,
permitiam-lhe cair em mecânica elocução de trechos decorados. Falar em
alemão também fazia diferença, é claro
— a liberdade de usar naturalmente as palavras ao invés de enfrentar os
"was" e "were" (e mais "ejacular" e "ejetar"; está me arranjando mesmo os
recortes, Sydney?).
Voltou a concentrar-se no que dizia.
— No princípio eu queria apenas vingança — dirigiu-se a uma garota
que assistia, atenta, na segunda fila. — Vingança pela morte de meus pais e
minhas irmãs, vingança pelos anos que passei nos campos de concentração
— dirigiu-se às filas mais distantes —, vingança por todas as mortes, pelos
anos que todos passaram. Por que teria eu sido poupado, senão para exigir
vingança? — Fez uma pausa.
— Viena certamente não precisava de outro compositor. — Sobreveio a
ondinha costumeira de riso aliviado. Sorriu em acompanhamento, e escolheu
um rapaz de cabelos castanhos na extrema direita (levava um pouco o jeito
de Barry Koehler). — O problema com relação à vingança — dirigiu-se a
ele, procurando não pensar em Barry — é que, primeiro, não se consegue
obtê-la, verdadeiramente — desviou o olhar do rapaz com o jeito de Barry,
abrangendo a platéia toda —, e, segundo, ainda que o conseguíssemos,
adiantaria alguma coisa? — Meneou a cabeça. — Não. Por isso desejo agora
alguma coisa melhor que vingança, quase tão difícil de alcançar. — Voltou-
se para a garota da segunda fila. — Desejo a recordação. — E abrangendo a
todos: — Recordação. É difícil de conseguir porque a vida continua. Todos
os anos temos novos horrores; um Vietnam, atividades terroristas no Oriente
Médio e na Irlanda, assassinatos — (noventa e quatro homens de sessenta e
cinco anos?) — e a cada ano — prosseguiu — o horror dos horrores, o
Holocausto, torna-se mais distante, um pouco menos horrível. Mas os
filósofos nos preveniram: se esquecermos o passado, estaremos condenados
a repeti-lo. E por isso é que é importante capturar um Eichmann e um
Mengele, a fim de que eles possam... — Ouviu o que dissera e perturbou-se.
— Um Stangl, quero dizer — atrapalhou-se. — Desculpem-me, acabo de ser
traído por um velho sonho.
Riram um pouco, mas não adiantou, rompera-se a estrutura; tentou
recompô-la.
— E por isso é que é importante capturar um Eichmann e um Stangl —
continuou. — A fim de que sejam submetidos a julgamento — não
necessariamente para serem condenados, não, mas a fim de que sejam
ouvidas testemunhas que façam lembrar ao mundo, e especialmente a vocês,
ainda não nascidos quando essas coisas aconteceram, que homens em nada
diferentes por fora de vocês e de mim são capazes de cometer, em
determinadas circunstâncias, as mais bárbaras e desumanas atrocidades. A
fim de que você — apontou — e você — e você — e você — providenciem
para que tais circunstâncias jamais tenham possibilidades de ressurgir.
O fim. Inclinou a cabeça. O aplauso veio em dilúvio sobre ele. Recuou
um passo da tribuna e, apoiado em uma das mãos, agradeceu. Esperou,
respirando forte, em seguida se adiantou, agarrou a tribuna de novo com as
duas mãos e enfrentou o aplauso, que esmoreceu até o quase silêncio.
— Obrigado — proferiu. — Se tiverem perguntas a fazer agora, vou me
esforçar ao máximo para respondê-las. — Olhou em todas as direções,
escolheu e apontou.
Traunsteiner, inclinando-se sobre o volante agarrado com firmeza,
disparou seu carro a toda velocidade em direção a um homem de cabelos
grisalhos que caminhava, de costas para ele, pelo ressalto da estrada.
Agigantando-se sob o explosivo fulgor dos faróis, o homem voltou-se,
ergueu uma revista dobrada até acima dos olhos, deu um passo para trás. O
pára-choque do carro atirou-o para cima e para longe. Reprimindo um
sorriso, Traunsteiner guinou o carro em cheio para cima da calçada, quase de
encontro a um aviso de cruzamento em letras brancas num fundo azul.
Freando uma e outra vez, girou o carro, guinchando, para uma estrada mais
larga, com um marco assinalando "Esbjerg — 14 km".
— Principalmente através de contribuições — anunciou Liebermann —
de judeus e outras pessoas interessadas de todo o mundo. E também
mediante o que recebo escrevendo e fazendo conferências como esta. —
Apontou para uma mão na fila do fundo. Uma moça levantou-se, rosada e
rechonchuda. Começou a formular o que ele viu que ia ser a pergunta sobre
Frieda Maloney.
— Reconheço — disse a moça — que seja importante submeter a
julgamento as pessoas-chave, as que ocuparam posições elevadas. Mas não
estará o senhor ainda motivado pela vingança num caso como o de Frieda
Maloney, guarda comum que veio arrastada para cá, após ser cidadã
americana durante tantos anos? O que ela fez durante a guerra não terá sido
compensado pelo que fez a partir de então? Ela foi uma cidadã muito útil lá.
Ensinando, etc.
A moça sentou-se.
Ele acenou com a cabeça e permaneceu silencioso por um momento,
alisando o bigode, meditativo, como se nunca lhe tivessem feito aquela
pergunta antes. Em seguida, disse:
— Depreendo de sua pergunta que uma mulher professora de jardim de
infância que descobria lares para crianças desvalidas, boa dona-de-casa,
bondosa para cães vira-latas, possa igualmente ter sido — a mesmíssima
mulher — guarda "comum" de campo de concentração, culpada, talvez —
seu julgamento, quando finalmente acontecer, nos dirá —, de homicídio em
massa. Perguntou-lhe agora: você estaria a par dessa possibilidade, de certo
modo surpreendente, se Frieda Altschul Maloney não fosse encontrada e
extraditada? Creio que não, e não julgo que isso constitua uma possibilidade
sem importância, que possa prescindir do seu conhecimento. Nem do
conhecimento do seu governo.
Olhou em torno, para as mãos levantadas, inclusive a do rapaz com o
jeito de Barry. Desviou o olhar dele (agora não, Barry, estou ocupado) e
apontou para um rapaz louro, de aspecto sagaz, bem no centro. ("Há noventa
e quatro deles", insistia a voz de Barry no telefone, "e são todos funcionários
públicos de sessenta e cinco anos. Sentiu a barra?")
Uma nova pergunta lhe era dirigida.
— Mas Frieda Maloney nem sequer foi indiciada — estava dizendo o
rapaz louro. — Estará o nosso governo realmente tão interessado em
perseguir criminosos nazistas? Estará qualquer governo do mundo, mesmo o
de Israel? Não se terá verificado um declínio de interesse, e não será essa
uma das razões por que o senhor não conseguiu reabrir o seu Centro de
Informações?
Quem lhe mandou escolher os de aspecto sagaz?
— Primeiro que tudo — informou ele —, o Centro encontra-se
temporariamente instalado em dependências menores, mas ainda está aberto.
Há gente trabalhando, cartas chegam, consultas saem. Como disse antes,
somos financiados por pessoas isoladas, de modo algum dependentes de
qualquer governo. Em segundo lugar, embora verdadeiro que os promotores
alemães e austríacos não sejam mais tão... receptivos quanto outrora, e Israel
tenha outros problemas mais prementes, a causa da justiça ainda não foi
abandonada. Sei de fonte limpa que Frieda Maloney será indiciada em
janeiro ou fevereiro, e levada a julgamento logo depois. As testemunhas
foram encontradas, tarefa difícil e demorada, da qual o Centro participou.
Olhou novamente as mãos levantadas, jovens rostos inteligentes — e de
repente teve a noção exata do que tinha diante dos olhos. Uma mina de ouro,
por Deus! Bem na frente dele!
Ali, naquela luminosa concha acústica, achavam-se quase quinhentos
dos mais inteligentes jovens da Alemanha, a nata de sua geração, e ele
tentava resolver a coisa sozinho, um velho tolo, de cérebro cansado. Bom
Deus!
Consultá-los? Loucura!
Certamente apontara para alguém, a pergunta sobre o neonazismo fora
formulada.
— Dois fatores são necessários para o ressurgimento do nazismo —
enumerou rapidamente: — um agravamento das condições sociais até se
aproximarem das existentes nos primeiros anos 30, e o aparecimento de um
líder semelhante a Hitler. Se esses dois fatores viessem a surgir, os grupos
neonazistas do mundo inteiro se tornariam evidentemente um foco de perigo,
mas, no momento, não, não me sinto especialmente alarmado. — Mãos se
levantaram subitamente, mas ele ergueu a sua, detendo-as. — Um minuto
apenas, por favor — solicitou. — Gostaria de interromper as perguntas por
um instante e formular uma, ao invés de responder.
As mãos caíram. Os jovens rostos inteligentes olharam-no, na
expectativa.
Loucura! Mas como não tentar utilizar um poderio mental desses?
Agarrou com as duas mãos a tribuna, respirou, refletiu.
— Quero — dirigiu-se àquela concha repleta de tão magníficas pérolas
— pedir emprestados seus cérebros para resolver um problema. Um
problema hipotético que um jovem amigo me propôs. Estou muito ansioso
para resolvê-lo, tanto assim que me sinto disposto a trapacear um pouco e
pedir auxílio. — Risadinhas. — E quem melhor me poderia ajudar senão os
estudantes desta grande universidade e os seus amigos?
Tirou as mãos da tribuna e aprumou-se, olhando-os despreocupadamente
— um homem propondo um problema hipotético e não um problema real.
— Já lhes falei acerca da Organização dos Camaradas, da América do
Sul — disse ele —, e acerca do Dr. Mengele. Eis o problema apresentado
pelo meu amigo. A Organização e o Dr. Mengele decidiram matar grande
número de homens em diversos países da Europa e da América do Norte.
Noventa e quatro homens, para ser exato, e todos de sessenta e cinco anos e
funcionários públicos. Os assassinatos deverão ocorrer num período de dois
anos e meio, e existe uma motivação política, uma motivação nazista. Qual
é? Poderão encontrar uma resposta para mim? Quem são esses homens? Por
que suas mortes são desejáveis para a Organização dos Camaradas e para o
Dr. Mengele?
O auditório de jovens ficou perplexo. Um zumbido de cochichos cresceu
no meio deles. Uma tosse irrompeu, ecoada por outra.
Assomou à tribuna, despreocupadamente.
— Não estou brincando com vocês — declarou. — Este problema me foi
proposto. Como um exercício de lógica. Podem me ajudar?
Inclinaram-se uns para os outros, e o zumbido de cochichos intensificou-
se, transformou-se em zumbido de idéias aventadas.
— Noventa e quatro homens — proferiu ele vagarosamente, à guisa de
orientação. — De sessenta e cinco anos. Funcionários públicos. De vários
países. Dentro de dois anos e meio.
Uma mão levantou-se, e mais outra.
Esperançoso, escolheu a primeira — algumas fileiras atrás do meio, um
pouco à esquerda.
— Sim?
Um rapaz de suéter azul ergueu-se.
— Os homens detêm posições de responsabilidade — disse, com uma
voz inesperadamente aguda. — Suas mortes acarretarão direta ou
indiretamente o deterioramento das condições sociais a que o senhor acabou
de se referir, criando clima mais favorável a um ressurgimento do nazismo.
Ele meneou a cabeça.
— Não, creio que não. Seria possível o prosseguimento de assassinatos,
durante meses, de homens altamente colocados, para não falar em dois anos
e meio, sem atrair atenção e provocar investigações? Não, os homens têm de
pertencer ao segundo escalão de funcionários. E, aos sessenta e cinco anos, é
mais do que provável, de qualquer modo, que estejam se aposentando;
portanto, removê-los de seus cargos não seria absolutamente o objetivo de
tais assassinatos.
— Por que matá-los, afinal de contas? — exclamou uma voz, vinda dos
fundos, à direita. — Não tardarão a morrer naturalmente!
Ele concordou com um aceno.
— Está certo. Não tardarão a morrer naturalmente. Portanto, por que
matá-los, afinal de contas? É isso que estou lhes perguntando.
Apontou a segunda mão que se levantara, no fundo, ao centro. Outras
mãos estavam agora erguidas. Um rapaz alto levantou-se, dizendo:
— São simpatizantes nazistas sem famílias, que deixaram todas as suas
economias para grupos nazistas. Trata-se de assassinato por dinheiro. Talvez
necessitem de fundos agora, e não daqui a cinco ou dez anos.
— Isso é possível — acedeu —, embora pareça improvável. Como já
disse, a Organização dos Camaradas dispõe de enorme fortuna trazida
clandestinamente da Europa antes do fim da guerra. — Puxou a caneta do
bolso de cima e fez sair sua ponta com um estalido. — Ainda assim, é uma
possibilidade. — Virou uma de suas fichas de notas sobre a tribuna, e no
verso escreveu: "Dinheiro?" Ergueu a caneta e apontou para a direita.
Uma moça de óculos e compridos cabelos castanhos levantou-se.
— Parece-me muito mais provável — disse ela — que os homens sejam
antinazistas do que pró-nazistas, e obviamente existe algum tipo de ligação
entre eles. Poderiam ser membros de algum grupo internacional judaico que
de algum modo ameace a Organização dos Camaradas?
— Acho que eu teria conhecimento deste grupo — asseverou ele —, e
jamais ouvi falar de grupo algum, de qualquer espécie, cujos membros
tenham todos sessenta e cinco anos.
A moça permaneceu de pé.
— Talvez o fato de eles terem sessenta e cinco anos não seja o
importante — contrapôs. — A... ligação poderia ter sido estabelecida quando
eram mais jovens, quando todos tinham... trinta ou vinte anos. Talvez
estivessem envolvidos em determinada ação militar, durante a guerra, e
matá-los seria ato de vingança.
— Alguns são alemães — disse ele —, outros ingleses, americanos.
Também há suecos, que eram neutros. Mas...
— Uma patrulha das Nações Unidas! — exclamou alguém.
— Seriam demasiado idosos — respondeu ele, e olhou novamente para a
moça de cabelos compridos, que se havia sentado. — Mas é um ponto crítico
— ponderou — o fato de sessenta e cinco anos poder não ser a idade
importante; é claro que durante toda a vida eles tiveram as mesmas idades,
portanto isso dá margem a outras possibilidades. Obrigado.
Escreveu: "Ligação numa idade anterior?", e aí alguém exclamou:
— São naturais desses países ou apenas vivem lá? Ele ergueu os olhos.
— Outro ponto bom — disse. — Não sei. Talvez originalmente fossem
da mesma nacionalidade. — "Onde nasceram?", escreveu. — Isto está bom,
continuem assim! — Apontou.
Um rapaz sentado de pernas cruzadas na primeira fila aventou:
— São pessoas que ajudam o senhor, importantes colaboradores seus.
— Está me lisonjeando. Não sou tão importante assim, como também
não disponho de noventa e quatro colaboradores. De qualquer idade. —
Apontou outro lugar.
O rapaz com o jeito de Barry disse:
— Quando começa o período de dois anos e meio, senhor?
— Começou há dois dias.
— Então termina na primavera de 1977. Há algum acontecimento
político importante marcado para ocorrer então? Talvez os assassinatos
sejam anunciados como demonstração de força, ou aviso.
— Mas por que especialmente tais homens? Contudo, temos outro ponto
interessante. Alguém sabe de um acontecimento importante, político ou não,
marcado para a primavera de 1977? — Olhou em torno.
Silêncio, menear de cabeças.
— Minha formatura! — gritou alguém. Risadas e aplausos.
"Primavera de 77?", escreveu ele e, sorrindo, apontou. O rapaz de suéter
azul novamente, com a sua voz aguda, falou:
— Os homens não estão altamente colocados, mas sim seus filhos, que
têm seus quarenta e tantos anos. E os homens serão mortos a fim de que seus
filhos tenham de abandonar trabalhos importantes para assistir ao enterro.
Zombarias, vaias e assobios de menosprezo.
— Um tanto forçado — declarou ele —, mas mesmo assim contém o
germe de alguma coisa em que pensar. Serão os homens aparentados com
gente importante, ou estarão a eles associados de alguma forma? —
Escreveu: "Parentes? Amigos?", e apontou.
O louro de aspecto sagaz levantou-se. Sorrindo, indagou:
— Herr Liebermann, será que este problema é mesmo hipotético?
Jamais apontar de novo para este rapaz. O silêncio expandiu-se pelo
auditório.
— Claro que é — respondeu.
— Então deve pedir mais informações ao seu amigo
— retrucou o rapaz de aspecto sagaz. — Nem mesmo os maiores
cérebros de Heidelberg poderão resolver este problema, se não lhes derem,
ao menos, algum fato pertinente acerca dos noventa e quatro homens. Com
as informações de que dispomos presentemente, só nos resta especular às
cegas.
— Tem razão — disse ele —, são necessárias mais informações. Mas a
especulação ajuda, sugere possibilidades.
— Olhou em torno. — Alguém tem mais especulações?
Uma mão levantou-se ao fundo, à esquerda. Ele apontou para ela.
Um homem idoso ergueu-se, de cabelos brancos e de aspecto frágil —
membro da faculdade ou o avô de alguém. Apoiando-se no espaldar do
assento à sua frente, proferiu em voz firme e sobranceira: — Nenhuma das
sugestões feitas até agora assinalou a presença do Dr. Mengele no problema.
Por que haveria ele de surgir se os assassinatos são apenas de ordem política,
do tipo comum, que a Organização dos Camaradas poderia planejar sem a
sua presença? Ele surgirá, é claro, devido à sua formação de médico, e
portanto sugiro uma perspectiva médica para os assassinatos. Eles poderiam,
por exemplo, constituir a experiência dissimulada de novas maneiras de
matar, e nesse caso os homens teriam sido escolhidos precisamente porque
são velhos, sem importância, não constituindo ameaça para o nazismo. Um
programa de experiências explicaria igualmente o extenso período de tempo.
Na primavera de 1977 os verdadeiros assassinatos começariam. — E ele
sentou-se.
Liebermann ficou olhando para ele por um momento e, a seguir, disse:
— Obrigado, senhor. — E dirigiu-se ao auditório inteiro: — Espero que
para sorte dos senhores este cavalheiro seja um de seus professores.
— E é — asseguraram-lhe várias vozes contundentemente, e o nome de
Geirasch foi repetido.
"POR QUE M.???", escreveu e ergueu de novo os olhos na direção do
homem.
— Não creio que um programa de experiências se limitaria a
funcionários públicos — disse ele —, ou seria cumprido nesta parte do
mundo, ao invés de na América do Sul, mas o senhor certamente está certo
quanto a haver uma razão específica para a presença do Dr. Mengele. Poderá
alguém lembrar-se de alguma? — Olhou em torno.
Os jovens permaneceram calados.
— Uma perspectiva médica para os noventa e quatro assassinatos? —
Olhou a moça de cabelos compridos. Ela meneou a cabeça.
O rapaz com o jeito de Barry balançou a sua, e também o rapaz de suéter
azul.
Ele hesitou — e olhou o rapaz louro de aspecto sagaz, que lhe sorriu e
também sacudiu a cabeça.
Olhou para a ficha sobre a tribuna:

"Dinheiro?
Ligação numa idade anterior?
Onde nasceram?
Primavera de 77?
Parentes? Amigos?
POR QUEM.???"

Olhou a platéia.
— Obrigado — disse. — Vocês não resolveram o problema, mas me
deram sugestões que talvez me levem à solução, por isso têm a minha
gratidão. Voltaremos agora às suas perguntas.
Mãos levantaram-se. Ele apontou. Uma moça junto do rapaz com o jeito
de Barry levantou-se e indagou:
— Herr Liebermann, qual a sua opinião sobre Moshe Gorin e os
Defensores Judaicos?
— Nunca estive com o Rabino Gorin, por isso não tenho opinião pessoal
a seu respeito — respondeu automaticamente. — Quanto aos Jovens
Defensores Judaicos, se estiverem defendendo, ótimo. Mas se, conforme tem
constado às vezes, estiverem atacando, então não será tão bom. Camisas
pardas nunca dão certo, não importa quem as vista.
E Horst Hessen, com os seus cabelos prateados, suando ao sol brilhante,
levou os grandes binóculos aos olhos azuis e observou um homem de peito
nu, de chapéu de sol branco, dirigindo um cortador de grama a motor,
vagarosamente, sobre a relva de um verde brilhante. Num mastro estava
hasteada uma bandeira americana. A casa atrás era uma caixa de sequóia e
vidro, bem-arrumada e de um andar só. Um tiro, e uma nuvem escura, onde
dançava o alaranjado, substituiu o homem e o cortador de grama; um som
surdo de explosão veio bruscamente de longe.
Três
Mengele mudara o retrato do Führer e todas as fotografias menores e
recordações dele para a parede oeste, por cima do sofá — o que significou
mudar seus diplomas, comendas e fotografias de família para quaisquer
espaços que pôde encontrar, entre as duas janelas externas da parte sul e em
volta da janela de observação do laboratório e da porta na parede leste.
Providenciara então que a parede norte, toda limpa, recebesse uma moldura
de madeira de sete centímetros de largura, à altura da metade, acima da qual
fora tirado o papel de parede cinzento-claro. Duas mãos de tinta branca
tinham sido passadas, a primeira fosca e a segunda semilustrosa. A moldura
fora pintada de cinzento-claro. Quando toda a tinta secou inteiramente, ele
mandou vir de avião, do Rio, um pintor de cartazes.
O pintor de cartazes fazia linhas finas magnificamente retas e bonitas
letras, mas nos seus primeiros traços leves, a lápis, revelou inclinação para
copiar errado, e/ou colocar fora do lugar sinais de pronúncia, além de
obedecer à sua maneira brasileira de soletrar. Durante quatro dias, pois,
Mengele sentara-se à sua escrivaninha, observando, ensinado, advertindo.
Aos poucos, foi tendo aversão ao pintor de cartazes, e por volta do segundo
dia aceitava de bom grado a idéia de que o beócio ia ser atirado do avião.
Quando o serviço terminou, e a mesa comprida, com as suas estantes de
jornais arrumadas, foi posta no lugar junto à parede, Mengele pôde recostar-
se na sua cadeira de aço e couro e contemplar o quadro que imaginara. Os
noventa e quatro nomes, cada um com o seu país, data e quadradinho ao
lado, como para as eleições, foram dispostos em três colunas, a do meio
necessariamente contendo um nome a mais que as duas de fora (uma
pequena contrariedade, mas o que poderia ser feito a esta altura?). Ali
estavam todos eles, de "1, Döring — Deutschland — 16/10/74 " a "94.
Ahearn — Kanada — 23/4/77 "— Como ansiava por preencher cada um
desses quadradinhos! Ele próprio faria isso, claro, com tinta vermelha ou
preta, ainda não decidira qual. Talvez tentasse desenhar cruzes, e, se as
primeiras não saíssem uniformes, aí então trataria de cobrir os quadradinhos.
Girou na cadeira e sorriu para o Führer. "Não se importa de ser afastado
para o lado por causa disto, não é mesmo, meu Führer? Claro que não. Como
poderia?"
Por ora, infelizmente, nada restava senão esperar até 1.° de novembro,
quando os chamados chegariam à sede.
Estivera trabalhando no laboratório, tentando, sem muito entusiasmo,
transplantar cromossomos em núcleos de células de rãs.
Certo dia, voara até Assunção. Visitou seu barbeiro e uma prostituta,
comprou um relógio digital, comeu um bom bife no La Calandria, com
Franz Schiff.
E agora, finalmente, chegara o dia — bonito, de uma luminosidade tão
ofuscante que tivera de cerrar as cortinas do escritório. O rádio estava ligado,
sintonizado para a freqüência da sede, com os fones de prontidão ao lado de
um bloco de memorando e uma caneta. Num canto do tampo de vidro da
escrivaninha estava estendida uma toalha de linho branco. Sobre ela, em
ordem cirúrgica, uma latinha fechada de esmalte vermelho, uma chave de
parafuso, um pincel novo e fino de cerdas curtas, uma placa de Petri
descoberta e uma lata de terebintina com tampa de atarraxar. A extremidade
esquerda da mesa comprida fora afastada da parede. Uma escadinha fora
colocada diante da primeira coluna de nomes e países.
Resolveu então tentar as cruzes.
Pouco antes do meio-dia, quando começava a perder a paciência, o
zumbido de um avião chegou com crescente intensidade através das cortinas.
Era o zumbido do avião da sede, o que significava notícias muito boas ou
muito más. Saiu apressado do escritório, passou pelo vestíbulo e chegou à
varanda, onde algumas crianças, filhas dos empregados, estavam sentadas,
partindo uma espécie de bolo achatado. Passou por cima delas, deu a volta
pelo lado da casa, em direção aos fundos, e desceu uns degraus. O avião
acabava de baixar por trás da.copa das árvores. Protegendo os olhos com as
mãos, precipitou-se pelo quintal — um empregado que descansava na
enxada começou a manejá-la — e passou pela casa dos empregados, pelos
barracões e pelo galpão do gerador. Correndo com passos curtos, entrou pela
trilha verdejante aberta por entre a densa folhagem da mata. Ouviu o avião
aterrissar. Passou para uma marcha rápida, enfiou a fralda de trás da camisa
para dentro das calças, tirou o lenço e limpou a testa e o rosto. Por que o
avião e não o rádio? Alguma coisa tinha dado errado; tinha certeza.
Liebermann? Será que aquele lixo conseguira de algum modo pôr fim a
tudo? Em caso afirmativo, ele próprio iria pessoalmente a Viena descobri-lo
e dar cabo dele. O que mais lhe restaria para fazer da vida?
Atingiu a beira da faixa de pouso gramada a tempo de ver o bimotor
vermelho e branco rolando vagarosamente para perto do seu — menor,
prateado e preto. Dois guardas estavam ali com o piloto, que lhe acenou.
Inclinou a cabeça em saudação. Outro guarda estava do outro lado da pista,
junto à cerca gradeada, enfiando alguma coisa através dela, tentando atrair
um animal. Era contra o regulamento, mas não o repreendeu. Observou a
porta do avião vermelho e branco, agora parado, as hélices morrendo. Rezou
baixinho.
A porta foi aberta e um dos guardas apressou-se a ajudar um homem
alto, de terno azul-claro, a descer os degraus.
Coronel Seibert! Tinham de ser más notícias.
Adiantou-se vagarosamente.
O coronel avistou-o, acenou — aparentemente alegre — e veio em sua
direção. Trazia uma sacola vermelha. Mengele andou mais depressa.
— Notícias? — exclamou.
O coronel acenou afirmativamente, sorrindo.
— Sim, boas notícias!
Graças a Deus! Acelerou ainda mais o passo.
— Estava preocupado.
Apertaram-se as mãos. O coronel, com o seu belo e enérgico rosto
nórdico, sorriu e disse:
— Todos os "vendedores" deram notícias. Os "fregueses" de outubro
foram visitados. Quatro nas datas marcadas, dois um dia antes, e um dia
depois.
Mengele apertou o peito e respirou.
— Graças a Deus! Estava preocupado com a chegada do avião.
— Senti vontade de dar um vôo — retorquiu o coronel. — O dia está tão
bonito!
Caminharam juntos em direção à trilha. Todos os sete?
— Todos os sete. Sem obstáculo algum. — O coronel estendeu a sacola.
— Isto é para você. Um misterioso fardo da parte de Ostreicher.
— Ah — fez Mengele, apanhando-o. — Obrigado. Não é mistério
algum. Pedi-lhe que me arranjasse um pouco de seda. Uma de minhas
empregadas vai me fazer camisas. Você fica para o almoço?
— Não posso — respondeu o coronel. — Tenho um ensaio para o
casamento da minha neta às três horas. Sabia que ela vai se casar com o neto
de Ernst Robbling? Amanhã. Mas aceito um café e conversaremos um
pouco.
— Espere até ver meu quadro.
— Quadro?
— Você vai ver.
O coronel viu e ficou encantado.
— Lindo! Uma verdadeira obra de arte! Não foi você quem fez, pois
não?
Pousando a sacola junto à escrivaninha, Mengele respondeu
alegremente:
— Céus, não, pois se nem estou certo de saber desenhar direito as
cruzes! Mandei vir um homem de avião do Rio.
O coronel voltou-se e fitou-o, surpreso e interrogativo.
— Não se preocupe — tornou Mengele, erguendo tranqüilizadoramente
a mão —, ele teve um acidente na volta.
— Grave, espero — aventou o coronel.
— Muito.
Trouxeram café. O coronel examinou algumas fotografias do Führer e
em seguida sentaram-se no sofá e bebericaram em pequenas xícaras
douradas e brancas de fumegante negror.
— Todos eles instalaram-se em apartamentos — informou o coronel —,
exceto Hessen, que comprou um reboque de acampar. Disse-lhe para dar
notícias uma vez por semana, logo que surgisse alguma coisa. Ele utilizará o
reboque somente até a chegada do mau tempo.
— Preciso das datas em que os homens foram mortos — disse Mengele.
— Para os meus registros.
— Certamente. — O coronel pousou a xícara e o pires sobre a mesa de
café. — Tenho tudo batido a máquina. — Enfiou a mão dentro do casaco.
Mengele pousou a xícara e o pires e pegou a folha dobrada de papel fino
que o coronel lhe entregou. Abriu-a, afastou-a de si, apertando os olhos para
as letras datilografadas. Sorrindo, meneou a cabeça.
— Quatro dentre sete nas datas marcadas! — maravilhou-se. — Não é
sensacional?
— Eles são bons — disse o coronel. — Schwimmer e Mundt já têm os
seus próximos preparados. Farnbach precisou de algumas explicações. Ele é
um tanto perguntador.
— Eu sei — retorquiu Mengele. — Deu-me trabalho quando lhes
transmiti as instruções.
— Não creio que vá dar mais — tornou o coronel. — Passei-lhe uma boa
espinafração.
— Fez bem. — Com um agradável barulhinho cre-pitando, Mengele
dobrou de novo o papel e o deixou no canto da mesa de café, arrumando-o
cuidadosamente na quina. Olhou para o quadro e imaginou as sete cruzes
vermelhas que ia pintar quando o coronel se retirasse. Ergueu a xícara, na
esperança de ver seguido seu exemplo.
— O Coronel Rudel telefonou-me ontem pela manhã
— disse o coronel. — Está na Costa Brava.
— Ah, sim? — Mengele verificou de imediato que o prazer de voar não
fora a única razão para a vinda do coronel. Qual seria? — Como está
passando ele? — indagou, e sorveu seu café.
— Esplendidamente — respondeu o coronel. — Mas um pouco
preocupado. Recebeu uma carta de Günter Wenzler, avisando-o de que
Yakov Liebermann talvez esteja na pista de uma de nossas operações.
Liebermann falou em Heidelberg há duas semanas. Fez à platéia uma
"pergunta hipotética" bastante inusitada. Um amigo de Wenzler, cuja filha
estava lá, disse-lhe que convinha relatar o fato, por via das dúvidas.
— O que Liebermann perguntou exatamente?
O coronel olhou para Mengele por um momento, e disse:
— Por que nós — você e nós — haveríamos de querer matar noventa e
quatro funcionários públicos de sessenta e cinco anos. Uma "pergunta
hipotética".
Mengele encolheu os ombros.
— Então é óbvio que ele não está a par — concluiu.
— Tenho certeza de que ninguém deu a resposta certa.
— Rudel também tem certeza — asseverou o coronel —, mas gostaria de
saber como Liebermann surgiu com a pergunta certa. Você não parece muito
surpreendido.
Mengele sorveu seu café e falou despreocupadamente.
— O americano não estava ouvindo a fita quando o encontramos. Falava
com Liebermann. — Pousou a xícara e sorriu para o coronel. — Estou certo
de que você apurou isso na companhia telefônica ontem à tarde.
O coronel suspirou e inclinou-se na direção de Mengele.
— Por que não nos disse?
— Para ser franco — confessou Mengele —, temi que vocês adiassem a
operação, no caso de Liebermann estar investigando.
— Tem razão, é exatamente o que haveríamos de querer — assentiu o
coronel. — Três ou quatro meses... seria assim tão terrível?
— Poderia modificar completamente os resultados. Acredite-me,
coronel. Pergunte a qualquer psicólogo.
— Então deixaríamos de lado esses homens e cuidaríamos dos outros!
— Fazendo cair em vinte por cento o resultado? Há dezoito homens nos
primeiros quatro meses.
— E não acha que reduziu mais o resultado dessa maneira? — insistiu o
coronel. — Liebermann estará falando apenas a estudantes? Os homens,
nossos homens, poderiam ser presos amanhã! E o resultado reduzido em
noventa e cinco por cento!
— Coronel, por favor — apaziguou Mengele.
— Supondo, é claro, que haja um resultado. Até agora temos apenas sua
palavra quanto a isso, você sabe!
Mengele, sentado em silêncio, respirou profundamente. O coronel
ergueu sua xícara, olhou-a fixamente, e pousou-a de novo.
Mengele suspirou.
— Haverá exatamente o resultado que prometi — assegurou. —
Coronel, pare e pense um momento. Liebermann se preocuparia em fazer
perguntas a estudantes se alguém mais o estivesse ouvindo? Os homens
partiram, não? Cumprindo suas missões? Claro que Liebermann falou com
outros — talvez com todos os promotores e policiais da Europa! Mas
evidentemente não lhe deram atenção. O que mais poderiam fazer? — um
velho nazífobo como ele procurando-os com uma história que há de parecer
louca, uma vez que ele não pode fornecer o motivo que a justifique. Foi com
isso que contei quando tomei minha decisão.
— Não cabia a você tomar essa decisão — retrucou o coronel. — Você
submeteu seis de nossos homens a muito mais perigo do que constou de
nosso pacto.
— E assim fazendo ficou preservado seu enorme investimento, para não
falar no destino da raça. — Mengele levantou-se e foi até a escrivaninha,
tirando um cigarro de uma salva de bronze cheia deles. — Seja como for,
são águas passadas — disse.
O coronel sorveu o café, olhando para as costas de Mengele. Baixou a
xícara, anunciando:
— Rudel queria que eu mandasse chamar os homens hoje.
Mengele voltou-se, tirou o cigarro aceso dos lábios.
— Não acredito nisso — proferiu. O coronel acenou com a cabeça.
— Ele leva suas responsabilidades de oficial muito a sério.
— Ele tem responsabilidades é como ariano!
— Certo, mas ele nunca esteve tão seguro quanto nós de que o projeto
daria resultado. Você sabe disso, Josef. Bom Deus, quanto tempo para que o
convencêssemos!
Mengele permaneceu calado; hostil, em expectativa.
— Disse-lhe praticamente o que você acaba de me dizer — falou o
coronel. — Se os homens deram notícias e tudo corre bem, sem que
Liebermann tenha podido interferir, então por que não deixá-los em ação?
Ele acabou concordando. Mas Liebermann será vigiado de agora em diante
— Mundt encarregou-se disso — e, se houver qualquer sinal de que esteja
interferindo, então terá de ser tomada uma decisão: matá-lo, o que só poderia
complicar ainda mais as coisas, ou então trazer os homens de volta.
— Faça isso e irá tudo por água abaixo — asseverou Mengele. — Tudo
o que consegui. Todo o dinheiro que você gastou em pessoal, equipamento e
distribuição de tarefas. Como ele sequer ousaria pensar nisso? Eu enviaria
seis outros homens se os atuais fossem apanhados. E mais seis. E mais seis!
— Concordo, Josef, concordo — acalmou o coronel. — E gostaria muito
que você tivesse voz ativa na decisão, se ela viesse mesmo a ser tomada.
Voz forte. Mas se Rudel souber que você deixou os homens partirem
sabendo que Liebermann estava avisado... ele há de cortá-lo por completo da
operação. Você nem receberá os relatórios mensais. Por isso, prefiro não lhe
contar. Mas, antes, tenho de obter de você a garantia de que não... tomará
mais decisões sozinho.
— Acerca de quê? Não há mais decisões a tomar, a não ser manter os
homens em operação.
O coronel sorriu.
— Não duvido que você fosse capaz de pular sozinho num avião e sair
atrás de Liebermann.
Mengele tirou uma baforada do cigarro.
— Não seja ridículo — disse. — Sabe que eu não ousaria ir à Europa. —
Voltou-se para a escrivaninha e bateu a cinza numa bandeja.
— Posso ter sua palavra — indagou o coronel — de que não fará coisa
alguma capaz de afetar a operação, sem consultar a Organização?
— É claro que pode — disse Mengele. — Absoluta.
— Então direi a Rudel que é um mistério Liebermann saber das coisas.
Mengele meneou, incrédulo, a cabeça.
— Não posso crer — asseverou — que esse velho idiota — refiro-me a
Rudel, não a Liebermann — seja capaz de malbaratar tanto dinheiro,
juntamente com o destino ariano, só por amor à segurança de seis homens
comuns.
— O dinheiro era apenas uma fração do que dispomos — declarou o
coronel. — Exageramos sua importância a fim de que você mantivesse a
noção dos gastos. Quanto ao destino ariano... bem, como eu já disse, ele
nunca acreditou de fato que o projeto funcionasse. Acho que para ele cheira
um pouco a magia ou feitiçaria. Ele está longe de ser um homem com
mentalidade científica.
— Você seria louco se lhe confiasse a última decisão.
— Atravessaremos a ponte quando a atingirmos — disse o coronel. —
Se a atingirmos. Esperemos que Liebermann pare de falar, mesmo a
estudantes, e você desenhe noventa e quatro cruzes nesse belo quadro. —
Levantou-se. — Acompanhe-me ao avião. — Esticou à frente uma rígida
perna de robô e deu uma passada pesada, cantarolando: — "Lá vem a noiva"
— uma passada! — "Toda de branco" — outra passada! — Que amolação!
Prefiro casamentos simples, e você? Mas experimente dizer isso a uma
mulher.
Mengele levou-o até o avião, acenou quando este decolou e voltou para
casa. Seu almoço estava à espera na sala de jantar, por isso comeu-o, depois
lavou as mãos na pia do laboratório e foi para o escritório. Deu uma boa
sacudidela na lata de esmalte e utilizou a chave de parafuso para abrir-lhe a
tampa. Pôs os óculos e, segurando a lata de vermelho-vivo e o novo pincel
fino, subiu a escadinha.
Molhou as cerdas, raspou-as de encontro à borda da lata, tomou uma
respiração reanimadora e levou o pincel de ponta vermelha até o
quadradinho depois de "Döring — Deutschland — 16/10/74".
A cruz saiu bastante boa: vermelha, reluzente sobre o branco, de bordas
retas e vistosa.
Retocou-a um pouco e pintou uma cruz igual no quadradinho de "Horve
— Dänemark — 18/10/74". E no de "Guthrie — V. St. A. — 19/10/74".
Desceu da escadinha, recuou e estudou através dos óculos as três cruzes.
Sim, elas serviriam.
Subiu novamente na escadinha e pintou cruzes nos quadradinhos de
"Runsten — Schweden — 22/10/74"', "Rausenberger — Deutschland —
22/10/74"', "Lyman — England — 24/10/74", e "Oste — Holland —
27/10/74".
Desceu e deu outra olhada.
Muito bem. Sete cruzes vermelhas.
Mas praticamente nenhum prazer. Maldito Rudel! Maldito Seibert!
Maldito Liebermann! Malditos todos!

Pandemônio foi o que ele encontrou na volta. Glanzer, o senhorio, que


teria dado um magnífico anti-semita não fosse o fato de ser judeu, berrava
acusações a uma Ester pequenina e trêmula, enquanto Max e uma moça
aparvalhada, que Liebermann nunca vira antes, empurravam a escrivaninha
de Lili para o canto junto à porta do quarto. Um pinga-pinga e chape-chape
muito musicais provinham das panelas e tigelas dispostas por toda a parte,
apanhando as gotas de água que caíam das escuras manchas de umidade
espalhadas pelo teto. Uma louça quebrou na cozinha — Oh, droga! — (era
Lili que estava lá), e o telefone tocou.
— Ah-ah! — exclamou Glanzer, voltando-se e apontando. — Aí vem a
grande figura mundial que não se importa com a propriedade do homem
comum. Não arrie essa mala que o chão não agüenta!
— Bem-vindo ao lar — proferiu Max, puxando por uma das
extremidades da escrivaninha.
Liebermann pousou a mala e a pasta. Por se tratar de uma manhã de
domingo, esperava encontrar o apartamento sossegado e vazio.
— Que aconteceu?
— Que aconteceu? — Glanzer avançou em direção a ele, espremendo-se
por entre dois rebordos de escrivaninhas, o rosto bulboso em brasa. — Eu
lhe digo o que aconteceu! Tivemos uma inundação no andar de cima, eis aí!
Você põe peso demais no assoalho, força os canos! Por isso eles arrebentam!
Acha que podem agüentar toda essa carga que você tem aqui?
— Ah, os canos de cima arrebentam e eu levo a culpa?
— Tudo tem ligação! — berrou Glanzer. — O excesso de peso se
propaga! A casa inteira vai desabar por causa do excesso de peso que você
tem aqui!
— Yakov? — Ester estendeu o fone, tapando com a mão o bocal. — Um
homem chamado Von Palmen, de Mannheim. Telefonou na semana passada.
— Uma mecha de cabelos grisalhos sobrava por baixo da sua peruca ruiva.
— Pegue o número que eu telefono para ele.
— Acabo de quebrar a tigela cor-de-rosa — disse Lili, melancolicamente
parada à porta da cozinha. — A favorita de Hannah.
— Fora! — berrou Glanzer, mais alto do que Liebermann, e espalhando
mau hálito. — Todas essas escrivaninhas saem! Isto aqui é um apartamento
domiciliar, não um prédio comercial! E também os fichários, fora!
— Fora você! — berrou Liebermann na mesma altura, a melhor maneira
de lidar com Glanzer, segundo descobrira.
— Vá consertar seu encanamento podre! Este é o meu mobiliário,
escrivaninhas e fichários! Será que o contrato menciona apenas mesas e
cadeiras?
— Você verá no tribunal o que diz o contrato!
— Você é que verá o que vai pagar por esse prejuízo com a água! Saia!
— Liebermann apontou o dedo para a porta.
Glanzer pestanejou várias vezes. Olhou para o chão ao seu lado, como se
ouvisse alguma coisa, olhou para Liebermann, preocupado, acenou
afirmativamente. — Não tenha dúvida de que vou sair — murmurou. —
Antes do desastre.
— Levou seu corpanzil na ponta dos pés em direção à porta aberta. —
Para mim, minha vida é mais preciosa que minha propriedade. — Saiu na
ponta dos pés e fechou cautelosamente a porta.
Liebermann bateu com os pés no chão e exclamou:
— Estou batendo com os pés no chão, Glanzer!
— Despenque por ele! — veio de longe.
— Yakov, não faça isso — disse Max, tocando no braço de Liebermann.
— Corremos esse risco.
Liebermann voltou-se. Olhou em volta, para cima, e deixou escapar um
pesaroso "Ai, ai, ai", mordendo o lábio inferior.
Ester, esticando-se para limpar a parte de cima de um fichário, revelou:
— Aparamos a água logo cedo, não é tão ruim assim. Graças a Deus usei
o forno de manhã. Fiz um bolo de nozes. Quando vi o que estava
acontecendo, chamei Max e Lili. É somente aqui e na cozinha, os outros
cômodos não foram atingidos.
Max apresentou a moça acanhada, que tinha belos olhos pardos. Era a
sobrinha Alix, dele e de Lili, de Brighton, Inglaterra, que passava as férias
com eles. Liebermann apertou-lhe a mão, agradeceu a ajuda, tirou o paletó e
juntou-se ao trabalho.
Enxugaram escrivaninhas e outras peças do mobiliário, substituíram
panelas e tigelas cheias por vazias, passaram vassouras enroladas em toalhas
nos lugares úmidos do teto.
Depois, sentados nas escrivaninhas e na parte disponível do sofá,
tomaram café com bolo. As goteiras tinham decrescido até uma meia dúzia
de pingos lentos. Liebermann falou um pouco sobre a viagem, os velhos
amigos que visitara, as mudanças que notara. Alix, num alemão vacilante,
respondeu a perguntas de Ester sobre seu trabalho como desenhista têxtil.
— Um bocado de contribuições, Yakov — anunciou Max, acenando
solenemente a cabeça grisalha.
— Sempre depois dos dias santos — atalhou Lili.
— Porém, mais neste ano do que no último, querida — asseverou Max, e
para Liebermann: — As pessoas já conhecem o banco.
Liebermann concordou com a cabeça e olhou para Ester.
— Veio alguma coisa para mim da Reuters? Relatórios? Recortes?
— Veio um envelope da Reuters, grande — disse Ester. — Mas nele está
escrito: "Pessoal".
— Relatórios? — indagou Max.
— Falei com Sydney Beynon antes de partir. Sobre a história daquele
rapaz, Koehler. Não havia nada sobre ele, havia?
Eles sacudiram a cabeça.
Ester, levantando-se com a xícara e o pires sobre o prato, observou:
— Não pode ser verdade, é loucura demais. — Foi para a escrivaninha
de Max. Lili levantou-se, recolhendo seus pratos, mas Ester ordenou: —
Deixe tudo que eu limpo. Vá mostrar a cidade a Alix.
Liebermann agradeceu a Max, Lili e Alix, enquanto estes punham os
casacos. Beijou Lili, apertou as mãos de Alix e desejou-lhe felizes férias,
bateu nas costas de Max. Fechando a porta depois que eles saíram, apanhou
a mala e levou-a para o quarto de dormir.
Foi ao banheiro, tomou suas pílulas das doze horas, pendurou o outro
terno no armário, trocou o paletó pelo suéter e os sapatos por chinelos. De
óculos na mão, voltou para a sala de estar, apanhou a pasta e passou,
rodeando e espremendo-se por entre as escrivaninhas, em direção às portas
envidraçadas, para a sala de jantar.
— Vou ficar por aí de olho nas goteiras — disse Ester, da porta da
cozinha. — Quer que ligue para aquele homem de Mannheim?
— Mais tarde — respondeu Liebermann, e foi para a sala de jantar, seu
escritório no momento.
A escrivaninha estava coberta de revistas e pilhas de cartas abertas.
Pousou a pasta, acendeu a lâmpada, pôs os óculos e retirou uma pilha de
cartas de cima de vários envelopes grandes. Encontrou o envelope cinzento
da Reuters, endereçado a mão, recheado. Tantos assim?
Sentando-se, afastou tudo da sua frente, empurrou montes de
correspondência para os lados e para os fundos da escrivaninha. O retrato de
Hannah tombou, revistas desabaram barulhentamente no chão.
Desamarrou o barbante em torno do envelope e rasgou a fita adesiva da
aba. Virando o envelope em cima do mata-borrão verde, sacudiu, puxando
para fora, um montão de recortes de jornais e pedaços arrancados de
teletipos. Vinte, trinta, talvez mais, alguns deles fotocópias, a maioria
retalhos de jornal cortados rapidamente a tesoura. "Mann getötet in
Autounfall." "Padre morto por assaltantes." "Eldsvåda dödar man, 64."
Etiquetas azuis e amarelas, com datas e nomes dos jornais, estavam coladas
a alguns recortes. Uns bons quarenta tópicos ao todo.
Olhou dentro do envelope e encontrou mais dois pequenos recortes e
uma folha de papel em branco que fora enrolada em torno do maço.
"Mantenha-me informado", vinha escrito em caligrafia nítida, no seu
centro. "S. B." Datado de 30 de outubro.
Pôs de lado aquilo, juntamente com o envelope, e, espalhando os
recortes e os pedaços dos teletipos com as duas mãos, ele os expôs a uma
maior visibilidade, uma verdadeira colcha de retalhos de francês, alemão,
inglês, sueco, holandês e idiomas indecifráveis, a não ser por uma palavra ou
outra. "Död" era certamente "tot" e "morto".
— Ester! — chamou.
— Sim?
— Os dicionários para traduzir sueco, holandês, dinamarquês e
norueguês. — Pegou um recorte em alemão: uma explosão numa fábrica de
produtos químicos em Solingen matara um vigia noturno, August Mohr, de
sessenta e cinco anos. Não. Pôs de lado.
Apanhou-o de volta. Não poderia um funcionário público, de baixo
escalão, ter um outro emprego à noite? Pouco provável para alguém de
sessenta e cinco anos, mas possível. A explosão ocorrera à uma da manhã,
no dia anterior ao da reportagem, portanto em 20 de outubro.
A luz de cima acendeu-se, e Ester, atravessando o aposento, disse:
— Devem estar aqui. — Dirigiu-se à mesa de jantar encostada à parede e
leu os lados das caixas de papelão que se encontravam sobre ela. — Não
temos o dinamarquês — observou. — Max utiliza o norueguês.
Liebermann tirou um bloco da gaveta.
— Acho melhor você me dar o francês também.
— Primeiro me deixe encontrar.
Estendeu a mão para a caneta, espetada por entre a correspondência.
Examinando de novo os recortes, escreveu no grande bloco amarelo, depois
de esfregar a ponta da caneta a fim de fazê-la funcionar: "20; Mohr, August;
Solingen", e pôs um ponto de interrogação em seguida.
— Dicionários — anunciou Ester, e abriu as abas de uma das caixas. —
Norueguês, sueco, francês?
— E holandês, por favor. — Empurrou o recorte para a esquerda, onde
iam ficar os possíveis. Procurou o que viera em inglês, sobre o padre,
encontrou-o, passou os olhos e, com uma exclamação de pesar, empurrou-o
para a direita.
Ester entrou, carregando, vacilante, quatro grossos volumes
encadernados em azul. Empurrou a correspondência, para abrir lugar do lado
da escrivaninha.
— Antes estavam todos organizados — lamentou-se, arriando-os sobre a
mesa.
— Vou reorganizá-los. Obrigado.
Ela empurrou o cabelo para dentro da peruca.
— Devia ter pedido a Max para ficar, se pretendia traduzir.
— Não pensei nisso.
— Devo tentar encontrá-lo?
Ele meneou a cabeça, pegando outro recorte em inglês: "Briga termina
em facada mortal".
Ester, olhando aflita os recortes espalhados, indagou:
— Tantos homens assassinados?
— Nem tanto — disse ele, empurrando o recorte para a direita. —
Alguns são acidentes.
— Como vai saber quais os que os nazistas mataram?
— Não sei — tornou ele. — Terei de examinar. — Pegou um recorte em
alemão.
— Examinar?
— Para ver se consigo encontrar um motivo. Olhou-o, de testa franzida.
— Tudo porque um rapaz telefona e depois some?
— Passe bem, Ester querida. Ela afastou-se da escrivaninha.
— No seu lugar, estaria escrevendo artigos para fazer algum dinheiro.
— Escreva que eu os assinarei.
— Quer comer alguma coisa? Ele meneou a cabeça.
Alguns tópicos noticiavam as mesmas mortes dos outros, alguns dos
mortos achavam-se fora da faixa de idade. Havia muitos comerciantes,
fazendeiros, operários industriais aposentados, vagabundos. Muitos foram
mortos por vizinhos, parentes, bandos de jovens desordeiros. Esquadrinhou
os dicionários bilíngües com a sua lente de aumento. Um "makelaar in
onroerende goederen" era um corretor de imóveis, um "tulltjänsteman" era
um funcionário da alfândega. Puxou os impossíveis para a direita, os
possíveis para a esquerda. A maioria das palavras dos recortes em
dinamarquês encontravam-se no dicionário norueguês—alemão.
No final da tarde, juntou o último recorte aos impossíveis.
Havia onze possíveis.
Arrancou a lista deles do bloco e começou uma nova lista, anotando-os
precisamente de acordo com as datas das mortes.
Três haviam morrido em 16 de outubro: Chambon, Hilaire, em Bordéus;
Döring, Emil, em Gladbeck, uma cidade na região de Essen; e Persson, Lars,
em Fagersta, Suécia.
O telefone tocou. Ele deixou Ester atender.
Dois no dia 18: Guthrie, Malcolm, em Tucson...
— Yakov? É Mannheim de novo. Pegou o fone.
— É Liebermann quem fala.
— Alô, Herr Liebermann — disse uma voz masculina. — Como foi de
viagem? Descobriu o motivo dos noventa e quatro assassinatos?
Quedou-se, imóvel, de olhos na caneta em sua mão. Já ouvira aquela voz
antes, mas não conseguia localizá-la.
— Quem é, por favor? — indagou.
— Meu nome é Klaus von Palmen. Ouvi o senhor falar em Heidelberg.
Talvez se lembre de mim. Perguntei-lhe se o problema era realmente
hipotético.
Claro. O rapaz louro de aspecto sagaz.
— Sim, lembro-me de você.
— Alguma de suas platéias terá se saído melhor que a nossa?
— Não voltei a formular a pergunta.
— E não era hipotética, não é verdade?
Teve vontade de dizer que era e desligar, mas um impulso mais forte
apossou-se dele: poder falar abertamente com alguém disposto a acreditar,
ainda que fosse aquele jovem alemão contestador.
— Não sei — admitiu. — A pessoa que me falou a respeito...
desapareceu. Talvez estivesse certa, talvez errada.
— Foi o que suspeitei. Interessaria ao senhor saber que em Pforzheim, a
24 de outubro, um homem caiu de uma ponte e afogou-se? Tinha sessenta e
cinco anos e acabara de se aposentar do serviço postal.
— Era Müller, Adolf — disse Liebermann, olhando na lista dos
possíveis. — Já sei deste e de cerca de mais dez outros: em Solingen,
Gladbeck, Birmingham, Tucson, Bordéus, Fagersta...
— Ah!
Liebermann sorriu, de olhos na caneta, e confessou:
— Tenho uma fonte de informações na Reuters.
— Isso é muito bom! E terá tomado medidas no sentido de descobrir se
será estatisticamente normal que onze funcionários públicos, de sessenta e
cinco anos, tenham tido morte violenta dentro de — qual é mesmo? — um
período de três semanas?
— Houve outros — tornou Liebermann — que foram mortos por
parentes. E ainda outros, estou certo, que a Reuters deixou escapar. E dentre
todos, creio que apenas seis no máximo poderão ser... aqueles que temo. Seis
acima do normal comprovarão alguma coisa? E, além do mais, quem
organiza as estatísticas? Mortes violentas em dois continentes, por idade e
ocupação. Deus, talvez, haveria de saber o que é "estatisticamente normal".
Ou uma dúzia de companhias de seguros reunidas. Não perderia tempo
escrevendo para elas.
— Falou com as autoridades?
— Foi você, não, quem assinalou que elas não estão tão interessadas na
caça aos nazistas hoje em dia? Falei, mas não deram ouvidos. Pode-se, na
verdade, culpá-las quando tudo o que pude adiantar foi: "Talvez alguns
homens sejam mortos, e não sei por quê"?
— Então precisamos descobrir por que, e a maneira de fazê-lo será
examinando alguns desses casos. Teremos de investigar as circunstâncias
das mortes, e, mais importante ainda, os caracteres dos homens e seus
antecedentes.
— Obrigado — disse Liebermann. — Planejei tudo isso por mim
mesmo, quando eu ainda era "eu" e não "nós".
— Pforzheim fica a menos de uma hora daqui de automóvel, Herr
Liebermann. E sou um estudante de direito, o terceiro colocado em minha
classe, suficientemente apto para fazer observações e formular perguntas
pertinentes.
— Estou a par das tais perguntas pertinentes, mas na verdade você nada
tem a ver com isso, meu jovem.
— Ah, é? E por quê? Terá o senhor de algum modo adquirido direitos
exclusivos de se opor ao nazismo? Em meu país?
— Herr von Palmen.
— O senhor apresentou o problema em público; devia, então, ter nos
informado que ele era de sua exclusiva propriedade.
— Ouça-me. — Liebermann meneou a cabeça: que alemão! — Herr von
Palmen, a pessoa que apresentou o problema a mim era um rapaz como você.
Mais amável e respeitador, mas em outros pontos não tão diferente. E quase
com toda a certeza ele foi assassinado. Eis por que não lhe diz respeito, por
se tratar de assunto para profissionais e não para amadores. E também
porque você seria capaz de complicar tanto as coisas que quando eu
chegasse a Pforzheim a missão se teria tornado ainda mais difícil.
— Eu não vou complicar as coisas e tentarei evitar ser assassinado. Quer
que lhe telefone e diga o que for descobrindo, ou guardarei as informações
para mim mesmo?
Liebermann teve um olhar feroz, tentando encontrar uma maneira de
detê-lo, mas estava claro que não havia.
— Pelo menos você sabe que informações procurar? — indagou.
— Claro que sim. Para quem Müller deixou o seu dinheiro, quais os seus
parentes, quais eram suas atividades políticas e militares...
— Onde nasceu...
— Eu sei. Todos os pontos sugeridos aquela noite.
— E se ele poderia ter tido qualquer contato com Mengele, fosse durante
a guerra ou imediatamente depois. Onde serviu? Teria alguma vez estado em
Günzburg?
— Günzburg?
— Onde Mengele morava. E procure não agir como um promotor. É
mais fácil apanhar moscas com mel do que com vinagre.
— Posso ser encantador quando me apraz, Herr Liebermann.
— Estou ansioso por uma demonstração. Dê-me seu endereço, por favor.
Vou enviar-lhe retratos de três dos homens que se supõe estejam cometendo
os assassinatos. São fotografias antigas, de trinta anos atrás, e pelo menos
um dos homens fez cirurgia plástica, mas poderão ser úteis, caso alguém
aviste estranhos nas proximidades. Vou enviar-lhe também uma carta
declarando que trabalha para mim. Ou prefere enviar uma para mim,
declarando que estou trabalhando para você?
— Herr Liebermann, tenho a maior admiração e respeito pelo senhor.
Acredite-me, estou verdadeiramente orgulhoso de poder lhe ser útil de
alguma forma.
— Está bem, está bem.
— Não foi encantador? Está vendo?
Liebermann tomou o endereço de Palmen e o número do telefone, deu-
lhe mais algumas indicações e desligou.
Um "nós". Mas talvez o rapaz aprovasse, não havia dúvida de que era
bastante inteligente.
Acabou de fazer a segunda lista, examinou-a por alguns minutos, em
seguida abriu a última gaveta da escrivaninha, à esquerda, e retirou a pasta
de fotografias que obtivera dos arquivos. Pegou uma de cada, de Hessen,
Kleist e Traunsteiner — rapazes em uniformes das ss, sorridentes ou
carrancudos, em instantâneos ampliados, de granulação grosseira. Quase
imprestáveis, mas era o melhor que havia.
— Ester! — chamou, pondo-os sobre a escrivaninha. Hessen sorria para
ele, de cabelos escuros e ar de lobo, abraçado aos pais radiantes. Liebermann
virou de costas a fotografia e por baixo do histórico mimeografado colado no
verso escreveu: "Cabelos prateados atualmente. Fez operação plástica".
— Ester?
Apanhou as fotografias, levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta.
Ester dormia sentada à sua escrivaninha, a cabeça sobre os braços
dobrados. Uma panela de água jazia junto ao seu cotovelo.
Chegou-se na ponta dos pés, deixou as fotografias no canto da
escrivaninha, e passou na ponta dos pés pela sala de estar, entrando no
quarto de dormir.
— Então aonde é que vai? — perguntou Ester. Surpreso por ela haver
acordado e perguntar, respondeu
de onde estava:
— Ao banheiro.
— Pergunto aonde é que vai. Investigar.
— Ah! — fez ele. — A um lugar perto de Essen e Gladbeck. E a
Solingen. Está de acordo?

Farnbach parou do lado de fora do hotel. Admirando o luminoso


crepúsculo azul-violeta, que o recepcionista lhe assegurara que ia
permanecer assim durante horas, enfiou as luvas, levantou a gola de peles e
agasalhou-se melhor com o seu gorro, ajustando-o sobre as orelhas e a nuca.
Storlien não era tão frio quanto temera, mas o suficiente. Graças a Deus,
aquela era a sua missão mais setentrional de todas. O Brasil fizera dele uma
orquídea.
— Senhor? — bateram-lhe no ombro.
Voltou-se e um homem de chapéu preto, mais alto que ele, mostrou um
cartão de identidade na palma da mão.
— Detetive-Inspetor Lofquist. Pode me conceder uma palavra, por
favor?
Farnbach pegou o cartão, no seu envoltório de plástico e couro. Fingiu
ter maior dificuldade de lê-lo ao crepúsculo do que de fato acontecia, de
modo a proporcionar-se pelo menos aquele momento para pensar. Devolveu
o cartão ao Detetive-Inspetor Lars Lennart Lofquist e, antepondo um sorriso
amável (assim esperava) ao susto e confusão que iam dentro dele,
respondeu:
— Sim, claro, inspetor. Estou aqui apenas desde o meio-dia. Estou certo
de ainda não ter infringido lei alguma.
Sorridente também, Lofquist retorquiu:
— Estou certo de que não. — Guardou o cartão dentro do casaco de
couro preto. — Podemos caminhar enquanto falamos, se prefere.
— Ótimo — assentiu Farnbach. — Vou dar uma espiada na cachoeira.
Parece que é tudo o que temos a fazer por aqui.
— Sim, nesta época do ano. — Começaram a atravessar o pátio calçado
de pedras, à frente do hotel. — As coisas ficam mais animadas em junho e
julho — assegurou Lofquist. — Temos então o sol a noite inteira e bom
número de turistas. No fim de agosto, no entanto, até o centro da cidade fica
deserto depois das sete ou oito, e aqui então é praticamente um cemitério. O
senhor é alemão, não?
— Sim — assentiu Farnbach. — Meu nome é Busch. Wilhelm Busch.
Sou vendedor. Há alguma coisa de errado, inspetor?
— Não, nada. — Passaram por um portão com um arco por cima. —
Fique descansado — tornou Löfquist. — Isto nada tem de oficial.
Viraram para a direita e caminharam lado a lado ao longo do rebaixo da
estrada de cascalho. Farnbach sorriu, observando:
— Mesmo um inocente se sente culpado quando um detetive-inspetor
bate em seu ombro.
— Creio que sim — acedeu Löfquist. — Desculpe-me se o fiz
preocupar-se. Não, é que simplesmente gosto de manter certa vigilância
sobre os estrangeiros. Alemães especialmente. É tão... instrutivo conversar
com eles! O que o senhor vende, Herr Busch?
— Equipamentos de mineração.
— Ah!
— Sou o representante sueco de Orenstein e Koppel, de Lübeck.
— Não creio ter ouvido falar deles.
— São bastante importantes no ramo — asseverou Farnbach. — Estou
com eles há catorze anos. — Olhou para o detetive caminhando à sua
esquerda. O nariz arrebitado e o queixo pontudo do homem fizeram-no
lembrar-se de um capitão sob cujas ordens servira nas ss, o qual costumava
iniciar os interrogatórios exatamente com aquela conciliatória besteira de
"fique descansado, isto nada tem de oficial". E depois vinham as acusações,
as exigências, as torturas.
— O senhor é de lá? — indagou Löfquist. — De Lübeck?
— Não, sou natural de Dortmund, e atualmente moro em Reinfeld, que
fica perto de Lübeck. Isto é, quando não estou na Suécia. Tenho um
apartamento em Estocolmo. — O que este filho da puta sabe, perguntava a si
mesmo Farnbach, e como, em nome dos céus, veio a descobrir? Será que a
operação inteira fracassara? Estariam Hessen, Kleist e os outros enfrentando
a mesma situação agora, ou apenas ele não fora bem sucedido?
— Vire aqui — aconselhou Löfquist, apontando em direção a uma trilha
para dentro da floresta, à direita. — Conduz a um melhor ponto de
observação.
Penetraram pelo caminho estreito e seguiram montanha acima, através de
sua obscuridade quase noturna. Farnbach desabotoou a parte superior do
casaco, preocupado em ter a arma pronta para sacar, se o pior viesse a
acontecer.
— Passei algum tempo na Alemanha — disse Löfquist. — A propósito,
embarquei em Lübeck, certa ocasião.
Ele passara a falar alemão, e por sinal esplêndido. Farnbach,
embaraçado, pensou que talvez não houvesse mesmo nada com que se
preocupar; era possível, afinal de contas, que Lennart Löfquist quisesse
apenas uma oportunidade para usar o seu alemão. Seria esperar demais.
— Seu alemão é muito bom — observou, também em alemão. — Por
isso é que gosta de falar conosco, para ter uma oportunidade de usá-lo?
— Não falo com todos os alemães — retorquiu Löfquist, a voz carregada
de riso reprimido. — Somente com antigos cabos que engordaram e usam o
nome de "Busch", ao invés de "Farnstein"!
Farnbach parou e encarou-o.
Sorrindo, Löfquist tirou o chapéu. Levantou a cabeça e se colocou mais
sob a luz. E rindo agora, virou-se para Farnbach e estendeu um dedo à guisa
de bigode.
Farnbach estava assombrado.
— Oh, meu Deus! — arquejou. — Pensei no senhor um segundo atrás!
Creio que eu... Meu Deus! Capitão Hartung!
Os dois apertaram-se as mãos entusiasticamente, e o capitão, rindo,
abraçou Farnbach e bateu-lhe nas costas. Em seguida enterrou o chapéu na
cabeça, agarrou os ombros de Farnbach com as duas mãos e arreganhou os
dentes num sorriso.
— Que alegria ver de novo um rosto amigo! — exclamou. — Sou capaz
até de chorar, com os diabos!
— Mas... como pode ser isso? — indagou Farnbach, agora inteiramente
confuso. — Estou... estarrecido!
O capitão riu.
— Você pode ser Busch — disse. — Por que não posso ser Löfquist?
Deus meu, peguei sotaque! Escute-me só, agora não passo de um sueco
fodido!
— E é mesmo detetive?
— Sou mesmo.
— Céus, chegou a me assustar de fato, senhor.
O capitão inclinou a cabeça, pesaroso, batendo no ombro de Farnbach.
— É, ainda tememos que o machado possa cair sobre nós, hein,
Farnstein? Mesmo depois de todos esses anos. Por isso é que fico de olho
nos estrangeiros. De vez em quando ainda sonho que sou arrastado a
julgamento!
— Não posso acreditar que seja o senhor! — tornou Farnbach, ainda não
refeito. — Acho que nunca tive surpresa igual!
Continuavam percorrendo o caminho.
— Nunca esqueço um rosto, nunca esqueço um nome. — O capitão
pousou o braço nos ombros de Farnbach. — Avistei-o parado junto ao seu
carro, no posto de gasolina de Krondikesvägen. "Aquele ali de casaco
elegante é o Cabo Farnstein", pensei. "Aposto cem coroas."
— É "Farnbach", senhor, e não "stein".
— Ah, sim? Bem, "stein" é bastante perto, não, depois de trinta anos?
Com todos os homens que comandei? Está claro que tinha de estar
absolutamente certo antes de lhe dirigir a palavra. Foi sua voz que me deu
confiança. Ela não mudou nada. E deixe de lado o "senhor", viu? Embora
reconheça que é agradável ouvi-lo de novo.
— Por que cargas d'água veio parar aqui? — indagou Farnbach. — E
ainda por cima como detetive!
— É uma história em nada extraordinária — disse o capitão, tirando o
braço do ombro de Farnbach. — Tinha uma irmã casada com um sueco,
numa fazenda de Skåne. Após ser capturado, fugi de um campo de
internamento, embarquei num navio — de Lübeck a Trelleborg, a travessia a
que me referi — e fui me esconder com eles. Ele não gostou muito da coisa.
Lars Löfquist. Um bom filho da puta. Maltratava a pobre Eri, uma coisa
horrível. Após um ano e tanto, eu e ele tivemos uma grande briga e matei-o
acidentalmente. Pois bem, tratei de enterrá-lo bem fundo e tomei o seu lugar!
Éramos fisicamente do mesmo tipo, portanto seus documentos me serviram,
e quanto a Eri, ficou satisfeita em ver-se livre dele. Quando aparecia alguém
que o conhecera, eu punha atadura no rosto e ela explicava-lhe que uma
lâmpada explodira e eu não podia falar muito. Passando uns dois meses,
vendemos a fazenda e viemos para o norte. Primeiro para Sundsvall, onde
trabalhamos numa fábrica de conservas, o que foi terrível. E três anos
depois, aqui para Storlien, onde havia lugares na polícia e empregos para Eri
nas lojas. E eis tudo. Gostei do trabalho na polícia. Que melhor maneira de
se saber se procuravam por mim? Esse rugido que está ouvindo é a
cachoeira. Fica logo depois da curva. E agora quanto a você, Farnstein?
Farnbach! Como se transformou em Herr Busch, o próspero vendedor? Este
casaco deve ter custado mais do que ganho num ano inteiro!
— Não sou "Herr Busch" — retrucou Farnbach asperamente. — Sou o
"Sr. Paz", de Porto Alegre, Brasil. Busch é postiço. Estou aqui a serviço da
Organização dos Camaradas, por sinal um serviço danado de maluco.
Agora foi a vez de o capitão parar e arregalar os olhos, atônito.
— Quer dizer então... que é verdade? A Organização existe? Não é só...
história de jornais?
— É verdade, sim — assegurou Farnbach. — Eles me ajudaram a
estabelecer-me lá, arranjaram-me um bom emprego...
— E estão aqui agora? Na Suécia?
— Eu estou aqui agora. Eles ainda estão lá, trabalhando com o Dr.
Mengele para "cumprir o destino ariano". Pelo menos é o que me dizem.
— Mas... isso é maravilhoso, Farnstein! Meu Deus, é a notícia mais
emocionante que eu... Não acabamos! Não seremos derrotados! O que está
acontecendo? Pode me dizer? Seria uma violação de ordens dizer a um
oficial das ss?
— Fodam-se as ordens, estou farto delas — retorquiu Farnbach. Fitou
um momento o surpreso capitão, em seguida anunciou: — Estou aqui em
Storlien para matar um professor. Um velho que não é nosso inimigo e que
de forma alguma pode influir no rumo da história. Mas matá-lo, e a uma
série de outros, constitui uma "operação sagrada" que de algum modo nos há
de levar de volta ao poder. É o que diz o Dr. Mengele. — Voltou-se e
afastou-se pelo caminho acima.
Confuso, o capitão observou-o ir-se, em seguida precipitou-se, furioso,
atrás dele.
— Com os diabos, qual é a idéia? — inquiriu. — Se não pode me dizer,
fale! Não me dê... Era tudo conversa? Brincadeira idiota que está fazendo
comigo, Farnbach!
Farnbach, respirando forte pelas narinas, atingiu um pequeno balcão de
rocha saliente e, agarrando a sua grade de ferro com as duas mãos,
contemplou, rancoroso, um largo lençol de água reluzente que se despejava
torrencialmente à sua esquerda. Acompanhou com os olhos a descida do
cintilante lençol de água, até a sua ruidosa bacia de espuma, e cuspiu nela.
O capitão fê-lo voltar-se com um puxão.
— Foi uma brincadeira idiota esta — berrou, alto e sonoro, contra o
trovejar da cachoeira. — Cheguei a acreditar em você!
— Não foi brincadeira — tornou Farnbach. — É verdade, cada palavra!
Matei um homem em Göteborg duas semanas atrás — um professor
também, Anders Runstein. Ouviu falar nele alguma vez? Nem eu. Nem
ninguém. Um zero completo, aposentado, de sessenta e cinco anos. E
colecionador de garrafas de cerveja, imagine! Gabou-se comigo das suas
oitocentas e trinta garrafas de cerveja! Eu... dei-lhe um tiro na cabeça e
esvaziei-lhe a carteira.
— Göteborg — proferiu o capitão. — Sim, lembro-me da notícia!
Farnbach virou-se para a grade, segurou-a e fitou o paredão de rocha do
outro lado do trovejante abismo sombrio.
— E sábado vou matar outro — anunciou. — Não faz sentido! É
loucura! Como seria possível... resultar em alguma coisa?
— Existe data certa?
— Tudo é extremamente preciso.
O capitão colocou-se ao lado de Farnbach.
— E as suas ordens lhe foram transmitidas por um oficial graduado?
— Por Mengele, com aprovação da Organização. O Coronel Seibert
apertou nossas mãos na manhã em que partimos do Brasil.
— Não foi só você?
— Há outros homens em outros países. Agarrando o braço de Farnbach,
o capitão exclamou, indignado:
— Então não me deixe ouvi-lo de novo dizer: "Fodam-se as ordens!"
Você é um cabo, a quem foi conferido um dever, e se os seus superiores
decidiram não lhe revelar o motivo é porque têm razões para isso também.
Deus do céu, você um homem das ss, proceda como um deles. "Minha honra
é a lealdade." Estas palavras deviam estar gravadas na sua alma!
Voltando-se e encarando o capitão, Farnbach proferiu:
— A guerra acabou, senhor.
— Não! — gritou o capitão. — Não se a Organização estiver viva e
operando. Pensa que o seu coronel não sabe o que está fazendo? Meu Deus,
homem, se existir uma possibilidade em cem de o Reich ser restaurado,
como deixaria você de fazer tudo a seu alcance para colaborar neste sentido?
Pense nisso, Farnbach! O Reich restaurado! Poderíamos voltar à pátria de
novo! Como heróis! Para uma Alemanha de ordem e disciplina no meio
deste indisciplinado mundo fodido!
— Mas como pode a matança de homens inofensivos...
— Quem é esse professor? Aposto como não é tão inofensivo quanto
você pensa! Quem é ele? Lundberg? Olafsson? Quem?
— Lundberg.
O capitão calou-se por um momento.
— Bem, admito que parece inofensivo, mas como saberemos o que está
realmente maquinando, hein? E como saberemos o que o seu coronel sabe?
E o doutor! Vamos, homem, aprume a espinha e cumpra o seu dever! "Uma
ordem é uma ordem."
— Ainda que não faça sentido?
O capitão fechou os olhos, respirou fundo. Abriu os olhos, olhou
ferozmente para Farnbach.
— Sim — assentiu. — Mesmo quando não faz sentido. Faz sentido para
os seus superiores, do contrário não lhe teria sido dada. Meu Deus, há
esperança ainda, Farnbach. Será que resultará em nada, devido à sua
fraqueza?
Franzindo a testa, contrafeito, pôs-se ao lado do capitão. Este voltou-se,
a fim de encará-lo.
— Você não terá a mínima dificuldade — disse. — Vou mostrar-lhe
Lundberg. Posso até contar-lhe seus hábitos. Meu filho foi aluno dele
durante dois anos. Conheço-o bem.
Farnbach ajustou o gorro. Sorriu ironicamente e perguntou:
— Os Löfquist... têm um filho?
— Sim, por que não? — O capitão fitou-o, enrubescendo em seguida. —
Ah — proferiu, e acrescentou friamente: — Minha irmã morreu em 57.
Depois, eu casei. Você tem uma mente imunda.
— Perdoe-me — disse Farnbach. — Desculpe. O capitão enfiou as mãos
nos bolsos.
— Bem! — exclamou, ainda ruborizado. — Espero ter conseguido
incutir-lhe nova vitalidade.
Farnbach assentiu.
— A restauração do Reich. Só nisso é que tenho de pensar.
— E os seus oficiais e colegas soldados — tornou o capitão. — Eles
dependem de você para cumprir sua missão. Não vai deixá-los
desmembrados, hein? Vou ajudá-lo com Lundberg. Estou de serviço no
sábado, mas trocarei com um dos homens. Não há problema.
Farnbach meneou a cabeça.
— Não será Lundberg — proferiu.
Investiu, as mãos enluvadas empurrando o peito de couro negro.
O capitão, um olho arregalado debaixo do chapéu, caiu para trás, por
cima da grade, soltou as mãos do casaco e agitou braçadas no ar. Girando de
cabeça para baixo, despencou em direção à bacia de espuma.
Farnbach debruçou-se sobre a grade e olhou, pesaroso, para baixo.
— E não terá que ser no sábado — murmurou.

Descendo do avião, da linha Frankfurt—Essen, no Aeroporto de Essen-


Mülheim, Liebermann verificou com surpresa que se sentia muito bem. Não
diria esplendidamente, mas sem nada de péssimo, pois péssimo foi como se
sentira das duas outras vezes em que pisara o Ruhr. Dali é que viera tudo: as
armas, os tanques, os aviões, os submarinos. Aquele lugar fora o arsenal de
Hitler, e o seu manto de névoa parecera a Liebermann (em 59 e de novo em
66) um sinal, não de indústria de tempo de paz, mas de culpabilidade de
guerra. Uma mortalha a impedir o sol, mais se diria estendida lá de cima do
que erguida de baixo. Mergulhando nela, sentira-se deprimido e desalentado,
perseguido pelo passado. Péssimo.
Preparara-se para a mesma reação desta vez, mas não, sentia-se muito
bem. A neblina era apenas neblina, em nada diferente da de Manchester ou
Pittsburgh, e nada havia que o estivesse perseguindo. Ao contrário, era ele
— num táxi Mercedes novo, serenamente veloz — quem estava
perseguindo. E já era tempo. Quase dois meses atrás, ouvira de São Paulo a
extravagante história de Barry Koehler, e sentira o ódio por Mengele
acometê-lo. E agora, finalmente, estava agindo, dirigindo-se a Gladbeck, a
fim de fazer perguntas a respeito de Emil Döring, de sessenta e cinco anos,
"até pouco tempo atrás pertencente ao quadro de pessoal da Comissão de
Transportes Públicos de Essen". Teria sido assassinado? Estaria ligado de
alguma forma a homens em outros países? Haveria uma razão para que
Mengele e a Organização dos Camaradas quisessem matá-lo? Se realmente
noventa e quatro homens deviam morrer, havia uma possibilidade em três de
Döring ter sido o primeiro. Hoje à noite poderia saber.
Mas... e se a Reuters deixasse escapar alguns dos possíveis de 16 de
outubro? A possibilidade poderia realmente ser uma em quatro ou cinco. Ou
seis. Ou dez. "Não pense nisso. Continue se sentindo bem."
— Ele entrou numa passagem para se aliviar — explicou o Inspetor-
Chefe Haas, no seu sotaque gutural do norte da Alemanha. — Azar o dele. O
lugar errado na hora errada. — Era um homem de aspecto severo, de quase
cinqüenta anos, rosto corado e picado de bexigas, os olhos azuis próximos; o
cabelo louro quase acabara de todo. Suas roupas eram elegantes, sua mesa
arrumada, seu gabinete limpo. Suas maneiras para com Liebermann foram
corteses. — Foi toda uma parte da parede do terceiro andar que desabou
sobre ele. O mestre-de-obra disse que alguém deve tê-la abalado com uma
alavanca, mas é claro que ele haveria de dizer isso, não? nada se pôde
provar, pois a primeira coisa que fizemos, naturalmente, após retirar Döring
dos escombros, foi usar alavancas nós mesmos, a fim de derrubar tudo o que
ainda ameaçasse ruir. Pareceu-nos um acidente verdadeiro. E assim era,
conforme declarado. Os seguradores dos demolidores já fizeram um acordo
com a viúva. Se houvesse suspeita de assassinato, pode ficar certo de que
não teriam tido tanta pressa.
— Mas ainda assim — disse Liebermann — poderia ter sido assassinato.
— Depende de que tipo quer dizer — retorquiu Haas. — Alguns
vagabundos ou desordeiros poderiam estar zanzando pelo edifício, sim.
Vêem então um homem entrar numa das passagens e resolvem ter alguma
mórbida distração. Sinto, isso é concebível. Um pouco. Mas um assassinato
com um motivo mais normal, dirigido especialmente contra Herr Döring?
Não, isso não é concebível. Como poderia alguém que o estivesse seguindo
ter chegado ao terceiro andar e soltado com uma alavanca toda uma parte da
parede no curto tempo em que ele se encontrava na passagem? Ele estava no
ato de urinar quando morreu, e tomara duas cervejas, e não duzentas. —
Haas sorriu.
— O trabalho de soltar a parede pode ter sido feito com antecedência —
aventou Liebermann. — Um homem na expectativa, pronto a dar o empurrão
final, e outro, junto a Döring, de algum modo o persuade a... ir para o lugar
certo.
— Como? "Por que não pára e dá uma mijada, meu amigo? Bem ali,
naquele X que alguém pintou?" E ele saiu do bar sozinho. Não, Herr
Liebermann — falou Haas com determinação —, já vi casos semelhantes;
pode estar certo de que foi acidente. Assassinos não chegam a tais extremos.
Escolhem as maneiras simples: atiram, apunhalam, golpeiam. O senhor sabe.
— A menos que tenham muitos assassinatos a cometer, e queiram que
todos... sejam diferentes... — murmurou Liebermann, pensativo.
Haas encarou-o com os olhos apertados.
— Muitos assassinatos? — indagou.
— O que o senhor quis dizer há pouco com "já vi casos semelhantes"?
— redargüiu Liebermann.
— A irmã de Döring esteve aqui no dia seguinte, berrando para que eu
prendesse Frau Döring e um homem chamado Springer. É alguém... que lhe
interessa? Wilhelm Springer?
— Talvez — disse Liebermann. — Quem é ele?
— É músico. Amante de Frau Döring, segundo a irmã. Ela era muito
mais jovem do que Döring. Bonita, também.
— Que idade tem Springer?
— Trinta e oito, trinta e nove. Na noite do acidente, substituía alguém na
orquestra da ópera de Essen. Creio que isso o elimina, não acha?
— Pode me dizer alguma coisa sobre Döring? — indagou Liebermann.
— Quais eram seus amigos? A que organizações pertencia?
Haas meneou a cabeça.
— Disponho apenas das informações básicas. — Virou um papel na
pasta aberta à sua frente. — Vi-o algumas vezes, mas não cheguei a
conhecê-lo. Mudaram-se para cá somente há um ano. Aqui temos: sessenta e
cinco anos, um metro e setenta, oitenta e seis quilos... — Olhou para
Liebermann. — Ah, uma coisa que talvez lhe interesse: ele tinha uma arma.
— Ah, sim? Haas sorriu.
— Uma peça de museu, uma Mauser obsoleta. Não havia sido disparada,
limpa ou lubrificada, Deus sabe há quantos anos.
— Estava carregada?
— Sim, mas provavelmente aquilo ia explodir na mão dele se tentasse
dispará-la.
— Poderia me dar o endereço e o número do telefone de Frau Döring?
— solicitou Liebermann. — E os de sua irmã? E o endereço do bar? Com
isso irei embora. — Chegou-se mais para a frente no assento e desceu a mão
para pegar a pasta.
Haas escreveu num bloco de memorando, copiando de um formulário
datilografado na pasta.
— Posso perguntar — indagou — como o senhor chegou a se interessar
por isso? Döring não era um "criminoso de guerra", era?
Liebermann olhou para Haas, que escrevia atarefada-mente, e disse:
— Não, ao que sei ele não era criminoso de guerra. Pode ter tido contato
com algum. Estou investigando um boato. Provavelmente dará em nada.
Ao homem do Bar Lorelei ele declarou:
— Estou investigando a pedido de um amigo dele, em cuja opinião o
desabamento não foi acidental.
Os olhos do homem do bar arregalaram-se.
— Não me diga! O senhor insinua que alguém, de propósito...? Oh! meu
Deus! — Era um homem baixo, calvo, com um bigode de pontas enceradas.
Um escudo amarelo com uma cara risonha sorria em sua lapela vermelha.
Não perguntou o nome de Liebermann, nem este o forneceu.
— Era freguês habitual?
O homem do bar franziu a testa e acariciou o bigode.
— Humm, assim, assim. Não de todas as noites, mas de uma vez ou duas
por semana. Às vezes vinha à tarde.
— Constou-me que naquela noite ele saiu sozinho.
— É verdade.
— Mas estava com alguém antes de sair?
— Estava sozinho, aí mesmo onde o senhor está agora. Talvez no
assento do lado. E saiu apressado.
— Ah, sim?
— Tinha troco a receber, deu oito marcos e meio para uma conta de um e
meio, mas não esperou por ele. Dava boas gorjetas, mas não tanto assim.
Pensei devolver-lhe na próxima vez em que viesse.
— Disse-lhe alguma coisa enquanto bebia? O homem do bar sacudiu a
cabeça.
— Não era uma noite em que eu pudesse parar para conversar. Deram
um baile na escola comercial — apontou por cima do ombro de Liebermann
— e ficamos repletos, das oito horas em diante.
— Ele estava esperando alguém — informou um homem na extremidade
do bar, um velho de cara redonda, de chapéu-coco e um sobretudo surrado
abotoado até em cima. — Não tirava os olhos da porta, à espera da entrada
de alguém.
— Conhecia Herr Döring? — indagou Liebermann.
— Muito bem — respondeu o velho. — Fui ao enterro. Foi tão pouca
gente! Fiquei surpreso. — Voltou-se para o homem do bar. — Sabe quem
deixou de ir? Ochsenwalder. Fiquei espantado. Que compromisso teria assim
tão importante? — Segurou a caneca com as duas mãos e bebeu.
— Com licença — disse o homem do bar a Liebermann, e dirigiu-se à
outra extremidade do salão, onde alguns homens se sentaram.
Liebermann levantou-se e, levando o seu suco de tomate e a pasta, foi
sentar-se junto do velho, no canto do bar mais próximo de onde estava.
— Geralmente ele se sentava conosco — tornou o velho, limpando a
boca com o dorso da mão —, mas aquela noite estava sozinho, ali no meio,
de olho na porta. Esperando alguém, olhando as horas. Apfel disse que
talvez fosse o vendedor da noite anterior. Como falava, esse Döring. Para ser
franco, não lamentávamos quando não estava por perto. Mas podia pelo
menos ter vindo dar um alô, não é verdade? Agora, não me entenda mal:
gostávamos dele, e não apenas porque às vezes pagava a despesa. Mas é que
repetia sempre as mesmas histórias. Eram boas histórias, mas quantas vezes
se agüenta ouvir? Sempre as mesmas histórias, sobre como havia sido mais
esperto que as outras pessoas.
— E estava contando-as para um vendedor na noite anterior? — indagou
Liebermann.
O velho assentiu.
— De material de medicina. Primeiro, conversou com todos nós,
perguntando a respeito da cidade; depois juntou-se a Döring. Döring falando
e ele rindo. Na primeira vez que a gente ouvia, as histórias eram boas.
— Isso mesmo, eu tinha esquecido — disse o homem do bar, que havia
retornado. — Döring esteve aqui na noite anterior ao acidente. Não era
habitual nele, duas noites em seguida.
— Sabe a idade da mulher dele? — indagou o velho.
— Pensei que era uma filha, mas era a mulher, a viúva.
Liebermann perguntou ao homem do bar:
— Lembra-se do vendedor com quem ele conversava?
— Não sabia que era vendedor — disse o homem do bar —, mas me
lembro. Tinha um olho de vidro e um jeito de estalar os dedos que me irritou
muito; era como se eu já devesse estar lá há dez minutos.
— Que idade ele tinha?
O homem do bar acariciou o bigode e aguçou uma de suas pontas.
— Uns cinqüenta anos, diria. Talvez cinqüenta e cinco. — Olhou para o
velho. — Não acha?
— Por aí — confirmou o velho.
Abrindo a pasta no colo, Liebermann informou:
— Tenho alguns retratos. Foram tirados há muito tempo, mas será que
poderiam dar uma olhada neles e dizer se algum dos homens aí poderia ser o
vendedor?
— Com prazer — disse o homem do bar, aproximando-se. O velho
mudou de lugar.
Retirando as fotos, Liebermann perguntou ao velho:
— Ele deu o nome?
— Creio que não. Se deu, não me lembro. Mas sou bom fisionomista.
Liebermann pôs de lado o suco de tomate e, girando as fotos, colocou-as
no balcão, separando as três. Aproximou-as do velho e do homem do bar.
Eles se debruçaram sobre as fotos brilhantes, o velho levando a mão ao
chapéu-coco.
— Ponham mais trinta anos — explicou-lhes Liebermann, observando.
— Trinta e cinco.
Eles ergueram a cabeça, fitando-o cautelosamente, ressentidos. O velho
virou-se.
— Não sei — retrucou. — E pegou a sua caneca.
O homem do bar, olhando para Liebermann, ponderou:
— O senhor não pode nos mostrar retratos de... soldados jovens e esperar
que reconheçamos um homem de cinqüenta e cinco anos que vimos um mês
atrás.
— Três semanas atrás — emendou Liebermann.
— Mesmo assim. O velho bebeu.
— Esses homens são criminosos — disse-lhes Liebermann. — São
procurados pelo seu governo.
— Nosso governo — tornou o velho, descansando a caneca sobre a sua
marca úmida. — Não o seu.
— Isso é verdade — assentiu Liebermann. — Sou austríaco.
O homem do bar afastou-se. O velho de cara redonda observou-o ir-se.
Liebermann, abrindo as mãos sobre as fotos, inclinou-se, reiterando:
— Esse vendedor talvez tenha assassinado o seu amigo Döring.
O velho fitou a caneca, de lábios franzidos. Girou para o seu lado a asa
da caneca.
Liebermann fitou-o com pesar e, juntando as fotos, guardou-as na pasta.
Fechou-a, passou-lhe as presilhas e levantou-se.
O homem do bar, voltando, disse:
— Dois marcos.
Liebermann pôs uma nota de cinco marcos sobre o bar, e pediu:
— Umas moedas para o telefone, por favor. Dirigiu-se à cabine e discou
o número de Frau Döring.
A linha estava ocupada.
Tentou a irmã de Döring, em Oberhausen. Ninguém atendeu.
Permaneceu dentro da cabine, com a pasta entre os pés, puxando a orelha
e pensando no que dizer a Frau Döring. Ela poderia muito bem mostrar-se
hostil para com Yakov Liebermann, caçador de nazistas. E, mesmo que não
o fosse, após ouvir as acusações da cunhada, provavelmente não haveria de
querer discutir Döring e a sua morte com qualquer estranho. Mas o que
poderia dizer-lhe, a não ser a verdade? De que outra forma conseguir um
encontro com ela? Ocorreu-lhe que Klaus von Palmen, em Pforzheim, talvez
estivesse obtendo melhores resultados. Era só o que lhe faltava, ser vencido
por Von Palmen.
Tentou Frau Döring outra vez, valendo-se dos números claramente
traçados pela caneta do Inspetor-Chefe Haas. O telefone do outro lado da
linha tocou.
— Sim? — Era uma mulher, voz apressada, irritada.
— É Frau Klara Döring?
— Sim, quem fala?
— Meu nome é Yakov Liebermann. De Viena. Silêncio.
— Yakov Liebermann? O homem que... descobre os nazistas? —
surpresa e intrigada, porém não hostil.
— Que os procura — corrigiu Liebermann — e só às vezes descobre.
Estou aqui em Gladbeck, Frau Döring, e lhe pediria a bondade de me
conceder um pouco de seu tempo, cerca de meia hora. Gostaria de conversar
com a senhora a respeito de seu finado marido. Acredito que talvez ele
estivesse envolvido — de forma inteiramente inocente, e sem saber — nos
assuntos de certas pessoas nas quais estou interessado. Posso ir falar com a
senhora? Quando lhe for conveniente?
Um clarinete esganiçou-se a distância. Mozart?
— Emil estava envolvido... ?
— Talvez. Sem o saber. Estou nas proximidades da sua residência. Posso
ir até aí? Ou preferiria sair e encontrar-me em algum lugar?
— Não. Não posso encontrá-lo.
— Frau Döring, por favor, é muito importante.
— É de todo impossível. Agora não. É o pior dia possível.
— Amanhã, então? Vim a Gladbeck com o único propósito de falar com
a senhora. — O clarinete parou, em seguida esganiçou-se novamente,
repetindo sua última frase, definitivamente Mozart. Tocada pelo amante
Springer? E por isso haveria de ser um mau dia para encontrá-lo? — Frau
Döring?
— Está bem. Trabalho até as três. O senhor pode vir amanhã às quatro.
— É Frankenstrasse, 12?
— Sim. Apartamento 33.
— Obrigado. Às quatro, amanhã. Obrigado, Frau Döring.
Deixou a cabine e perguntou ao homem do bar como chegar ao prédio
onde Döring morrera.
— Não existe mais.
— Qual era o caminho, então?
O homem do bar, curvado, lavando copos, apontou um dedo gotejando:
— Fica para lá.
Liebermann desceu uma rua estreita e atravessou uma outra mais larga e
movimentada. Gladbeck, ou pelo menos aquele seu trecho, era urbana,
nublada, sem encantos. A poluição em nada ajudava.
Quedou-se contemplando um terreno repleto de entulho, flanqueado
pelas paredes de alvenaria de velhos edifícios. Três crianças empilhavam
pedras quebradas, construindo uma barricada quadrangular. Uma delas trazia
mochila.
Continuou a andar. A próxima transversal era a Frankenstrasse. Seguiu
até o número 12, um prédio de apartamentos amarelo-claro, riscado de
fuligem, convencionalmente moderno, de frente para um gramado estreito e
bem-tratado. Do seu telhado elevava-se um dedo de fumaça negra, unindo-se
à mortalha da poluição.
Observou uma mulher empurrar com dificuldade um carro de bebê,
passando pela porta de entrada envidraçada, e foi em direção ao seu hotel, o
Schultenhof.
No seu quarto alemão, severo e limpo, tentou novamente ligar para a
irmã de Döring.
— Deus o abençoe, quem quer que o senhor seja! — saudou-o uma voz
de mulher. — Chegamos neste segundo! O senhor é a primeira pessoa que
nos telefona! Ótimo. Podia imaginar.
— Frau Toppat está aí?
— Qual! Não, infelizmente ela foi embora. Está na Califórnia, ou a
caminho. Compramos sua casa anteontem. É para Frau Toppat! Ela foi
viver com a filha. Quer o endereço? Tenho-o aqui, em algum canto.
— Não, obrigado — disse Liebermann. — Não se incomode.
— Tudo é nosso agora: os móveis, os peixes dourados; temos até uma
horta. Conhece a casa?
— Não.
— É horrível, mas perfeita para nós. Bem, o "Deus o abençoe" ainda está
valendo. Não quer mesmo o endereço dela? Posso encontrá-lo.
— Não. Obrigado. Boa sorte.
— Já a temos, mas ainda assim obrigado, nunca é demais.
Ele desligou, suspirou e abanou a cabeça. — Também acho, senhora.
Após lavar-se e tomar suas pílulas vespertinas, sentou-se à escrivaninha
demasiado pequena, abriu a pasta e retirou o rascunho de um artigo que
estava escrevendo sobre a extradição de Frieda Maloney.
A porta abriu-se até esticar a corrente curta, e um menino espiou para
fora, afastando da testa os cabelos pretos. Tinha uns treze anos, era
macilento e narigudo.
Liebermann, imaginando se não teria errado o número, indagou:
— É este o apartamento de Frau Döring?
— O senhor é Herr Liebermann?
— Sim.
A porta fechou-se em parte, houve um raspar de metal. O menino era um
neto, supôs Liebermann, ou talvez — já que Frau Döring era muito mais
moça do que Döring
— um filho. Ou talvez ainda um vizinho, apenas, convidado para que ela
não ficasse sozinha com um visitante.
Fosse quem fosse, o menino abriu toda a porta e Liebermann penetrou
numa alcova de paredes de espelho, onde se movimentaram duas ou três
réplicas dele próprio entrando, assombrosamente mal-ajambrado ("Corte
esse cabelo!", exclamava Hannah. "Apare o bigode! Ande aprumado!"), e
vários meninos de camisas brancas e calças escuras fechando as portas e
enganchando trincos de correntes. Aprumando-se, voltou-se para o menino
verdadeiro.
— Frau Döring está?
— Ela está ao telefone. — O menino estendeu a mão para o chapéu de
Liebermann.
Entregando-o, Liebermann sorriu e perguntou:
— Você é o neto dela?
— Sou filho. — O tom do menino fora de puro desdém pela pergunta.
Abriu um armário de porta de espelho.
Liebermann arriou a pasta e tirou o sobretudo, contemplando a sala de
estar toda de tom alaranjado, metal aromado e vidro, tudo combinando,
como numa loja, frio.
Deu o sobretudo ao menino, sorrindo, e este ajustou suas mangas num
cabide, parecendo entediado e submisso. Chegava à altura do peito de
Liebermann. Alguns casacões estavam pendurados no armário, um deles de
pele de leopardo. Um pássaro, um corvo empalhado ou coisa parecida,
espiava por detrás de chapéus e caixas sobre a prateleira.
— É um pássaro aquilo ali? — indagou Liebermann.
— Sim — respondeu o menino. — Era do meu pai.
— Fechou a porta, olhando Liebermann com seus olhos azul-celestes.
Liebermann apanhou a pasta.
— O senhor mata os nazistas quando os apanha? — perguntou o menino.
— Não — respondeu Liebermann.
— Por que não?
— É contra a lei. Além do mais, é melhor levá-los a julgamento. Dessa
forma, mais pessoas ficam sabendo a respeito deles.
— Sabendo o quê? — O menino parecia cético.
— Quem eles eram, o que fizeram.
O menino voltou-se em direção à sala de estar.
Uma mulher ali se achava, pequena e loura, de saia e jaqueta pretas e
suéter bege de gola alta. Uma bonita mulher, com os seus quarenta e poucos
anos. Ela empinou a cabeça e sorriu, as mãos nervosamente cruzadas à sua
frente.
— Frau Döring? — Liebermann andou em sua direção. Ela estendeu-lhe
a pequena mão e ele apertou-a, sentindo-a fria. — Obrigado por ter-me
recebido — disse. Sua tez era lisa por obra de cosméticos, com algumas
rugas finas junto aos olhos azul-esverdeados. Exalava um perfume
agradável.
— Por favor — indagou, embaraçada —, posso pedir-lhe alguma prova
de identidade?
— Certamente — assentiu Liebermann. — É prudente de sua parte pedi-
la. — Passou a pasta para a outra mão e procurou no bolso de dentro do
casaco.
— Não duvido... que seja quem diz que é — tornou Frau Döring. — É
que eu...
— As iniciais estão no chapéu dele — disse o menino, atrás de
Liebermann. — Y. S. L.
Liebermann sorriu para Frau Döring, entregando-lhe o passaporte.
— Seu filho é um detetive — asseverou, e voltando-se para o menino: —
Muito bem, nem sequer notei que me observava.
O menino, afastando uma mecha de cabelos pretos, sorriu complacente.
Frau Döring devolveu o passaporte.
— E, ele é esperto — acedeu, sorrindo para o menino. — Apenas um
pouquinho preguiçoso. Agora mesmo, por exemplo, devia estar praticando.
— Não posso atender à porta e estar no meu quarto ao mesmo tempo —
resmungou o menino, atravessando altivamente a sala de estar.
Frau Döring alisou-lhe os cabelos rebeldes, quando ele passou.
— Eu sei, querido, estava apenas brincando.
O menino entrou, empertigado, por um corredor. Frau Döring sorriu
alegremente para Liebermann, esfregando as mãos, como que para aquecê-
las.
— Venha sentar-se, Herr Liebermann — convidou, e recuou em direção
à extremidade do aposento onde havia janelas. Uma porta bateu.
— Gostaria de tomar café?
— Não, obrigado — respondeu Liebermann. — Acabo de tomar uma
xícara de chá no outro lado da rua.
— No Bittner? É onde trabalho. Sou recepcionista lá, das oito às três.
— É bom e cômodo para a senhora.
— Sim, e já estou em casa quando Erich chega. Comecei segunda-feira e
até agora está perfeito. Estou adorando!
Liebermann sentou-se num sofá duro, e Frau Döring numa cadeira ao
lado. Ereta, as mãos cruzadas sobre a saia preta, a cabeça inclinada, atenta.
— Primeiro que tudo — disse Liebermann —, gostaria de expressar-lhe
minhas condolências. As coisas devem estar bastante difíceis para a senhora
no momento.
Olhos pousados nas mãos cruzadas, Frau Döring disse:
— Obrigada. — Um clarinete disparou escala acima e abaixo,
preparando-se para tocar. Liebermann olhou em direção ao corredor, de onde
emanavam as notas melodiosas, e de volta para Frau Döring. — Ele é muito
bom — observou ela.
— Eu sei — assentiu ele. — Ouvi-o ontem, pelo telefone. Pensei que
fosse um adulto. É seu único filho?
— Sim — respondeu ela, e orgulhosa acrescentou: — Pretende fazer
carreira na música.
— Espero que o pai o tenha deixado bem provido. — Liebermann sorriu.
— Deixou? — indagou. — Seu marido deixou o dinheiro para Erich e a
senhora?
Surpresa, Frau Döring acenou afirmativamente.
— E para uma irmã dele. Um terço para cada. A parte de Erich está sob
custódia. Por que pergunta isso?
— Estou procurando — anunciou Liebermann — um motivo pelo qual
os nazistas da América do Sul pudessem ter querido matá-lo.
— Matar Emil?
Ele assentiu, observando Frau Döring.
— E os outros também. Ela franziu a testa.
— Que outros?
— O grupo a que ele pertencia. Em diversos países. O franzido de sua
testa tornou-se mais intrigado.
— Emil não pertencia a grupo algum. Aonde pretende chegar? Quer
insinuar que ele era comunista? Impossível estar mais enganado, Herr
Liebermann.
— Ele não recebeu correspondência ou chamados telefônicos de fora da
Alemanha?
— Nunca. Não aqui, pelo menos. Pergunte no seu escritório, talvez eles
saibam de algum grupo. Eu com certeza não sei.
— Indaguei esta manhã. Eles tampouco sabem.
— Certa vez — disse Frau Döring —, três ou quatro anos atrás, talvez
até mesmo mais, a irmã telefonou-lhe da América, onde estava de visita. É o
único telefonema internacional de que me lembro. Ah, e outra vez, há mais
tempo ainda, o irmão de sua primeira mulher telefonou de algum lugar da
Itália, tentando convencê-lo a investir em... não me lembro, era alguma coisa
que tinha que ver com prata. Ou platina.
— E ele aceitou?
— Não. Era muito cuidadoso com o seu dinheiro.
O clarinete chegou aos ouvidos de Liebermann, elaborando o Mozart do
dia anterior. O minueto do Quinteto para clarinete, muito bem tocado.
Lembrou-se de si mesmo na idade do garoto, passando de duas a três horas
por dia em cima do velho Pleyel. Sua mãe, que repousasse em paz, também
dissera: "Ele pensa em fazer carreira na música", com aquele mesmo
orgulho. Quem haveria de imaginar o que ia acontecer? E quando tocara
piano pela última vez?
— Não compreendo — disse Frau Döring. — Emil não foi assassinado.
— Pode ter sido — asseverou Liebermann. — Um vendedor fez amizade
com ele na noite anterior. Podem ter combinado um encontro naquele prédio,
caso o vendedor não aparecesse no bar às dez horas. Dessa forma, ele teria
chegado lá na hora certa.
Frau Döring meneou a cabeça.
— Ele não teria marcado encontro com ninguém num edifício como
aquele — retorquiu. — Nem com alguém que conhecesse bem. Suspeitava
demais das pessoas. E por que motivo os nazistas estariam interessados
nele?
— Por que andava armado aquela noite?
— Sempre andava.
— Sempre?
— Sempre, desde que o conheci. Mostrou a pistola no primeiro encontro
que tivemos. Pode imaginar alguém portando arma num encontro com a
namorada? E ainda por cima mostrando-a? E o pior é que aquilo me
impressionou! — Balançou a cabeça, suspirosa e admirada.
— De quem ele tinha medo?
— De todos. Gente do escritório, gente que simplesmente olhava para
ele... — Frau Döring inclinou-se para a frente, confidencialmente. — Ele era
um pouquinho... bem, não direi maluco, mas não chegava a ser de todo
normal. Certa vez tentei convencê-lo a consultar alguém, o senhor sabe, um
médico. Houve um programa de televisão a respeito de pessoas como ele,
gente que se julgava... alvo de alguma conspiração, e quando acabou, fiz a
minha sugestão da maneira mais cautelosa... Pois bem! Eu é quem estava
conspirando, imagine! Para que fosse declarado maluco! Quase me matou
foi a mim, naquela noite! — Recostou-se, respirando fundo, abalada. E
franziu a testa para Liebermann, perscrutadora. — O que fez ele? Escreveu
ao senhor, dizendo que os nazistas o perseguiam?
— Não, não.
— Então, o que o leva a pensar que o perseguissem?
— Um boato que escutei.
— Era falso. Creia-me, os nazistas haveriam de gostar de Emil. Era anti-
semita, anticatólico, antiliberdade, antitudo-e-antitodos, exceto ele próprio,
Emil Döring.
— Era nazista?
— Talvez tenha sido. Ele dizia que não, mas só o conheci em 1952, por
isso não posso jurar. Provavelmente não era. Jamais aderiu a coisa alguma,
podendo evitar.
— O que fez na guerra?
— Esteve no Exército, foi cabo, acho. Gabava-se dos postos fáceis que
conseguia arrumar. O principal foi num depósito de suprimentos ou coisa
parecida. Um lugar seguro.
— Nunca esteve em combate?
— Era "sabido demais" para isso. Os "trouxas" é que iam.
— Onde nasceu?
— Em Laupendahl, do outro lado de Essen.
— E viveu na região toda a sua vida?
— Sim.
— Esteve alguma vez em Günzburg, ao que saiba?
— Onde?
— Günzburg. Perto de Ulm.
— Nunca o ouvi mencionar isso.
— E o nome Mengele? Ouviu-o alguma vez referir-se a ele?
Ela fitou-o, sobrancelhas alçadas, e meneou a cabeça.
— Apenas algumas perguntas mais. A senhora está sendo muito gentil.
Receio estar metido numa caçada inútil.
— Estou certa de que está — disse ela, e sorriu.
— Tinha algum parente importante? No governo, digamos?
Ela pensou por um momento.
— Não.
— Amizade com alguém importante? Ela encolheu os ombros.
— Alguns funcionários de Essen, se esta é a sua idéia de importância.
Apertou a mão de Krupp certa vez. Foi o seu grande momento.
— Quanto tempo esteve casada com ele?
— Vinte e dois anos. Desde 4 de agosto de 1952.
— E em todos esses anos, nunca viu ou ouviu alguma coisa a respeito de
um grupo internacional a que ele pertencesse, de homens da sua idade e do
mesmo cargo?
Meneando a cabeça, ela respondeu:
— Nunca, nenhuma palavra.
— Nenhuma atividade antinazista de qualquer tipo?
— Nenhuma. Era mais pró-nazista do que anti. Votou nos nacional-
democratas, mas nunca realmente aderiu. Não era de aderir.
Liebermann recostou-se no sofá duro e esfregou a nuca.
— Quer que lhe diga quem na verdade o matou? — perguntou Frau
Döring.
Ele fitou-a.
Ela inclinou-se para diante e respondeu:
— Deus. A fim de libertar uma moça boba do interior, após vinte e dois
anos de infelicidade. E dar um pai a Erich, que o ajude e ame, em vez de
xingá-lo — isso mesmo, chamava-o de "efeminado" e "imbecil" — por
querer ser músico e não um funcionário público garantido e gordo. Será que
os nazistas atendem a orações, Herr Liebermann? — Meneou a cabeça. —
Não, isso cabe a Deus, e agradeço-Lhe todas as noites, desde que Ele
empurrou aquela parede em cima de Emil. Podia tê-lo feito antes, mas de
qualquer forma Lhe agradeço. "Antes tarde do que nunca." — Recostou-se,
cruzando as pernas — bonitas pernas —, e sorriu radiante. — Então! Ele não
toca maravilhosamente? Guarde este nome: Erich Döring. Algum dia há de
vê-lo nos cartazes dos salões de concerto!
Quando Liebermann deixou o número 12 da Frankenstrasse, a noite
começava a cair. Carros e bondes enchiam a rua, transeuntes apressados
apinhavam a calçada. Caminhou vagarosamente no meio deles, carregando a
pasta.
Döring fora um joão-ninguém: vaidoso, conivente, importante para
ninguém, a não ser ele próprio. Nenhuma razão concebível para que viesse a
ser alvo de conspiradores nazistas do outro lado do mundo — nem mesmo
em suas fantasias de perseguição. O vendedor do bar? Apenas um vendedor
solitário. A saída apressada na noite do acidente? Havia uma dúzia de razões
para um homem sair apressado de um bar.
Isto significava que a vítima de 16 de outubro deveria ter sido Chambon,
na França, ou Persson, na Suécia.
Ou alguém mais, que a Reuters deixara escapar.
Ou, muito possivelmente, ninguém.
Ei, Barry, Barry! Por que tinha de me telefonar!
Andou um pouco mais depressa, ao longo do lado sul da apinhada
Frankenstrasse.
No lado norte, Mundt apressou também o passo, de charuto apagado na
boca, jornal dobrado embaixo do braço.
Embora a noite estivesse seca e clara, a recepção era ruim, e tudo o que
Mengele ouviu foi:
— Liebermann foi craque-craque-guincho onde Döring, o nosso
primeiro homem, morava. Liebetcraque-craque a respeito dele, e mostrou
fotografias de soldados a craque-craque GUINCHO-craque Solingen,
fazendo a mesma coisa com relação a um craque-craque que morreu numa
explosão algumas semanas atrás. Câmbio.
Engolindo o azedume que lhe fervia na garganta, Mengele apertou o
botão do microfone e falou:
— Quer repetir, por favor, coronel? Não ouvi tudo. Câmbio.
Finalmente conseguiu.
— Não vou dizer que não estou preocupado — disse, enxugando a testa
com o lenço —, mas se ele foi investigar junto a alguém com quem nada
temos que ver, então evidentemente ainda está no escuro. Câmbio.
— Craque apartamento de Döring, e não estava escuro lá. Eram quatro
da tarde, e demorou-se lá por quase uma hora. Câmbio.
— Oh, Deus — murmurou Mengele, e apertou o botão. — Então seria
melhor cuidar dele imediatamente, por medida de segurança. Concorda, não?
Câmbio.
— Estamos craque a possibilidade, com muito cuidado. Comunicar-lhe-
ei assim que houver decisão. Tenho algumas noticiazinhas boas também.
Mundt craque-craquegundo freguês, na data exata. O tal de Hessen. E
Farnbach telefonou, não com perguntas, graças a Deus, apenas com algumas
informações surcraque-guincho; parece que o seu segundo freguês foi um
antigo comandante seu, um capitão que arranjou uma identidade sueca
depois da guerra. Virada engraçada, não? Farnbach não estava certo se o
conhecíamos ou não. Câmbio.
— Não deixou que isso o detivesse, hein? Câmbio.
— Ah, não, ele craque-craque dias antes da data. Portanto, pode pôr
mais três cruzes no seu quadro. Câmbio.
— Considero urgente cuidarmos imediatamente de Liebermann — disse
Mengele. — E se ele não se limitar a esse homem de Solingen? Se Mundt
trabalhar direito, estou certo de que não haverá problema, pelo menos não
mais do que já temos. Câmbio.
— Enquanto estiver na Alemanha, discordo. Eles irão craque-guincho-
craque o país para mostrar que estão sendo conscienciosos. Serão forçados a
isso. Câmbio.
— Então, logo que ele saia da Alemanha. Câmbio.
— Levaremos sem dúvida suas opiniões em consideração, Josef. Sem
você, nada. Sabemos como craque-craque-guincho-craque terminar agora.
Câmbio e desligo.
Mengele olhou para o microfone e pousou-o. Retirou os fones de ouvido,
largou-os e desligou o rádio.
Saiu do escritório para o banheiro, vomitou seu jantar meio digerido,
lavou-se e gargarejou com um dentifrício líquido.
Em seguida, saiu para a varanda, sorriu dizendo: "Desculpem", e sentou-
se para jogar bridge com o General Farina, Franz e Margot Schiff.
Quando eles se retiraram, pegou uma lanterna e desceu em direção ao
rio, a fim de refletir. Disse algumas palavras ao homem de serviço, seguiu no
sentido rio abaixo, indo sentar-se ao lado de um tambor de óleo enferrujado
— ao diabo com as suas calças —, e acendeu um cigarro. Imaginou Yakov
Liebermann indo às casas dos homens. Seibert e o resto das altas patentes da
Organização defrontando uma necessidade e chamando-a possibilidade; e a
sua dedicação de décadas aos mais nobres ideais — a busca do
conhecimento e a ascensão do melhor da raça humana — que poderia ser
roubada de sua fruição definitiva por aquele judeu abelhudo e aquele
punhado de esquivos arianos. Que eram piores do que o judeu, pois
Liebermann, para sermos justos, estava cumprindo com o seu dever, de
acordo com as suas luzes, enquanto eles estavam traindo as suas. Ou
pensando em traí-las.
Jogou o seu segundo cigarro no cintilante negror do rio, e, com um
"Permaneça vigilante" ao guarda, regressou em direção a casa.
Seguindo um impulso, dobrou para um lado e abriu caminho por entre a
trilha invadida de vegetação até a "fábrica", a vereda por onde haviam
descido ele e os outros — o jovem Reiter, Von Sweringen, Tina Zygorny,
todos agora mortos, infelizmente —, tão alegres naquelas manhãs distantes.
Curvando-se sobre a lanterna exploradora, afastou os galhos de folhas largas,
tropeçou nas raízes salientes.
E ali estava o longo prédio baixo, mordiscado pelas árvores. A pintura
descascara-se das paredes de sua estrutura, todas as janelas estavam
quebradas (os filhos dos empregados, malditos sejam), e toda uma parte do
telhado ondulado desabara ou fora retirada da extremidade do dormitório.
A porta da frente escancarava-se, dependurada pela dobradiça inferior.
Tina Zygorny soltara a sua risada masculina, Von Sweringen trovejara:
— Vamos, acorde! Já teve seu sono de beleza!
Silêncio apenas. Insetos zuniam, trinavam.
Lançando a luz à sua frente, Mengele subiu o degrau e passou pela porta.
Cinco anos pelo menos, desde que pisara pela última vez...
Formosa Bavária. O cartaz aderia à parede, poeirento e enrugado: céu,
montanha, primeiro plano florido.
Sorriu para ele, e moveu o raio de luz.
Descobriu ranhuras na madeira das paredes, de onde prateleiras e
armários haviam sido arrancados. Tubos de encanamento eretos, em posição
de sentido. A parede com as manchas marrons onde Reiter queimara,
começando o desenho de uma suástica com o seu microscópio. Podia ter
incendiado a casa inteira, o idiota.
Caminhou cuidadosamente por entre vidro partido. Uma casca de melão
podre, formigas banqueteando-se.
Contemplou os aposentos vazios, e recordou a vida e a atividade, o
equipamento reluzente, o lamento do esteriliza-dor, o tilintar das pipetas. Há
mais de dez anos.
Tudo fora retirado, posto no ferro-velho ou talvez doado a alguma
clínica não sabia onde, para que, caso os bandos de judeus chegassem — e
eles estavam ativos naquele tempo, o Comando Isaac e outros —, não
tivessem pistas, nem suspeitas.
Percorreu o corredor central. Criados nativos falavam suavemente em
dialetos primitivos, tentando se fazer entender.
Chegou ao dormitório, de cheiro fresco e arejado, graças ao teto aberto.
As esteiras de palha ainda estavam ali, espalhadas em desordem.
Tirem bom proveito de algumas dúzias de esteiras de capim, seus jovens
judeus.
Andou por entre elas, recordando, sorrindo. Alguma coisa de encontro à
parede lançava cintilações brancas. Aproximou-se, baixou o olhar sobre
aquilo que o facho da lanterna revelava. Apanhou-o, soprou, examinou na
mão. Eram presas de animais, em círculo, um bracelete feminino. Talismã de
boa sorte? O poder dos animais transferido para o braço da portadora?
Estranho que as crianças não o houvessem encontrado. Não havia dúvida
de que haviam brincado ali, rolado naquelas esteiras, desarrumando-as.
Sim, era sinal de boa sorte aquele bracelete continuar ali todos aqueles
anos, a fim de que pudesse encontrá-lo nessa noite de temor e incerteza, de
possível traição. Enfiou por ele os dedos, deslizou-o mão abaixo, puxando-o
com o cabo da lanterna de mão. O círculo de presas escorregou, retido pela
pulseira de ouro do relógio. Sacudiu o pulso, as presas dançaram.
Lançou um olhar pelo dormitório, através do telhado destruído, até o
cimo das árvores e as estrelas que surgiam e desapareciam por entre elas. E
— talvez sim, talvez não — até o seu Führer, a vigiá-lo.
"Não hei de decepcioná-lo", prometeu.
Olhou em torno — para aquele lugar onde tanto, gloriosamente tanto, já
fora realizado — e, de olhar fixo, acentuou em voz alta:
— Não hei.
Quatro
— Eliminamos apenas quatro dos onze — disse Klaus von Palmen,
cortando a grossa lingüiça diante de si. — Não acha cedo demais para falar
em parar?
— Quem está falando em parar? — Liebermann empurrou com a faca o
purê de batatas de encontro à parte traseira do garfo. — Eu só disse que não
iria a Fagersta. Não disse que não iria a outros lugares, como também não
disse que não pediria a alguém para ir a Fagersta, alguém que não precise de
intérprete. — Enfiou na boca a garfada de lingüiça e purê de batatas.
Estavam no Cinco Continentes, o restaurante do Aeroporto de Frankfurt.
Era uma noite de sábado, 19 de novembro. Liebermann providenciara uma
escala de duas horas na sua volta a Viena, e Klaus viera de Mannheim para
encontrá-lo. O restaurante era caro — Liebermann reconhecia a legitimidade
da censura de invisíveis contribuintes —, mas na verdade o rapaz merecia
uma boa refeição. Não apenas investigara aquele homem de Pforzheim, cujo
salto, e não queda de uma ponte, fora testemunhado por cinco pessoas, como
também, depois que Liebermann lhe falara de Gladbeck na noite de quinta-
feira, viajara para Freiburg, enquanto Liebermann se dirigia a Solingen. E,
além do mais, seu ar de sagacidade — as miúdas feições contraídas e os
olhos brilhantes — parecia de perto um misto de perspicácia e desnutrição.
Esses garotos comiam o suficiente? Portanto, Cinco Continentes. Não
poderiam conversar direito numa lanchonete, poderiam?
August Mohr, o vigia noturno da fábrica de produtos químicos de
Solingen, era mesmo, conforme julgara Liebermann, funcionário público
durante o dia, e à noite empregado do setor de vigilância do hospital onde
morrera. Contudo, as autoridades do corpo de bombeiros haviam investigado
exaustivamente a explosão que o matara, ligando-a a uma série de acidentes
que, estavam certos, não poderiam ter sido preparados. E o próprio Mohr
parecia uma vítima tão improvável de conspiração nazista quanto Emil
Döring. Semi-analfabeto e pobre, viúvo há seis anos, morava com a mãe
inválida em dois quartos de uma estalagem miserável. A maior parte de sua
vida, inclusive os anos de guerra, trabalhara numa fábrica de aço de
Solingen. Correspondência ou chamadas telefônicas de fora do país? A
estalajadeira rira.
— Nem sequer de dentro do país, senhor.
Klaus, em Freiburg, julgara a princípio encontrar alguma coisa. O
homem de lá, um empregado do Departamento de Águas chamado Josef
Rausenberger, fora esfaqueado e roubado nas proximidades de sua casa, e
uma vizinha vira alguém vigiando a casa na noite anterior.
— Um homem de olho de vidro?
— Ela não podia ter notado, estava muito longe. Um homem corpulento,
num carro pequeno, fumando, foi o que ela contou à polícia. Não pôde dizer
sequer a marca do carro. Havia um homem de olho de vidro em Solingen?
— Em Gladbeck. Prossiga.
Porém, Rausenberger não pertencera a organizações internacionais.
Perdera as duas pernas abaixo dos joelhos, num acidente de trem, quando
garoto. Em conseqüência, não prestara serviço militar, e tampouco pusera os
pés — artificiais, quer dizer — fora da Alemanha. ("Por favor", repreendera
Liebermann.) Destacava-se como trabalhador eficiente e assíduo, um marido
e pai dedicado. Deixara suas economias para a viúva. Desaprovava os
nazistas e votara contra eles, nada mais. Nascido em Schwenningen. Nunca
em Günzburg. Um parente ilustre: um primo, o redator-chefe do Berliner
Morgenpost.
Döring, Müller, Mohr, Rausenberger, nenhum deles, nem por qualquer
esforço de imaginação, uma vítima nazista. Quatro entre onze.
— Conheço um homem em Estocolmo — declarou Liebermann. — Um
gravador, natural de Varsóvia. Muito inteligente. Irá com prazer a Fagersta.
O homem de lá, Persson, e o de Bordéus são os principais a serem
investigados. Dezesseis de outubro foi a única data mencionada por Barry.
Se nenhum desses dois for alguém que os nazistas pudessem e de fato
pretendessem matar, então Barry estava enganado.
— A menos que o senhor não tivesse notícias do homem certo. Ou que
ele morresse no dia errado.
— A menos — tornou Liebermann, cortando a lingüiça. — Tudo é "a
menos", "se", "talvez". Como eu gostaria que ele não me tivesse telefonado.
— O que disse ele exatamente? Como é que foi tudo? Liebermann
narrou a história. O garçom retirou os pratos e recebeu os pedidos de
sobremesa. Quando se afastou, Klaus perguntou:
— Já pensou que o seu nome pode estar na lista? Ainda que não tenha
sido Mengele a reconhecê-lo por telepatia — o que não acredito um só
momento, Herr Liebermann, e muito me admira que o senhor acredite —,
algum nazista desligou o fone e há de ter se encarregado de descobrir com
quem Barry falava. A telefonista do hotel deve saber.
Liebermann sorriu.
— Tenho apenas sessenta e dois e não sou funcionário público.
— Não brinque com isso. Se enviaram assassinos, por que não lhes
dariam mais um encargo? Com a máxima prioridade?
— Nesse caso, o fato de eu ainda estar vivo indica que eles não foram
enviados.
— Talvez Mengele e a Organização dos Camaradas decidissem esperar
um pouco, porque você sabia. Ou talvez desistissem da coisa.
— Está vendo só o que dizia acerca dos "se" e dos "talvez"?
— Não se apercebeu de que talvez esteja em perigo? O garçom
depositou um bolo de cerejas diante de Klaus e uma torta linzer para
Liebermann. Serviu o café de Klaus e o chá de Liebermann. Quando ele se
retirou, Liebermann, abrindo um envelopinho de açúcar, disse:
— Corro perigo há muito tempo, Klaus. Parei de pensar nisso, do
contrário teria de fechar o Centro e dar outro rumo à minha vida. Você tem
razão: "se" existirem assassinos, provavelmente estarei na lista. Por isso,
investigar é o que ainda me resta fazer. Irei a Bordéus e pedirei a Piwowar,
meu amigo de Estocolmo, para ir a Fagersta. Se os homens que ali morreram
não tiveram ligações com nazistas, examinarei outros casos, só para ter
certeza.
— Eu poderia ir a Fagersta — aventou Klaus, mexendo o café. — Falo
um pouco de sueco.
— Mas para você eu teria de comprar passagem, certo? Enquanto para
Piwowar, não. Infelizmente isso faz diferença. Além do mais, você não deve
perder aulas assim sem mais nem menos.
— Posso perder aulas durante um mês e ainda assim me formar com
distinção.
— Céus, que cabeça. Fale-me a seu respeito. Como se tornou tão
brilhante?
— Poderia lhe dizer uma coisa a meu respeito que haveria de
surpreendê-lo, Herr Liebermann.
Liebermann ouviu, com ar sério e compreensivo. Os pais de Klaus eram
antigos nazistas. Sua mãe fora íntima de Himmler, seu pai, coronel da
Luftwaffe.
Quase todos os jovens alemães que ofereciam ajuda a Liebermann eram
filhos de antigos nazistas. Eis uma das poucas coisas que o levavam a sentir
que Deus existia e estava agindo, ainda que lentamente.
— Somos terríveis.
— Não, não somos, somos sensacionais. Devíamos até ser filmados.
— Sabe o que quero dizer. Olhe só para nós: um, dois, e já na cama.
Aposto dois tostões como esqueceu meu nome.
— Meg, de Margaret.
— Nome completo.
— Reynolds. Dois tostões, por favor, enfermeira Reynolds.
— Está muito escuro para achar minha bolsa. Não prefere isto?
— Humm, sim, claro que sim. Humm, é delicioso.
— "Ruborizando-se, acanhada, ela perguntou: 'Não será só esta noite,
certo, meu senhor?'"
— É nisso que você está pensando?
— Não, estou pensando no preço do picles. Claro que é nisso que estou
pensando! Este não é o meu modus vi-vendi habitual, você bem sabe.
— Essa não. Modus vivendi!
— Eis uma resposta direta.
— Não pretendi ser evasivo, Meg. Receio que talvez seja apenas esta
noite, mas não porque eu assim queira. Não tenho alternativa na questão. Fui
enviado aqui para... resolver uns negócios com alguém, e ei-lo aí estirado no
seu maldito hospital, na tenda de oxigênio, sem receber visitantes, exceto os
mais chegados da família.
— Harrington?
— Esse mesmo. Quando me apresentar e disser que não pude chegar a
ele, provavelmente me mandarão de volta para Londres. Nosso pessoal anda
muito escasso ultimamente.
— Voltará quando ele se restabelecer?
— Não é provável. Nessa altura, estarei em outro caso, um outro
assumirá. Isso na suposição de que ele se restabeleça mesmo. É duvidoso, ao
que me consta.
— Sim, ele tem sessenta e seis anos, você sabe, e foi um ataque bastante
feio. Entretanto, sua constituição é forte. Corre em torno do gramado todas
as manhãs, às oito em ponto; a gente pode acertar o relógio por ele. Dizem
que ajuda o coração, mas eu diria que prejudica, numa idade dessas.
— É uma pena eu não falar com ele. Se falasse, poderia ficar pelo menos
uns quinze dias. Acha que poderíamos nos encontrar no Natal? É quando
encerraremos os trabalhos. Pode arranjar folga?
— Talvez consiga...
— Que beleza! Arranjaria? Tenho um apartamento em Kensington, com
uma cama um bocadinho mais macia que esta.
— Alan, em que negócio você está metido?
— Eu já lhe disse.
— Isso não parece coisa de venda. Vendedores não têm casos tão
complicados. Aliás, nunca vi você com uma pasta, se bem que não tenha
muito tempo para pensar no assunto. Vendendo o quê, hein? Você não é
realmente um vendedor, é?
— Você é muito viva, hein, Meg? Pode guardar um segredo?
— Claro que sim.
— De verdade?
— Sim. Pode confiar em mim, Alan.
— Bem... eu trabalho para o Imposto de Renda. Tivemos uma denúncia
de que Harrington nos teria caloteado em cerca de trinta mil libras durante os
últimos dez ou doze anos.
— Não acredito! Ele é juiz!
— Acontece com mais freqüência do que você pensa.
— Deus do céu, ele é a própria estátua da Virtude Cívica!
— Talvez. Fui enviado para investigar. Sabe, era para eu instalar um
microfone escondido na casa dele, e controlá-lo de meu quarto, para ver o
que podia descobrir.
— É assim que vocês operam?
— É o método padrão em casos como este. Tenho a autorização na
minha pasta. O quarto de hospital dele seria ainda melhor que a sua casa. No
hospital o sujeito fica um tanto nervoso, diz à mulher onde a bolada está
escondida, cochicha uma palavra ou duas com o advogado... Mas não
consigo entrar para instalar o maldito troço. Poderia exibir a autorização para
o seu diretor, mas o mais provável é que seja amigo de Harrington. Deixa
escapar uma palavra e tudo vai por água abaixo.
— Seu patife! Seu velho patife sem-vergonha!
— Meg! O que...
— Pensa que não sei qual é o seu jogo? Quer que eu instale o troço para
você. Foi por isso que "aconteceu" nos encontrarmos tão acidentalmente.
Você me enrolou com essa sua história de... Oh, Cristo, eu devia ter sabido o
que você pretendia. O Bonitão embeiçado por uma velha vaca gorda como
eu.
— Meg! Não fale assim, amor!
— Tire suas mãos de mim. E não me chame "amor", agradeço. Oh,
Cristo, que burra que eu sou!
— Meg querida, por favor, deite-se e...
— Largue-me! Ainda bem que ele tirou alguma coisa de vocês. Vocês,
seus malandros, vivem nos arrancando o que podem. Ah! Que piada! Não
devo me esquecer de rir.
— Meg! Sim, tem razão, é verdade. Eu estava esperando que você me
desse uma mão, e por isso é que nos conhecemos. Mas não é por isso que
estamos aqui em cima agora. Pensa que sou tão fiel à maldita Renda, a ponto
de ir para a cama com quem não simpatizasse, só para apanhar um
vigaristazinho desgraçado como Harrington? E continuar mandando brasa
durante uma quinzena ou mais? Ele nada significa comparado com a maioria
dos que investigamos. Falei a verdade em cada palavra que disse, Meg,
quanto a preferir mulheres corpulentas, maduras, e querer que você fique
comigo no Natal.
— Não acredito numa maldita palavra do que você está dizendo!
— Oh, Meg, eu seria capaz... de arrancar minha língua! Você é a melhor
coisa que me aconteceu em quinze anos, e agora estraguei tudo com a minha
estupidez. Quer tornar a se deitar, amor? Não vou mais falar em Harrington.
Não deixaria que você me ajudasse agora, ainda que me implorasse.
— Desse susto você não morre, não se preocupe.
— Deite-se direitinho, amor... assim... e deixe-me abraçá-la, beijar esses
grandes... Hummm! Ah, Meg, você é mesmo divina! Hummm!
— Patife...
— Sabe o que vou fazer? Telefono amanhã e digo ao meu chefe que
Harrington está sendo remendado e que dentro de um dia ou dois consigo
instalar o troço. Talvez possa remanchar com ele até quinta ou sexta, antes
que me chamem de volta. Hummm! Sou maluco por enfermeiras, sabia
disso? Mamãe era, e também Mary, minha esposa. Hummm!
— Ah...
— Talvez você não goste de mim, mas seus biquinhos gostam.
— Falou sério mesmo quanto ao Natal, seu patife?
— Juro que sim, amor, e em qualquer outra ocasião que arranjarmos.
Talvez você possa até se mudar para Londres. Nunca pensou nisso? Sempre
há lugares para enfermeiras, não? Com Mary foi assim.
— Oh, não poderia. Não é só pegar as coisas e mudar. Alan? Poderia
mesmo... ficar quinze dias?
— Poderei arranjar mais do que isso, se instalar o troço. Terei de esperar
que ele saia da tenda e fique conversando com as pessoas... Mas não vou
deixar que você faça isso, Meg. Falo sério.
— Eu já sei...
— Não. Não quero correr o risco de estragar nossas relações.
— Que besteira. Eu já sei que você é um patife, portanto, que diferença
faz? Quero ajudar o governo, não você.
— Bem... acho que não devo atrapalhar o cumprimento da minha tarefa.
— Sabia que você ia concordar. O que devo fazer? Não sei mexer em
fios.
— Não precisa. Você simplesmente leva um pacote para o quarto dele.
Do tamanho de uma caixa de bombons. É de fato uma caixa de bombons,
toda bonita, de papel florido. Basta desembrulhá-la, pô-la junto da cama dele
— numa prateleira, mesinha-de-cabeceira, ou coisa parecida, quanto mais
perto da cabeça melhor — e depois abri-la.
— Só isso? Abri-la?
— Funciona automaticamente.
— Pensei que essas coisas fossem pequeninas.
— As de telefone. Não desse tipo.
— Não vai fazer faísca, vai? Por causa do oxigênio, sabe?
— Oh, não, de modo algum. É apenas um microfone e um transmissor,
sob uma camada de bombons. Não deverá abrir a caixa até colocá-la no
lugar certo. Não convém sacudir de um lado para o outro quando estiver
transmitindo.
— Está pronto? Posso instalar amanhã. Hoje, melhor dizendo.
— Boa menina.
— Gozado, o velho Harrington a sonegar impostos! Vai ser uma
sensação se ele for acusado!
— Você não deve dizer uma palavra disso a ninguém, até reunirmos
provas.
— Ah, não, jamais. Sei como é. Devemos fingir que ele é inocente.
Emocionante! Sabe o que vou fazer depois de abrir a caixa, Alan?
— Não faço idéia.
— Vou cochichar uma coisa dentro dela, uma coisa que eu gostaria que
você me fizesse amanhã à noite. Em troca da minha ajuda. Você vai poder
ouvir, não?
— Assim que você abrir. Estarei ouvindo de respiração suspensa. O que
é que você tem em mente, sua Meg travessa? Oh, sim, ohh, que gostoso,
amor.

Liebermann foi a Bordéus e Orléans, e seu amigo Gabriel Piwowar a


Fagersta e Göteborg. Nenhum dos quatro funcionários públicos de sessenta e
cinco anos que haviam morrido naquelas cidades parecia vítima mais
provável dos nazistas do que os quatro já investigados.
Chegara outra remessa de recortes, vinte e seis desta vez, seis deles
possíveis. Havia agora dezessete, dos quais oito — inclusive os três de 16 de
outubro — eliminados. Liebermann tinha certeza de que Barry se enganara,
mas, lembrando-se da gravidade da situação se, resolveu investigar mais
cinco, os mais fáceis. Dois da Dinamarca ele confiou a um de seus
colaboradores de lá, um cobrador de contas chamado Goldschmidt, e um de
Trittau, perto de Hamburgo, a Klaus. Dois da Inglaterra ele próprio
investigou, juntando trabalho e prazer — uma visita à sua filha Dena e à
família dela, em Reading.
Os cinco assemelharam-se aos outros oito. Diferentes, mas parecidos.
Klaus informou que a viúva Schreiber gostaria de ter com ele mais do que
uma boa conversa.
Chegaram mais alguns recortes, com um bilhete de Beynon: "Receio não
poder mais justificar isto em Londres. Obteve algum resultado?"
Liebermann telefonou-lhe. Ele não estava. Mas respondeu à chamada
uma hora depois.
— Não, Sydney — disse Liebermann —, foi apenas uma tentativa
frustrada. Investiguei treze, dentre dezessete possíveis. Nenhum era homem
que os nazistas pudessem querer matar. Mas foi bom ter investigado. Só
lamento ter lhe dado tanto trabalho.
— Não foi nada. O rapaz ainda não apareceu?
— Não. Recebi uma carta do pai dele. Esteve no Brasil duas vezes, e
duas em Washington. Não pretende desistir.
— É pena. Avise-me se ele descobrir alguma coisa.
— Está bem. E mais uma vez obrigado, Sydney. Nenhum dos
derradeiros recortes mostrou-se possível.
O que não fez muita diferença. Liebermann voltou sua atenção para uma
campanha de escrita de cartas cujo objetivo era conseguir que o governo da
Alemanha Ocidental renovasse esforços para extraditar Walter Rauff,
responsável pela morte em câmaras de gás de noventa e sete mil mulheres e
crianças, e que vivia na ocasião (e ainda vive) sob o seu próprio nome, em
Punta Arenas, Chile.
Em janeiro de 1975, Liebermann foi aos Estados Unidos para o que seria
uma temporada de dois meses de conferências, num circuito em direção
contrária à marcha dos ponteiros de um relógio, a partir da metade leste do
país, começando e terminando na cidade de Nova York. Sua agência de
conferências contratara mais de setenta compromissos, alguns em academias
e universidades e a maioria em templos e em almoços promovidos por
grupos judaicos. Antes de partir para a temporada, foi levado a um programa
de televisão na Filadélfia (juntamente com um especialista em alimentação
sadia, um ator e uma mulher que escrevera uma novela erótica: publicidade
preciosa e difícil de arranjar, garantiu-lhe Mr. Goldwasser, da agência).
Na noite de quinta-feira, 14 de janeiro, Liebermann falou na
Congregação Knesses Israel, em Pittsfield, Massachusetts. Uma mulher, que
trouxera uma brochura de seu livro para ele autografar, disse, enquanto ele o
autografava, ser de Lenox, e não de Pittsfield.
— Lenox? Fica perto daqui?
— Onze quilômetros — respondeu ela, sorrindo. — E eu viria mesmo se
ficasse a cem.
Ele sorriu, agradecendo.
Dezesseis de novembro: Curry, Jack; Lenox, Massachusetts. Não
trouxera a lista, mas já estava em sua cabeça.
Naquela noite, no quarto de hóspedes da presidente da congregação,
permaneceu acordado, ouvindo os flocos de neve batendo nas vidraças.
Curry. Alguma coisa a ver com impostos, avaliador ou auditor. Morto em
acidente de caça, de um tiro extraviado. Proposital?
Investigara. Treze em dezessete. Inclusive os três de 16 de outubro. Onze
quilômetros apenas? A viagem de ônibus até Worcester não levaria mais de
duas horas, e só precisaria chegar à hora do jantar. Mesmo depois, em caso
de necessidade...
Cedo, na manhã seguinte, tomou emprestado o carro da sua hospedeira,
um Oldsmobile grande, e rumou para Lenox. Doze centímetros de neve
haviam caído e mais estava a caminho, mas as estradas tinham uma camada
fina. Tratores empurravam a neve para os lados, outras máquinas lançavam-
na a distância, em arcos impetuosos. Incrível, na sua terra tudo estaria
parado.
Em Lenox descobriu que ninguém confessara ter atirado em Jack Curry.
E, extra-oficialmente, o chefe de polícia DeGregorio não estava certo de que
fora um acidente. Um tiro suspeitosamente perfeito, através do boné de caça
vermelho, bem na nuca. Parecia antes boa pontaria do que má sorte. Mas
Curry já estava morto há cinco ou seis horas quando encontrado, e pelo
menos uma dúzia de pessoas haviam transitado pelo local. Portanto, o que a
polícia poderia ter encontrado? Nem ao menos o cartucho aparecera.
Investigaram, em vão, se alguém tinha alguma divergência com Curry. Ele
fora um avaliador imparcial e eqüitativo, um cidadão respeitado e estimado.
Pertencera a algum grupo ou organização internacional? Ao Rotary. Afora
isso, Liebermann teria de perguntar a Mrs. Curry. Mas DeGregorio não
achava que ela quisesse falar muito. Ouvira dizer que ainda estava bastante
abatida.
Manhã avançada, Liebermann estava sentado numa pequena cozinha
suja, tomando chá de uma caneca lascada e todo constrangido porque Mrs.
Curry parecia prestes a chorar. Como a viúva de Emil Döring, tinha quarenta
e poucos anos, mas esta era a única semelhança: Mrs. Curry era magra e
feia; tinha cabelos castanhos cortados à moda de rapaz, ombros aduncos e
seios rasos, dentro de um vestido desbotado, estampado de flores. E era
lamurienta.
— Ninguém ia querer matá-lo — insistia, esfregando os olhos
encharcados com as pontas dos dedos avermelhadas e de unhas rachadas. —
Ele era... o melhor homem sobre a face da terra. Forte, bom, paciente e
generoso. Era uma... rocha, e agora... Oh, Deus!... estou... — E começou a
chorar. Pegando um guardanapo de papel amarrotado, apertou-o de encontro
aos olhos lacrimosos, descansou a testa na mão, o cotovelo pontudo sobre a
mesa, soluçando agitadamente.
Liebermann pousou o chá e inclinou-se para a frente, desanimado.
Ela se desculpava por entre as lágrimas.
— Está bem — disse ele —, está bem. — Grande coisa. Onze
quilômetros através da neve, para fazer uma mulher chorar. Treze em
dezessete não eram suficientes?
Recostou-se, suspirando, e esperou. Desalentado, olhou à volta da
pequena cozinha manchada de amarelo, com os seus pratos sujos, a geladeira
velha e embalagens de papelão com garrafas vazias junto à porta dos fundos.
Caçada Inútil número 14. Uma planta dentro de um copo vermelho no
parapeito da janela, atrás da pia, e uma lata de sapólio. Um desenho de
avião, um 747, grudado na porta de um armário. Muito bom, visto de onde
ele estava. Sobre a mesa da cozinha, uma caixa de flocos de milho.
— Desculpe — choramingou ela, limpando o nariz com o guardanapo.
Seus olhos castanhos molhados fitaram Liebermann.
— Farei apenas algumas perguntas, Mrs. Curry. Ele pertencia a um
grupo internacional ou organização de homens da sua idade?
Ela meneou a cabeça, baixando o guardanapo.
— A grupos americanos — respondeu. — A Legião, Amvets, Rotary...
não, este é internacional. O Rotary Club. É o único.
— Era veterano da Segunda Guerra Mundial?
Ela acenou afirmativamente.
— Da Força Aérea. Ganhou a CMA, a Cruz de Mérito Aeronáutico.
— Na Europa?
— No Extremo Oriente.
— Esta pergunta agora é pessoal, mas espero que não se importe. Ele
deixou dinheiro para a senhora?
Ela assentiu cautelosamente.
— Não deixou muito...
— Onde nasceu?
— Em Berea, Ohio. — Ela olhou para além dele, e com um sorriso
penoso perguntou: — O que você está fazendo fora da cama?
Ele voltou-se. O jovem Döring estava parado à porta. Emil, não, Erich
Döring, magro e narigudo, cabelo revolto, de pijama listrado azul e branco,
descalço. Cocava o peito, olhando com curiosidade para Liebermann.
Este ergueu-se, surpreso.
— Guten Morgen — proferiu, e constatou, enquanto o menino acenava,
entrando no aposento, que Emil Döring e Jack Curry se conheciam. Tinha de
ser assim, senão como se explicaria a presença do menino ali? Com emoção
crescente, virou-se para Mrs. Curry e perguntou: — O que faz este menino
aqui?
— Está gripado — explicou ela. — E, de qualquer modo, não há aula por
causa da neve. Este é Jack júnior. Não, não chegue perto, querido. Este é Mr.
Liebermann, de Viena, na Europa. É um homem famoso. Ah, onde estão
seus chinelos, Jack? O que você quer?
— Um copo de suco de grapefruit — disse o menino. Num inglês
perfeito. Com um sotaque igual ao de Kennedy.
Mrs. Curry levantou-se.
— Francamente! — exclamou — será que só vai usá-los quando não
couberem mais no seu pé? E ainda por cima resfriado! — Dirigiu-se à
geladeira.
O menino olhou para Liebermann com os olhos azul-celestes de Erich
Döring.
— Por que o senhor é famoso? — indagou.
— Ele anda atrás de nazistas. Esteve no programa de Mike Douglas, na
semana passada.
— Es ist doch ganz phantastisch!¹ — exclamou Liebermann. — Sabe
que você tem um gêmeo? Um menino exatamente igual, que mora na
Alemanha, numa cidade chamada Gladbeck.
1 "Isto é uma coisa absolutamente fantástica!" Em alemão no original. (N. do E.)

— Exatamente como eu? — redargüiu o menino, incrédulo.


— Exatamente! Nunca vi antes tamanha... semelhança. Somente irmãos
gêmeos poderiam ser assim tão parecidos!
— Jack, volte agora para a cama — ordenou Mrs. Curry, parada junto à
geladeira, com uma embalagem de papelão de suco de frutas na mão. — Eu
levo para você — disse sorrindo.
— Um minuto só — insistiu o menino.
— Já! — exclamou ela severamente. — Vai ficar pior, em vez de
melhorar, andando por aí desse jeito, sem roupão nem chinelos. Vá. —
Voltou a sorrir. — Despeça-se e vá.
— Ai, meu Deus do céu! — exclamou o menino. — Até logo! — E saiu,
emproado, do aposento.
— Olhe esses modos! — Mrs. Curry olhou-o, irritada, e em seguida para
Liebermann, e, dirigindo-se a um armário, escancarou-lhe a porta. —
Gostaria que ele pagasse as contas do médico — resmungou. — Aí então
pensaria duas vezes. — Retirou um copo.
— É espantoso! — tornou Liebermann. — Cheguei a pensar que era o
menino da Alemanha que viera visitá-la! Até a voz é a mesma, a expressão
dos olhos, o andar...
— Todos têm um sósia — retorquiu Mrs. Curry, despejando um
cauteloso jorro de refresco de grapefruit no copo verde. — A minha é de
Ohio, uma garota que meu marido conheceu antes de mim. — Pousou a
embalagem de papelão e voltou-se, com o copo cheio na mão. — Bem —
disse, sorrindo —, não quero parecer grosseira, mas, como pode perceber, há
um bocado de coisas por aqui que eu preciso arrumar. E ainda por cima
tendo Jack preso em casa. Tenho certeza de que ninguém matou meu marido
de propósito. Foi um acidente. Ele não tinha um só inimigo no mundo.
Liebermann, os olhos pestanejando, acenou com a cabeça e apanhou o
sobretudo no encosto da cadeira.
Espantosa aquela semelhança. Como dois grãos de ervilha.
E mais espantoso ainda quando, além da semelhança de seus rostos
macilentos e atitudes céticas, existe a de pais de sessenta e cinco anos e
funcionários públicos, vítimas de morte violenta, com um mês de intervalo.
E ainda a das idades de suas mães, quarenta e um ou quarenta e dois. Como
admitir tanta semelhança?
O volante tendeu para a direita. Corrigiu-o, espiando através das
sacudidelas rápidas do limpador de pára-brisas. Era preciso concentrar-se na
direção...
Não podia ser apenas coincidência, era demais. Mas o que mais poderia
ser? Seria possível que Mrs. Curry, de Lenox (que elogiava a generosidade
do finado marido), e Frau Döring, de Gladbeck (nenhum modelo de
fidelidade, ao que parecia), tivessem tido casos com o mesmo homem
macilento e narigudo, nove meses antes de seus filhos nascerem? Mesmo
nessa eventualidade improvável (um piloto da Lufthansa viajando entre
Essen e Boston!), os meninos não seriam gêmeos. E isso é o que eles eram,
absolutamente idênticos.
Gêmeos...
O principal interesse de Mengele. O objeto das suas experiências de
Auschwitz.
Então?
O velho professor de Heidelberg dissera: "Nenhuma das sugestões feitas
até agora identificou a presença do Dr. Mengele no problema".
Sim, mas os meninos não eram gêmeos, apenas pareciam.
Continuou lutando com aquilo no ônibus para Worcester.
Tinha de ser coincidência. Todo mundo tinha um sósia, conforme Mrs.
Curry dissera tão tranqüilamente. E, embora ele duvidasse da veracidade da
afirmativa, tinha de reconhecer que vira uma quantidade de gente parecida
em sua vida: um Bormann, dois Eichmanns, meia dúzia de outros. (Mas
gente parecida, não igual, e por que despejara ela com tanto cuidado o
grapefruit? Estaria então muito preocupada, receosa de que um tremor de
mão pudesse traí-la? E depois, aquilo de mandá-lo embora com pressa,
repentinamente atarefada. Deus do céu, estariam as esposas envolvidas? Mas
como? Por quê?)
A neve cessara, o sol brilhava. Massachusetts passou num relance,
colinas e casas de um branco deslumbrante.
A obsessão de Mengele por gêmeos. Todos os relatos daquele rebotalho
subumano faziam referência àquilo: as autópsias em gêmeos trucidados para
descobrir as razões genéticas de suas ligeiras diferenças, as tentativas de
realizar mudanças em gêmeos vivos...
Agora escute, Liebermann, você está ultrapassando um bocadinho os
limites. Mais de dois meses atrás, você viu Erich Döring. Durante menos de
cinco minutos. E então, agora, vendo um menino do mesmo tipo — com
uma forte semelhança, concedamos —, você mistura coisas na cabeça,
emparelha, e pronto: gêmeos idênticos, e Mengele em Auschwitz. Só porque
dois homens, entre dezessete, tinham filhos parecidos. O que há nisso de
assombroso?
Mas, e se fossem mais do que dois? E se fossem três?
Está vendo? Está ultrapassando os limites. Por que não pensar então em
quádruplos, já que começou?
A viúva de Trittau dera bola para Klaus e oferecera-lhe alguma coisa
mais. Com sessenta e tantos anos? Talvez. Mais provável que fosse mais
jovem. Quarenta e um? Quarenta e dois?
Em Worcester, pediu à sua hospedeira, uma tal de Mrs. Labowitz, para
dar um telefonema internacional.
— Eu lhe pagarei, claro.
— Mr. Liebermann, por favor! O senhor é um hóspede em nossa casa: o
telefone é seu!
Não discutiu. O local era praticamente uma mansão.
Eram cinco e quinze. Onze e quinze na Europa.
A telefonista informou que o número de Klaus não respondia.
Liebermann pediu-lhe que tentasse outra vez dentro de meia hora, e
desligou. Pensou um momento e chamou-a novamente. Virando as páginas
do seu caderno de endereços, deu-lhe o número de Gabriel Piwowar, em
Estocolmo, e de Abe Goldschmidt, em Odense.
Foi chamado ao telefone justamente quando se sentava para jantar com
quatro Labowitz e cinco convidados. Desculpou-se e foi atender na
biblioteca.
Goldschmidt. Falaram em alemão.
— De que se trata? Mais homens para eu investigar?
— Não, são os mesmos dois. Eles tinham filhos com cerca de treze anos
de idade?
— O de Bramminge tinha. Horve. Okking, de Copenhague, tinha duas
filhas de trinta e tantos anos.
— Que idade tem a viúva de Horve?
— É jovem. Fiquei surpreso. Deixe-me ver. Pouco mais jovem que
Natalie. Quarenta e dois, digamos.
— Viu o menino?
— Ele estava na escola. Devia ter falado com ele?
— Não, só queria saber que aparência tinha.
— Era um garoto magricela. Ela guardava a fotografia dele em cima do
piano, tocando violino. Falei alguma coisa, e ela disse que era antiga, de
quando ele tinha nove anos. Agora tem quase catorze.
— De cabelos escuros, olhos azuis, narigudo?
— Como posso lembrar? Cabelos escuros, sim. Os olhos, não poderia
saber, a foto não era colorida. Um menino, magricela, tocando violino, de
cabelos escuros. Pensei que você estivesse satisfeito.
— Eu também pensei. Obrigado, Abe. Até a vista. Desligou. O telefone
tocou na sua mão.
Era Piwowar. Falaram em ídiche.
— Os dois homens que você investigou tinham filhos com cerca de
catorze anos?
— Anders Runsten tinha. Persson, não.
— Você o viu?
— O filho de Runsten? Ele fez o meu retrato enquanto eu esperava pela
mãe. Brinquei com ele, dizendo que ia levá-lo para a minha loja.
— Que aparência tem?
— Pálido, magro, cabelos escuros, narigudo.
— Olhos azuis?
— Azul-claros.
— E que idade tinha a mãe, quarenta e poucos?
— Eu lhe disse?
— Não.
— Então, como você sabe?
— Não posso falar agora. Há pessoas me esperando. Até a vista, Gabriel.
Passe bem.
O telefone tocou de novo. A telefonista informou que o número de Klaus
ainda não respondia. Liebermann disse-lhe que faria outra chamada mais
tarde.
Dirigiu-se à sala de jantar, sentindo-se tonto e vazio, como se as partes
vivas do seu organismo estivessem em outro lugar (em Auschwitz?) e
somente suas roupas, pele e cabelo ali em Worcester, jantando com aquela
gente tão despreocupada.
Perguntou e respondeu às questões habituais, contou as histórias
habituais. Comeu o suficiente para não desgostar Dolly Labowitz.
Foram para o templo em dois carros. Ele proferiu a conferência,
respondeu às perguntas, assinou os livros.
Quando regressaram à casa, fez a chamada para Klaus.
— São cinco da manhã lá — lembrou-lhe a telefonista.
— Eu sei — respondeu.
Klaus atendeu, sonolento e confuso.
— O quê? Sim? Boa noite! Onde você está?
— Em Massachusetts, na América. Que idade tinha a viúva de Trittau?
— O quê?
— Que idade tinha a viúva de Trittau? Frau Schreiber.
— Deus meu! Não sei, era difícil dizer, ela tinha um bocado de
maquilagem. Muito mais moça que ele, entretanto. Trinta e muitos ou
quarenta e poucos.
— Com um filho de cerca de catorze?
— Por volta dessa idade. Pouco amistoso para comigo, mas não se pode
culpá-lo. Ela mandou-o para a casa da irmã, a fim de que pudéssemos
"conversar em particular".
— Descreva-o. Houve uma pausa.
— Magro, na altura do meu queixo, olhos azuis, cabelos castanho-
escuros, narigudo. Pálido. O que está acontecendo?
Liebermann passou os dedos pelos botões quadrados do telefone.
Redondos ficariam melhor, pensou. Quadrados, não fazia sentido.
— Herr Liebermann?
— Não é uma caçada inútil — disse ele. — Encontrei a ligação.
— Deus do céu! Qual é?
Ele inspirou profundamente e depois soltou a respiração.
— Eles têm o mesmo filho.
— O mesmo o quê?
— Filho! O mesmo filho! Exatamente o mesmo menino! Eu o vi aqui e
em Gladbeck, você o viu aí. E ele está em Göteborg, Suécia, e em
Bramminge, Dinamarca. Exatamente o mesmo menino! Toca um
instrumento musical, ou então desenha. E a mãe tem sempre quarenta e um,
quarenta e dois. Cinco mães diferentes, cinco filhos diferentes; mas o filho é
o mesmo, em diferentes lugares.
— Não... compreendo.
— Nem eu! A ligação deveria nos fornecer o motivo, não é? Em vez
disso, a coisa está mais maluca do que quando começamos! Cinco meninos
exatamente iguais!
— Herr Liebermann... acho que talvez sejam seis. Frau Rausenberger, de
Freiburg, tem quarenta e um ou dois. E um filho jovem. Não o vi, nem
perguntei sua idade — não pensei que tivesse importância —, mas ela disse
que talvez ele fosse para Heidelberg também. Não para estudar direito, mas
para seguir a carreira de escritor.
— Seis — repetiu Liebermann. O silêncio prolongou-se entre eles. Mais
ainda.
— Noventa e quatro?
— Seis já é impossível — tornou Liebermann. — Por que não, então?
Mas, ainda que fosse possível, e não o é, por que haviam de estar matando os
pais? Chego quase a pensar que vou dormir esta noite e acordar em Viena na
noite em que tudo isso começou. Sabe qual era o interesse principal de
Mengele em Auschwitz? Gêmeos. Ele matou milhares deles, "para estudos",
a fim de aprender como gerar arianos perfeitos. Quer me fazer um favor?
— Claro!
— Vá a Freiburg novamente, e dê uma olhada no garoto. Veja se não é
igualzinho ao de Trittau. Depois me diga se estou maluco ou não.
— Irei hoje. Onde poderei encontrá-lo?
— Eu telefonarei para você. Boa noite, Klaus.
— Bom dia. Mas uma boa noite para você. Liebermann pousou o fone.
— Mr. Liebermann? — Dolly Labowitz sorria-lhe da porta. — Gostaria
de assistir ao noticiário conosco? E comer uma sobremesinha? Um doce ou
uma fruta?

Os seios de Hannah haviam secado, Dena estava chorando, por isso era
natural que Hannah se preocupasse. Muito compreensível. Mas haveria
algum motivo para mudar o nome de Dena? Hannah insistia nisso.
— Não discuta comigo — dizia ela. — De agora em diante, vamos
chamá-la Frieda. É o nome perfeito para um bebê, depois disso terei leite de
novo.
— Não faz sentido, Hannah — tornou ele, paciente, andando com
dificuldade ao seu lado, através da neve. — Uma coisa nada tem a ver com a
outra.
— O nome dela será Frieda — anunciou Hannah. — Vamos mudá-lo
legalmente.
A neve abriu-se numa garganta profunda, adiante, e ela deslizou para
dentro, Dena em prantos nos seus braços. Oh, Deus! Ele olhou a neve, agora
compacta, e achou-se deitado de barriga para cima na escuridão, numa cama,
num quarto. Worcester. Labowitz. Seis meninos. Dena crescida, Hannah
morta.
Que sonho. De onde tirara aquilo? Frieda ainda por cima! E Hannah e
Dena deslizando para dentro daquele abismo...
Permaneceu imóvel por um minuto, desfazendo com o bater das
pálpebras a terrível visão, e em seguida levantou-se; uma luz clara recortava-
se por baixo das persianas móveis da janela. Foi ao banheiro.
Não acordara uma vez sequer durante a noite, realmente dormira bem.
Exceto quanto ao sonho.
Voltou ao quarto de dormir, chegou o relógio para junto de uma das
janelas, apertando os olhos. Vinte para as sete.
Voltou à cama tépida, aconchegou as cobertas e quedou-se refletindo,
com um novo vigor.
Seis meninos idênticos — não, seis meninos muito parecidos, talvez
idênticos — viviam em seis lugares diferentes, com seis mães diferentes,
todas da mesma idade, e seis pais vítimas de morte violenta, todos da mesma
idade, com ocupações semelhantes. Não era impossível, era real, um fato.
Portanto, precisava ser encarado, esclarecido, compreendido.
Imóvel e tranqüilo, deixou a mente flutuar livre. Meninos. Mães. Os
seios de Hannah. Leite.
O nome ideal para um bebê...
Santo Deus, claro. Tinha de ser.
Deixou que tudo se reunisse...
Pelo menos, uma parte.
Estava explicado o suco de grapefruit, e a maneira como a mulher o
havia despedido. A maneira como despedira o menino também. Pensara
rápido, fingindo que os seus pés descalços e a falta do roupão constituíssem
motivos de preocupação.
Permaneceu ali, na esperança de que o resto viesse. A parte principal, a
de Mengele. Mas não.
Bem, um passo de cada vez...
Levantou-se, tomou um banho de chuveiro, barbeou-se, aparou o bigode,
penteou os cabelos, tomou suas pílulas, escovou os dentes, colocou sua
ponte. Vestiu-se e arrumou a mala.
Às sete e vinte, dirigiu-se à cozinha. A empregada Francês estava lá, e
Bert Labowitz, em mangas de camisa, comia e lia. Após os cumprimentos
matinais, sentou-se diante de Labowitz e propôs:
— Tenho de ir a Boston mais cedo do que pensava. Posso ir com você?
— Certamente — respondeu Labowitz. — Sairei às cinco para as oito.
— Perfeito. Preciso dar um telefonema para Lenox.
— Aposto como alguém o avisou a respeito de Dolly, da maneira como
ela dirige.
— Não, é que surgiu um dado novo.
— Gostará mais da viagem vindo comigo.
Às quinze para as oito, na biblioteca, ele telefonou para Mrs. Curry.
— Alô?
— Bom dia, é Yakov Liebermann de novo. Espero não tê-la acordado.
Pausa.
— Eu já tinha levantado.
— Como está seu filho esta manhã?
— Não sei, ainda está dormindo.
— Isso é bom. É a melhor coisa, bastante sono. Ele não sabe que é
adotado, sabe? Por isso é que ficou nervosa quando eu lhe disse que ele tinha
um gêmeo.
Silêncio.
— Não fique nervosa, Mrs. Curry. Não vou dizer a ele. Se quiser manter
segredo, não direi uma palavra. Diga-me só uma coisa, por favor. É muito
importante. Conseguiu-o através de uma mulher chamada Frieda Maloney?
Silêncio.
— Conseguiu, ja?
— Não! Espere um minuto. — O ruído do fone sendo arriado, passos se
afastando. Silêncio. Passos voltando. Suavemente: — Alô?
— Sim?
— Nós o conseguimos através de uma agência. Em Nova York. Foi uma
adoção perfeitamente legal.
— Por intermédio da Agência Rush-Gaddis?
— Sim.
— Ela trabalhou lá de 1960 a 1963. Frieda Maloney.
— Jamais ouvi este nome antes! Por que se intromete desta maneira?
Que diferença faz se ele tiver mesmo um gêmeo?
— Não tenho certeza.
— Então, não me importune de novo! E não se aproxime de Jack! —
Estalido do fone. Silêncio.
Bert Labowitz levou-o ao Aeroporto Logan e ele pegou o vôo das nove,
da ponte aérea para Nova York.
Às dez e quarenta, estava no gabinete da assistente do diretor-executivo
da Agência de Adoção Rush-Gaddis, Mrs. Teague, uma mulher de cabelos
grisalhos, magra e bonita.
— Nenhuma — disse-lhe ela.
— Nenhuma?
— Nenhuma. Ela não selecionava casos. Carecia de habilitações para
isso. Era uma arquivista. Evidentemente, seu advogado, quando ela lutava
contra a extradição, tentou criar-lhe aspecto mais favorável, por isso
insinuou que ela desempenhava um papel mais importante aqui do que na
realidade. Mas ela era simplesmente arquivista. Cientificamos os advogados
do governo — naturalmente, estávamos bastante ansiosos para colocar
nossas ligações com ela em sua verdadeira perspectiva — e o nosso chefe de
pessoal foi convocado como testemunha. Entretanto, ela jamais foi chamada.
Pensamos em divulgar posteriormente alguma forma de declaração ou
informe, mas acabamos decidindo que, naquela altura, o melhor era
simplesmente deixar o assunto morrer.
— Então ela não procurava lares para os bebês. — Liebermann puxou o
lóbulo de sua orelha.
— Nenhum — respondeu Mrs. Teague. Sorriu para ele. — E o senhor
está calçando o sapato no pé errado: trata-se de uma questão de encontrar
bebês para os lares. A procura excede de muito a oferta. Especialmente a
partir da modificação das leis sobre o aborto. Só conseguimos atender uma
pequena fração das pessoas que a nós recorrem.
— E naquela época também? De 1960 a 1963?
— Então e sempre, mas atualmente estamos na pior fase.
— Muitos pedidos?
— Mais de trinta mil no ano passado. De todas as partes do país. Do
continente, para ser mais exata.
— Permita-me indagar-lhe o seguinte — aventou Liebermann. — Um
casal vem procurá-la, ou lhe escreve, nesse período de 1961-62. Gente boa,
em boa situação. Ele é funcionário público, emprego seguro. Ela — agora
deixe-me pensar um segundo — ela... tem cerca de vinte e oito ou vinte e
nove anos, e ele cinqüenta e dois. Que possibilidades teriam de arranjar um
bebê com a senhora?
— Nenhuma — respondeu Mrs. Teague. — Não aceitamos pedidos
quando o marido tem essa idade. Quarenta e cinco é o nosso limite, e só
chegamos a tanto quando existem fatores especiais. Aceitamos geralmente
casais com trinta e poucos — com idade bastante para serem estáveis no
casamento e suficientemente jovens para assegurar à criança uma assistência
contínua dos pais. Ou uma promessa disso, diria eu.
— Então, onde um casal como eu descrevi conseguiria um bebê?
— Não por intermédio da Rush-Gaddis. Algumas outras agências são
mais complacentes. E está claro que exista o mercado negro. O advogado ou
médico poderá saber de uma adolescente grávida que não deseje abortar. Ou
que possa ser paga para não fazer isso.
— Mas caso tenham recorrido à senhora, a senhora os recusou.
— Sim. Nunca aceitamos alguém com mais de quarenta e cinco anos.
Existem milhares de casais mais convenientes, rezando, na expectativa.
— E os pedidos recusados — aventurou Liebermann
— talvez fossem arquivados por Frieda Maloney, não?
— Por ela ou algum outro de nossos empregados — esclareceu Mrs.
Teague. — Guardamos todos os pedidos e a correspondência durante três
anos. Cinco, naquela época, mas atualmente dispomos de pouco espaço.
— Obrigado. — Liebermann levantou-se com a pasta.
— A senhora me auxiliou bastante. Agradeço-lhe muito.
Numa pequena cabine telefônica em frente ao Museu Guggenheim, com
a pasta e a mala ao seu lado, na calçada, ele telefonou para Mr. Goldwasser,
da agência de conferências.
— Tenho péssimas notícias. Preciso ir à Alemanha.
— Ah, meu Deus. Quando?
— Agora.
— Não pode! Falará esta noite na Universidade de Boston! Onde é que
você está?
— Em Nova York. Esta noite estarei num avião.
— Você não pode! Aceitou o contrato! Eles venderam os ingressos! E
amanhã...
— Eu sei, eu sei! Julga que me agrada cancelar desse jeito? Julga que
não sei que é uma dor de cabeça para o senhor e para eles, e que poderia até
mesmo processar-me? Trata-se...
— Ninguém está falando em...
— Trata-se de questão de vida ou morte, Mr. Goldwasser. Vida ou
morte. Talvez até mais.
— Que chateação! Quando volta?
— Não sei. Talvez tenha de permanecer na Alemanha por algum tempo.
E depois, ir para outro lugar.
— Quer dizer que está cancelando todo o resto da temporada?
— Acredite-me, se não tivesse que...
— Isso só me aconteceu uma vez em dezoito anos, e então se tratava de
um cantor, e não de uma pessoa responsável como você. Escute, Yakov,
admiro-o e quero muito bem a você. Estou falando não apenas como seu
representante, mas como ser humano, um outro judeu. Peço-lhe que pense
com muito cuidado: se cancelar toda uma temporada dessa maneira, de um
momento para o outro, como poderemos continuar a representá-lo? Ninguém
vai querer ser seu empresário. Nenhum grupo irá contratá-lo. Estará acabado
como conferencista nos Estados Unidos da América. Imploro-lhe: reflita,
por favor.
— Já refleti enquanto o senhor falava — respondeu ele. — Tenho de ir.
Antes não tivesse!
Tomou um táxi para o Aeroporto Kennedy e trocou a sua passagem de
volta para Viena por uma para Düsseldorf, via Frankfurt: no primeiro vôo
disponível, com partida marcada para as seis horas.
Comprou um exemplar do livro de Farago sobre Bormann e passou a
tarde junto a uma janela, lendo.
Cinco
Uma denúncia acusando Frieda Altschul Maloney e mais oito pessoas de
assassinato em massa no campo de concentração de Ravensbrück era
esperada a qualquer momento. Por isso, quando, na sexta-feira, 17 de
janeiro, Yakov Liebermann se apresentou nos escritórios dos advogados de
Frau Maloney, Zweibel & Fassler, de Düsseldorf, não recebeu acolhimento
cálido, nem sequer à temperatura ambiente. Mas Joachim Fassler era
suficientemente advogado para perceber que Liebermann não viera ali para
vangloriar-se ou matar o tempo. Devia querer alguma coisa, e portanto
alguma coisa iria oferecer, dando margem a que se pedisse algo em troca.
Por isso, após ligar o seu gravador, Fassler recebeu Liebermann no
escritório.
Tinha razão. O judeu queria ter um encontro com Frieda e interrogá-la
acerca de certos assuntos de algum modo relacionados com as suas
atividades de tempo de guerra e sem conexão com o seu próximo
julgamento. Eram assuntos americanos, envolvendo o período de 1960 a
1963. Que assuntos americanos? Adoções que ela ou alguém mais
selecionara, na base de informações obtidas dos arquivos da Agência Rush-
Gaddis.
— Nada sei de tais adoções — declarou Fassler.
— Frau Maloney sabe — retorquiu Liebermann.
Se ela o recebesse e respondesse de maneira completa e sincera às suas
perguntas, ele revelaria a Fassler alguma coisa acerca dos depoimentos que
iam ser prestados contra ela, através das testemunhas que localizara.
— Quais?
— Não os seus nomes, apenas parte de seu depoimento.
— Vamos, Herr Liebermann, sabe muito bem que não estou disposto a
comprar nabos em sacos.
— O preço é bastante barato, não? Uma hora e pouco do tempo dela?
Não deve ter muito o que fazer, sentada numa cela.
— Ela pode não querer falar sobre essas supostas adoções.
— Por que não perguntar a ela? Existem três testemunhas cujo
depoimento eu conheço. O senhor poderá ouvi-las simplesmente no tribunal,
ou então ter uma pré-estréia amanhã.
— A verdade é que não estou tão interessado assim.
— Neste caso, acho que não vamos chegar a um acordo.
Levou quatro dias para que tudo ficasse combinado. Frau Maloney
conversaria meia hora com Liebermann a respeito dos assuntos que
interessassem a ele, contanto que: a) Fassler estivesse presente; b) não
houvesse mais ninguém presente; c) nada fosse escrito; e d) Liebermann
permitisse a Fassler revistá-lo, imediatamente antes do encontro, para ver se
tinha um gravador. Em troca, Liebermann diria a Fassler tudo o que
soubesse do provável depoimento das três testemunhas, dando a idade, sexo,
ocupação e atuais condições físicas e mentais de cada uma, principalmente
em relação a cicatrizes, deformidades ou invalidez resultantes de
experiências em Ravensbrück. O depoimento e a descrição de uma
testemunha seriam fornecidos antes do encontro. Os das outras duas, após o
mesmo. Acordo de ambas as partes.
Na manhã de quarta-feira, dia 22, Liebermann e Fassler, no carro-esporte
cinza-metálico deste último, dirigiram-se à prisão federal de Düsseldorf,
onde Frieda Maloney estivera confinada desde a sua extradição dos Estados
Unidos em 1973. Fassler, homem corpulento e bem-vestido, com os seus
cinqüenta e poucos anos, estava tão corado quanto de costume, mas, ao se
identificarem e serem admitidos, ainda não havia recobrado a arrogante
segurança costumeira. Liebermann tratara com ele do depoimento da
testemunha mais prejudicial, em primeiro lugar, na esperança de que o temor
de que o pior estivesse para vir o tornasse, e através dele Frieda Maloney,
ansioso de que o encontro não deixasse de ser satisfatório.
Um guarda levou-os de elevador e conduziu-os ao longo de um corredor
atapetado, onde alguns guardas e inspetoras encontravam-se sentados em
bancos, entre portas de nogueira marcadas com letras cromadas. O guarda
abriu uma porta marcada com um G e introduziu Fassler e Liebermann numa
sala quadrada, de paredes bege, com uma mesa de entrevistas redonda e
várias cadeiras. Duas janelas, com cortinas de rede, forneciam luz em
paredes adjacentes, uma delas com grades e a outra não, o que pareceu
esquisito a Liebermann.
O guarda acendeu uma luz geral, fazendo pouca diferença no aposento já
claro. Retirou-se, fechando a porta.
Eles colocaram seus chapéus e pastas em escaninhos, tiraram os
sobretudos e os penduraram nos cabides. Liebermann ficou de braços
estirados e Fassler revistou-o, com empenho e decisão. Apalpou os bolsos do
seu sobretudo pendurado e pediu-lhe que abrisse a pasta. Liebermann
suspirou, mas desafivelou-a e abriu-a. Exibiu documentos, o livro de Farago,
fechou-a e voltou a passar-lhe a fivela.
Esclareceu suas dúvidas com relação às janelas — a que não tinha grades
dava para um pátio de muros altos lá embaixo, a gradeada tinha um telhado
escuro bem próximo — e em seguida sentou-se à mesa, de costas voltadas
para a janela sem grades. Imediatamente, porém, levantou-se, para não ficar
embaraçado quando Frieda Maloney entrasse.
Fassler abriu um pouco a janela gradeada e pôs-se a olhar por ela,
afastando a cortina bege de rede.
Liebermann cruzou os braços, de olhos postos numa garrafa e copos
envoltos em papel sobre a mesa, numa bandeja.
Ele dera informações sobre a ficha e paradeiro de Frieda Altschul às
autoridades alemãs e americanas, em 1967. A ficha fizera parte do arquivo
do Centro, e fora extraída de conversações e correspondência com dúzias de
sobreviventes de Ravensbrück (entre eles as três futuras testemunhas). O
paradeiro lhe fora fornecido por mais duas outras sobreviventes, irmãs, que
haviam localizado sua antiga guarda num hipódromo de Nova York, tendo-a
seguido até sua residência. Ele próprio nunca se encontrara com a mulher.
Não lhe agradava a perspectiva de sentar-se à mesma mesa com ela.
Independentemente de tudo o mais, sua irmã do meio, Ida, morrera em
Ravensbrück, sendo muito possível que Frieda Altschul Maloney tivesse
colaborado na sua morte.
Tirou Ida da mente. Retirar tudo do pensamento, exceto a Agência Rush-
Gaddis e os seis meninos ou mais que pareciam idênticos. Uma antiga
arquivista da Rush-Gaddis vem aí, disse consigo. Vamos sentar em torno
desta mesa e conversar um pouco, talvez eu descubra que diabo está
acontecendo.
Fassler voltou-se da janela, arregaçou o punho, franziu o olhar para o
relógio.
A porta abriu-se e Frieda Maloney entrou, de uniforme azul-claro, mãos
nos bolsos. Uma inspetora sorriu por cima de seu ombro e disse:
— Bom dia, Herr Fassler.
— Bom dia — respondeu Fassler, adiantando-se. — Como vai?
— Bem, obrigada — tornou a inspetora. Sorriu para Liebermann e
terminou fechando a porta atrás de si.
Fassler tomou Frieda Maloney pelos ombros, beijou-lhe o rosto e levou-a
a um canto, falando baixinho. Ela desaparecera atrás de sua corpulência.
Liebermann limpou a garganta e sentou-se, chegando a cadeira para mais
perto da mesa.
Acabara de ver o que já conhecia de fotografias: uma mulher de meia-
idade e aparência comum. Mais para pequena, cabelos grisalhos levantados
dos lados e ondulados em cima. Pele de aspecto doentio, de um branco
pardacento, queixo largo, boca desanimada. Olhar fatigado, porém resoluto.
No uniforme da prisão, Frieda Maloney poderia passar por uma camareira ou
garçonete sobrecarregada de trabalho. Algum dia, pensou, gostaria de
encontrar um monstro que parecesse um monstro.
Agarrou a grossa borda de madeira da mesa e tentou ouvir o que Fassler
estava dizendo.
Eles dirigiram-se à mesa.
Olhou para Frieda Maloney, e ela — enquanto Fassler puxava a cadeira
em frente — fitou-o, olhos azuis perscrutadores, boca de lábios finos caídos.
Cumprimentou com a cabeça, sentando-se.
Ele devolveu o cumprimento.
Ela esboçou um sorriso de agradecimento a Fassler e, com os cotovelos
sobre os braços da cadeira, tamborilou com os dedos na beirada da mesa,
primeiro os de uma mão, depois os da outra, bastante depressa. Em seguida,
parou e descansou-os ali, contemplando-os.
Liebermann olhou também para eles.
— São exatamente, agora — Fassler, sentado à direita de Liebermann,
consultou o relógio em seu pulso erguido —, vinte e cinco para as doze. —
Olhou para Liebermann.
Liebermann olhou para Frieda Maloney.
Ela olhou para ele. Suas sobrancelhas soergueram-se.
Ele verificou que não conseguia falar. Nenhum alento sobrava nele — só
pensamentos em torno de Ida. Seu coração batia forte.
Frieda Maloney mordeu o lábio inferior, olhou para Fassler, de novo
para Liebermann.
— Não me oponho a falar acerca da questão dos bebês — disse. — Fiz
muita gente feliz. É coisa que em nada me envergonha. — Tinha um suave
acento do sul da Alemanha. Mais agradável de ouvir do que o de Fassler,
áspero, de Düsseldorf. — E quanto à Organização dos Camaradas —
acrescentou, com desdém —, não são mais meus camaradas. Se o fossem, eu
não estaria aqui, não é verdade? Estaria na Amérrica to Sul — seus olhos
dilataram-se — lefanto a poa fita... — Ergueu a mão acima da cabeça e
estalou os dedos, gingando o torso, num arremedo do ritmo latino.
— Acho que seria melhor — Fassler dirigiu-se a ela — que você
contasse a ele tudo que contou para mim. — Voltou-se para Liebermann. —
E aí então o senhor poderia fazer as perguntas que quisesse. Conforme o
tempo permita. Concordam?
O alento voltou.
— Sim — assentiu Liebermann. — Contanto que haja tempo suficiente
para as perguntas.
— Você não vai contar de fato os minutos, vai? — indagou Frieda
Maloney a Fassler.
— Certamente que vou — retorquiu ele. — Acordo é acordo. — E para
Liebermann: — Haverá tempo suficiente, não se preocupe. — Olhou para
Frieda Maloney e acenou com a cabeça.
Ela cruzou as mãos sobre a mesa, olhando para Liebermann.
— Um homem da Organização entrou em contato comigo — declarou
ela. — Em 1960, na primavera. Um tio meu da Argentina falara-lhes a meu
respeito. Ele já morreu. Queriam que eu me empregasse numa agência de
adoção. Alois — isto é, o homem — tinha uma lista de três ou quatro delas.
Qualquer uma poderia servir, contanto que fosse um serviço através do qual
eu pudesse consultar os arquivos. "Alois" foi o único nome que ele me deu,
sem sobrenome. Mais de setenta, de cabeça branca. O tipo do antigo
soldado, de postura muito empertigada. — Seus olhos interrogaram
Liebermann.
Ele permaneceu impassível, e ela recostou-se na cadeira, examinando as
unhas.
— Fui a todos os lugares — continuou. — Não havia vagas. Após o
verão, porém, Rush-Gaddis chamou-me e me contratou. Como arquivista. —
Ela sorriu, divertida. — Meu marido pensou que eu estava maluca, aceitando
emprego em Manhattan. Trabalhava então num ginásio, a apenas onze
quarteirões de casa. Disse-lhe que na Rush-Gaddis me haviam prometido
que dentro de um ano mais ou menos eu estaria...
— Apenas o essencial, está bem? — atalhou Fassler. Frieda Maloney
franziu a testa, assentiu com a cabeça.
— Muito bem, então. Rush-Gaddis. — Olhou para Liebermann. — O
que fiz lá consistia em percorrer a correspondência e os arquivos, à procura
de pedidos em que o marido houvesse nascido entre 1908 e 1912 e a esposa
entre 1931 e 1935. O marido tinha de ter emprego no serviço público, e os
dois deveriam ser cristãos, brancos e de origem nórdica. Foi o que Alois me
disse. Sempre que achava um, e isso ocorria apenas uma ou duas vezes por
mês, copiava-o na máquina juntamente com toda a correspondência trocada
entre o casal e a Rush-Gaddis. Preparava duas cópias, uma para Alois e outra
para mim. A dele, enviava para a caixa postal que me indicara.
— Onde? — indagou Liebermann.
— Ali mesmo, em Manhattan. Na Estação Planetarium, no West Side.
Continuei fazendo isso — procurar o tipo certo de pedidos e expedi-los —
durante todo o tempo que estive lá. Depois de um ano, mais ou menos, ficou
ainda mais difícil, pois já vasculhara os arquivos nessa altura e só tinha os
novos pedidos para consultar. O dado referente ao serviço público se
modificara, então: bastava que o emprego fosse semelhante ao serviço
público. O homem deveria pertencer a uma grande organização e exercer
alguma autoridade. Um avaliador de companhia de seguros, por exemplo.
Então, tive de recorrer aos arquivos novamente. Ao todo, devo ter expedido
quarenta ou quarenta e cinco.propostas durante os três anos. Cópias de
propostas.
Ela inclinou-se para diante e pegou um dos copos envoltos em papel da
bandeja, girando-o nas mãos.
— Entre... vejamos, o Natal de 1960 e o fim do verão de 1963, quando
terminei e saí, era assim que acontecia: Alois ou um outro homem, Willi,
telefonava para mim. Geralmente Willi. Dizia: "Veja se... 'os Smith', da
Califórnia, querem um para março. Ou qualquer outro mês, geralmente dois
meses depois. Consulte 'os Brown', de Nova Jersey, também". Às vezes me
dava três nomes. — Olhou para Liebermann, explicando: — Gente cujos
pedidos eu expedira anteriormente, H Ele assentiu.
— Pois bem. Aí, eu telefonava para os Smith e os Brown. — Ela retirou
o papel que envolvia o topo do copo. — Eu lhes dizia que um antigo vizinho
deles me informara que estavam querendo um bebê. Estariam ainda
interessados? Quase sempre estavam. — Olhou desafiadoramente para
Liebermann. — Não apenas interessados. Rejubilantes. As mulheres
especialmente. — Segurou o copo na mão, retirando-o pouco a pouco do
invólucro. — Eu lhes dizia que poderia arranjar um, uma criança branca, de
boa saúde, com algumas semanas de nascida, em março ou quando fosse.
Com documentos de adoção do Estado de Nova York. Mas primeiro tinham
de me enviar o mais cedo possível relatórios médicos completos — dava-
lhes o número da caixa postal de Alois — e também teriam de prometer
jamais dizer à criança que fora adotada. A mãe fazia questão disso, dizia eu.
E evidentemente teriam de pagar-me alguma coisa quando viessem apanhar
o bebê, se o conseguissem. Mil, geralmente, às vezes mais, se pudessem.
Isso eu podia verificar através da proposta. O bastante para que parecesse um
ajuste comum de mercado negro.
Amassou o invólucro de papel e colocou-o na bandeja, tirando a rolha da
garrafa.
— Algumas semanas depois eu recebia novo telefonema. "Smith não
serve. Brown poderá recebê-lo a 15 de março." Ou talvez... — Ela inclinou a
garrafa sobre o copo; inclinou mais; nada saiu. — Típico — resmungou,
virando de cabeça para baixo a garrafa preta. — Típico da maneira como
este maldito lugar é dirigido! Os copos são envoltos em papel, mas não há
água na droga da garrafa! Deus do céu! — Depositou a garrafa com
violência sobre a bandeja, fazendo com que os copos pulassem.
Fassler levantou-se.
— Vou providenciar — disse, apanhando a garrafa. — Prossiga. —
Dirigiu-se à porta.
Frieda Maloney voltou-se para Liebermann:
— Podia lhe contar umas coisas acerca da enorme incompetência que
existe aqui... Céus! Pois bem. Sim, aí ele me dizia quem receberia o bebê e
quando. Ou talvez os dois casais servissem, e então ele me diria para
telefonar para o segundo e dizer-lhes que era tarde demais, mas que eu sabia
de uma outra moça que esperava para junho. — Rolou o copo entre as
palmas da mão, de lábios franzidos.
— Na noite em que o bebê era entregue — prosseguiu — tudo era
preparado de antemão com muito cuidado. Tanto por mim como por Alois
ou Willi, tanto por mim como pelo casal. Eu estaria num aposento do Motel
Howard Johnson, no Aeroporto Kennedy — antigo Idlewild —, usando o
nome de Elizabeth Gregory. O bebê chegava às minhas mãos por intermédio
de um jovem casal ou de uma mulher sozinha, às vezes uma aeromoça.
Alguns deles trouxeram mais de um — em ocasiões diferentes, quero dizer
—, mas geralmente em cada ocasião vinha uma pessoa diferente. Traziam os
papéis também. Exatamente como se fossem verdadeiros, com os nomes do
casal preenchidos. Uma hora ou duas depois, o casal aparecia e apanhava o
bebê. Ficavam radiantes. Cheios de gratidão para comigo. — Olhou para
Liebermann. — Boas pessoas, que dariam bons pais. Pagavam-me e
prometiam — eu os fazia jurar sobre a Bíblia ali mesmo — jamais dizer à
criança que era adotada. Eram sempre meninos. Umas graças. Eles os
apanhavam e iam * embora.
— Sabia de onde eles vinham? — indagou Liebermann.
— Originalmente, quero dizer?
— Os meninos? Do Brasil. — Frieda Maloney desviou o olhar. — As
pessoas que os traziam eram brasileiras — acrescentou, estendendo a mão —
, e as aeromoças, da Varig, uma linha aérea brasileira. — Recebeu a garrafa
de Fassler, chegou-a ao copo, despejou a água. Fassler deu a volta à mesa e
sentou-se.
— Do Brasil... — disse Liebermann.
Frieda Maloney bebeu, pousando a garrafa na bandeja. Bebeu, arriou o
copo, passou a língua nos lábios.
— Quase sempre tudo transcorria com a precisão de um cronômetro. —
Certa vez o casal não apareceu. Telefonei e me disseram que haviam
mudado de idéia. Aí então levei o bebê para minha casa e providenciei a
vinda do casal seguinte. Documentos novos outra vez. Disse a meu marido
que houvera uma confusão na Rush-Gaddis e que ninguém tinha lugar para a
criança. Ele não sabia nada de nada. Até hoje não sabe. E eis tudo. Ao todo,
deve ter havido cerca de vinte bebês. Alguns, próximos uns dos outros, no
começo; depois disso, um a cada dois ou três meses. — Ergueu o copo e
tomou um gole.
— Doze minutos — anunciou Fassler, olhando o relógio. Sorriu para
Liebermann. — Está vendo? Ainda tem dezessete minutos.
Liebermann olhou para Frieda Maloney.
— Que aparência tinham os bebês? — perguntou-lhe.
— Eram lindos — respondeu ela. — Olhos azuis, cabelos escuros. —
Eram todos parecidos, mais parecidos do que de costume. Do tipo europeu,
não brasileiro: pele clara e olhos azuis.
— Disseram-lhe que eles eram do Brasil ou deduziu isso apenas de...
— Nada me disseram sobre eles. Apenas a noite e a hora em que seriam
trazidos para o motel.
— De quem seriam os bebês, segundo acha?
— A opinião dela — atalhou Fassler — certamente não tem a menor
importância.
Frieda Maloney teve um gesto dissuasivo.
— Que diferença faz? — redargüiu, e dirigiu-se a Liebermann: —
Imaginei que fossem filhos de alemães da América do Sul. Filhos ilegítimos,
talvez de moças alemãs e rapazes sul-americanos. Quanto ao motivo por que
a Organização os estaria passando para a América do Norte, e escolhendo as
famílias tão cuidadosamente, disso eu não fazia a mínima idéia.
— Não perguntou?
— Bem... no princípio, quando Alois me falou do tipo de propostas a que
devia dar preferência, perguntei-lhe para que tudo aquilo. Ele ordenou-me
que não fizesse perguntas, apenas fizesse o que me mandavam. Pela pátria.
— E estou certo de que você sabia — lembrou-lhe Fassler — que, se não
colaborasse, ele poderia expô-la ao tipo de vexame que acabou ocorrendo
anos depois.
— Sim, claro — retorquiu Frieda Maloney. — Eu sabia disso.
Naturalmente.
Liebermann aventurou:
— Os vinte casais a quem entregou os bebês...
— Cerca de vinte — retificou Frieda Maloney. — Talvez um pouco
menos.
— Eram todos americanos?
— Está querendo dizer... dos Estados Unidos? Não, alguns eram
canadenses. Cinco ou seis. Os demais, dos Estados Unidos.
— Nenhum europeu?
— Não.
Liebermann permaneceu calado, esfregando o lóbulo da orelha.
Fassler olhou para o relógio.
— Lembra-se dos nomes deles? — indagou Liebermann.
Frieda Maloney sorriu.
— Foi há treze, catorze anos. Lembro-me de um, Wheelock, porque eles
me deram um cachorro e telefonei-lhes algumas vezes, pedindo conselhos.
Eram criadores de Dobermanns. Os Henry Wheelock, de New Providence,
Pensilvânia. Falei que estávamos pensando em arranjar um, por isso
trouxeram Sally, então com apenas dez semanas, quando vieram buscar o
bebê. Um cão lindo. Ainda a temos. Meu marido ainda a tem.
— Guthrie? — indagou Liebermann.
Frieda Maloney fitou-o e acenou com a cabeça.
— Sim — assentiu. — O primeiro foi Guthrie, isso mesmo.
— De Tucson.
— Não. De Ohio. Não, Iowa. Sim, Ames, de Iowa.
— Eles mudaram-se para Tucson — asseverou Liebermann. — Ele
morreu num acidente em outubro último.
— Ah, sim?
— Quem veio em seguida, depois dos Guthrie? Frieda Maloney meneou
a cabeça.
— Nessa altura houve vários, com intervalo de apenas duas semanas.
— Curry?
Ela olhou para Liebermann.
— Sim — confirmou. — De Massachusetts. Mas não logo depois dos
Guthrie. Espere um minuto agora. Os Guthrie foram no fim de fevereiro, em
seguida veio outro casal, de um lugar do sul... Macon, acho, e depois os
Curry. Em seguida os Wheelock.
— Duas semanas depois dos Curry?
— Não, dois ou três meses. Após os três primeiros, começaram a se
distanciar.
— Você morreria se eu tomasse nota disso? — indagou Liebermann a
Fassler. — Não vai prejudicá-la; isso aconteceu na América, há tanto tempo.
Fassler carregou o sobrolho e suspirou.
— Está bem — assentiu.
— Por que é tão importante? — indagou Frieda Maloney.
Liebermann retirou a caneta e encontrou um pedaço de papel no bolso.
— Como se escreve "Wheelock"? — perguntou. Ela soletrou para ele.
— New Providence, Pensilvânia?
— Sim.
— Procure lembrar-se: exatamente quanto tempo depois dos Curry eles
apanharam o seu bebê?
— Não me lembro exatamente. Dois ou três meses. Não havia um
esquema regular.
— Mais perto de dois ou de três meses?
— Ela não se lembra — atalhou Fassler.
— Está bem — acedeu Liebermann. — Quem veio depois dos
Wheelock?
Frieda Maloney suspirou.
— Não me lembro quem veio e quando. Foram vinte, num espaço de
dois anos e meio. Houve um Truman, que não era parente de Truman, o
presidente. Acho que foi um dos casais canadenses. E houve um... "Corwin"
ou "Corbin", qualquer coisa parecida. Corbett.
Ela lembrou-se de mais três nomes e de seis cidades. Liebermann
anotou-os.
— Tempo — anunciou Fassler. — Quer ter a gentileza de me esperar lá
fora?
Liebermann pôs de lado a caneta e o papel. Olhou para Frieda Maloney e
acenou com a cabeça.
Ela respondeu ao cumprimento.
Ele levantou-se e dirigiu-se ao cabide. Pôs o sobretudo no braço e tirou o
chapéu e a pasta do escaninho. Caminhou para a porta, parou, ficou imóvel e
voltou-se.
— Gostaria de fazer mais uma pergunta.
Eles o fitaram. Fassler acenou afirmativamente. Liebermann olhou
Frieda Maloney e indagou:
— Quando é o aniversário do seu cachorro? Ela olhou-o, atônita.
— Sabe? — insistiu ele.
— Sim — respondeu ela —, 26 de abril.
— Obrigado — tornou ele, e para Fassler: — Por favor, não demore
muito, quero acabar logo com isso.
Voltou-se, abriu a porta e saiu para o corredor.
Sentou-se no banco, fazendo alguns cálculos com auxílio da caneta e de
um calendário de bolso. A inspetora, sentada ao lado do seu casaco dobrado,
indagou:
— Acha que vai conseguir libertá-la?
— Não sou advogado.
Fassler, enfiando o seu carro por entre o tráfego engarrafado, declarou:
— Estou completamente aturdido. Quer me dizer, por favor, o que fazia
a Organização nesse negócio dos bebês?
— Desculpe — retorquiu Liebermann —, mas isso não faz parte do
nosso acordo.
Como se ele soubesse.

Voltou a Viena. Onde, em face de um mandado judicial, as escrivaninhas


e arquivos estavam sendo transferidos para um local encontrado por Max,
dois quartos pequenos num prédio em ruínas do 15.° Distrito. Portanto, ele
tinha de se mudar imediatamente — Lili já estava procurando — para um
apartamento menor e mais barato (adeus, Glanzer, seu patife). E onde, com
uma coisa e outra — dois meses de adiantamento para os escritórios,
honorários de advogados, despesas de mudanças, conta do telefone —, mal
restava em caixa para comprar uma passagem para Salzburg, quanto mais
para Washington.
Que era para onde tinha de ir, na semana depois da próxima, 4 ou 5 de
fevereiro.
Deu explicações a Max e Ester, enquanto eles tornavam a nova sede
mais parecida com o Centro de Informação de Crimes de Guerra e menos
com H. Haupt & Filho, Novidades em Propaganda.
— Os Guthrie e os Curry — disse, raspando o segundo H da vidraça da
porta com uma gilete envolta em um pedaço de papel — obtiveram seus
bebês com cerca de quatro semanas de intervalo, no final de fevereiro e no
final de março, em 1961. E Guthrie e Curry foram mortos com quatro
semanas de intervalo, um dia adiante na mesma ordem. Os Wheelock
obtiveram o seu bebê por volta de 5 de julho — isso eu sei porque eles
deram a Frieda Maloney um cachorrinho de dez semanas de idade, nascido a
26 de abril...
— O quê? — Ester voltou-se e olhou-o. Ela segurava um mapa junto à
parede, enquanto Max pregava as tachas.
—...e do final de março a 5 de julho — prosseguiu Liebermann,
raspando — são aproximadamente catorze semanas. Portanto, há uma boa
probabilidade de que Wheelock venha a ser morto por volta de 22 de
fevereiro, catorze semanas depois de Curry. E quero estar em Washington
duas ou três semanas antes.
— Acho que estou seguindo seu raciocínio — disse Ester.
— Como não seguir? Eles estão sendo mortos na mesma ordem em que
obtiveram os bebês, e no mesmo espaço de tempo. A pergunta é: por quê?
A pergunta, achava Liebermann, teria de esperar. Acabar com os
assassinatos, qualquer que fosse o seu motivo, eis o que importava, e a sua
melhor possibilidade de consegui-lo seria através do Departamento Federal
de Investigações dos Estados Unidos. Eles não teriam dificuldades em
confirmar que os dois homens mortos em "acidentes" eram pais de filhos
parecidos, ilegalmente adotados, e que Henry Wheelock era um terceiro (ou
quarto, se confirmassem a hipótese de um em Macon). Em 22 de fevereiro,
aproximadamente, poderiam capturar o futuro matador de Wheelock e saber
por intermédio dele as identidades, e talvez mesmo as datas dos outros cinco.
(Liebermann acreditava agora que os seis matadores trabalhavam sozinhos,
não aos pares, devido à proximidade no tempo dos assassinatos de Döring,
Guthrie, Horve e Runsten — todos em países diferentes.)
Poderia também, mais facilmente, procurar o Departamento Federal de
Investigações Criminais, de Bonn, uma vez que estava certo de que numa
agência de adoção alemã (e uma inglesa e três escandinavas) uma Frieda
Maloney pesquisara seus fichários e distribuíra bebês. Klaus achara o
menino de Freiburg idêntico ao de Trittau, e o próprio Liebermann, quando
em Düsseldorf, telefonara para as Frauen Döring, Rausenberger e Schreiber,
obtendo como resposta ao "Diga-me, por favor, seu filho é adotivo?", dois
"sim" surpresos e cautelosos, um furioso "não", e três ordens para se meter
com a sua vida.
Mas em Bonn não teria nova vítima a apresentar, e a explicação de como
fizera Frieda Maloney falar não seria bem recebida. Ele próprio tampouco
seria bem recebido, ao contrário do que esperava em relação a Washington.
Além do mais, nas profundezas de seu coração judeu, não confiava nas
autoridades alemãs tanto quanto nas americanas, no que se referia a questões
nazistas.
Portanto, Washington e o FBI.
Sentou-se ao telefone, na nova sede, telefonando para velhos
colaboradores.
— Não me agrada imprensá-lo desta maneira, mas, acredite-me, é
importante. É a respeito de alguma coisa que está acontecendo atualmente,
envolvendo seis homens das ss e Mengele. — Inflação, alegavam eles.
Recessão. Os negócios andavam péssimos. Começou a lembrar os pais
mortos, os Seis Milhões — coisa que odiava fazer, utilizando a culpa como
angariadora de fundos. Conseguiu algumas promessas. — Por favor,
imediatamente — dizia. — É importante.
— Mas não é possível — ponderava Lili, pondo com a colher uma
segunda porção avantajada de bolinhos de batata no seu prato. — Como
pode haver tantos meninos parecidos?
— Querida — retorquia-lhe Max, do outro lado da mesa —, não diga
que não é possível. Yakov viu. O seu amigo de Heidelberg viu.
— Frieda Maloney viu — assegurou Liebermann. — Os bebês eram
todos parecidos, mais do que de costume.
Lili, virando-se para o lado, imitou o gesto de quem cospe.
— Tomara que morra.
— O nome que ela usou — informou Liebermann — — foi Elizabeth
Gregory. Tencionava perguntar-lhe se lhe sugeriram o nome ou ela própria o
escolhera, mas esqueci.
— Qual a diferença? — indagou Max, mastigando.
— "Gregory" — tornou Lili. — O nome que Mengele usou na
Argentina.
— Ah, sim, claro.
— Deve ter sido idéia dele — asseverou Liebermann. — Tudo deve ter
sido idéia dele, a operação toda. Ele endossou a coisa toda, ainda que não o
pretendesse.
Chegou algum dinheiro — da Suécia e dos Estados Unidos — e
Liebermann reservou uma passagem para Washington, via Frankfurt e Nova
York, para terça-feira, 4 de fevereiro.

Na noite de sexta-feira, 31 de janeiro, Mengele usava o nome Mengele.


Voara com os seus guarda-costas para Florianópolis, na ilha de Santa
Catarina, mais ou menos a meio caminho entre São Paulo e Porto Alegre,
onde, no salão de festas do Hotel Novo Hamburgo, decorado para a ocasião
com suásticas e flâmulas vermelhas e negras, os Filhos do Nacional-
Socialismo davam um jantar-dançante a cem cruzeiros por cabeça. Que
emoção quando Mengele apareceu! Os nazistas importantes, os que haviam
desempenhado papéis de grande importância no Terceiro Reich e eram
conhecidos no mundo todo, costumavam mostrar-se esnobes com relação
aos Filhos, recusando os seus convites sob pretexto de doença e fazendo
comentários irritadiços a respeito do seu líder, Hans Stroop (que, até mesmo
os Filhos reconheciam, às vezes excedia-se na sua imitação de Hitler). Mas
ali estava o próprio Herr Doktor Mengele, em pessoa e de dinner jacket
branco, apertando mãos, beijando rostos, sorrindo, rindo, repetindo novos
nomes. Que gentileza a sua de vir! E como parecia saudável e feliz!
E estava. Por que não? Era o dia 31, não era? Amanhã pintaria mais três
cruzes no quadro e completaria mais da metade da primeira coluna —
dezoito. Comparecia a todos os bailes e festas realizados naqueles dias.
Numa reação, é claro, à angústia e depressão pelas quais passara em
novembro e início de dezembro, quando chegara a parecer que \
Liebermann, aquele canalha judeu, ia estragar tudo. Bebericando
champanha naquele alegre salão de festas, repleto de admiradores arianos,
alguns dos homens em uniformes nazistas (semicerrando os olhos, era
Berlim nos anos 30), lembrava-se com assombro do estado em que se
encontrava há menos de dois meses. Absolutamente dostoievskiano!
Conspirando, planejando, providenciando como recobrar-se se a
Organização o traísse (o que estiveram prestes a fazer, não havia dúvidas
quanto a isso). Mas aí, Liebermann conduzira Mundt a um giro pela França,
e Schwimmer, através de cidades erradas da Inglaterra; finalmente desistira,
graças a Deus, ficando em casa, na suposição, sem dúvida, de que o seu
jovem subordinado americano se enganara. (Graças a Deus, também, tinham
chegado até ele, antes que houvesse de fato passado a fita para Liebermann.)
Portanto, beberiquemos champanha e comamos estes deliciosos e pequenos
não-sei-o-quê ("Um prazer estar aqui! Obrigado! "), enquanto o pobre
Liebermann, segundo The New York Times, anda pelos rincões da América
entregue ao que, pelo que se pode depreender nas entrelinhas da propaganda
sob controle judaico, não passa de' um giro de conferências da mais ínfima
importância. E é inverno lá! Neve, por favor, Deus; muita neve.
Sentou-se no tablado, com Stroop à sua esquerda. Foi saudado por ele de
forma bastante eloqüente — o homem não era o perfeito idiota que esperava
— e voltou sua atenção para a maravilhosa loura à sua direita. A Miss
Nazista do ano passado, eis o que ela era, o que não era de admirar. Embora
de aliança de casada agora e — o olhar dele não se enganava — grávida de
quatro meses. Marido no Rio, a negócios, e emocionada de estar sentada ao
lado de tão ilustre... Quem sabe? Sempre poderia pernoitar, e regressar,
glorioso, bem cedo.
Enquanto dançava com a grávida Miss Nazista, descendo aos poucos a
mão em direção ao seu traseiro realmente magnífico, Farnbach aproximou-
se, dançando, e cumprimentou:
— Boa noite! Como vai? Soubemos que o senhor estava aqui e viemos
de penetra. Permite que lhe apresente minha esposa Use? Querida, Herr
Doktor Mengele.
Manteve-se dançando no mesmo lugar e sorrindo, achando que bebera
demais, mas Farnbach não desapareceu ou se transformou em alguma outra
pessoa. Continuou Farnbach — tornou-se mais Farnbach, na verdade.
Cabeça raspada, lábios grossos, apresentando-se, de olhar faminto, à Miss
Nazista, enquanto a mulherzinha feiosa em seus braços tartamudeava coisas
como "honra", "prazer" e "embora o senhor tenha tirado Bruno de mim!"
Parou de dançar, soltou os braços.
Farnbach explicou-lhe, alegre:
— Estamos no Excelsior. Uma pequena segunda lua-de-mel.
Ele fitou-o e disse:
— Você devia estar em Kristianstad. Preparando-se para matar
Oscarsson.
Arquejo da mulher feiosa. Farnbach empalideceu, de olhos postos nele.
— Traidor! — berrou ele. — Porco de uma... — As palavras não
bastavam. Atirou-se sobre Farnbach e agarrou-lhe o pescoço grosso.
Empurrou-o de costas, de roldão por entre os dançarinos, estrangulando-o,
enquanto as mãos de Farnbach puxavam-lhe os braços. O inqualificável
estava agora de rosto vermelho, olhos azuis esbugalhados. Um grito de
mulher, gente se voltando: "Oh, meu Deus!" Uma mesa deteve Farnbach,
desequilibrando-se; gente recuou. Ele derrubou Farnbach, estrangulando-o.
A mesa afinal tombou, despejando pratos e talheres, derramando sopa no
crânio raspado de Farnbach, banhando-lhe o rosto arroxeado.
Mãos puxaram Mengele, mulheres berraram, a música estilhaçou-se e
morreu. Rudi deu um arranco nos pulsos de Mengele, fitando-o, súplice.
Largou-o, deixou que o pusessem de pé e os separassem, firmou-se nos pés.
— Este homem é um traidor! — gritou para todos. — Traiu a mim, traiu
a vocês! Traiu a raça! Traiu a raça ariana!
Um guincho da mulher feiosa, ajoelhada ao lado de Farnbach, enquanto,
rubro e molhado, ele esfregava o pescoço, arquejante.
— Tem vidro na cabeça dele! — gritou ela. — Oh, meu Deus! Chamem
um médico! Oh, Bruno, Bruno!
— Este homem devia ser morto — explicou Mengele, ofegante, aos
homens ao seu redor. — Traiu a raça ariana. Recebeu uma missão a cumprir,
um dever de soldado. Preferiu não o cumprir.
Os homens olhavam confusos e inquietos. Rudi esfregava os pulsos
avermelhados de Mengele.
Farnbach tossiu, tentando dizer alguma coisa. Empurrou de seu rosto a
mão da esposa que segurava um guardanapo e soergueu-se no braço,
erguendo o olhar para Mengele. Tossiu, esfregando o pescoço. A esposa
agarrava-lhe os ombros molhados.
— Não se mexa! — exclamou ela. — Oh, Deus! Onde é que tem um
médico?
— Eles! — vociferou Farnbach. — Me chamaram! De volta! — Uma
gota de sangue deslizou pela frente da sua orelha direita e transformou-se
num pequeno brinco de rubi, pendurado, crescendo.
Mengele empurrou os homens, baixando o olhar.
— Segunda-feira! — disse-lhe Farnbach. — Eu estava em Kristianstad!
Preparando as coisas para... — olhou para os demais, para Mengele — o que
eu tinha de fazer!
— Seu brinco de sangue caiu. Um outro começou a crescer no seu lugar.
— Eles me chamaram a Estocolmo e disseram
— olhou em direção à mulher, voltou os olhos para Mengele — a um
conhecido meu que eu devia regressar. Para a sede da minha companhia.
Imediatamente.
— Está mentindo — retrucou Mengele.
— Não! — exclamou Farnbach. O seu brinco de sangue caiu. — Todos
voltaram! Um estava na... sede, quando cheguei. Dois já haviam estado.
Outros dois iam chegar.
Mengele fitou-o, engolindo.
— Por quê? — indagou.
— Não sei — respondeu-lhe Farnbach, com desdém. — Não faço mais
perguntas. Faço como me mandam.
— Onde é que tem um médico? — guinchava a esposa.
— Já está a caminho — anunciou alguém da porta.
— Eu... sou médico — proferiu Mengele.
— Não chegue perto dele! Olhou a esposa de Farnbach.
— Cale-se — disse. Olhou em torno. — Alguém tem um par de pinças?
No gabinete do diretor social, retirou lascas de vidro da nuca de
Farnbach com pinças e uma lente de aumento, enquanto Rudi segurava uma
lâmpada, ao lado.
— Apenas algumas mais — informou, deixando cair uma lasca dentro de
um cinzeiro.
Farnbach, sentado em posição recurvada, nada falava. Mengele aplicou
com pancadinhas o desinfetante sobre os talhos e cobriu-os com gaze e
esparadrapo.
— Lamento muito — declarou.
Farnbach levantou-se, alisou o casaco úmido. — E quando — indagou
— saberemos por que fomos enviados? Mengele fitou-o por um momento, e
respondeu:
— Julguei que havia parado de fazer perguntas. Farnbach girou sobre os
calcanhares e saiu. Mengele entregou as pinças a Rudi e despediu-o,
ordenando:
— Procure Tin-tin. Logo partiremos. Mande-o na frente avisar Enrico. E
feche a porta.
Guardou de volta as coisas no estojo de emergência, sentou-se à
escrivaninha desarrumada, tirou os óculos, enxugou a testa com a palma da
mão. Retirou a cigarreira. Acendeu um cigarro e puxou uma baforada,
largando o fósforo sobre as lascas de vidro. Pôs de novo os óculos e retirou o
caderno de endereços.
Telefonou para o número da residência de Seibert. Uma empregada
brasileira, com risadinhas, participou-lhe que o senhor e a senhora haviam
saído, ela não sabia para onde.
Tentou a sede, não esperando que atendessem. Não atenderam.
Siegfried, o filho de Ostreicher, forneceu-lhe outro número, onde o
próprio Ostreicher atendeu o telefone.
— Quem está falando é Mengele. Estou em Florianópolis. Acabo de ver
Farnbach.
Pausa, e depois:
— Droga. O coronel ia avisá-lo pela manhã. Vinha adiando. Está muito
contrariado a esse respeito. Lutou desesperadamente.
— Faço idéia — retorquiu Mengele. — O que aconteceu?
— É aquele filho da puta do Liebermann. Esteve com Frieda Maloney na
semana passada.
— Ele está na América! — exclamou Mengele.
— Só se a América mudou para Düsseldorf. Ela deve ter-lhe fornecido
toda a versão de sua parte na coisa. O advogado dela perguntou a alguns de
nossos amigos como se explicava que estivéssemos fazendo mercado negro
de bebês nos anos 60. Convenceu-os de que era verdade, e eles nos
consultaram. Rudel chegou domingo passado, houve uma reunião de três
horas. Seibert queria muito que você estivesse lá. Rudel e alguns dos outros,
não... e foi tudo. Os homens chegaram na terça e na quarta.
Mengele empurrou os óculos para cima e gemeu, as mãos sobre os olhos.
— Mas por que não poderiam simplesmente eliminar Liebermann? São
lunáticos, judeus, ou o quê? Mundt teria exultado com a oportunidade.
Queria fazê-lo por sua própria conta, desde o começo. Ele, por si só, é mais
capaz que todos os seus coronéis reunidos.
— Gostaria de ouvir as razões deles?
— Prossiga. Se eu vomitar enquanto estiver falando, por favor me
desculpe.
— Dezessete dos homens estão mortos. Isso significa, segundo os seus
cálculos, que poderemos estar certos de um ou mesmo dois sucessos. E
talvez um ou dois mais entre os outros, já que alguns homens morrerão
naturalmente aos sessenta e cinco anos. Liebermann ainda não sabe de tudo,
pois Maloney também não sabe. Mas ela pode ter se lembrado de nomes, e,
se o fez, o próximo passo lógico de Liebermann será tentar capturar Hessen.
— Então tragam-no de volta! Somente ele! Por que todos os seis?
— Foi o que Seibert ordenou.
— E então?
— É aí que você vai vomitar. A coisa toda ficou muito perigosa, segundo
Rudel. Acabará pondo a Organização em evidência, como também o faria o
assassinato de Liebermann. Melhor contentar-se com um ou dois sucessos,
ou mesmo mais — que serão suficientes, não? — e terminar com tudo. Que
Liebermann passe o resto da vida atrás de Hessen.
— Mas ele não o fará. Acabará descobrindo a verdade e voltando a
atenção para os meninos.
— Talvez sim, talvez não.
— A verdade — asseverou Mengele, tirando os óculos — é que eles são
um punhado de velhos cansados que perderam os colhões. Querem apenas
morrer de velhice nas suas vilas à beira-mar. Pouco lhes importa que os seus
netos sejam os últimos arianos num mundo de merda. Por mim, colocava-os
diante de um pelotão de fuzilamento.
— Vamos lá, eles nos ajudaram a chegar até aqui.
— E se meus cálculos estiverem errados? E se a possibilidade não for de
uma em dez, mas de uma em vinte? Ou trinta? Ou noventa e quatro? Onde
estaremos então?
— Olhe, se dependesse de mim, mataria Liebermann, sem pensar nas
conseqüências, e prosseguiria com os outros. Estou do seu lado. Seibert
também está. Sei que não acredita, mas ele lutou bastante. Tudo seria
decidido em cinco minutos, não fosse sua intervenção.
— Isso é muito consolador — tornou Mengele. — Tenho de ir agora.
Boa noite. — E desligou.
Sentou-se de cotovelos sobre a escrivaninha, o queixo apoiado nos
polegares das mãos, os dedos entrelaçados, os lábios tocando na falange
mais próxima. Então é sempre assim que acontece, pensou, quando se
depende dos outros. Terá alguma vez existido algum homem de visão, de
gênio (gênio, sim, com os diabos!), bem servido pelos Rudels e Seiberts
deste mundo?
Do lado de fora da porta fechada do gabinete, Rudi esperava, e mais
Hans Stroop e seus ajudantes, o diretor social e o gerente do hotel, e, a uma
discreta distância, a Miss Nazista, cuja atenção desligara-se do rapaz fardado
que com ela conversava.
Quando Mengele saiu, Stroop dirigiu-se a ele de braços abertos e sorriso
insinuante.
— O pobre-diabo retirou-se. Venha, estamos à sua espera para servir o
prato principal.
— Não deviam ter feito isto — retorquiu Mengele. — Tenho de ir. —
Fazendo um sinal para Rudi, apressou-se em direção à saída.

Klaus telefonou e disse que sabia de tudo: como noventa e quatro


meninos poderiam ser parecidos como gêmeos, e por que Mengele queria
que os seus pais adotivos fossem mortos em datas determinadas.
Liebermann, que não dormira na noite anterior, com dores reumáticas e
diarréia, estava de cama naquele dia, e a primeira coisa que lhe ocorreu foi a
perfeita simetria daquilo: uma questão levantada por um jovem, por telefone,
enquanto ele estava na cama, seria respondida por outro jovem, por telefone,
enquanto ele estava na cama. Tinha a certeza de que Klaus não estaria
enganado.
— Pode falar — disse, ajeitando os travesseiros.
— Herr Liebermann — Klaus parecia embaraçado —, não é o tipo de
coisa que eu possa explicar pelo telefone. É complicada, e na verdade não
compreendo tudo. Só a obtive de segunda mão, através de Lena, a garota
com quem vivo. A idéia foi sua, e ela falou a esse respeito com um
professor. Ele é quem realmente sabe. Poderia vir aqui, para organizarmos
um encontro? Prometo-lhe que tem de ser esta a explicação.
— Estou de partida para Washington na manhã de terça-feira.
— Então pegue um avião amanhã. Ou, melhor ainda, venha segunda-
feira, passe a noite, e parta daqui na terça. Terá de passar por Frankfurt de
qualquer maneira, não é verdade? Apanho-o no aeroporto e depois levo-o de
volta. Podemos nos encontrar com o professor na noite de segunda-feira.
Ficará aqui, comigo e com Lena. O senhor com a cama e nós com os sacos
de dormir.
— Dê-me pelo menos a essência da coisa agora — instou Liebermann.
— Não. Tem que ser de fato explicada por alguém que saiba do que está
falando. É esta a razão de sua ida a Washington?
— Sim.
— Então, certamente há de querer o máximo de informação possível,
hein? Não estará perdendo seu tempo, prometo-lhe.
— Está bem, confio em você. Vou avisar-lhe a hora da minha chegada.
Será melhor combinar com o tal professor e verificar se está livre.
— Farei isso, mas estou certo de que ele poderá vir. Lena disse que ele
está ansioso por conhecê-lo e colaborar. E ela também. É sueca, portanto
está muito empenhada. Por causa daquilo em Göteborg.
— O que o professor dela ensina? Ciência política?
— Biologia.
— Biologia?
— Isso mesmo. Tenho de sair agora, mas estarei em casa o dia inteiro
amanhã.
— Telefonarei. Obrigado, Klaus. Até a vista. Desligou.
Quanto à simetria perfeita, não era preciso dizer mais. Um professor de
biologia?
Seibert sentia alívio por não ter sido encarregado de transmitir as
novidades a Mengele, mas achava também que se livrara do anzol talvez
depressa demais. O prolongado relacionamento com Mengele e a admiração
pelo seu talento verdadeiramente notável inclinavam-no a oferecer alguma
forma de manifestação de conforto e encorajamento, e rendendo justiça a si
mesmo tencionava apresentar uma descrição mais completa do que aquela
que Ostreicher alegara ter feito da ardorosa batalha que havia travado contra
Rudel, Schwartzkopf e os demais. Tentou comunicar-se com Mengele pelo
rádio durante o fim de semana; não o conseguindo, voou para o sítio, no
começo da tarde de segunda-feira, levando Ferdi, o seu neto de seis anos, e
mais umas gravações novas de Die Walküre e Götterdämmerung.
A pista de aterrissagem estava deserta. Seibert duvidou que Mengele
houvesse permanecido em Florianópolis, mas era possível que tivesse ido
passar o dia em Assunção ou Curitiba. Ou apenas enviado o piloto a
Assunção, em busca de suprimentos.
Percorreram a trilha em direção à casa, Seibert e o irrequieto Ferdi, com
o co-piloto, que queria ir ao banheiro e seguia atrás.
Não havia ninguém por perto, nem guardas nem empregados. O
barracão, cuja porta o co-piloto experimentou, estava trancado, e a casa dos
empregados tinha as portas e janelas fechadas. Seibert começou a ficar
inquieto.
A porta dos fundos da casa principal estava trancada e a da frente
também. Seibert bateu e esperou. Um tanquezinho de brinquedo jazia no
chão de tábuas. Ferdi curvou-se para apanhá-lo, mas Seibert advertiu
severamente:
— Não toque nisso! — como se alguma pestilência rondasse por ali.
O co-piloto espatifou uma das janelas, empurrou com os cotovelos as
pontas de vidro remanescentes e cuidadosamente esgueirou o corpo para
dentro. Um instante depois, destrancava e abria a porta.
Casa deserta, mas em ordem, sem sinais de partida precipitada.
No escritório, a escrivaninha de tampo de vidro estava como Seibert a
vira pela última vez, com o material de pintura enfileirado sobre uma toalha,
num canto. Voltou-se para o quadro.
Fora retalhado de vermelho. Vergastadas que se diria sanguinolentas
rasgavam os quadradinhos da segunda e terceira colunas. Os da primeira
coluna continham cruzes vermelhas perfeitas até a metade, que depois
aumentavam, irregulares, ultrapassando as marcas.
Ferdi, parecendo preocupado, observou:
— Ele saiu da linha.
Seibert contemplou o quadro devastado.
— Sim — assentiu. — Saiu da linha, sim. — E acenou com a cabeça.
— O que é isso? — indagou Ferdi.
— É uma lista de nomes. — Seibert voltou-se e pousou o embrulho de
discos na escrivaninha. Um bracelete de presas animais jazia no centro. —
Hecht! — chamou, e mais alto: — Hecht!
A voz do co-piloto respondendo: "Senhor?", soou distante.
— Acabe o que está fazendo e volte para o avião! — Seibert apanhou o
bracelete. — Traga-me uma lata de gasolina!
— Sim, senhor!
— Traga Schumann junto com você!
— Sim, senhor!
Seibert examinou o bracelete e jogou-o de novo sobre a mesa. Suspirou.
— O que vai fazer? — indagou Ferdi. Seibert indicou com a cabeça o
quadro.
— Queimar isto.
— Por quê?
— Para que ninguém o veja.
— A casa vai pegar fogo?
— Sim, mas o dono não voltará mais.
— Como sabe? Ele ficará zangado se voltar.
— Vá brincar com aquele brinquedinho lá fora.
— Quero olhar.
— Faça o que estou dizendo!
— Sim, senhor. — Ferdi saiu depressa da sala.
— Fique na varanda! — exclamou Seibert em seguida. Empurrou a mesa
com suas pilhas de revistas bem para junto da parede. Depois, dirigiu-se ao
arquivo embaixo da janela do laboratório, agachou-se, abriu uma das gavetas
e retirou um grosso punhado de pastas e mais outro. Trouxe-os para a mesa e
enfiou-os por entre as pilhas de revistas. Lançou um olhar pesaroso sobre o
quadro vergastado de vermelho, meneando a cabeça.
Trouxe vários carregamentos de pastas para a mesa e, quando não havia
lugar para mais, abriu as gavetas restantes. Destrancou e abriu as janelas
atrás da escrivaninha.
Ficou contemplando os souvenirs de Hitler por cima do sofá, tirou três
ou quatro da parede, olhou especulativamente para o grande retrato no
centro.
O co-piloto entrou com uma lata vermelha de combustível. O piloto
permaneceu à porta.
Seibert pôs as coisas que retirara junto ao pacote de discos.
— Tire o retrato — ordenou ao co-piloto. Mandou o piloto ver se não
havia mesmo ninguém na
casa e abrir todas as janelas.
— Posso trepar no sofá? — indagou o co-piloto.
— Deus meu, e por que não?
Despejou gasolina nas pastas e revistas, mantendo-se bem a distância, e
lançou alguns salpicos sobre o quadro. Nomes reluziram, umedecidos:
"Hesketh", "Eisenbud", "Arlen", "Looft".
O co-piloto levou o retrato para fora.
Seibert pôs a lata do lado de fora da porta e dirigiu-se às gavetas abertas
do arquivo. Retirou de uma delas algumas folhas de papel e torceu-as como
um facho branco, aproximando-se da mesa. Apanhou o isqueiro sobre ela,
preto e cilíndrico, e tirou fogo dele algumas vezes.
O piloto anunciou que não havia ninguém na casa e que as janelas
estavam abertas. Seibert mandou-o levar para fora os discos, as recordações
e a lata de combustível.
— Verifique se meu neto está mesmo lá fora — ordenou-lhe.
Esperou um momento, isqueiro numa das mãos, facho de papel branco
na outra.
— Ele está aí com você, Schumann? — bradou.
— Está, sim, senhor!
Acendeu a ponta do facho e pousou de novo o isqueiro atrás de si. Virou
para baixo o facho, a fim de fortalecer a chama, e, adiantando-se, jogou-o
sobre as pastas e revistas, explodindo-as em fogo. As labaredas lamberam a
parede.
Seibert recuou e viu a coluna do meio do quadro, vergastada de
vermelho, empolar-se e tornar-se pardacenta. Nomes, datas e linhas,
amortalhados em chamas, consumiram-se, enquanto a escuridão crescia em
torno.
Retirou-se apressadamente.
Atrás da casa, detiveram-se e ficaram assistindo algum tempo, bem
afastados do calor tremulante e da crepitação: Seibert segurando Ferdi pela
mão, o co-piloto descansando o antebraço na moldura do retrato de Hitler, o
piloto de braços carregados e com a lata vermelha a seus pés.

Ester estava de chapéu, casaco e um pé fora da porta — literalmente —


quando o telefone tocou. Não estava no seu dia. Quando haveria de chegar
em casa? Suspirando, voltou atrás o pé, fechou a porta e foi atender ao
telefone, que tocava à luz fraca da vidraça da porta.
Era uma telefonista com uma chamada para Yakov, de São Paulo. Ester
disse-lhe que Herr Liebermann estava fora da cidade. O autor da chamada,
em bom alemão, declarou que falaria com a senhora.
— Sim? — atendeu Ester.
— Meu nome é Kurt Koehler. Meu filho Barry foi...
— Oh, sim, eu sei, Herr Koehler! Sou a secretária de Herr Liebermann,
Ester Zimmer. Alguma notícia?
— Sim, há, e é má. O corpo de Barry foi encontrado na semana passada.
Ester soltou um gemido.
— Bem, já esperávamos por isso... nenhuma palavra até agora. Vou
voltar para casa. Com... ele.
— Ah! Lamento tanto, Herr Koehler!
— Obrigado. Ele foi apunhalado, e depois jogado no mato. De um avião,
segundo parece.
— Ah, meu Deus...
— Julguei que Herr Liebermann haveria de querer saber...
— Claro, claro! Vou avisá-lo.
—...e tenho também uma informação. Eles apanharam a carteira e o
passaporte de Barry, é claro — aqueles imundos porcos nazistas —, mas
havia um pedaço de papel nas suas calças que eles esqueceram. Quer me
parecer que ele teria tomado algumas notas enquanto ouvia aquela gravação,
e há muita coisa aqui que, tenho certeza, Herr Liebermann poderá utilizar.
Poderia me dizer onde posso entrar em contato com ele?
— Está em Heidelberg esta noite. — Ester acendeu a lâmpada e
manuseou a lista telefônica. — Em Mannheim, na verdade. Tenho o número
aqui.
— Amanhã ele estará de volta a Viena?
— Não, de lá irá para Washington.
— Ah! Bem, talvez eu devesse telefonar-lhe em Washington. Estou um
pouco... abalado no momento, como pode imaginar, mas estarei em casa
amanhã e poderei falar mais facilmente. Onde ele estará hospedado?
— No Hotel Benjamin Franklin. — Ela manuseou a lista. — Tenho este
número também. — Encontrou-o e leu-o com vagar e clareza.
— Obrigado. E ele chegará lá... ?
— Seu avião aterrissa às seis e meia, se Deus quiser.
Deverá estar no hotel às sete ou sete e meia. Amanhã à noite.
— Espero que tenha ido por motivos ligados a esse assunto que Barry
investigava.
— E foi mesmo — respondeu Ester. — Barry tinha razão, Herr Koehler.
Muitos homens foram assassinados, mas Yakov vai acabar com isso. Pode
ficar descansado que o seu filho não morreu em vão.
— É bom ouvir isso, Fräulen Zimmer. Obrigado.
— Não há de quê. Adeus.
Ela desligou, suspirou, e balançou tristemente a cabeça.
Mengele desligou também, apanhou a maleta de lona parda, e entrou na
menor das duas filas para o guichê de passagens da Pan Am. Tinha os
cabelos castanhos repartidos de lado, um espesso bigode castanho, e usava
grosso suporte ortopédico acolchoado no pescoço. Até então parecia estar
cumprindo o objetivo de evitar que o olhassem nos olhos.
Segundo seu passaporte paraguaio, era Ramón Aschheim y Negrín,
comerciante en antigüedades, um vendedor de antigüidades. Motivo por que
levava uma arma na maleta, uma automática Browning Hi-Power de nove
milímetros. Tinha licença para ela, como também uma carteira de motorista,
uma provisão completa de credenciais sociais e de negócios e, no seu
passaporte, páginas e páginas de vistos. O Señor Aschheim y Negrín estava
partindo para uma viagem de compras multinacional: Estados Unidos,
Canadá, Inglaterra, Holanda, Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha e
Áustria. Estava bem abastecido de dinheiro (e diamantes). Seus vistos, como
o seu passaporte, tinham sido expedidos em dezembro, mas ainda eram
válidos.
Comprou uma passagem para Nova York no vôo seguinte, que saía às
sete e quarenta e cinco, o qual, em combinação com um vôo da American
Airlines, o levaria até Washington, às dez e trinta e cinco da manhã seguinte.
Tempo suficiente para se instalar no Benjamin Franklin.
Seis
O professor de biologia — cujo nome era Nürnberger e que, por trás da
barba castanha aparada rente e seus óculos de aros dourados, não aparentava
mais de trinta e dois ou trinta e três anos — empurrou para trás o mindinho,
como se fosse parti-lo e oferecê-lo.
— Aparência idêntica — enumerou, e empurrou o dedo seguinte. —
Similitude de interesses e atitudes, provavelmente em grau maior do que
atualmente se sabe. — Empurrou o outro dedo. — A colocação em famílias
semelhantes: o indício está aí. Reunamos tudo isso e só existe uma
explicação possível. — Cruzou as mãos sobre as pernas cruzadas e inclinou-
se para a frente, confidencial. — Reprodução mononuclear — disse a
Liebermann. — O Dr. Mengele, aparentemente, estava uns dez anos
adiantado nesse campo.
— Não é de espantar — observou Lena, sacudindo uma garrafinha, à
porta da cozinha —, com as pesquisas que ele fazia em Auschwitz, nos anos
40.
— É — assentiu Nürnberger (enquanto Liebermann tentava recobrar-se
do choque de ouvir falar em "pesquisas" e em "Auschwitz", na mesma frase:
não tem culpa, é jovem e sueca, como poderia saber?). — Os outros —
estava dizendo Nürnberger —, ingleses e americanos na maioria, só
começaram pelos anos 50, e ainda não utilizaram óvulos humanos. Ou pelo
menos é o que eles dizem. Pode-se apostar, entretanto, que chegaram além
do que admitem. Por isso, afirmei que Mengele estava apenas dez anos
adiantado, e não quinze ou vinte.
Liebermann olhou para Klaus, sentado à sua esquerda, para ver se ele
sabia do que Nürnberger falava. Klaus mastigava, examinando um talo de
cenoura. Seus olhos encontraram os de Liebermann, espelhando um "está
vendo?" Liebermann meneou a cabeça.
— E os russos, claro — prosseguiu Nürnberger, balançando-se
comodamente no seu assento dobradiço, segurando um joelho com os dedos
entrelaçados —, estarão provavelmente ainda mais adiantados, sem a
contestação da Igreja e da opinião pública. Terão provavelmente um rebanho
inteiro de pequenos Vánias, em alguma parte da Sibéria. Mais velhos
mesmo, talvez, do que esses meninos de Mengele.
— Desculpe-me — atalhou Liebermann —, mas não compreendo o que
está dizendo.
Nürnberger mostrou-se surpreso.
— Reprodução mononuclear — repetiu, paciente. — A produção de
cópias geneticamente idênticas de um organismo isolado. Estudou alguma
coisa de biologia?
— Um pouco — respondeu Liebermann. — Há uns quarenta e cinco
anos atrás.
Nürnberger sorriu um sorriso de jovem.
— Justamente quando a possibilidade disso foi reconhecida pela
primeira vez — afirmou. — Por intermédio de Haldane, o biólogo inglês.
Denominou-a "clone", de uma palavra grega que significa "corte", de uma
planta. "Reprodução mononuclear" é um termo muito mais explícito. Por que
fabricar palavra nova, quando as antigas transmitem melhor o sentido?
— "Clone" é mais curto — observou Klaus.
— Sim — acedeu Nürnberger —, mas não será melhor empregar mais
algumas sílabas e dizer exatamente o que se pretende?
— Fale-me acerca da "reprodução mononuclear" — solicitou
Liebermann. — Mas não se esqueça, por favor, de que estudei biologia
somente porque fui obrigado. Meu verdadeiro interesse era a música.
— Experimente dizer a ele cantando — sugeriu Klaus.
— Se o fizesse, não daria uma canção que prestasse — retorquiu
Nürnberger. — Como a bela canção de amor da reprodução comum. Neste
caso temos um óvulo, ou célula-ovo, e uma célula-esperma, cada uma com
um núcleo contendo vinte e três cromossomos, em cujos filamentos os
genes, centenas de milhares deles, se enfiam como contas. Os dois núcleos
fundem-se, e teremos então uma célula-ovo fertilizada, de quarenta e seis
cromossomos. Estou falando agora de células humanas; nas diversas
espécies o número difere. Os cromossomos duplicam-se, duplicando cada
um de seus genes — realmente miraculoso, não? —, e a célula se divide, um
conjunto de cromossomos idênticos para cada célula resultante. Esta
duplicação e divisão vai se repetindo...
— Mitose — completou Liebermann.
— É.
— As coisas que ficam na memória!
— E em nove meses — prosseguiu Nürnberger — temos os bilhões de
células do organismo completo. Elas desdobraram-se a fim de desempenhar
funções diferentes — transformar-se em osso, carne, sangue ou cabelo,
reagir à luz, calor, doçura, etc. —, mas cada uma dessas células, cada uma
dentre os bilhões de células que constituem o corpo, contém no seu núcleo
reproduções exatas de um conjunto original de quarenta e seis cromossomos,
metade da mãe, metade do pai: uma mistura que, exceto no caso dos gêmeos
idênticos, é absolutamente única — como se fosse o projeto de um indivíduo
absolutamente único. As únicas exceções à regra dos quarenta e seis
cromossomos são as células sexuais, esperma e óvulo, que têm vinte e três, a
fim de que possam fundir-se, completar-se e dar início a um novo
organismo.
— Até agora está claro — declarou Liebermann. Nürnberger inclinou-se
para diante.
— Esta — disse — é a reprodução comum, como ocorre na natureza.
Entremos agora no laboratório. Na reprodução mononuclear, o núcleo da
célula-ovo é destruído, deixando ileso o corpo da célula. Isso é realizado
através de radiação, constituindo, é claro, uma microcirurgia das mais
sofisticadas. Na célula-ovo de que se tirou o núcleo, é colocado o núcleo de
uma célula corporal do organismo a ser reproduzido — o núcleo de uma
célula corporal, não uma célula sexual. Temos agora exatamente o que
tínhamos neste ponto na reprodução natural: uma célula-ovo com quarenta e
seis cromossomos no seu núcleo, um óvulo fertilizado que, numa solução
nutriente, passa a duplicar-se e dividir-se. Quando ela atinge o estágio das
dezesseis ou trinta e duas células — o que leva quatro ou cinco dias —, pode
ser implantada no útero de sua "mãe", que de fato não o é, biologicamente
falando. Ela forneceu uma célula-ovo, e agora está fornecendo um ambiente
adequado ao desenvolvimento do embrião, que nada recebeu, porém, da sua
dotação genética. A criança, ao nascer, não tem pai nem mãe, apenas um
doador — o fornecedor do núcleo —, de quem será um exato duplo genético.
Seus cromossomos e genes são idênticos aos do doador. Ao invés de um
indivíduo novo e único, teremos a repetição de um já existente.
— Isto... pode ser feito? — indagou Liebermann. Nürnberger acenou
afirmativamente.
— Já foi feito — atalhou Klaus.
— Com rãs — tornou Nürnberger. — Um processo muito mais simples.
É o único caso reconhecido, e causou tal impacto — em Oxford, nos anos 60
—, que todo o trabalho subseqüente foi feito em sigilo. Obtive relatos, como
todo biólogo, acerca de coelhos, cães e macacos, na Inglaterra, América,
aqui na Alemanha, em toda parte. E, como já disse, tenho certeza de que já o
fizeram com seres humanos na Rússia. Ou pelo menos tentaram. Que
sociedade planejada poderia resistir à idéia? Multiplicar os seus melhores
cidadãos e proibir a reprodução dos piores. Que poupança nos serviços
médicos e na educação! E o aprimoramento dos predicados da população
dentro de duas ou três gerações.
— Mengele poderia ter feito isso com seres humanos no princípio dos
anos 60? — indagou Liebermann.
Nürnberger encolheu os ombros.
— A teoria já era conhecida — asseverou. — Precisaria apenas de
equipamento adequado, moças sadias e dispostas, e um alto grau de perícia
microcirúrgica. Outros a tiveram: Gurdon, Shettles, Steptoe, Chang... E,
evidentemente, um lugar onde pudesse trabalhar sem interferência e
publicidade.
— Ele estava na selva, nessa ocasião — declarou Liebermann. — Foi
para lá em 59. Acossei-o até...
— Talvez, não — atalhou Klaus. — Talvez ele tenha querido ir.
Liebermann olhou-o, contrafeito.
— Mas será inútil — alegou Nürnberger — dizer se ele poderia ou não
tê-lo feito. Se o que Lena me contou é verdade, é óbvio que o fez. O fato de
os meninos terem sido colocados em famílias semelhantes o comprova. —
Sorriu. — Veja, os genes não constituem o único fator em nosso
desenvolvimento definitivo. Estou certo de que não ignora isso. A criança
concebida através da reprodução mononuclear crescerá igual ao seu doador e
partilhando com ele de certas características e tendências, mas se for criada
em ambiente diverso, sujeita a influências domésticas e culturais — como
fatalmente o será, quando mais não seja por ter nascido anos depois —, bem,
poderá tornar-se bastante diferente psicologicamente do seu doador, apesar
de sua uniformidade genética. Mengele estava evidentemente interessado
não em reproduzir um determinado traço biológico, como acho que os russos
estariam, mas ele próprio, um determinado indivíduo. As famílias
semelhantes constituem uma tentativa de elevar ao máximo as possibilidades
de os meninos crescerem no ambiente adequado.
Atrás de Nürnberger, Lena chegou à porta da cozinha.
— Os meninos — indagou Liebermann — são... réplicas de Mengele?
— Réplicas exatas, geneticamente — respondeu Nürnberger. — Agora,
se crescerão ou não como réplicas in totum, isso, como disse, é outra
questão.
— Com licença — atalhou Lena. — Já podemos comer. — Sorriu,
desculpando-se. Seu rosto inexpressivo embelezou-se por um instante. — Na
verdade é o que teremos de fazer — acrescentou —, do contrário vai ficar
ruim. Se é que já não está.
Levantaram-se e deixaram o pequeno quarto com mobiliário híbrido,
ampliações de animais e brochuras, entrando numa cozinha quase do mesmo
tamanho, com mais ampliações de animais, uma janela com grade de aço e
uma mesa de toalha vermelha, com pão, salada e vinho tinto em copos de
tipos diferentes.
Liebermann, instalado incomodamente numa cadeira pequena, de
encosto de arame, olhou para Nürnberger, do outro lado da mesa, passando
manteiga no pão.
— O que o senhor quis dizer — indagou — com referência aos meninos
crescerem no "ambiente adequado"?
— O mais parecido possível com o de Mengele — respondeu
Nürnberger, fitando-o. Sorriu, por dentro de sua barba castanha. — Olhe —
acrescentou —, se eu quisesse fazer um outro Eduard Nürnberger, não
bastaria simplesmente raspar um pouco a pele do meu dedo do pé, arrancar
um núcleo de uma célula e seguir todo o processo por mim descrito —
supondo que tivesse a perícia e o equipamento...
— E a mulher — completou Klaus, depondo um prato à sua frente.
— Obrigado — disse Nürnberger, sorrindo. — Eu poderia arranjar a
mulher.
— Para esse tipo de reprodução?
— Bem, é de se supor. São apenas duas incisões diminutas, uma para
extrair o óvulo, a outra para implantar o embrião. — Nürnberger olhou para
Liebermann. — Mas isso seria apenas parte da tarefa — asseverou. — Eu
teria então de encontrar um lar adequado para o bebê Eduard. Ele exigiria
uma mãe que fosse muito religiosa — na verdade quase uma fanática — e
um pai que bebesse demais, de modo a que houvesse discussões constantes
entre eles. E precisaria também em casa de um tio maravilhoso, um
professor de matemática, que levasse o garoto para passear o mais que
pudesse, aos museus, ao campo... Essa gente teria o menino como se fosse
deles, e não como alguém concebido num laboratório, e além disso o "tio"
teria de morrer quando o menino tivesse nove anos, e os "pais" teriam de se
separar dois anos depois. O menino passaria a adolescência num vaivém
entre os dois, juntamente com a irmã mais moça.
Klaus estava sentado com um prato diante de si, à direita de Liebermann.
Um outro jazia diante de Liebermann
— um naco de carne parecendo ressequida, cenouras estufadas em
hortelã.
— E ainda assim — tornou Nürnberger — ele poderia sair muito
diferente deste Eduard Nürnberger. Seu professor de biologia poderia não se
empolgar por ele, como o meu o fez. Uma garota poderia deixá-lo ir para a
cama com ela mais cedo do que uma outra me deixou. Leria livros
diferentes, veria televisão, quando eu ouvia rádio, estaria sujeito a milhares
de encontros ocasionais que o poderiam tornar mais ou menos agressivo do
que sou, mais ou menos afetuoso, espirituoso, etc, etc.
Lena sentara-se à esquerda de Liebermann, olhando para Klaus, do outro
lado da mesa.
Nürnberger, abrindo a carne ressequida com o garfo, adiantou:
— Mengele sabia da precariedade da coisa toda, por isso criou e
encontrou lares para muitos meninos. Dar-se-á por muito feliz, suponho, se
uns poucos, ou mesmo apenas um sair exatamente certo.
— Está vendo agora — indagou Klaus a Liebermann
— por que os homens são mortos?
Liebermann acenou afirmativamente.
— Para — não sei que palavra usar — moldar os meninos.
— Exatamente — assentiu Nürnberger. — Para moldá-los, para tentar
fazer deles Mengeles psicológicos, tanto quanto genéticos.
— Ele perdeu o pai quando tinha certa idade — atalhou Klaus —,
portanto com os meninos deverá acontecer o mesmo. Ou perder os homens
que julgassem seus pais.
— O acontecimento — ponderou Nürnberger — certamente foi de suma
importância para moldar a sua psique.
— É como abrir um cofre — aventou Lena. — Uma vez que se vire a
maçaneta em direção a todos os números certos, na ordem certa, a porta se
abre.
— A menos que — contraveio Klaus — a maçaneta tenha sido virada em
direção a um número errado nesse meio tempo. Estas cenouras estão ótimas.
— Obrigada.
— É — assentiu Nürnberger. — Tudo está delicioso.
— Mengele tem olhos castanhos. Nürnberger olhou para Liebermann.
— Tem certeza?
— Tive em mãos sua carteira de identidade argentina
— declarou Liebermann. — "Olhos castanhos." E seu pai era um rico
industrial, não um funcionário público. Maquinaria agrícola.
— Ele é parente daqueles Mengele? — indagou Klaus. Liebermann
acenou afirmativamente.
Pondo salada no prato, Nürnberger observou:
— Não admira que pudesse arranjar o equipamento. Bem, ele não deve
ter sido o doador, já que os olhos não casam.
— Sabe quem é o chefe da Organização dos Camaradas? — indagou
Lena a Liebermann.
— É um coronel chamado Rudel, Hans Ulrich Rudel.
— De olhos azuis? — perguntou Klaus.
— Não sei. Terei de verificar. Como também a origem de sua família.
Liebermann olhou para o garfo na mão, espetou-o numa fatia de cenoura
e ergueu-a, levando-a à boca.
— Seja como for — tornou Nürnberger —, o senhor sabe agora por que
esses homens estão sendo mortos. O que planeja fazer em seguida?
Liebermann ficou calado por um momento. Pousou o garfo e tirou o
guardanapo do colo, pondo-o sobre a mesa.
— Com licença — disse, e saiu da cozinha.
Lena seguiu-o com o olhar, baixou os olhos para o prato, voltou-os para
Klaus.
— Não foi por isso — asseverou ele.
— Espero que não — disse ela, e empurrou o naco de carne com o lado
do garfo.
Klaus olhou além dela, observando Liebermann dirigir-se às estantes no
outro aposento.
— Não é que esta carne não seja excelente — declarou Nürnberger —,
mas chegará o dia em que todos comeremos uma carne muito melhor e
muito mais barata, graças à reprodução mononuclear. Ela vai revolucionar a
criação de gado. E também preservará as nossas espécies ameaçadas, como
aquele belo leopardo ali.
— Está defendendo a experiência? — indagou Klaus.
— Ela não precisa ser defendida — retrucou Nürnberger. — Trata-se de
uma técnica, e, como qualquer outra técnica que se possa mencionar, dela se
pode fazer bom ou mau uso.
— Posso pensar em dois bons usos — ponderou Klaus —, e você acaba
de mencioná-los. Dê-me lápis e papel, que em cinco minutos lhe darei
cinqüenta maus.
— Por que tem sempre de ficar do lado contrário? — indagou Lena. —
Se o professor tivesse dito que era uma coisa terrível, você agora estaria
falando de criação de gado.
— Isso não é verdade — contrapôs Klaus.
— É, sim. Ele contesta seus próprios argumentos. Klaus olhou além de
Lena: viu Liebermann de perfil, em pé, cabeça curvada sobre um livro
aberto, gingando levemente, um judeu rezando. Não era uma Bíblia, porém;
eles não tinham uma. Seria o livro de Liebermann? Estava parado bem no
lugar do livro. Verificando a cor dos olhos do coronel?
— Klaus? — Lena oferecia a tigela de salada. Ele pegou-a.
Lena voltou-se e olhou, depois concentrou-se na mesa.
— Terei muita dificuldade de manter a boca fechada a respeito disso —
observou Nürnberger.
— Mas vai ter que mantê-la, no entanto — disse Klaus.
— Sei, sei, mas não será fácil. Dois dos homens lá do departamento
tentaram a experiência, com óvulos de coelha.
Liebermann estava parado à porta, pálido e abatido, os óculos
dependurados na mão.
— O que é? — Klaus pousou a tigela. Nürnberger olhou, Lena voltou-se
na cadeira. Liebermann dirigiu-se a Nürnberger.
— Permita-me que lhe faça uma pergunta tola. Nürnberger assentiu.
— O que fornece o núcleo. O doador. Tem de estar vivo, não é?
— Não, não necessariamente — disse Nürnberger. — As células
isoladas não são vivas nem mortas, apenas intactas ou não. Com uma mecha
dos cabelos de Mozart... nem precisa uma mecha; com um fio de cabelo de
Mozart, alguém dispondo de perícia e equipamento — sorriu para Klaus — e
de mulheres — voltou os olhos para Liebermann — poderia gerar algumas
centenas de pequenos Mozarts. Descubram lares adequados para eles e
teremos cinco ou dez Mozarts adultos, e uma quantidade muito maior de boa
música neste mundo.
Liebermann pestanejou, deu um passo vacilante à frente, meneou a
cabeça.
— Música, não — murmurou. — Mozart, não. — Trouxe a mão das
costas e mostrou-lhes Hitler. A brochura exibia em três negras pinceladas:
bigode, nariz proeminente, topete.
— Seu pai era funcionário público, da alfândega. Tinha cinqüenta e dois
anos... quando o menino nasceu. A mãe, vinte e nove. — Olhou em torno, à
procura de um lugar para pousar o livro, não encontrou nenhum, colocou-o
sobre um dos bicos do fogão. Olhou novamente para eles, limpou a mão no
lado. — O pai morreu aos sessenta e cinco — acrescentou. — Quando o
menino tinha treze, quase catorze anos.

Deixaram as coisas na mesa e foram sentar-se na outra sala, Liebermann


e Klaus outra vez no sofá-cama, Nürnberger na cadeira de armar, Lena no
chão.
Olharam os copos vazios na arca em frente, os pratinhos de talos de
cenoura e amêndoas. Entreolharam-se.
Klaus pegou algumas amêndoas, jogou-as na palma da mão.
— Noventa e quatro Hitlers — proferiu Liebermann, e sacudiu a cabeça.
— Não — acrescentou —, não é possível.
— Claro que não é — frisou Nürnberger. — Há noventa e quatro
meninos com a mesma herança genética de Hitler. Podem sair muito
diferentes. A maioria provavelmente sairá.
— A maioria — tornou Liebermann. Fez um gesto de cabeça na direção
de Klaus e Lena. — A maioria. — Olhou para Nürnberger. — Restarão
alguns.
— Quantos? — indagou Klaus.
— Não sei — respondeu Nürnberger.
— Você disse cinco ou dez Mozarts entre algumas centenas. Quantos
Hitlers em noventa e quatro? Um? Dois? Três?
— Não sei — reiterou Nürnberger. — Estava apenas falando. Ninguém
sabe na realidade. — Sorriu ironicamente. — As rãs não passaram por testes
de personalidade.
— Faça uma suposição — solicitou Liebermann.
— Se os pais foram reunidos apenas por idade, raça e ocupação paterna,
diria que as perspectivas são bem ruins. Do ponto de vista de Mengele, quero
dizer. Muito boas, do nosso.
— Mas não completamente — retorquiu Liebermann.
— Não, claro que não.
— Ainda que houvesse apenas um — ponderou Lena —, restaria ainda
uma possibilidade de ele... ser influenciado da maneira certa. A errada.
— Lembra-se do que disse na conferência? — indagou Klaus a
Liebermann. — Alguém perguntou se os grupos neonazistas eram perigosos,
e o senhor respondeu que agora não, apenas se as condições sociais
piorassem — e Deus sabe que pioram a cada dia — e aparecesse outro líder
como Hitler.
Liebermann assentiu.
— Falando para o mundo inteiro ao mesmo tempo, pela televisão via
satélite. O próprio Deus no céu.
Fechou os olhos, pôs as mãos no rosto e esfregou os dedos nas pálpebras,
com força.
— Quantos pais foram de fato assassinados? — indagou Nürnberger.
— É isso mesmo! — exclamou Klaus. — Apenas seis! Não é tão mau
quanto parece!
— Oito — disse Liebermann, baixando as mãos e piscando os olhos
avermelhados. — Você esquece Guthrie, em Tucson, e aquele entre ele e
Curry. E outros também, de que não sabemos, nos outros países. Mais no
princípio do que posteriormente. Assim foi nos Estados Unidos.
— A leva inicial deve ter obtido um índice de sucesso mais elevado do
que ele esperava.
— Não posso deixar de pensar — declarou Klaus — que você se mostra
um tanto satisfeito com o resultado.
— Bem, terá de admitir que de um ponto de vista estritamente científico
é um passo adiante.
— Deus do céu! Quer dizer então que você, sentado aí, é capaz...
— Klaus! — admoestou Lena.
— Oh, merda! — Klaus jogou as amêndoas no chão. Liebermann
dirigiu-se a Nürnberger.
— Vou a Washington, amanhã, contatar o Departamento Federal de
Investigações. Sei quem será ali o próximo pai. Eles poderão preparar uma
armadilha para o assassino, terão de fazê-lo. Quer vir comigo e ajudar-me a
convencê-los?
— Amanhã? — disse Nürnberger. — Seria impossível.
— Mesmo para impedir um novo Hitler?
— Oh, Deus! — Nürnberger esfregou a testa. — Sim, claro, se precisa
absolutamente de mim. Olhe, há homens lá, de Harvard, Cornell, Cal Tech,
cujas credenciais têm muito mais prestígio do que as minhas, e que de
qualquer modo teriam maior peso junto às autoridades americanas,
justamente por serem americanos. Posso lhe fornecer nomes e escolas, se
desejar...
— Sim, gostaria.
—...mas se, por qualquer motivo, você me quiser, eu irei.
— Está bem — assentiu Liebermann. — Obrigado. Nürnberger pegou
uma caneta e um bloco de memorando com capa preta, de dentro do casaco.
— O próprio Shettles provavelmente haveria de auxiliá-lo — aventou.
— Escreva o nome dele — solicitou Liebermann. — E onde poderei
encontrá-lo. Escreva todos os nomes que lhe ocorrerem. — Para Klaus,
declarou: — Ele tem razão, um americano é melhor. Dois estrangeiros juntos
receberão pontapés nos traseiros.
— O senhor tem contatos lá? — indagou Klaus.
— Já tive — respondeu Liebermann. São do tipo "não-trabalha-mais-no-
Departamento-de-Justiça". Mas darei um jeito. Arrombarei as portas. O
próprio Deus no céu! Imaginem! Noventa e quatro jovens Hitlers!
— Noventa e quatro meninos — retificou Nürnberger, escrevendo —
com a mesma herança genética de Hitler.

O Benjamin Franklin, como hotel, um lugar de permanência, figurava


com um décimo de uma estrela, segundo o julgamento de Mengele, e isso
devido apenas a certo encanto de peça de antigüidade que tinha a pia do
banheiro. Entretanto, como lugar para alguém se livrar de um inimigo
disposto a destruir a obra de uma vida inteira e a última esperança (corrija-
se, certeza) da supremacia ariana, haveria de figurar com três estrelas e meia,
talvez quatro.
Primeiro que tudo, a clientela no saguão era em parte negra, o que
significava, evidentemente, que naquele local o crime não era coisa insólita.
Como prova disso — se é que precisava — a porta do seu quarto, o 404,
trazia as marcas de ranhura de um arrombamento e do lado de dentro um
rótulo adesivo em letras vermelhas encarecia: "Para a sua proteção, é favor
manter permanentemente a porta trancada". Ele aquiesceu.
Além do mais, no estabelecimento o serviço era ruim: às onze e quarenta
da manhã as bandejas do café jaziam ainda do lado de fora das portas de
alguns quartos. Logo que retirou o maldito suporte do pescoço (apenas para
atravessar a fronteira e talvez para a Alemanha) deu um pulo rápido do lado
de fora e apanhou uma bandeja, uma cesta de pão e uma tabuleta com o
aviso: "É favor não perturbar". Escondeu a bandeja entre o colchão e as
molas, a cesta de pão num saco de papel da lavanderia na prateleira do
armário, pôs o aviso "É favor não perturbar" na gaveta da escrivaninha, junto
com outro que já lá estava. Consultou a planta do andar pregada à porta:
havia três escadas, uma bem próxima ao 404. Saiu novamente e encontrou-a.
Abriu uma porta, entrou no patamar, olhou para os lances pintados de
cinzento, acima e abaixo.
O atendimento nos quartos era abominável. Na hora em que o seu
almoço apareceu, já havia esvaziado e limpado o tubo dos diamantes, lavara-
se, passara talco no pescoço irritado, retirara da mala tudo o que pretendia,
experimentara a televisão e preparara uma lista de tudo o que teria de
comprar e fazer. Contudo, o garçom que trouxe o almoço — aí se justificava,
certamente, mais uma estrela — era um branco quase da idade dele, de
sessenta e poucos anos, e usava um casaco de serviço simples, de linho
branco, do tipo que poderia sem dúvida ser comprado em qualquer loja de
roupas de trabalho. Incluiu-o em sua lista, seria mais fácil que roubar um.
O prato servido era linguado à la bonne femme... bem, sem comentários.
Saiu do hotel pouco depois da uma, por uma porta lateral. Óculos
escuros, sem bigode, chapéu, peruca, sobretudo com a gola levantada. Arma
no coldre, junto à axila. Não haveria de deixar nada de valor naquele quarto
vulnerável, e, além do mais, era prudente andar armado nos Estados Unidos.
Não apenas ele, como qualquer outro.
Washington era mais limpa do que esperara e bastante atraente, mas as
ruas largas estavam alagadas com neve de um dia. A primeira coisa que fez
foi parar numa sapataria e comprar um par de galochas. Passara do verão
para o inverno e sempre fora sujeito a resfriados. As vitaminas também
faziam parte de sua lista.
Andou até chegar a uma livraria e ficou lendo aqui e ali, após trocar os
óculos escuros pelos comuns. Encontrou um exemplar em brochura do livro
de Liebermann. Examinou a fotografia em miniatura no lado posterior.
Aquele nariz adunco de judeu não enganava. Percorreu a seção de
fotografias no centro do livro e encontrou a sua. No entanto, Liebermann
teria dificuldade em reconhecê-lo. Era a fotografia de Buenos Aires, de 59,
evidentemente a melhor que Liebermann obtivera. Nem com a cabeleira
castanha e o bigode, nem com os seus verdadeiros cabelos grisalhos e o lábio
superior recentemente raspado guardaria de fato semelhança, que pena, com
aquela bela imagem dele próprio dezesseis anos mais jovem. Além disso, é
claro, Liebermann nem sequer estaria à sua espreita.
Recolocou o livro na prateleira e deparou com uma seção de livros de
viagem. Escolheu mapas rodoviários dos Estados Unidos e Canadá. Pagou-
os com uma nota de vinte dólares e aceitou o troco, notas e moedas, com um
olhar distraído e um aceno de cabeça.
Novamente de óculos escuros, passou a percorrer ruas menos espaçosas,
com vitrinas mais iluminadas e espalhafatosas. Não conseguiu encontrar o
que queria, e finalmente perguntou a um jovem negro. Quem haveria de
saber melhor? Prosseguiu seu caminho, seguindo as indicações
surpreendentemente bem enunciadas.
— Que tipo de faca? — indagou-lhe um negro atrás do balcão.
— Para caçar — respondeu.
Escolheu a melhor. De fabricação alemã, ajustava-se bem na mão;
realmente bonita. E tão afiada a ponto de cortar tiras de um papel que
pendesse frouxamente dos dedos. Mais duas de vinte e uma de dez.
Havia uma farmácia ao lado. Comprou suas vitaminas.
E no próximo quarteirão, uma loja de uniformes e roupas de trabalho.
— O senhor deve usar tamanho 36, não?
— Sim.
— Gostaria de experimentar?
— Não.
Por causa da arma.
Comprou também um par de luvas brancas de algodão.
Foi impossível encontrar uma loja de comestíveis. Ninguém sabia
informar, dir-se-ia que não comiam.
Descobriu finalmente uma, um fulgurante supermercado cheio de
negros. Comprou três maçãs, duas laranjas, duas bananas e, para seu próprio
consumo, um lindo cacho de uvas verdes sem caroço.
Tomou um táxi de volta ao Benjamin Franklin — entrada lateral, por
favor —, e às três e vinte e dois regressava àquele sombrio quarto de um
décimo de estrela de categoria.
Descansou um pouco, comendo uvas e examinando os mapas na poltrona
(dura!), consultando vez por outra as folhas datilografadas com os nomes,
endereços e datas. Poderia pegar Wheelock — supondo que ainda estivesse
em New Providence, Pensilvânia — quase dentro do prazo, mas dali por
diante teria de ser na base do vale-tudo. Tentaria manter-se dentro de seis
meses das datas ideais. Davis, em Kankakee, depois uma subida até o
Canadá para Stroheim e Morgan. Em seguida a Suécia. Teria de renovar os
vistos?
Após descansar, ensaiou. Tirou a peruca e vestiu o casaco branco e as
luvas. Treinou levar a cesta de frutas na bandeja. Proferiu: "Com os
cumprimentos da gerência, senhor", uma e outra vez, até conseguir
pronúncia perfeita.
Ficou de costas para a sua porta trancada, pendurou a tabuleta "É favor
não perturbar" no ar, deixou-a cair, bateu no ar. "Com os cumprimentos da
gerência, senhor." Atravessou o quarto levando a bandeja, pousou-a na
cômoda, puxou a faca da bainha em seu cinto. Voltou-se, mantendo a faca
atrás de si. Andou, parou, estendeu a mão esquerda.
— Obrrigado, senhor. — Apanhou com a mão esquerda, apunhalou com
a direita.
— Obrigado, senhor. Obrigado. — Caprichar na pronúncia. Apanhar
com a esquerda, apunhalar com a direita.
Judeus dão gorjetas?
Experimentou alguns movimentos adicionais.

O platô de nuvens ensolarado terminava abruptamente. O oceano azul-


negro jazia abaixo, franzido e raiado de branco, imóvel. Liebermann desceu
o olhar para ele, de queixo na mão.
Ei...
Permanecera acordado a noite inteira, sentara-se desperto o dia inteiro,
pensando num Hitler crescido, proferindo com veemência seus discursos
demoníacos para multidões demasiado descontentes para se importarem com
a história. Dois ou três Hitlers mesmo, em manobras visando o poder em
diferentes lugares, reconhecidos por seus seguidores e por si próprios como
os primeiros seres humanos gerados através do que em 1990 mais ou menos
haveria de ser um processo largamente praticado. Mais semelhantes do que
irmãos, o mesmo homem multiplicado, como não juntariam as forças,
travando de novo (com armas de 1990!) a guerra racial do primeiro deles?
Certamente esta era a esperança de Mengele. Barry afirmara: "O objetivo é
chegar ao triunfo da raça ariana, por Deus do céu!" Qualquer coisa nesse
sentido.
Um belo fardo a ser trazido para o FBI, que dera uma reviravolta de quase
cem por cento desde a morte de Hoover em 72. Soava-lhe aos ouvidos a
pergunta intrigada: "Yakov de quê?"
Fora fácil, na noite anterior, dizer a Klaus que daria um jeito, arrombaria
as portas. Na verdade, não perdera de todo os contatos. Conhecera senadores
que ainda exerciam mandatos. Um deles certamente haveria de abrir as
portas certas. Mas agora, tendo medido todo o horror, temia que, mesmo
com as portas abertas, muito tempo fosse perdido. As mortes de Guthrie e
Curry teriam de ser investigadas, suas viúvas interrogadas, os Wheelock
interrogados... Agora o que mais importava era capturar o provável matador
de Wheelock e descobrir os outros cinco através dele. Os restantes dos
noventa e quatro homens teriam de permanecer vivos. Não deixar que as
maçanetas dos cofres, segundo a comparação de Lena (boa de ser lembrada e
utilizada em dias futuros), fossem giradas em direção ao que seria talvez o
último e mais crucial número da combinação.
E, para dificultar ainda mais, o dia 22 era apenas uma aproximação da
data da morte de Wheelock. E se a data verdadeira fosse mais cedo? E se —
risível, o tipo da coisa pequenina de que talvez viesse a depender a história
futura — Frieda Maloney se houvesse enganado ao dizer que o cãozinho
tinha dez semanas de idade? E se fossem nove semanas, ou oito, o prazo em
que os Wheelock obtiveram seu bebê? O assassino poderia matar e safar-se
dentro de alguns dias.
Olhou o relógio: dez e vinte e oito. Não estava certo, ainda não o
ajustara. Foi o que fez — moveu os ponteiros, concedendo-se mais seis
horas, pelo menos no que dizia respeito a relógios: quatro e vinte e oito.
Nova York dentro de meia hora, alfândega, e depois o pequeno pulo até
Washington. Dormiria um pouco aquela noite, esperava — já se sentia meio
tonto —, e pela manhã telefonaria para os gabinetes dos senadores.
Telefonaria para Shettles também, e alguns outros da lista de Nürnberger.
Se ao menos pudesse conseguir agora que o assassino de Wheelock
fosse vigiado, sem demora, explicações, verificações, indagações! Devia ter
vindo mais cedo. É o que teria feito, evidentemente, se soubesse antes de
toda a enormidade...
Ei...
Precisava mesmo era de um FBI judaico. Ou de uma sucursal
estadunidense da Mossad, de Israel. Um lugar aonde pudesse ir amanhã e
anunciar: "Um nazista vem matar um homem chamado Wheelock, em New
Providence, Pensilvânia. Protejam-no, capturem o nazista. Não façam
perguntas, explicarei depois. Sou Yakov Liebermann — acaso iria induzi-los
ao erro?" E eles se poriam em campo.
Sonho! Se ao menos uma organização dessas existisse!
As pessoas no avião afivelaram os cintos, fazendo comentários entre si.
O aviso acabara de acender.
De testa franzida, Liebermann continuava quieto em seu lugar, junto à
janela.

Após um retemperante cochilo de uma hora, Mengele lavou-se e fez a


barba, pôs a peruca e o bigode e vestiu o terno escuro. Espalhou tudo sobre a
cama — casaco branco, luvas, faca na bainha, bandeja com cesta de frutas e
tabuleta "É favor não perturbar" —, de modo que, mal visse Liebermann
registrar-se e soubesse o número de seu quarto, pudesse voltar apressado e
assumir sem demora o papel de garçom.
Ao sair do quarto, experimentou a maçaneta e pendurou nela a outra
tabuleta "É favor não perturbar".
Às seis e quarenta e cinco estava sentado no saguão, folheando um
exemplar da Time e vigiando a porta giratória. Os ocasionais recém-
chegados que se dirigiam com suas maletas em direção à gerência, do outro
lado do saguão, eram quase todos homens desacompanhados, um verdadeiro
desfilar de tipos raciais inferiores. Não apenas negros e semitas, como
também um par de orientais. Um jovem ariano de bela aparência registrou-
se, mas alguns minutos depois, como que compensando um erro, um anão
negro surgiu, em andar escarranchado, ao lado de uma maleta sobre um
carrinho de rodas.
Às sete e vinte, Liebermann entrou — alto, ombros curvados, bigode
preto, de boné e sobretudo cintado bege. Seria mesmo Liebermann? Judeu
era, mas parecia jovem demais e sem um nariz tão adunco quanto o de
Liebermann.
Levantou-se e, atravessando o saguão, tirou uma This Week in
Washington de cima de uma pilha, sobre o balcão de mármore rachado.
— Vai ficar até a noite de sexta-feira? — indagou o recepcionista ao
provável Liebermann às suas costas.
— Sim.
Uma campainha tilintou.
— Quer levar Mr. Morris ao 717?
— Sim, senhor.
Passeou de volta pelo saguão. Um libanês ou tipo parecido tomara o seu
lugar — gordo e de aparência sebosa, com anéis em todos os dedos.
Encontrou outro lugar.
O narigão dos narigões entrou, mas fazia parte da cara de um rapaz
agarrado ao cotovelo de uma mulher grisalha.
Às oito horas, entrou numa cabine telefônica e telefonou para o hotel.
Perguntou — tendo o cuidado de não deixar os lábios encostarem no bocal,
carregado de Deus sabe quantos germes — se Mr. Yakov Liebermann era
esperado.
— Um momento. — Um estalido, um toque de chamada. O
recepcionista do outro lado do saguão atendeu.
— Recepção.
— O senhor tem um quarto reservado para Mr. Yakov Liebermann?
— Para esta noite?
— Sim.
O recepcionista baixou os olhos, como se lesse.
— Sim, temos. É Mr. Liebermann quem está falando?
— Não.
— Gostaria de deixar algum recado para ele?
— Não, obrigado. Telefonarei mais tarde.
Podia ficar de vigia ali dentro da cabine, por isso depositou outra moeda
de dez centavos no telefone e perguntou à telefonista como poderia obter o
número de alguém de New Providence, Pensilvânia. Ela forneceu-lhe um
número comprido para discar. Escreveu-o na margem vermelha da Time,
retirou a moeda do receptáculo na parte inferior do aparelho, enfiou-a de
novo em cima, discou.
Havia um Henry Wheelock em New Providence. Escreveu o número por
baixo do outro. A mulher deu-lhe o endereço também, Old Buck Road, sem
número.
Um latino, de maleta e poodle atrelado, dirigiu-se à recepção.
Refletiu um momento, em seguida chamou a telefonista e pediu
instruções. Examinou sua série de moedas sobre a pequena prateleira da
cabine, escolheu as certas.
Somente quando o telefone do outro lado deu o seu primeiro toque é que
ele se lembrou de que, se aquele fosse o Henry Wheelock indicado, o próprio
menino poderia atender. Dali a um momento poderia estar de fato falando
com o seu Führer renascido! Uma vertigem de alegria tirou-lhe o fôlego,
desequilibrando-o de encontro ao lado da cabine, quando o telefone tocou
novamente. Oh, por favor, querido Menino, venha atender ao telefone!
— Alô. — Voz de mulher. Respirou fundo, soltando um suspiro.
— Alô?
— Alô. — Recobrou-se. — Mr. Henry Wheelock está?
— Sim, mas no momento está nos fundos.
— É Mrs. Wheelock quem fala?
— É, sim.
— Meu nome é Franklin, senhora. Segundo me consta, a senhora tem um
filho com uns catorze anos, não?
— Temos... Graças a Deus.
— Dirijo excursões para meninos dessa idade. Estaria interessada em
enviá-lo à Europa neste verão?
Riso.
— Oh, não, creio que não.
— Posso enviar-lhe um folheto?
— Pode, mas não vai adiantar.
— O endereço é Old Buck Road?
— Na verdade ele não poderá viajar.
— Boa noite, então. Desculpe tê-la incomodado. Apanhou um folheto de
uma cabine vazia destinada ao
aluguel de carros e passou a examiná-lo, sentado, levantando os olhos
cada vez que a porta giratória se movia.
Amanhã alugaria um carro e se dirigiria a New Providence. Quando
Wheelock estivesse liquidado, iria para Nova York, entregaria o carro,
venderia um diamante e voaria para Chicago. Se Robert K. Davis ainda
estivesse em Kankakee...
Mas onde diabo estava Liebermann?
Às nove horas, foi até a lanchonete e tomou assento no balcão, de onde
pudesse avistar a porta giratória através da porta envidraçada. Comeu ovos
mexidos com torrada, bebeu o pior café do mundo.
Recebeu um dólar de troco ao sair, voltou à cabine telefônica e telefonou
para o hotel. Talvez Liebermann tivesse entrado pelo lado.
Não chegara. Ainda era aguardado.
Telefonou para os dois aeroportos, na esperança — era possível, não? —
de que tivesse havido algum desastre.
Nenhuma sorte desse tipo. E todos os vôos de chegada estavam dentro
do horário.
O filho da puta certamente ficara em Mannheim. Mas por quanto tempo?
Era tarde demais para telefonar para Viena e saber através daquela Fräulen
Zimmer. Ao contrário, era cedo demais. Ainda não eram quatro da manhã lá.
Começou a preocupar-se, achando que talvez alguém fosse se lembrar
dele, sentado no saguão a noite toda e vigiando a porta.
Onde está você, seu maldito judeu canalha? Venha para que eu o mate!

Quarta-feira à tarde, às duas e pouco, Liebermann saltou de um táxi


retido num engarrafamento, em pleno centro da zona de comércio de roupas
de Manhattan, e seguiu pela calçada, apesar da chuva gelada. Seu guarda-
chuva, que tomara emprestado das pessoas em cuja casa pernoitara, Marvin e
Rita Farb, tinha uma cor berrante diferente em cada gomo (é um guarda-
chuva, dizia a si mesmo, dê-se por feliz de tê-lo arranjado).
Chapinhou, apressado, pelo lado oeste da Broadway, esgueirando-se por
entre outros guarda-chuvas (pretos) e homens empurrando pilhas de roupas
cobertas de plástico. Olhava os números dos edifícios comerciais por onde
passava. Apressou o passo.
Percorreu sete ou oito quarteirões, atravessou uma rua, lançou um olhar
sobre um prédio dali — uma agência de apostas de hipódromo, uma loja de
abajures e mais uns vinte andares de alvenaria de pedra encardida e janelas
estreitas — e penetrou por sua entrada em arco, empurrando uma pesada
porta envidraçada de vaivém, após fechar o guarda-chuva mui ticolo rido.
Passou pelo capacho preto do saguão — pequeno, quase todo tomado
por uma banca de revistas e de balas — e reuniu-se à meia dúzia de pessoas
à espera dos elevadores. Bateu contra o capacho de borracha molhado os
sapatos encharcados e a ponta do guarda-chuva, fazendo cair um pouco de
água.
No décimo segundo andar — escuro, as paredes descascando — foi
lendo os números nas vidraças granuladas das portas: "1202, Aaron
Goldman, Flores artificiais"; "1203, C. & M. Roth, Artigos de vidro
importados"; "1204, Artesanato jovem de bonecas, B. Rosenszweig". A sala
1205 tinha "JDJ" colocado à vidraça, em letras metálicas, o D um pouco
mais alto do que os dois /. Bateu com os nós dos dedos no vidro.
Uma mancha indistinta, cor de carne e branca, cresceu sobre a vidraça.
— Sim? — veio uma voz feminina.
— É Yakov Liebermann.
A abertura para correspondência por baixo da vidraça abriu-se com um
estalido, lançando uma réstia de luz.
— Quer passar sua carteira de identidade?
Retirou o passaporte e enfiou-o pela abertura. Alguém tirou-o de seus
dedos.
Esperou. A porta tinha duas fechaduras, uma que parecia mais antiga, e,
abaixo, outra de metal reluzente, com aspecto de nova.
Uma lingüeta correu e a porta abriu-se.
Entrou. Uma garota gorda, de uns dezesseis anos, de cabelos rui vos
puxados para trás, sorriu-lhe e devolveu o passaporte, saudando:
— Shalom.
Ele apanhou-o e respondeu:
— Shalom.
— Temos de ser cuidadosos — desculpou-se a garota. Fechou a porta e
correu a lingüeta. Usava camisa de meia branca e blue jeans apertados. O
cabelo pendia-lhe pelas costas, num reluzente rabo-de-cavalo ruivo-
alaranjado.
Achavam-se numa pequena sala de espera toda atravancada: uma
escrivaninha, um mimeógrafo sobre uma mesa, com pilhas de papel branco e
rosa, estantes de madeira bruta, com montes de boletins e reproduções de
jornais. Na parede oposta, uma porta entreaberta, tendo colado um cartaz dos
Jovens Defensores Judaicos, uma mão brandindo um punhal à frente de uma
estrela judaica azul.
A garota estendeu a mão para o guarda-chuva. Liebermann entregou-o,
ela o colocou dentro de uma cesta de metal, com dois outros, pretos e
molhados.
Tirando o chapéu e o sobretudo, Liebermann indagou:
— Você é a jovem que atendeu ao telefone? Ela assentiu com a cabeça.
— Providenciou tudo com muita eficiência. O rabino está?
— Ele acaba de chegar.
Apanhou o chapéu e o sobretudo de Liebermann.
— Obrigado. Como está o filho dele?
— Eles ainda não sabem. O estado dele está estacionário.
— Humm. — Liebermann meneou a cabeça, compassivo.
A garota encontrou lugares para o chapéu e para o sobretudo por entre
uma árvore de cabides ocupados. Liebermann, endireitando o casaco,
alisando o cabelo, lançou os olhos para as pilhas de boletins, numa prateleira
ao lado dele: "O novo judeu"; "Kissinger beija a morte"¹ ; "Concessões —
nunca!"
1 Trocadilho no original: KISSinger OF DEATH. (N. do T.)

A garota pediu licença e, passando por Liebermann, bateu na porta


coberta pelo cartaz. Abriu-a mais e espiou para dentro.
— Rabino, Mr. Liebermann está aqui.
Abriu toda a porta e, sorrindo para Liebermann, afastou-se.
Um homem atarracado, de barba loura, carrancudo, fitou Liebermann
quando ele entrou num gabinete abafado, com uma barafunda de gente e de
mesas, em meio a um montão de coisas. E, saindo da mesa do canto, o
Rabino Moshe Gorin, bem-apessoado, de cabelos pretos, sólido, sorridente,
rosto lívido, colete xadrez e camisa amarela aberta no peito, segurou a mão
de Liebermann, apertando-a entre as suas, e pousou nele seus magnéticos
olhos castanhos, carregados de sombras.
— Tenho vontade de conhecê-lo desde que era garoto — proferiu em
voz suave, porém veemente. — O senhor é um dos poucos homens deste
mundo que eu realmente admiro, não apenas por causa do que fez, mas por
tê-lo feito sem qualquer ajuda do sistema. O sistema judaico, quero dizer.
Embaraçado, porém satisfeito, Liebermann retorquiu:
— Obrigado. Queria conhecê-lo também, rabino. Sou grato por sua
vinda aqui.
Gorin apresentou os outros homens. O de barba loura, nariz de gavião,
com um aperto de mão triturante, era Phil Greenspan, seu subcomandante.
Um alto, calvo, de óculos, era Elliott Bachrach. Um outro, corpulento, de
barba preta: Paul Stern. O mais jovem — vinte e cinco anos mais ou menos
—, grosso bigode negro, olhos verdes, e outro aperto de mão triturante: Jay
Rabinowitz. Todos estavam em mangas de camisa, e, como Gorin, de
solidéu.
Trouxeram cadeiras de outras mesas, puseram-nas em volta da
extremidade da mesa de Gorin, e sentaram-se. O alto, de óculos, Bachrach,
recostou-se ao peitoril da janela, atrás de Gorin, os braços cruzados, a cortina
amarela toda baixada por trás dele. Liebermann, em frente a Gorin, olhou
aqueles homens sisudos e de aparência resoluta, e o humilde gabinete
atravancado, com os seus mapas de parede da cidade e do mundo, cavalete
com quadro-negro, pilhas de livros, papéis, caixas de papelão.
— Não repare na desordem — fez Gorin, com um aceno.
— Não é muito diferente do meu escritório — retorquiu Liebermann,
sorrindo. — Um pouco maior, talvez.
— Lamento pelo senhor.
— Como está passando o seu filho?
— Acho que ficará bom — respondeu Gorin. — Seu estado está
estacionário.
— Agradeço sua vinda. Gorin encolheu os ombros.
— A mãe está com ele. Fiz minhas preces. — Sorriu.
Liebermann tentou acomodar-se na cadeira sem braços.
— Sempre que falo em público — disse —, quero dizer... perguntam-me
o que acho do senhor. Sempre digo que "nunca o vi pessoalmente, portanto
não tenho opinião".
— Sorriu para Gorin. — Agora terei de dar nova resposta.
— Favorável, espero. — O telefone sobre a mesa tocou. — Ninguém
está aqui, Sandy! — gritou Gorin em direção à porta. — A menos que seja
minha mulher! — Voltou-se para Liebermann, indagando: — Não está
esperando algum telefonema, está?
Liebermann meneou a cabeça.
— Ninguém sabe que estou aqui. Pensam que estou em Washington. —
Pigarreou, sentado com as mãos sobre os joelhos. — Saí a caminho de lá
ontem à tarde — declarou.
— Para ir ao FBI, devido a uns assassinatos que estou investigando. Aqui
e na Europa. Cometidos por antigos membros das ss.
— Assassinatos recentes? — Gorin mostrou-se inquieto.
— Ainda estão sendo cometidos — tornou Liebermann. — Planejados
pela Organização dos Camaradas, da América do Sul, e pelo Dr. Mengele.
— Aquele filho da puta... — murmurou Gorin.
Os homens agitaram-se. O de barba loura, Greenspan, informou a
Liebermann:
— Temos uma nova ramificação no Rio de Janeiro. Logo que estiver
suficientemente organizada, treinaremos uma equipe para apanhá-lo.
— Desejo-lhes sorte — disse Liebermann. — Ele ainda está vivo, sim,
dirigindo todo este negócio. Matou um moço lá, um rapaz judeu de
Evanston, Illinois, em setembro. O rapaz estava ao telefone, falando comigo,
quando aconteceu. Meu problema agora é que levará tempo para convencer
o FBI. Sei do que estou falando.
— Por que esperou tanto? — indagou Gorin. — Se sabia em setembro...
— Eu não sabia — retorquiu Liebermann. — Houve muitos "se",
"talvez", incertezas. Somente agora tenho tudo armado. — Meneou a cabeça
e suspirou. — Foi então que me ocorreu no avião — disse a Gorin — que
talvez vocês, os JDJ — olhou para todos —, pudessem ajudar-me nisso,
enquanto sigo para Washington.
— Tudo o que pudermos fazer — tornou Gorin —, é só pedir, que
obterá. — Os outros assentiram.
— Obrigado — respondeu Liebermann. — É o que eu esperava. Trata-se
de proteger alguém, um homem na Pensilvânia. Num vilarejo de lá, New
Providence, um ponto no mapa, perto da cidade de Lancaster.
— Pensilvânia, terra holandesa — disse o homem de barba preta. —
Conheço-a.
— Esse homem é o próximo a ser morto neste país — anunciou
Liebermann. — No dia 22 deste mês, talvez antes. Talvez daqui a poucos
dias. Portanto, precisa ser protegido. Mas o homem que vem matá-lo não
deve ser espantado ou morto. Tem de ser capturado, a fim de que o
interroguemos.
— Olhou para Gorin. — Tem pessoas que possam cumprir uma missa
dessas? Proteger alguém, capturar alguém?
Gorin acenou afirmativamente.
— Está olhando para elas — asseverou Greenspan, e, dirigindo-se a
Gorin: — Deixe Jay fazer a demonstração. Eu me encarrego disso.
Gorin sorriu, inclinou a cabeça na direção de Greenspan e informou a
Liebermann:
— A maior tristeza deste aqui é ter perdido a Segunda Guerra Mundial.
É o nosso instrutor de combate.
— Será apenas por uma semana mais ou menos, espero
— assegurou Liebermann. — Somente até o FBI entrar em ação.
— Para que precisa deles? — indagou o jovem de bigode, e Greenspan
garantiu a Liebermann: — Vamos apanhá-lo para o senhor, e obteremos mais
depressa informações dele do que o FBI. Com toda a certeza.
O telefone tocou. Liebermann meneou a cabeça.
— Tenho de usá-los — declarou — porque através deles a coisa chega à
Interpol. Há outros países envolvidos. Há mais cinco homens além desse.
Gorin olhava em direção à porta. Voltou-se para Liebermann.
— Quantos assassinatos houve? — indagou.
— Oito, que eu saiba.
Gorin mostrou-se acabrunhado. Alguém assobiou.
— Sete, que eu saiba — corrigiu Liebermann. — Um provável. Talvez
outros ainda.
— Judeus? — indagou Gorin.
Liebermann meneou a cabeça.
— Gois¹.
1 Nome dado pelos judeus aos que não são judeus. (N. do T.)
— Por quê? — perguntou Bach, da janela. — Com que objetivo?
— Sim — instou Gorin. — Quem são eles? Quem é o da Pensilvânia?
Liebermann respirou fundo. Inclinou-se para diante.
— Se eu lhes disser que é muito, muito importante — asseverou —, mais
importante a longo prazo do que o anti-semitismo russo e a pressão sobre
Israel, seria bastante para vocês agora? Garanto-lhes que não estou
exagerando.
Em silêncio, Gorin franziu a testa para a mesa diante de si. Ergueu os
olhos para Liebermann, meneou a cabeça e sorriu, desculpando-se.
— Não — disse. — O senhor está pedindo a Moshe Gorin que lhe ceda
três ou quatro de seus melhores homens, talvez mais. Homens, não meninos.
Numa hora em que estamos espalhados demais, em que o governo vive me
pressionando, achando que estou estragando a sua preciosa distensão. Não,
Yakov — meneou a cabeça —, dar-lhe-ei toda a ajuda que puder, mas que
espécie de líder seria eu se entregasse cegamente meus homens, ainda que
fosse a Yakov Liebermann?
Liebermann assentiu.
— Imaginei que no mínimo haveria de querer saber
— concedeu. — Mas não me peça provas, rabino. Apenas escute e
confie em mim. Do contrário, terei perdido meu tempo. — Olhou para todos
eles, para Gorin, pigarreou. — Por algum acaso — indagou — teriam
estudado um pouco de biologia?

— Deus! — exclamou o de bigode.


— O termo usado é "clone". Saiu um artigo no Times sobre isso há
alguns anos.
Gorin sorriu levemente, enrolando uma linha solta em torno do botão do
punho.
— Esta manhã — declarou —, junto à cama de meu filho, exclamei: "O
que virá depois, Senhor?" — Fez um gesto em direção a Liebermann, com
um aceno de cabeça, sorrindo amargamente. — Noventa e quatro Hitlers.
— Noventa e quatro meninos com os genes de Hitler — retificou
Liebermann.
— Para mim — disse Gorin — isso significa noventa e quatro Hitlers.
— Tem certeza de que este tal de Wheelock ainda está vivo? — indagou
Greenspan a Liebermann.
— Tenho.
— E que não se mudou? — reiterou o de barba preta.
— Tenho o seu telefone — respondeu Liebermann. — Não queria falar
com ele ainda, até conseguir saber se vocês fariam o que eu desejava que
fizessem. — Olhou para Gorin.
— Entretanto, pedi à mulher na casa de quem me hospedei que
telefonasse para ele esta manhã. Ela alegou que pretendia comprar um cão e
teve como resposta que eles eram criadores. É ele mesmo. Ela obteve
indicações de como chegar lá.
— Teremos de fazer isto fora da Filadélfia — disse Gorin a Greenspan.
E a Liebermann: — O que não faremos é atravessar uma fronteira estadual
levando armas. O FBI adoraria um pretexto para nos prender e aos nazistas.
— Telefono então para Wheelock agora? — indagou Liebermann.
Gorin assentiu.
— Vou colocar alguém junto dele, em sua casa — declarou Greenspan.
O rapaz de bigode chegou o telefone para perto de Liebermann.
Liebermann pôs os óculos e tirou um envelope do bolso do casaco.
— Olá, Mr. Wheelock, seu filho é Hitler — motejou Bachrach, da janela.
— Não vou falar no menino — alegou Liebermann. — Ele poderá
desligar o telefone na minha cara, dadas as condições em que foi realizada a
adoção. É só discar, não é?
— Se tem o código da região.
Liebermann discou, lendo o número escrito no envelope.
— Esta é a época de férias — disse Gorin. — É provável que o menino
atenda.
— Somos amigos — retorquiu Liebermann, impassível. — Já estive com
ele duas vezes.
O telefone do outro lado começou a tocar. Tocou novamente.
Liebermann olhou para Gorin, que estava de olhar fito nele.
— Alô. — Atendeu grossa voz masculina.
— Mr. Henry Wheelock?
— É ele quem fala.
— Mr. "Wheelock, meu nome é Yakov Liebermann. Estou telefonando
de Nova York. Dirijo o Centro de Informação de Crimes de Guerra, de
Viena — talvez tenha ouvido falar em nós, não? Colhemos informações a
respeito de criminosos de guerra nazistas, ajudamos a encontrá-los e
auxiliamos a promotoria.
— Já ouvi falar. O negócio daquele Eichmann.
— Isto mesmo, e mais outros. Mr. Wheelock, estou atrás de alguém
presentemente, alguém que se acha neste país. Estou a caminho de
Washington, a fim de recorrer ao FBI. Este homem matou dois ou três
homens aqui, não há muito tempo, e está planejando matar mais.
— Está procurando um cão de guarda?
— Não — respondeu Liebermann. — O próximo homem que ele planeja
matar, Mr. Wheelock — olhou para Gorin —, é o senhor.
— Ah, é? Diga logo quem está falando! É o Ted? Arranjou um perfeito
sotaque alemon, seu cabeça de bagre.
— Não se trata de brincadeira — disse Liebermann. — Sei que o senhor
julga que um nazista não teria motivos para matá-lo...
— Não teria? Eu matei uma quantidade deles. Aposto que ficariam
tremendamente felizes de poderem diminuir a diferença. Se ainda existir
algum por perto...
— Existe um por perto...
— Vamos acabar com isso, quem é que está falando?
— É Yakov Liebermann, Mr. Wheelock.
— Incrível! — exclamou Gorin. Ao redor, cresceu um coro de protestos
irritados.
Liebermann enfiou um dedo no seu ouvido livre.
— Juro-lhe — insistiu — que um homem, um antigo membro das ss,
está a caminho de New Providence para matá-lo, talvez dentro de alguns
dias. Estou tentando salvar-lhe a vida.
Silêncio.
— Estou aqui, no escritório do Rabino Moshe Gorin, dos Jovens
Defensores Judaicos. Até que eu consiga a proteção do FBI para o senhor, o
que talvez demore cerca de uma semana, o rabino tenciona enviar alguns de
seus homens. Eles poderão chegar...
Lançou um olhar interrogativo para Gorin, que respondeu:
— Amanhã de manhã.
— Amanhã de manhã — completou Liebermann. — O senhor
colaborará com eles até que os homens do FBI cheguem?
Silêncio.
— Mr. Wheelock?
— Olhe, Mr. Liebermann, se é mesmo Mr. Liebermann. Está bem, talvez
seja assim. Mas deixe-me dizer uma coisa. Acontece que o senhor está
falando com um dos homens em melhor situação de segurança dos Estados
Unidos. Primeiro, sou antigo agente de repressão de uma penitenciária
estadual, portanto sei alguma coisa a respeito de como cuidar de mim
próprio. Depois, tenho a casa cheia de Dobermanns treinados. Digo uma
palavra e eles saltam na garganta de qualquer um que olhe torto para mim.
— Fico satisfeito em ouvir isso — tornou Liebermann —, mas poderão
eles evitar que uma parede desabe sobre o senhor? Ou que alguém o alveje a
distância? Foi o que aconteceu com dois outros homens.
— Mas que diabo de história é essa? Nenhum nazista está atrás de mim.
O senhor está falando com o Henry Wheelock errado.
— Existe outro em New Providence que crie Dobermanns? Com
sessenta e cinco anos de idade, uma esposa muito mais jovem, um filho com
quase catorze anos?
Silêncio.
— O senhor precisa de proteção — insistiu Liebermann. — E o nazista
precisa ser capturado, e não morto pelos cães.
— Vou acreditar quando o FBI assim disser. Não quero saber de uns
garotos judeus com bastões de beisebol à minha volta.
Liebermann calou-se por um momento.
— Mr. Wheelock — indagou —, posso ir vê-lo a meio do caminho para
Washington? Explicarei melhor.
Gorin olhou-o, interrogativo; ele desviou o olhar.
— Venha, se quiser, estou sempre em casa.
— Quando é que sua esposa não está aí?
— Ela passa fora a maior parte do dia. É professora.
— E o rapaz está na escola também?
— Quando não está às voltas com sua mania de cinema. Será um futuro
Alfred Hitchcock, é o que diz.
— Estarei aí por volta de meio-dia, amanhã.
— Como quiser. Mas somente o senhor. Se eu vir algum "Defensor
Judaico" por perto, solto os cachorros. Tem um lápis? Vou lhe dar o
endereço.
— Já tenho — retorquiu Liebermann. — Vejo-o amanhã. E espero que
esta noite o senhor permaneça em casa.
— É o que estou pretendendo. Liebermann desligou.
— Terei de dizer-lhe que isso tem relação com a adoção — explicou a
Gorin. — Sempre é preferível que ele não desligue na minha cara. — Sorriu.
— Também terei de convencê-lo de que os JDJ não são "uns garotos judeus
com bastões de beisebol". — E, dirigindo-se a Greenspan, acrescentou: —
Terá de ficar esperando por perto, até que eu o chame.
— Tenho de ir à Filadélfia primeiro — retorquiu Greenspan. — Para
pegar meus homens e o meu equipamento. — E preveniu a Gorin: — Quero
levar Paul.
Estabeleceram os planos. Greenspan e Paul Stern iriam à Filadélfia no
carro de Stern, logo que arrumassem as suas coisas, e Liebermann seguiria
para New Providence no carro de Greenspan, pela manhã. Quando
persuadisse Wheelock a aceitar a proteção dos JDJ, telefonaria para a
Filadélfia e a equipe partiria ao seu encontro, na casa de Wheelock. Uma vez
assentadas as coisas ele rumaria para Washington, conservando o carro de
Greenspan, até que o FBI substituísse a equipe.
— Preciso avisar meu escritório — disse ele, mexendo o chá. — Pensam
que já estou lá.
Gorin fez um gesto em direção ao telefone. Liebermann meneou a
cabeça.
— Não, agora não, é muito tarde lá. Cedo, pela manhã, telefonarei. —
Sorriu. — Não vou explorar os JDJ.
Gorin encolheu os ombros.
— Telefono para a Europa o tempo todo — retorquiu. — Para as nossas
ramificações.
Liebermann aquiesceu com a cabeça, meditativo e sentenciou:
— Os contribuintes me largaram e aderiram ao senhor.
— Acredito que alguns o fizeram — tornou Gorin. — Mas o fato de
estarmos sentados aqui juntos, trabalhando juntos, prova que eles estão
ajudando a mesma causa, não é verdade?
— Acho que sim — acedeu Liebermann. — Sim, é verdade.
Pouco depois, acrescentou:
— O garoto do Wheelock não pinta quadros. Estamos em 1975: ele faz
cinema. — Sorriu. — Mas escolheu sozinho as iniciais adequadas. Quer ser
um novo Alfred Hitchcock. E o pai, o funcionário público, não acha isso
uma boa idéia. Hitler e o pai tinham grandes discussões porque ele queria ser
artista.

Mengele atravessara a rua de manhã cedo na quarta-feira e tomara um


quarto em outro hotel, o Kenilworth, registrando-se como Mr. Kurt Koehler,
da Sheridan Road, 18, Evanston, Illinois. Pediram-lhe, como era de se
esperar, para pagar adiantado, uma vez que trazia apenas uma fina pasta de
couro (documentos, faca, pentes para a Browning, diamantes) e um saquinho
de papel (uvas).
Não poderia telefonar para o escritório de Liebermann do quarto do Sr.
Ramón Aschheim y Negrín, pois em seguida à morte de Liebermann os
telefonemas de Koehler certamente seriam controlados, e tampouco se sentia
particularmente disposto a juntar sete dólares em moedas e passar uma hora
encardindo o polegar enfiando-as num telefone de cabine. E, como Kurt
Koehler, poderia receber um telefonema, se necessário.
No seu segundo quarto (nem um décimo de estrela) conseguira
comunicar-se com Fräulen Zimmer e explicara-lhe que voara de Nova York
para Washington, enviando o corpo de Barry sem acompanhante, dada a
avassaladora importância de fazer chegar às mãos de Herr Liebermann o
mais depressa possível as anotações do pobre rapaz, ainda mais importantes
do que julgara a princípio. Mas onde, por favor, me digam, se encontrava
Herr Liebermann?
Não estava no Benjamin Franklin? Fräulen Zimmer se mostrara surpresa,
porém não alarmada. Ela telefonaria para Mannheim, a fim de ver o que
poderia averiguar. Talvez fosse bom Herr Koehler tentar outros hotéis,
embora ela não pudesse imaginar o motivo por que Herr Liebermann teria
ido para outro lugar. Certamente ele telefonaria dentro em breve, geralmente
o fazia quando mudava os planos. (Geralmente!) Sim, ela telefonaria para
Herr Koehler logo que reunisse informações. Estava no Kenilworth, gentil
Fräulen. O Benjamin Franklin estava cheio quando ele chegara. Mas com
um quarto reservado para Herr Liebermann, claro.
Na altura em que ela telefonara de volta, ele havia ligado para mais de
trinta hotéis, e para o Benjamin Franklin seis vezes.
Liebermann deixara Frankfurt no seu pretendido vôo na terça-feira pela
manhã. Portanto, ou estaria em Washington ou se detivera em Nova York.
— Onde ele se hospeda lá?
— Às vezes no Hotel Edison, mas geralmente em casa de amigos,
colaboradores. Tem uma quantidade deles. É uma grande comunidade
judaica, como sabe.
— Sei, sim.
— Não se preocupe, Herr Koehler, estou certa de que terei notícias em
breve, e lhe direi que o senhor está à espera. Vou ficar aqui até tarde, para o
caso de isso acontecer.
Ele telefonou para o Edison, de Nova York, para outros hotéis de
Washington, para o Benjamin Franklin a cada meia hora. Correu até lá,
debaixo da chuva gelada, a fim de certificar-se de que suas roupas e a mala
ainda estavam no seu quarto, com a tabuleta "É favor não perturbar".
Passou a noite de quarta-feira no Kenilworth. Tentou dormir. Ficou
deprimido. Lembrou-se da arma na mesinha-de-cabeceira... Teria realmente
possibilidade de apanhar Liebermann e os outros que ainda deviam ser
mortos (setenta e sete!) antes que ele próprio fosse morto? Ou, pior ainda,
capturado e obrigado a suportar o tipo de hediondo pseudojulgamento que
atingira os pobres Stangl e Eichmann? Por que não acabar com tantas lutas,
projetos, preocupações?
Descobriu, à uma da manhã, na televisão americana — o que certamente
era obra divina, um sinal enviado para despertá-lo do desânimo —, um filme
glorioso com o Führer e o General von Blomberg assistindo a uma
demonstração da Luftwaffe. Silenciou a detestável narração inglesa e ficou
com os olhos naquelas imagens mudas, granulosas e velhas, tão de torcer o
coração, agridoces, reanimadoras...
Dormiu.
Poucos minutos depois das oito, na manhã de quinta-feira, quando estava
prestes a fazer outra chamada para Viena, o telefone tocou.
— Alô?
— É Mr. Kurt Koehler? — Era uma mulher, americana, não Fräulen
Zimmer.
— Sim...
— Alô, aqui é Rita Farb. Sou amiga de Yakov Liebermann. Ele esteve
hospedado em nossa casa, em Nova York. Pediu-me para telefonar para o
senhor. Ele telefonou para o seu escritório em Viena há pouco, e soube que o
senhor está à sua espera. Ele chegará a Washington esta noite, por volta das
seis. Gostaria que o senhor jantasse com ele. Vai telefonar-lhe assim que
chegar.
Aliviado, contente, Mengele exclamou:
— Magnífico!
— Será que o senhor lhe poderia fazer um favor? Telefonar para o Hotel
Benjamin Franklin e avisá-los de que ele irá com toda a certeza?
— Sim, com muito prazer! Sabe em que vôo ele chega?
— Ele vai de carro, não de avião. Acaba de partir. Por isso é que sou eu
que estou telefonando. Ele estava um pouco apressado.
Mengele franziu a testa.
— Não chegará então um pouco antes das seis? — indagou. — Uma vez
que já saiu?
— Não, terá de fazer um desvio até a Pensilvânia. Talvez chegue até um
pouco depois das seis, mas estará aí sem falta e imediatamente lhe
telefonará.
Mengele calou-se por um momento. Em seguida, indagou:
— Será que ele vai falar com Henry Wheelock? Em New Providence?
— Sim, fui eu que lhe dei o endereço. É sem dúvida interessante ter
Yakov em casa. Calculo que alguma coisa realmente importante está em
andamento.
— Sim — retorquiu Mengele. — Obrigado por me ter telefonado. Ah,
sabe a que horas Yakov e Henry vão estar juntos?
— Ao meio-dia.
— Obrigado. Adeus.
Apertou o botão do telefone, sem largar, consultou o relógio, fechou os
olhos e permaneceu imóvel. Abriu os olhos, largou o botão, bateu-lhe de
leve. Comunicou-se com a caixa e pediu-lhe para aprontar a sua conta da
comida e do telefone.
Pôs o bigode, a peruca. A arma. Casaco, sobretudo, chapéu. Apanhou a
pasta.
Atravessou a rua correndo e entrou no Benjamin Fran-klin. Parou no
guichê da caixa, a fim de dar instruções, e dirigiu-se apressadamente à
cabine de aluguel de carros. Uma moça bonita, de uniforme amarelo e preto,
deu-lhe um sorriso radioso.
Que se tornou menos radioso quando soube que ele era paraguaio e não
tinha cartão de crédito. O custo estimado do aluguel teria de ser pago
adiantadamente. Uns sessenta dólares, achava ela. Ia calculá-lo com mais
precisão. Ele largou algumas notas, deixou sua carteira de motorista, disse-
lhe para aprontar o carro dentro de dez minutos e não mais, e apressou-se em
direção aos elevadores.
Por volta de nove horas, estava na estrada, a caminho de Baltimore, num
Ford Pinto branco, sob um brilhante céu azul. Arma debaixo do braço, faca
no bolso do sobretudo. Deus do seu lado.
Guiando dentro do limite de noventa quilômetros por hora, chegaria a
New Providence quase uma hora antes de Liebermann.
De quando em quando outros carros o ultrapassavam. Americanos! O
limite é noventa, eles vão a cem. Meneou a cabeça e permitiu-se andar mais
depressa. A gente dança conforme a música...

Chegou a New Providence — um punhado de casas pardacentas, uma


loja, uma agência de correio cor de tijolo — às dez para as onze, mas aí
precisou encontrar Old Buck Road sem pedir indicações a alguém que
pudesse depois descrever sua pessoa, ou o carro, à polícia. O mapa
rodoviário que arranjara num posto de gasolina de Maryland, mais detalhado
do que o geral, mostrava uma cidade de nome Buck, a sudoeste de New
Providence. Seguiu naquela direção, por uma estrada de duas pistas, cheia de
saliências, que serpenteava através de terras agrícolas atingidas pelo inverno.
Diminuía a marcha a cada encruzilhada e apurava a vista para as tabuletas e
marcos quase ilegíveis. Carros e caminhões passavam com pouca freqüência.
Achou Old Buck Road, com duas bifurcações, uma à direita e outra à
esquerda. Escolheu a da direita e virou para New Providence, olhando as
caixas de correio. Passou por "Gruber" e "C. Johnson". Árvores despidas
entrelaçavam ramos por sobre a estrada estreita. Uma charrete preta veio se
aproximando. Vira outras parecidas em cartazes, na estrada principal. A seita
mennonita constituía atração turística, segundo parecia. Sob a capota preta,
um homem barbado, de chapéu preto, e uma mulher de touca preta estavam
sentados, olhar fixo adiante.
As caixas de correio, junto a entradas que iam dar em terrenos
arborizados, eram poucas e distanciadas. O que era bom, assim podia usar a
arma.
"H. Wheelock." A bandeirola vermelha de aviso estava ao lado da caixa
"CÃES DE GUARDA", avisava (ou anunciava?) uma tabuleta abaixo dela, em
letras pretas maltraçadas.
O que era mau. Embora não inteiramente mau, uma vez que lhe dava um
motivo mais razoável do que o negócio da excursão-de-verão-para-o-menino
que pretendia impingir novamente.
Virou à direita, guiando as rodas do carro para dentro dos sulcos
profundos do caminho de terra que subia gradualmente, em corcova, colina
acima, através das árvores. O fundo do carro raspava de encontro ao ressalto:
isso era problema para Herr Hertz. Mas seu também, caso o carro ficasse
inutilizado. Guiou devagar. Consultou o relógio: onze e dezoito.
Sim, ele se lembrava vagamente de um casal americano que havia
incluído entre os seus interesses a criação de cães. Sem dúvida os Wheelock.
E o guarda de prisão, agora certamente aposentado, talvez tivesse
transformado em ocupação de tempo integral seu antigo passatempo.
— Bom dia! — exclamou Mengele em voz alta. — A tabuleta lá
embaixo diz "Cães de guarda", e é isso exatamente o que estou procurando.
Apertou o bigode grosso, bateu de leve na peruca nos lados e atrás,
inclinou o espelho e olhou-se. Endireitou-o e seguiu vagarosamente pelo
caminho sulcado. Enfiou a mão por dentro do casaco e do sobretudo, abrindo
o coldre, de modo a que a arma pudesse ser sacada livremente.
Latidos de cães, um tumulto deles, irromperam de uma clareira
ensolarada, onde uma casa de dois andares — persianas brancas, telhas
pardas — situava-se em ângulo em relação a ele. E, nos fundos, uma dúzia
de cães arrojava-se de encontro a uma grade alta de arame, latindo, ganindo.
Um homem de cabelos brancos, de pé atrás deles, olhava em sua direção.
Guiou até junto da alameda calçada de pedra da casa e parou o carro ali.
Pôs em ponto morto e girou a chave. Um dos cães gania agora, filhote, a
julgar pelo som. No outro extremo da casa, uma caminhonete vermelha
estava parada dentro de uma garagem para dois carros; a outra metade estava
vazia.
Destravou a porta do carro, abriu-a e saltou. Estirou-se e cocou as costas,
enquanto um gemido do carro lembrou-o de tirar a chave. A arma moveu-se
embaixo do braço. Bateu a porta e ficou olhando o pórtico arrematado de
branco na extremidade da alameda. Então era ali que um deles morava!
Talvez uma fotografia do menino estivesse em algum canto. Que maravilha
ver aquele rosto de quase catorze anos! Deus do céu, e se ele não estivesse
na escola hoje? Idéia perturbadora, mas emocionante!
O homem de cabelos brancos veio em passos longos pelo lado da casa,
com um cão ao lado, preto e reluzente. Usava um volumoso blusão marrom,
luvas pretas, calças marrons. Era alto e largo, o rosto corado e soturno,
hostil.
Mengele sorriu.
— Bom dia! — exclamou. — A...
— O senhor é Liebermann? — indagou o homem, numa voz grossa,
aproximando-se com longas passadas.
Mengele sorriu mais largamente.
— Ja, sim! — exclamou. — Sim! Mr. Wheelock?
O homem parou perto de Mengele e acenou afirmativamente com a
cabeça de cabelos brancos ondulados. O cão, um belo Dobermann preto-
azulado, rosnou para Mengele, mostrando os dentes brancos aguçados. Um
dedo de couro preto enganchava-se na coleira de corrente. Descoseduras e
rasgões esfrangalhavam as mangas do grosseiro blusão marrom, as fibras do
forro branco sobressaindo.
— Cheguei um pouco cedo — desculpou-se Mengele. Wheelock olhou
para além dele, em direção ao carro, e
depois contemplou-o, os olhos azuis apertando-se sob as espessas
sobrancelhas brancas. Rugas vincavam suas faces com barba branca, curta e
espetada.
— Entre — disse, enviesando a cabeça branca em direção à casa. — Não
posso deixar de reconhecer que o senhor me despertou uma curiosidade dos
diabos.
Voltou-se e foi andando na frente, pela alameda, segurando pelo dedo a
coleira do Dobermann preto-azulado.
— Lindo cão — observou Mengele, indo atrás. Wheelock subiu até o
pórtico. A porta branca tinha uma aldrava representando uma cabeça de cão.
— Seu filho está em casa? — indagou Mengele.
— Não tem ninguém em casa — retorquiu Wheelock, abrindo a porta.
— Exceto eles. — Dobermanns, dois, três, vieram lamber-lhe a luva,
rosnando para Mengele. — Quietos, meninos — tranqüilizou Wheelock. —
É um amigo.
— Fez um gesto para os cães recuarem — eles obedeceram — e entrou
com o outro cão, fazendo um sinal para Mengele. — Feche a porta.
Mengele entrou e fechou a porta. Parou, os olhos em Wheelock,
agachado entre os Dobermanns negros aglomerados, afagando-lhes as
cabeças, dando palmadas em seus flancos compactos, enquanto esfregavam
nele a língua e o focinho.
— Como são lindos — disse Mengele.
— Estes jovens aqui — tornou Wheelock, feliz — são Harpo e Zeppo,
foi meu filho quem deu os nomes, a única ninhada que lhe permiti batizar.
Este velhote aqui é Sansão — quieto, Sansãozinho — e este é Major.
Apresento-lhes Mr. Liebermann, rapazes. Um amigo. — Ergueu-se e sorriu
para Mengele, puxando as pontas das luvas. — Pode ver agora por que não
urino nas calças quando o senhor me diz que alguém anda no meu encalço.
Mengele acenou afirmativamente.
— É — acedeu. — Baixou os olhos para os dois Dobermanns que
farejavam seu sobretudo. — Magnífica proteção — acrescentou —, uns cães
como esses.
— Pulam na garganta de quem me olhar enviesado. — Wheelock abriu o
fecho ecler do blusão. Havia uma camisa vermelha por dentro. — Tire seu
sobretudo — recomendou.
— Pendure ali.
À direita de Mengele havia um móvel alto, com grandes cabides pretos.
Seu espelho oval mostrava uma cadeira e a extremidade de uma mesa de
jantar no aposento do outro lado. Mengele pendurou o chapéu num cabide,
desabotoou o sobretudo. Sorriu para os Dobermanns, sorriu para Wheelock,
que tirava o blusão. Atrás deste subia uma íngreme escada estreita.
— Então o senhor foi quem apanhou o tal de Eichmann. — Wheelock
pendurou seu blusão de mangas rasgadas.
— Os israelenses é que o pegaram — retorquiu Mengele, tirando o
sobretudo. — Entretanto, ajudei-os, é claro. Descobri onde se escondia, lá na
Argentina.
— Ganhou recompensa?
— Não. — Mengele pendurou o sobretudo. — Faço essas coisas por
prazer — declarou. — Odeio os nazistas. Deviam ser caçados e destruídos
como uma praga.
— Os crioulos, não os nazistas, é que nos devem preocupar atualmente
— contraveio Wheelock. — Venha cá para dentro.
Endireitando o casaco, Mengele entrou atrás de Wheelock na sala à
direita. Dois dos Dobermanns acompanhavam-no, fuçando suas pernas. Os
outros dois acompanharam Wheelock. O aposento era uma aprazível sala de
estar, com cortinas brancas nas janelas, uma lareira de pedra, e, à esquerda,
toda uma parede de fitas de prêmio coloridas, troféus dourados, fotografias
com molduras pretas.
— Ah, mas isso é notável — louvou Mengele, e foi olhar. Os retratos
eram todos de Dobermanns, nenhum do menino.
— Agora me diga por que há um nazista atrás de mim. Mengele voltou-
se. Wheelock estava sentado num canapé vitoriano, entre as duas janelas da
frente, retirando porções de fumo de dentro de um pote de vidro lapidado em
cima de uma mesa baixa e enfiando-o dentro de um atarracado cachimbo
preto. Um Dobermann tinha as patas dianteiras sobre a mesa e observava-o.
Outro Dobermann, o maior de todos, jazia sobre um tapete oval, entre
Wheelock e Mengele, de olhos erguidos para Mengele, tranqüilo, porém
interessado.
Os outros dois Dobermanns farejavam as pernas de Mengele, as pontas
dos dedos.
Wheelock olhou Mengele, inquisitivo:
— Então?
Sorrindo, Mengele disse:
— Sabe, fica difícil para mim falar com... — e indicou com um gesto o
Dobermann ao seu lado.
— Não se preocupe — tranqüilizou Wheelock, preparando o cachimbo.
— Não irão perturbar, a menos que o senhor me perturbe. Trate de sentar-se
e falar. Eles se habituarão ao senhor.
Mengele sentou-se num sofá de couro, que rangeu. Um dos Dobermanns
saltou em pé ao seu lado, dando reviravoltas, pronto a deitar-se de novo. O
Dobermann sobre o tapete levantou-se e veio empurrar a cabeça preta e
luzidia entre os joelhos de Mengele, farejando em direção à virilha.
— Sansão — admoestou Wheelock, sugando a chama do fósforo dentro
do fornilho do cachimbo.
O Dobermann retirou a cabeça e deitou-se no chão, olhando para
Mengele. Outro Dobermann, sentado aos pés de Mengele, cocou a coleira de
corrente com a pata traseira. O Dobermann deitado junto a Mengele, no sofá,
observava o Dobermann sentado diante de Mengele.
Mengele pigarreou e anunciou:
— O nazista que virá é o próprio Dr. Mengele. Provavelmente estará
aqui...
— Um médico? — Wheelock, segurando o cachimbo, sacudiu o fósforo.
— Sim — assentiu Mengele. — O Dr. Mengele. Mr. Wheelock, não
duvido que estes cães estejam perfeitamente treinados, posso avaliar, tendo
diante dos olhos estes magníficos prêmios — indicou com o dedo a parede
atrás de si —, mas o fato é que, quando eu tinha oito anos, fui atacado por
um cão. Não um Dobermann, mas um pastor alemão. — Tocou na coxa
esquerda. — A coxa inteira — explicou
— ainda hoje é um montão de cicatrizes. E ficaram cicatrizes mentais
também. Sinto-me muito inquieto quando tenho um cão junto de mim, no
mesmo aposento, e quatro então... bem, é um verdadeiro pesadelo!
Wheelock baixou o cachimbo.
— Devia ter dito isso logo de cara — disse. E levantou-se, estalando os
dedos. Os Dobermanns pularam, arremessando-se, aos atropelos, para o seu
lado. — Venham, meninos — disse, dirigindo o bando através da sala, em
direção à porta junto ao sofá. — Temos aqui em casa um outro Wally
Montague. Entrem. — Apontou-lhes em direção à porta, retirou com a ponta
do pé alguma coisa embaixo dela e fechou-a, experimentando a maçaneta.
— Eles não podem entrar por outro caminho? — indagou Mengele.
— Não. — Wheelock tornou a cruzar a sala. Mengele suspirou, dizendo:
— Obrigado. Sinto-me muito melhor agora. — Chegou-se para a frente
do sofá e desabotoou o casaco.
— Conte sua história depressa — preveniu Wheelock, sentando no sofá,
pegando o cachimbo. — Não gosto de mantê-los presos muito tempo.
— Entrarei direto no assunto — principiou Mengele —, mas primeiro —
ergueu um dedo — gostaria de emprestar-lhe uma arma, a fim de que possa
defender-se em momentos como este, quando os cães não estão com o
senhor.
— Tenho uma arma — retorquiu Wheelock, recostando-se, com o
cachimbo entre os dentes, os braços ao longo da armação do sofá, as pernas
cruzadas. — Uma Luger.
— Retirou o cachimbo da boca, soprou a fumaça. — Duas espingardas e
um fuzil.
— Esta é uma Browning — tornou Mengele, tirando a arma do coldre.
— Preferível à Luger, por ter um pente de treze balas. — Empurrou a trava
para baixo com o polegar e, segurando a arma em posição de atirar, virou-a
para Wheelock. — Levante as mãos — ordenou. — Primeiro pouse o
cachimbo, devagar.
Wheelock franziu a testa para ele, as sobrancelhas brancas eriçadas.
— Ouça — disse Mengele. — Não quero fazer-lhe mal. Por que o faria?
É um perfeito estranho para mim. Em Liebermann é que estou interessado.
Seria mais correto dizer: "É ele que me interessa" — acrescentou Mengele.
Wheelock descruzou as pernas e inclinou-se para a frente
vagarosamente, fitando Mengele com um ar feroz, o rosto rubro. Pousou o
cachimbo e ergueu as mãos abertas acima da cabeça.
— Na cabeça — sugeriu Mengele. — O senhor tem uma bonita
cabeleira; invejo-o. Infelizmente, isto aqui é uma peruca. — Levantou-se do
sofá, sacudindo o cano da arma para cima.
Wheelock ergueu-se, as mãos cruzadas na nuca.
— Não me importo merda nenhuma tanto com judeus quanto com
nazistas — asseverou.
— Ótimo — retorquiu Mengele, mantendo a arma apontada para o peito
de Wheelock, coberto pela camisa vermelha. — Entretanto, gostaria de pô-lo
num lugar onde não pudesse fazer nenhum sinal para Liebermann. Existe
algum porão?
— Claro — respondeu Wheelock.
— Vá para lá. Andando tranqüilamente. Há outros cães nesta casa, além
desses quatro?
— Não. — Wheelock caminhou devagar em direção ao vestíbulo, as
mãos na cabeça. — Sorte sua.
Mengele seguiu-o com a arma.
— Onde está sua esposa? — indagou.
— Na escola. Ensinando. Em Lancaster. — Wheelock entrou no
vestíbulo.
— Tem retratos do seu filho?
Wheelock deteve-se por um momento, andou para a direita.
— Para que é que você quer os retratos?
— Para olhar — respondeu Mengele, acompanhando-o com a arma. —
Não estou pensando em fazer-lhe mal. Sou o médico que o fez nascer.
— Que diabo significa isso? — Wheelock parou junto a uma porta ao
lado da escada.
— Tem retratos? — indagou Mengele.
— Há um álbum ali. Onde estávamos. Na parte inferior da mesa onde
está o telefone.
— É esta a porta?
— Sim.
— Baixe uma das mãos e abra-a, apenas um pouco. Wheelock voltou-se
para a porta, baixou uma das mãos, abriu a porta ligeiramente. Pôs a mão de
volta na cabeça.
— O resto com o pé.
Wheelock abriu toda a porta com a ponta do pé. Mengele moveu-se até a
parede oposta e encostou-se nela, a arma junto às costas de Wheelock.
— Entre.
— Tenho de acender a luz.
— Faça-o.
Wheelock estendeu a mão, puxou um cordão. Uma luz forte surgiu por
dentro da porta. Pondo a mão de volta na cabeça, Wheelock abaixou-se e
desceu para um patamar com utensílios domésticos presos à parede de tábua.
— Desça — ordenou Mengele. — Devagar. Wheelock virou-se para a
esquerda e começou a descer devagar pela escada.
Mengele aproximou-se da porta, desceu para o patamar. Virou-se para
Wheelock, puxou a porta, fechando-a.
Wheelock desceu devagar os degraus do porão, as mãos na cabeça.
Mengele apontou a arma para as costas cobertas pela camisa vermelha.
Disparou uma, duas vezes. Estampidos ensurdecedores. Cápsulas pularam.
As mãos deixaram a cabeça branca, desceram, tateantes, encontraram os
corrimãos. Wheelock oscilou.
Mengele disparou outro tiro ensurdecedor nas costas revestidas pela
camisa vermelha.
As mãos escorregaram dos corrimãos e Wheelock desabou para a frente.
A testa, num baque, foi de encontro ao chão lá embaixo. As solas dos
sapatos esparramaram-se, as pernas e o tronco resvalaram ainda mais, escada
abaixo.
Mengele olhou, dilatando o ouvido com o indicador.
Abriu a porta e saiu para o corredor. Os cães latiam furiosamente.
— Quietos! — berrou Mengele, dilatando o outro ouvido com o dedo.
Os cães continuaram latindo.
Mengele empurrou a trava para cima e pôs a arma no coldre. Tirou fora o
lenço, limpou a maçaneta de dentro da porta, puxou o cordão da luz, fechou
a porta com o cotovelo.
— Quietos! — berrou, enfiando o lenço no bolso.
Os cães continuavam latindo. Arranhavam e golpeavam pesadamente a
porta na extremidade do vestíbulo.
Mengele precipitou-se em direção à porta da frente, espiou através da
vidraça estreita ao lado. Abriu a porta e correu para fora.
Entrou no carro, deu a partida e guiou-o em volta da casa, até a metade
vazia da garagem.
Voltou às pressas para a casa, fechou a porta. Os cães latiam, uivavam,
arranhavam, davam trancos.
Mengele mirou-se no espelho do móvel da entrada. Tirou a peruca e
puxou o bigode do lábio superior. Pôs o bigode e a peruca no bolso do seu
sobretudo pendurado, cobrindo-os com a aba.
Olhou-se novamente, tocando com a palma das mãos a cabeleira grisalha
cortada rente. Franziu a testa.
Tirou o casaco, pendurou-o num cabide. Mudou o sobretudo para o
mesmo cabide, cobrindo o casaco.
Desfez o laço da gravata de listras pretas e douradas, puxou-a fora,
enrolou-a e meteu-a no bolso do sobretudo.
Desabotoou o colarinho da sua camisa azul-clara, o botão seguinte
também. Abriu o colarinho, alisando as pontas.
Os cães latiram e uivaram atrás da porta.
Mengele ajeitou a correia de trás do coldre. Olhou-se no espelho e
indagou:
— O senhor é Liebermann?
Perguntou outra vez, mais americano, menos alemão.
— O senhor é Liebermann? — Tentou fazer uma voz mais parecida com
a de Wheelock, mais grossa. — Entre. Devo confessar que estou curioso
como o diabo. Non lique parra eles, semprre latem atsim. Ligue. Para. Não
ligue para eles, sempre latem assim. Você é Liebermann? Entre.
Os cães latiram.
— Quietos! — berrou Mengele.
Sete
Liebermann mantinha os olhos nos décimos de quilômetros registrados
vagarosamente no painel de instrumentos do pequeno Saab que lhe moia os
rins. A casa de Wheelock ficava exatamente a seiscentos e quarenta metros
da curva à esquerda para o Old Buck Road — se é que estava lendo
corretamente a letra extravagante de Rita, o que nem sempre conseguira até
então. Entre a letra de Rita e as paradas para descanso a que os solavancos
do Saab obrigavam, já passavam vinte minutos de meio-dia.
Mesmo assim, sentia as coisas ajustando-se e correndo satisfatoriamente.
Tivera a tristeza, é claro, de saber que o corpo de Barry fora encontrado, mas
a notícia chegara numa ocasião que, pelo menos, apresentava seu lado
propício: agora tinha um ponto de partida consistente e comprovável para
utilizar em Washington. E Kurt Koehler estava lá, não apenas com as
anotações feitas por Barry — importantes e úteis, ao que tudo indicava —,
como também detentor da influência de um cidadão respeitado. Certamente
haveria de querer continuar ajudando de todas as maneiras possíveis. O fato
de se encontrar ali era prova de seu empenho.
E Greenspan e Stern estavam na Filadélfia, prontos, segundo se
presumia, para vir com a equipe de comandos dos JDJ, logo que Wheelock
se convencesse de estar em perigo. "Diz respeito a seu filho, Mr. Wheelock.
A adoção. Foi arranjado para o senhor e sua esposa por intermédio de uma
mulher chamada Elizabeth Gregory, não? Agora, por favor me acredite,
ninguém..."
Os seiscentos e quarenta metros deslizaram no mostrador, e adiante, à
esquerda, uma caixa de correio se aproximava. "CÃES DE GUARDA", em
letras pretas pintadas numa tabuleta abaixo; "H. Wheelock", na tampa da
caixa. Liebermann diminuiu a marcha do carro, parou, esperou que um
caminhão passasse e atravessou a estrada. Guiou as rodas do carro para
dentro dos sulcos profundos do caminho de terra que subia gradualmente,
em corcova, colina acima, através das árvores. O fundo do carro raspava de
encontro ao ressalto. Liebermann fez a mudança, guiou devagar. Olhou o
relógio: quase vinte e cinco minutos passados.
Meia hora, digamos, para convencer Wheelock (sem entrar na questão
dos genes: "Não sei por que estão matando os pais dos meninos; o fato é que
estão, eis tudo"), e depois, cerca de uma hora para os JDJ chegarem. Aí,
seriam pouco mais de duas horas. Poderia talvez sair às três e chegar a
Washington às cinco, cinco e meia. Telefonaria para Koehler. Ansiava por
encontrá-lo e ver as anotações de Barry. Era de surpreender que Mengele as
houvesse deixado escapar. Mas talvez Koehler superestimasse sua
importância...
Latidos de cães, um tumulto deles, irromperam de uma clareira
ensolarada, onde uma casa de dois andares — persianas brancas, telhas
pardas — situava-se em ângulo em relação a ele. E nos fundos, uma dúzia de
cães arrojava-se de encontro a uma grade alta de arame, latindo, ganindo.
Guiou até junto da alameda calçada de pedra e parou o carro ali. Pôs em
ponto morto e girou a chave, puxou o freio de mão. Os cães ainda latiam nos
fundos. No outro extremo da casa, uma caminhonete vermelha e um seda
branco estavam dentro de uma garagem.
Saltou do carro, fechou a porta e, de pasta na mão, ficou contemplando a
casa marrom com frisos brancos. Seria bastante fácil proteger Wheelock. Os
cães — ainda latindo — constituíam natural sistema de alarma. E repressivo.
O matador provavelmente agiria em algum outro lugar — no vilarejo ou na
estrada. Wheelock teria de seguir uma rotina normal, deixando que o
assassino tivesse oportunidade de se mostrar. Problemas: assustá-lo o
bastante para que aceitasse a proteção dos JDJ, mas não tanto a ponto de fazê-
lo ficar em casa e trancar-se num armário.
Respirou fundo e subiu pelo caminho em direção ao pórtico. A porta
tinha uma aldrava, uma cabeça de cão de ferro, e um botão de campainha
preto, ao lado. Escolheu a aldrava; acionou-a duas vezes. Era velha e dura.
As batidas não foram muito altas. Esperou um momento — cães latiam
dentro da casa — e estendeu um dedo na direção do botão. Mas a porta
abriu-se e um homem menor do que ele esperava, com cabelos grisalhos
cortados rentes e olhos castanhos vividos e joviais, olhou-o e disse em uma
voz grossa:
— O senhor é Liebermann?
— Sim. Mr. Wheelock?
Um aceno de assentimento da cabeça de cabelos grisalhos cortados
rentes, e a porta abriu-se mais.
— Entre.
Entrou num vestíbulo que cheirava a cachorros, de onde subia uma
escada. Tirou o chapéu. Cães — cinco ou seis, ao que parecia — latiam,
uivavam, arranhavam atrás de uma porta na extremidade do vestíbulo.
Voltou-se para Wheelock, que fechara a porta e sorria para ele.
— Prazer em conhecê-lo — disse Wheelock, elegante numa camisa azul-
clara aberta no peito e com os punhos dobrados, de calças cinzento-escuras
assentando bem e sapatos pretos de boa aparência. Não devia haver recessão
no negócio de cães de guarda. — Estava começando a pensar que você não
vinha.
— Li errado as indicações — explicou Liebermann. — Uma senhora não
lhe telefonou de Nova York? — Meneou a cabeça, com um sorriso de
desculpas. — Em meu nome?
— Ah! — fez Wheelock, e sorriu. — Tire o seu sobretudo. — Apontou
para os cabides, onde já estavam pendurados um chapéu e um sobretudo
pretos e um blusão marrom, com as mangas descosidas e rasgadas.
Liebermann pendurou o chapéu, pousou a pasta no chão, desabotoou o
sobretudo. Wheelock mostrava-se mais amável do que ao telefone — parecia
mesmo verdadeiramente satisfeito em vê-lo —, mas alguma coisa na sua
maneira de falar contrariava a amabilidade. Liebermann percebeu-a, sem
contudo conseguir defini-la. Olhando para a porta onde os cães latiam e
uivavam, observou:
— Não exagerou quando disse ter uma casa cheia de cães.
— É — retorquiu Wheelock, passando por ele, sorridente. — Não ligue.
Sempre latem assim. Coloquei-os lá dentro para que não o incomodassem.
Há pessoas que ficam nervosas. Venha para cá. — Entrou pela porta à
direita.
Liebermann pendurou o sobretudo, pegou a pasta e, com um olhar
meditativo para as costas de Wheelock, acompanhou-o, passando a uma
aprazível sala de estar. Os cães começaram a dar encontrões e a latir atrás de
uma porta à esquerda, perto de um sofá de couro preto, acima do qual se
penduravam as fitas de prêmio coloridas numa parede de lambris, por entre
troféus e fotografias em molduras pretas. Uma lareira de pedra emergia na
extremidade da sala, com mais troféus sobre o consolo e um relógio. Janelas
com cortinas brancas na parede da direita, um antiquado canapé entre elas.
No canto, junto à porta, uma mesa e uma cadeira, telefone, livros de
escrituração, cachimbos num suporte.
— Sente-se — convidou Wheelock, com um gesto em direção ao sofá,
enquanto se dirigia ao canapé. — Agora me diga por que há um nazista atrás
de mim. Tenho de admitir que você me despertou uma curiosidade dos
diabos.
"Curiosidade" — o R ligeiramente carregado. Era isso que o inquietava.
O amável Henry Wheelock o estava arremedando, sombreando sua fala
americana com um leve "tsotaque alemon". Nada de exagerado, apenas o R
ligeiramente carregado, a mínima explosão de um P por trás da doçura de
um B. Liebermann sentou-se no sofá — a almofada arquejou — e olhou à
sua frente para Wheelock, inclinado para diante, no canapé, cotovelos sobre
os joelhos afastados, pontas de dedos deslizando para a frente e para trás, ao
longo da borda de um álbum de fotografias ou de recortes sobre uma mesa
baixa. Sorrindo-lhe, na expectativa.
Teria sido o arremedo involuntário? Ele próprio às vezes imitava o ritmo
e as inflexões do alemão desajeitado de um estrangeiro. Surpreendera-se
fazendo isso e sentira-se embaraçado.
Mas não, aquilo era intencional, tinha certeza. Do sorridente Wheelock
emanava hostilidade. E o que se poderia esperar de um antigo guarda
penitenciário anti-semita que treina cães para se atirarem aos pescoços das
pessoas? Extrema bondade? Boas maneiras?
Bem, ele não viera até ali para fazer um novo amigo. Pôs a pasta junto
aos pés, descansou as mãos nos joelhos.
— Para explicar isso, Mr. Wheelock — disse —, tenho de entrar em
assunto pessoal. Pessoal relativo ao senhor e sua família. Acerca do seu filho
e de sua adoção.
As sobrancelhas de Wheelock soergueram-se, inquisitivas.
— Estou informado — tornou — de que o senhor e Mrs. Wheelock
obtiveram-no na cidade de Nova York, através de "Elizabeth Gregory".
Agora, por favor, me acredite — inclinou-se para diante —, ninguém irá
criar problemas com relação a isso. Ninguém tentará tirar o seu filho do
senhor ou acusar o senhor de qualquer infração à lei. Já passou muito tempo
e não tem mais importância, importância direta. Dou-lhe minha palavra.
— Acredito em você — proferiu Wheelock gravemente.
Sujeito muito frio, aquele "caladon", recebendo tudo tão calmamente. Ali
sentado, correndo as pontas dos indicadores ao longo da borda da capa do
álbum verde, unindo-as e separando-as, unindo-as e separando-as. A
lombada estava voltada para Liebermann. A capa inclinava-se, parecendo
apoiada em alguma coisa dentro.
— "Elizabeth Gregory" — continuou Liebermann — não era o nome
verdadeiro dela. Seu nome verdadeiro era Frieda Maloney, Frieda Altschul
Maloney. Ouviu falar?
Wheelock franziu a testa, refletindo.
— Refere-se àquela nazista? — indagou. — A que foi devolvida à
Alemanha?
— Sim. — Liebermann apanhou a pasta. — Tenho aqui algumas
fotografias da mulher. Verá que...
— Não precisa — retrucou Wheelock. Liebermann fitou-o.
— Vi o retrato no jornal — explicou Wheelock. — Pareceu-me familiar.
Agora sei por quê. — Sorriu. O "agora" saíra quase "agorra".
Liebermann acenou com a cabeça. (Teria sido intencional? A não ser
pelo arremedo, Wheelock estava sendo bastante amável.) Ajustou de volta a
correia solta da pasta e olhou para Wheelock.
— O senhor e a sua esposa — declarou, tentando não deixar os seus
próprios RR saírem carregados — não foram o único casal a receber bebês.
Um casal de nome Guthrie também recebeu, e Mr. Guthrie foi assassinado
em outubro passado. Um casal de nome Curry igualmente, e Mr. Curry foi
assassinado em novembro.
Wheelock parecia preocupado agora. As pontas dos dedos se tinham
imobilizado na borda da capa do álbum.
— Há um nazista em atividade neste país — asseverou Liebermann,
segurando a pasta no colo —, um antigo membro das ss, matando os pais dos
meninos adotados por intermédio de Frieda Maloney. Matando-os na mesma
ordem das adoções, e com o mesmo intervalo de tempo. O senhor é o
próximo, Mr. Wheelock. — Acenou com a cabeça. — E para breve. E há
muitos outros depois. Por isso é que vou ao FBI, e, enquanto vou, o senhor
deverá ser protegido. De forma melhor do que por seus cães. — Fez um
gesto em direção à porta junto à extremidade do sofá. Os cães uivavam agora
atrás dela, um ou dois latidos sem muito entusiasmo.
Wheelock meneou a cabeça, assombrado.
— Humm! — proferiu. — Mas isso é tão estranho! — Olhou, atônito,
para Liebermann. — Os pais dos meninos estão sendo mortos?
— Sim.
— Mas por quê? — Pronúncia perfeita desta vez. Ele também estava
tentando.
Deus do céu, não havia dúvida! Não se tratava de arremedo, intencional
ou não, mas de um sotaque autêntico como o dele sendo reprimido!
— Não sei... — respondeu.
E sapatos e calças de um homem de cidade, não do campo. A hostilidade
brotando, os cães presos para não "perturbarem"...
— Não sabe? — perguntou-lhe o nazista-que-não-era-Wheelock. —
Todos esses assassinatos ocorrendo e não sabe a razon?
Mas os assassinos tinham cinqüenta e poucos anos, e aquele homem teria
sessenta e cinco, talvez um pouco menos. Mengele? Impossível. Estava no
Brasil ou Paraguai, e não ousaria vir ao norte, não poderia estar ali em New
Providence, Pensilvânia.
Meneou a cabeça para o-que-não-podia-ser-Mengele.
Mas Kurt Koehler estivera no Brasil, e viera para Washington. O nome
poderia ter constado no passaporte ou carteira de Barry como parente mais
próximo...
Uma arma surgiu de trás da capa do álbum, o cano apontado para ele.
— Então devo lhe dizer — anunciou o homem de arma em punho.
Liebermann olhou-o, escureceu e encompridou o seu cabelo, deu-lhe um
bigode fino, completou-o, tornou-o mais jovem... Sim, era Mengele.
Mengele! O odiado, há tanto tempo caçado. O Anjo da Morte, assassino de
crianças! Ali sentado. Sorridente. De arma apontada para ele. — Deus me
livre — disse Mengele em alemão — que você venha a morrer ignorando.
Quero que saiba exatamente o que acontecerá dentro de uns vinte anos. Esse
seu olhar ossificado é só para a arma, ou será que me reconheceu?
Liebermann piscou, respirou fundo.
— Eu o reconheci — declarou. Mengele sorriu.
— Rudel, Seibert e os outros — motejou — são um punhado de
mulheres velhas. Chamaram de volta os homem porque Frieda Maloney lhe
falou acerca dos bebês. Por isso, tive de terminar sozinho a missão. —
Encolheu os ombros. — Na verdade, não me importo. O trabalho me
conservará jovem. Ouça, baixe a pasta bem devagar, sente-se de mãos na
cabeça e descanse. Tem um bom minuto ou mais antes que eu o mate.
Liebermann arriou lentamente a pasta, à esquerda dos pés, pensando que
se tivesse uma oportunidade de se atirar para a direita e abrir a porta ali —
supondo que não estivesse trancada — talvez os cães choramingando do
outro lado vissem Mengele com a arma e o atacassem, antes que pudesse dar
muitos tiros. Claro, talvez os cães também o atacassem, ou talvez não
atacassem nenhum deles sem que Wheelock (morto lá dentro) desse a
ordem. Mas não lhe ocorria outra coisa senão tentar.
— Gostaria que demorasse mais — asseverou Mengele. — De verdade,
mesmo. Este é um dos momentos mais gratificantes da minha vida, como
estou certo poderá avaliar, e, se fosse possível, prazerosamente eu
conversaria assim com você por uma hora ou duas. Para refutar alguns dos
grotescos exageros do seu livro, por exemplo... Mas infelizmente... —
Encolheu os ombros, pesaroso.
Liebermann cruzou as mãos no alto da cabeça, sentado ereto na beira do
sofá. Começou a afastar os pés, muito devagar. O sofá era baixo e levantar-
se rapidamente não ia ser fácil.
— Wheelock está morto? — indagou.
— Não — respondeu Mengele. — Está na cozinha, fazendo almoço para
nós. Ouça bem agora, caro Liebermann: vou lhe dizer uma coisa que lhe
parecerá inteiramente incrível, mas juro-lhe sobre a sepultura de minha mãe
que é a verdade absoluta. Iria me dar ao trabalho de mentir para um judeu?
E, além do mais, morto?
Liebermann relanceou os olhos para a janela, à direita do canapé, e de
volta para Mengele, atentamente.
Mengele suspirou e meneou a cabeça.
— Se eu quiser olhar pela janela — disse —, primeiro o matarei, depois
olharei. Mas não quero olhar pela janela. Se alguém estivesse se
aproximando, os cães lá nos fundos estariam latindo, não é? Não é?
— É — assentiu Liebermann, sentado com as mãos à cabeça.
Mengele sorriu.
— Está vendo? Tudo me é favorável. Deus está comigo. Sabe o que vi
na televisão hoje, à uma hora da madrugada? Filmes de Hitler. — Acenou
com a cabeça. — Num momento em que me achava gravemente deprimido,
virtualmente suicida. Se isso não foi um sinal dos céus, jamais houve outro.
Portanto, não perca seu tempo olhando para as janelas, olhe para mim e
ouça. Ele está vivo. Este álbum — apontou com a mão livre, sem tirar os
olhos ou a arma de cima de Liebermann — está cheio de retratos dele, de um
a treze anos. Os meninos são réplicas genéticas exatas. Não perderei tempo
explicando-lhe como consegui isso e, mesmo que o fizesse, duvido que você
tivesse capacidade para compreender, mas confie na minha palavra, eu o
consegui. Réplicas genéticas exatas. Foram concebidas em meu laboratório e
levadas a termo por mulheres da tribo Auiti, criaturas sadias, dóceis, com um
chefe dotado de espírito prático. Os meninos não guardam mácula alguma
delas, são Hitler puro, inteiramente gerados de suas células. Ele me permitiu
tirar meio litro de seu sangue e um pedaço de pele de suas costelas — nossa
disposição de espírito era bíblica — a 6 de janeiro de 1943, no Covil do
Lobo. Ele se recusara a ter filhos — o telefone tocou. Mengele manteve os
olhos e a arma voltados para Liebermann — porque sabia que filho algum
poderia florescer à sombra de tão... — o telefone tocou — sublime pai. Por
isso, quando soube que era teoricamente possível, que eu poderia... — o
telefone tocou — criar algum dia não o seu filho, mas um outro ele mesmo,
não uma cópia de carbono, mas... — o telefone tocou — outro original,
emocionou-se com a idéia, tanto quanto eu. Foi então que me concedeu a
posição e as oportunidades necessárias para iniciar a pesquisa. Acha
realmente que o meu trabalho em Auschwitz foi uma loucura sem propósito?
Que estúpidas as pessoas são! Ele comemorou a ocasião, a doação do sangue
e da pele, com uma cigarreira e uma bela inscrição. "Para meu amigo de
muitos anos Josef Mengele, que me serviu melhor do que muitos homens, e
talvez algum dia me sirva melhor do que todos. Adolf Hitler." É o meu bem
mais venerado, naturalmente. Demasiado perigoso para ser levado através
das alfândegas, por isso repousa no cofre do meu advogado, em Assunção, à
espera de que eu regresse de minhas viagens. Está vendo? Estou lhe
concedendo mais de um minuto — olhou para o relógio...
Liebermann levantou-se e — um disparo soou — rodeou a extremidade
do sofá, estirando-se. Um disparo soou, outro disparo soou, a dor
arremessou-o de encontro à parede dura, dor no peito, dor mais abaixo. Cães
latiram alto no seu ouvido colado à parede. A porta de madeira parda
estremeceu com os trancos. Estirou-se para o lado oposto, atrás da maçaneta
de vidro. Um disparo soou. A maçaneta fez-se em pedaços ao agarrá-la, um
buraquinho nas costas da sua mão foi se enchendo de sangue. Agarrou um
pedaço pontiagudo de maçaneta — um disparo soou, os cães latiram
furiosamente — e, encolhendo-se de dor, olhos fechados, apertados, torceu o
pedaço de maçaneta, puxou. A porta se escancarou de encontro ao seu braço
e ombro, os cães uivando. Disparos soaram, uma salva trovejante. Latidos,
um grito, estalidos de uma arma vazia. Um baque, um estardalhaço,
rosnados, um grito. Largou o pedaço de maçaneta cortante, virou-se,
arquejante, de encontro à parede. Deixou-se escorregar para o chão, abriu os
olhos...
Os cães negros empurraram Mengele de lado sobre o canapé, as pernas
esparramadas. Grandes Dobermanns, de dentes arreganhados, olhos furiosos,
orelhas pontudas para trás. A face de Mengele bateu contra o braço do
canapé. Seu olho fitou o Dobermann à sua frente, movendo-se por entre as
pernas da mesa virada, abocanhando-lhe o pulso. A arma caiu-lhe dos dedos.
Seu olho revirou para fitar os Dobermanns rosnando junto à sua face e
pescoço. O Dobermann junto à sua face estava entre suas costas e o encosto
do canapé, as patas dianteiras pisando-lhe o ombro, em busca de apoio. O
Dobermann junto ao seu pescoço tinha as patas traseiras no chão, entre suas
pernas esparramadas, e debruçava-se sobre a coxa encolhida, o corpo
arriando sobre seu peito. Subiu mais o rosto de encontro ao braço do canapé,
olhos fixos no chão, lábios trêmulos.
Um quarto Dobermann escarrapachara-se, enorme, no chão, de lado,
entre o canapé e Liebermann, as costelas pretas se elevando, o focinho no
tapete oval. Uma réstia de luz foi se espalhando debaixo dele, uma poça de
urina.
Liebermann escorregou parede abaixo e, encolhendo-se, sentou no chão.
Esticou lentamente as pernas, observando os Dobermanns ameaçarem
Mengele.
Ameaçando, não matando. O pulso de Mengele fora solto. O Dobermann
que o abocanhara ficou rosnando para ele, de focinho contra o seu nariz.
— Matem! — ordenou Liebermann, mas somente um murmúrio saiu. A
dor que lhe trespassava o peito aumentou e aguçou-se.
— Matem! — gritou, contrapondo-se à dor. Uma ordem rouca saiu.
Os Dobermanns rosnavam, sem se mover. O olho de Mengele cerrou-se
apertado, os dentes morderam-lhe o lábio inferior.
— MATEM! — berrou Liebermann, e a dor rasgou-lhe o peito,
dilacerando-o.
Os Dobermanns rosnaram, sem se mover.
Um guincho muito agudo saiu da boca de Mengele, por entre os dentes
cerrados.
Liebermann jogou novamente a cabeça de encontro à parede e fechou os
olhos, arfando. Desceu com um puxão o laço da gravata, desabotoou o
colarinho. Abriu mais outro botão sob a gravata e levou os dedos até a dor;
encontrou uma umidade no peito, na beira da sua camiseta. Retirou os dedos,
abriu os olhos. Viu o sangue nas pontas dos dedos. A bala o atravessara.
Atingindo o quê? O pulmão esquerdo? Isso não importava, o fato é que cada
respiração intensificava a dor. Procurou o lenço no bolso da calça, rolou para
a esquerda para poder alcançá-lo. Uma dor pior explodiu abaixo, no quadril.
Encolheu-se, perfurado por ela. Ai!
Tirou fora o lenço, trouxe-o até em cima, apertou-o de encontro ao
ferimento do peito e manteve-o ali.
Ergueu a mão esquerda. O sangue escorria dos dois lados, mais da
brecha irregular na palma do que do furo menor no dorso. A bala atravessara
por baixo do primeiro e segundo dedos. Estavam entorpecidos e não
conseguia movê-los. Dois cortes sangravam pela palma.
Tencionava manter a mão para cima, a fim de que sangrasse menos, mas
não conseguiu, deixando-a cair. Não havia mais forças nele. Apenas dor. E
cansaço... A porta ao seu lado fechava-se devagar.
Olhou Mengele seguro pelos Dobermanns.
O olho de Mengele observava-o.
Fechou os olhos, respirando suavemente para se defender da dor que lhe
queimava o peito.

— Fora...
Abriu os olhos e olhou para o outro lado da sala, onde Mengele jazia
estatelado sobre o canapé, entre os Dobermanns rosnadores.
— Fora... — murmurou Mengele brandamente, com cautela. Seu olho
moveu-se do Dobermann diante dele para o Dobermann no seu pescoço, e
para o Dobermann no seu rosto.
— Saiam. Não tenho mais arma. Nenhuma arma. Fora. Saiam. Sejam
bonzinhos.
Os Dobermanns preto-azulados rosnaram, sem se mover.
— Quietinhos — tornou Mengele. — Sansão? Sansão, meu velho.
Saiam. Vão embora. — Virou a cabeça vagarosamente de encontro ao braço
do canapé. Os Dobermanns recuaram um pouco as cabeças, rosnando.
Mengele esboçou um sorriso débil para eles. — Major? — indagou. — Você
é Major? Meu bom Major, meu bom Sansão. Sejam bonzinhos. Amigo. Não
tenho mais arma. — Sua mão, de pulsos avermelhados, agarrou a parte da
frente do braço do canapé, a outra mão segurou as costas do canapé.
Começou a soerguer-se lentamente de lado. — Sejam bonzinhos. Saiam.
Fora.
O Dobermann no meio da sala jazia imóvel, as costelas pretas paradas. A
poça de urina ao seu redor fragmentara-se em outras menores espalhadas,
cintilando nas tábuas largas do chão.
— Sejam bonzinhos... quietinhos...
Deitado de costas, Mengele começou a levantar-se vagarosamente no
canto do canapé. Os Dobermanns rosnaram, mas permaneceram onde
estavam, encontrando outro apoio para as patas enquanto ele se erguia, longe
de seus dentes.
— Fora — disse. — Sou amigo de vocês. Estou fazendo mal a vocês
agora? Não, não, eu gosto de vocês.
Liebermann fechou os olhos, respirou suavemente. Sentava-se no sangue
que lhe escorria por trás.
— Meu bom Sansão, meu bom Major. Beppo? Zarko? Sejam bonzinhos.
Fora. Fora.

Dena e Gary tinham um problema qualquer. Mantivera a boca fechada


quando estivera lá em novembro, mas talvez não devesse. Talvez ele...
— Está vivo, judeu canalha? Abriu os olhos.
Mengele estava sentado no canto do canapé, ereto, uma perna levantada,
um pé no chão. Segurando o braço e as costas do canapé. Sarcástico,
comandando a situação. Exceto quanto aos três Dobermanns encostados
nele, rosnando baixinho.
— É pena — tornou Mengele —, mas você não vai durar muito. Posso
ver daqui. Você está nas últimas. Estes cães perderão o interesse em mim,
basta que eu me sente calmamente e fale com eles. Vão querer sair para
urinar ou beber água. — Dirigiu-se em inglês aos Dobermanns: Água?
Beber? Não querem água? Sejam bonzinhos. Vão beber água.
Os Dobermanns rosnaram, sem se mover.
— Filhos da puta — proferiu Mengele amavelmente em alemão. E para
Liebermann: — Então você nada conseguiu, judeu canalha, a não ser morrer
devagar, em vez de depressa, e arranhar um pouco meu pulso. Dentro de
quinze minutos sairei daqui. Cada homem da lista morrerá na sua data. O
Quarto Reich se aproxima, não apenas um Reich alemão, mas um pan-
ariano. Viverei o bastante para vê-lo e estar ao lado de seus líderes. Pode
imaginar a admiração que inspirarão? A autoridade mística que exercerão? O
temor dos russos e dos chineses? Para não falar dos judeus.
O telefone tocou.
Liebermann tentou mover-se da parede — arrastar-se, se pudesse, até o
fio pendente da mesa junto à porta —, mas a dor no quadril trespassou-o,
imobilizando-o, deixando-o incapaz de reagir. Sentou-se de novo no sangue
pegajoso. Fechou os olhos, arquejando.
— Bom. Morra um minuto antes. E enquanto morre, vá pensando nos
seus netos indo para os fornos.
O telefone continuava tocando.
Greenspan e Stern, talvez. Telefonando para saber o que estava
acontecendo, por que ele não telefonara. Não obtendo resposta, não ficariam
preocupados, resolvendo vir, colhendo informações no vilarejo? Se ao
menos os Dobermanns retivessem Mengele...
Abriu os olhos.
Mengele permanecia sentado, sorrindo para os Dobermanns — um
sorriso calmo, persistente, amistoso. Não rosnavam agora.
Deixou os olhos fecharem.
Tentou não pensar em fornos, exércitos, multidões bradando saudações.
Imaginou se Max, Lili e Ester conseguiriam manter vivo o centro.
Contribuições talvez chegassem. Haveria comemorações.

Latidos, rosnados. Abriu os olhos.


— Não, não! — exclamava Mengele, recostado no canto do canapé,
agarrado no braço e nas costas do canapé, enquanto os Dobermanns
arremetiam e rosnavam. — Não, não! Sejam bonzinhos! Sejam bonzinhos!
Não, não vou sair! Não, não. Estão vendo como estou quieto? Sejam
bonzinhos. Sejam bonzinhos.
Liebermann sorriu, fechou os olhos.
Sejam bonzinhos.
Greenspan? Stern? Venham...

— Judeu canalha?
O lenço aderia sozinho ao ferimento, por isso ficou de olhos fechados,
sem respirar — deixe-o pensar —, e então ergueu a mão direita e esticou o
dedo médio.

Latidos distantes. Os cães nos fundos. Abriu os olhos.


Mengele lançou-lhe um olhar feroz. O mesmo ódio que lhe chegara pelo
telefone, naquela noite, há tanto tempo.
— Não importa o que acontecer — disse ele —, eu venci. Wheelock foi
o décimo oitavo a morrer. Dezoito perderam seus pais quando ele perdeu o
seu, e pelo menos um dos dezoito chegará a ser adulto como ele, tornando-se
quem ele se tornou. Você não sairá vivo desta sala para detê-lo. Eu também
não, talvez, mas você, com toda a certeza, não escapa. Juro.
Passos à entrada.
Os Dobermanns rosnaram, debruçados sobre Mengele.
Liebermann e Mengele entreolharam-se a distância.
A porta da frente se abriu.
Fechou-se.
Olharam para a porta.
Alguém deixou cair um peso no vestíbulo. Um metal tiniu.
Passos.
O menino chegou e parou à porta — magro, nariz proeminente, cabelos
escuros. Uma larga listra vermelha atravessava o peito de seu blusão azul de
fecho ecler.
Olhou para Liebermann.
Para Mengele e os Dobermanns.
Para o Dobermann morto.
Para um lado e para o outro, os olhos azul-claros arregalados. Afastou a
mecha escura com uma luva azul de plástico.
— Chiiiiu! — comandou.

— Mein... querido menino — disse Mengele, com um olhar de adoração.


— Meu querido, querido menino, você não pode fazer idéia de como estou
feliz, jubiloso, vendo-o aí de pé, tão admirável, forte e belo! Quer afastar
esses cães tão leais e magníficos? Eles me mantiveram imobilizado durante
horas, sob a errônea impressão de que eu, e não aquele perverso judeu ali,
teria vindo para lhe fazer mal. Quer afastá-los, por favor? Explicarei tudo. —
Sorriu afetuosamente, sentado entre os Dobermanns rosnando.
O menino fitou-o, e virou a cabeça vagarosamente em direção a
Liebermann.
Liebermann moveu levemente a cabeça.
— Não se deixe enganar por ele — tornou Mengele. — É um criminoso,
um assassino, um homem terrível. Veio fazer mal a você e sua família.
Afaste estes cães, Bobby. Está vendo? Sei o seu nome. Sei tudo a seu
respeito; que visitou Cape Cod no verão passado, que tem uma câmara de
cinema, que tem duas priminhas bonitas chamadas... Sou um velho amigo de
seus pais. Na verdade, sou o médico que o pôs no mundo, que acaba de
voltar de fora! Dr. Breitenbach. Eles lhe falaram de mim? Parti há muito
tempo.
O menino olhou-o, em dúvida.
— Onde está meu pai? — indagou.
— Não sei — disse Mengele. — Presumo, já que aquele indivíduo tinha
uma arma que consegui tirar dele — e os cães nos viram lutando e chegaram
à conclusão errada —, presumo que ele tenha — sacudiu a cabeça, pesaroso
— dado cabo de seu pai. Tendo acabado de chegar do exterior, como já
disse, vim fazer uma visita, e ele me deixou entrar, passando-se por amigo
da família. Quando sacou a arma, consegui dominá-lo e tirá-la dele, mas aí
ele abriu aquela porta e soltou os cães. Mande-os embora e vamos procurar
seu pai. Talvez ele só esteja amarrado. Pobre Henry! Tomara que nada de
mau tenha acontecido. Ainda bem que sua mãe não estava aqui. Ela ainda dá
aulas em Lancaster?
O menino olhou para o Dobermann morto. Liebermann sacudiu um
dedo, tentando atrair o olhar do menino.
O menino olhou Mengele.
— Ketchup — proferiu. Os Dobermanns voltaram-se e correram para
ele. Dois ficaram de um lado, um do outro. Suas luvas tocavam-lhes as
cabeças preto-azuladas.
— Ketchup! — exclamou Mengele, contente, baixando a perna de cima
do canapé, sentando-se para a frente e esfregando os braços. — Nunca na
vida pensaria em dizer "ketchup"! — Moveu os pés no chão, esfregando as
coxas, sorrindo. — Disse "saiam", disse "fora", disse "vão", disse "amigos",
jamais me ocorreu dizer "ketchup"!
O menino, franzindo a testa, tirou as luvas.
— Seria melhor... chamarmos a polícia — disse. A mecha escura caiu-
lhe obliquamente na testa.
Mengele continuava de olhos fitos nele.
— Como você é maravilhoso! — exclamou. — Estou tão... — Piscou,
engoliu, sorriu. — Sim — assentiu —, certamente devemos chamar a
polícia. Faça-me um favor, mein... querido Bobby. Leve os cães e vá para a
cozinha arranjar-me um copo d'água. Preciso também comer alguma coisa.
— Levantou-se. — Chamarei a polícia e depois procurarei seu pai.
O menino enfiou as luvas no bolso do blusão.
— É seu este carro aí em frente? — perguntou.
— Sim — respondeu Mengele. — E o dele é o que está na garagem. Ou
pelo menos presumo. É o seu? O da família?
O menino olhou-o, cético.
— O que está na frente — tornou — tem um adesivo no pára-choque, a
respeito de os judeus não cederem nada de Israel. Você disse que ele era
judeu.
— E é — assentiu Mengele. — Pelo menos, parece um deles. — Sorriu.
— Isso não é hora de falar das palavras que usei. Vá buscar água, por favor,
que eu chamarei a polícia.
O menino pigarreou.
— Quer sentar-se novamente? — redargüiu. — Eu os chamarei.
— Querido Bobby...
— Picles — ordenou o menino. Os Dobermanns precipitaram-se,
rosnando, sobre Mengele. Ele recuou no cana-pé, os antebraços cruzados
diante do rosto. — Ketchup! — exclamou. — Ketchup! Ketchup! — Os
Dobermanns debruçaram-se sobre ele, rosnando.
O menino atravessou a sala, abrindo o fecho ecler do blusão.
— Eles não obedecerão a você — declarou. Voltou-se para Liebermann,
afastou da testa a mecha escura.
Liebermann fitou-o.
— Ele mentiu, não foi? — perguntou o menino. — Ele tinha a arma, e
abriu a porta para você.
— Não! — exclamou Mengele.
Liebermann assentiu.
— Não pode falar?
Ele assentiu com a cabeça, apontou para o telefone.
O garoto concordou com um gesto e voltou-se.
— Este homem é seu inimigo! — gritou Mengele. — Juro por Deus
como é!
— Pensa que sou idiota? — O menino dirigiu-se à mesa, levantou o
fone.
— Não faça isso! — Mengele inclinou-se em sua direção. Os
Dobermanns avançaram e rosnaram, mas ele continuou inclinado. — Por
favor! Imploro-lhe! Pelo seu bem, não pelo meu! Sou seu amigo! Vim aqui
ajudá-lo! Ouça-me, Bobby! Apenas um minuto!
O menino encarou-o, de fone na mão.
— Por favor! Explicarei! A verdade! Menti, sim! Eu tinha a arma. Para
ajudar você! Por favor! Escute-me só por um minuto! Vai me agradecer, juro
que vai! Um minuto!
O menino continuou a encará-lo e baixou o fone, desligando.
Liebermann sacudiu, desesperado, a cabeça.
— Telefone! — proferiu num sussurro que mal lhe saiu da boca.
— Obrigado — disse Mengele ao menino. — Obrigado. — Recostou-se,
sorrindo tristemente. — Devia ter visto que era inteligente demais para que
lhe mentissem. Por favor — fitou os Dobermanns, olhou para o menino —,
afaste-os. Ficarei sentado aqui.
O menino permaneceu junto à mesa, olhando-o.
— Ketchup — ordenou. Os Dobermanns voltaram-se e correram para
ele. Colocaram-se ao seu lado, todos os três do lado em que estava
Liebermann, frente a Mengele.
Mengele meneou a cabeça, passou a mão sobre os rentes cabelos
grisalhos.
— Isso... é tão difícil. — Baixou a mão e olhou aflito para o menino.
— Então? — indagou este.
— Você é inteligente, não é? — tornou Mengele. O menino permaneceu
de olhos nele, os dedos se movendo sobre a cabeça do Dobermann mais
próximo.
— Não vai bem na escola — continuou Mengele. — Foi bem quando era
pequeno, não agora. Isso porque é muito inteligente, muito — ergueu a mão,
bateu na testa. — Tem suas próprias idéias. A verdade é que sabe mais que
os professores, hein?
O menino olhou o Dobermann morto, franzindo a testa, os lábios. Olhou
para Liebermann.
Liebermann apontou, ansioso, o telefone. Mengele inclinou-se para o
menino.
— Se vou ser sincero com você — asseverou —, você deve ser sincero
comigo! Não sabe mais que os professores?
O menino fitou-o, encolheu os ombros.
— Com exceção de um — respondeu.
— E tem grandes ambições, não é mesmo? O menino acedeu
silenciosamente.
— De ser um grande pintor, ou um arquiteto. O menino negou com um
movimento.
— Quero fazer filmes.
— Sim, é claro. — Mengele sorriu. — Ser um grande cineasta. — Olhou
para o menino, seu sorriso desvaneceu-se. — Você e seu pai discutiram
sobre isso — tornou. — Ele é um velho teimoso, com um ponto de vista
limitado. Você fica indignado com ele, com razão.
O menino fitou-o.
— Está vendo? — instou Mengele. — Conheço-o mesmo. Melhor que
qualquer pessoa deste mundo.
O menino, perplexo, indagou:
— Quem é você?
— O médico que o pôs no mundo. Isso é verdade. Mas não sou um velho
amigo de seus pais. Na verdade, nunca os conheci. Somos estranhos.
O menino inclinou a cabeça, como para ouvir melhor.
— Entende o que isso quer dizer? O homem que considera seu pai —
balançou a cabeça — não é seu pai. E sua mãe — embora a ame, e ela o
ame, estou certo — não é sua mãe. Eles o adotaram. Fui eu quem arranjou a
adoção. Através de intermediários. Auxiliares.
O menino encarou-o.
Liebermann, apreensivo, observava o menino.
— Deve ser penoso receber notícias como essa tão de repente — disse
Mengele —, mas talvez... não de todo desagradáveis, hein? Nunca se sentiu
superior aos que o cercavam? Como um príncipe entre plebeus?
O menino empertigou-se, encolhendo os ombros.
— Sinto-me... diferente de todos, às vezes.
— Você é diferente — asseverou Mengele. — Infinitamente diferente, e
infinitamente superior. Você tem...
— Quem são meus pais verdadeiros? — indagou o menino.
Mengele olhou, pensativamente, para suas mãos, apertou-as, ergueu o
olhar para o menino.
— Seria melhor, para você — declarou —, não saber ainda. Quando for
mais velho, mais maduro, descobrirá. Mas isso posso lhe dizer agora, Bobby:
nasceu do mais nobre sangue de todo o mundo. Sua herança — não me refiro
a dinheiro, mas a caráter, talento — é incomparável. Tem dentro de si
possibilidades de satisfazer ambições milhares de vezes maiores do que
aquelas com que sonha atualmente. E irá satisfazê-las! Mas somente — e
deve ter em mente quão bem o conheço, e confiar em mim quando digo isso
—, somente se sair daqui agora com os cães, e deixar-me... fazer o que tenho
de fazer e ir embora.
O menino permaneceu olhando para ele.
— Pelo seu bem — tornou Mengele. — Sua felicidade é só o que levo
em conta. Deve acreditar nisso. Dediquei minha vida a você e ao seu bem-
estar.
— Quem são meus pais verdadeiros? — tornou o menino.
Mengele meneou a cabeça.
— Quero saber.
— Nisso, deve curvar-se à minha decisão. Na ocasião devida, você...
— Picles. — Os Dobermanns avançaram, rosnando, sobre Mengele. Ele
encolheu-se, os antebraços cruzados à frente. Os Dobermanns debruçaram-
se sobre ele, rosnando.
— Diga-me — ordenou o menino. — Agora mesmo. Senão eu... direi
uma coisa diferente para eles. Falo sério. Posso fazer com que eles o matem,
se quiser.
Mengele fitava o menino por sobre punhos cruzados.
— Quem são meus pais? — indagou o menino. — Vou contar até três.
Um...
— Você não tem pais! — exclamou Mengele.
— Dois...
— É verdade! Nasceu da célula do maior homem que já existiu!
Renasceu! Você é ele, está revivendo a sua vida! E aquele judeu ali é seu
inimigo declarado! E dele também!
O menino voltou-se para Liebermann, os olhos azuis confusos.
Liebermann ergueu a mão, tocou a testa com o dedo curvado, apontou
para Mengele.
— Não! — exclamou Mengele, quando o menino se voltou para ele. Os
Dobermanns rosnaram. — Não sou doido! Embora você seja inteligente, há
coisas de que não tem conhecimento, acerca de ciência e microbiologia!
Você é a réplica viva do maior homem de toda a história! E ele
— seu olhar saltou em direção a Liebermann — veio aqui matá-lo! E eu
vim protegê-lo!
— Quem? — intimou o menino. — Quem sou eu? Que grande homem?
Mengele fitou-o por sobre as cabeças dos Dobermanns rosnadores.
— Um... — proferiu o menino.
— Adolf Hitler — respondeu Mengele. — Disseram-lhe que ele era
mau, mas à medida que crescer e vir o mundo engolido por negros e semitas,
eslavos, orientais, latinos
— e a sua gente ariana ameaçada de extinção, da qual você a salvará —,
chegará à conclusão de que ele era o melhor, o mais admirável, o mais sábio
de toda a humanidade! Vai rejubilar-se de sua herança, e me abençoará por
tê-lo criado! Como ele próprio me abençoou por haver tentado!
— Sabe o que mais? — tornou o menino. — Você é o maior maluco que
já vi. O mais esquisito, o mais doido
— Estou dizendo a verdade! — exclamou Mengele. — Consulte seu
coração! A energia capaz de comandar exércitos está nele, Bobby! De
submeter países inteiros à sua vontade! De exterminar sem piedade todos os
que se opuserem a você!
— Você... está maluco — disse o menino.
— Consulte seu coração — instou Mengele. — Toda a força dele está
em você, ou estará quando chegar a hora. Agora faça como lhe digo. Deixe-
me protegê-lo. Tem um destino a cumprir. O mais alto de todos os destinos.
O menino baixou os olhos, esfregou a testa. Ergueu o olhar para
Mengele.
— Mostarda — proferiu.
Os Dobermanns atacaram. Mengele debateu-se, aos gritos.
Liebermann olhou. Retraiu-se, estremecendo. Olhou.. Olhou para o
menino.
O menino enfiou as mãos nos bolsos do blusão azul de listra vermelha.
Afastou-se da mesa, aproximou-se vagarosamente do lado do canapé,
permanecendo de olhos baixos. Franziu o nariz.
— Chiiiu... — comandou.
Liebermann olhou para o menino, e para os açulados Dobermanns
derrubando Mengele no chão.
Olhou para a sua mão esquerda sangrando lentamente, dos dois lados.
Grunhidos soaram. Arreganhar de dentes. Rasgaduras.
Pouco depois, o menino afastou-se do canapé, as mãos ainda nos bolsos.
Baixou o olhar para o Dobermann morto, cutucou-lhe a anca com a ponta do
tênis. Lançou um olhar a Liebermann, voltou-se e olhou para trás.
— Fora — ordenou. Dois dos Dobermanns ergueram as cabeças e
vieram na direção dele, as línguas lambendo as bocas ensangüentadas.
— Fora! — exclamou o menino. O terceiro Dobermann ergueu a
cabeça.
Um dos Dobermanns farejou o Dobermann morto.
O outro Dobermann passou por Liebermann, empurrou com o focinho a
porta ao lado deste e saiu.
O menino veio colocar-se entre os pés de Liebermann, olhos baixados
sobre ele, a mecha caindo em diagonal pela testa.
Liebermann levantou os olhos para ele. Apontou o telefone.
O menino retirou as mãos dos bolsos e agachou-se, os cotovelos sobre as
coxas recobertas de veludo cotelê, as mãos pendentes. Unhas sujas.
Liebermann olhou o rosto jovem e sombrio: o nariz proeminente, a
mecha, os olhos azul-claros sobre ele.
— Acho que você vai morrer logo — disse o menino
— se alguém não vier ajudá-lo, levando-o para o hospital.
— Seu hálito recendia a goma de mascar.
Liebermann acenou com a cabeça.
— Posso sair novamente — declarou o menino. — Com os meus livros.
E voltar depois. Dizer... que estava apenas dando um passeio. Costumo fazer
isto às vezes. E minha mãe só volta para casa às vinte para as cinco. Garanto
que você estaria morto nessa altura.
Liebermann olhou para ele. Outro Dobermann saiu.
— Se eu ficar e chamar a polícia — indagou o menino — dirá para eles
o que fiz?
Liebermann refletiu. Meneou a cabeça.
— Nunca?
Ele meneou a cabeça.
— Promete?
Ele assentiu.
O menino estendeu a mão.
Liebermann olhou para ela.
Olhou para o menino. Este olhou para ele.
— Se pode apontar, também pode apertar a mão — ponderou o menino.
Liebermann olhou para a mão do menino.
Não, disse a si mesmo. De qualquer forma você vai morrer. Que espécie
de médicos haveria num buraco daqueles?
— Então?
E talvez haja uma vida depois da morte. Talvez Hannah estivesse à
espera. Mamãe, papai, as meninas... Não se iluda. Ergueu a mão. Apertou a
mão do menino. O mínimo possível.
— Ele era realmente esquisito — tornou o garoto, e levantou-se.
Liebermann olhou para a mão dele.
— Fora! — gritou o menino para o Dobermann ocupado com Mengele.
O Dobermann correu para o vestíbulo, voltou, alucinado, boca
sanguinolenta, para junto de Liebermann, e saiu. O menino dirigiu-se ao
telefone. Liebermann fechou os olhos. Lembrou-se. Abriu-os.
Quando o menino acabou de falar, fez sinal para ele. O garoto
aproximou-se.
— Água? — indagou.
Ele meneou a cabeça, fez sinal. O menino agachou-se ao seu lado.
— Há uma lista — sussurrou.
— O quê? — o garoto aproximou o ouvido.
— Há uma lista — proferiu, o mais alto que pôde.
— Uma lista?
— Veja se pode achá-la. No sobretudo dele, talvez. Uma lista de nomes.
Observou o menino se dirigindo ao vestíbulo. Hitler, meu auxiliar.
Manteve os olhos abertos.
Olhou para Mengele diante do canapé. Branco e vermelho, onde estivera
o seu rosto. Osso e sangue. Bom.
Pouco depois o menino voltou, olhando uns papéis. Ele estendeu a mão.
— Meu pai faz parte dela — disse o garoto. Estendeu mais para o alto a
mão.
O menino olhou-o, inquieto, pousou os papéis na sua mão.
— Tinha esquecido. É melhor ir procurá-lo.
Cinco ou seis folhas datilografadas. Nomes, endereços, datas. Difíceis de
ler sem os óculos. "Döring", riscado. "Horve", riscado. Outras páginas, sem
riscos.
Dobrou os papéis de encontro ao chão, enfiou-os no bolso do casaco.
Fechou os olhos.
Permaneça vivo. Ainda não acabou.
Latidos distantes.
— Encontrei-o.

Greenspan, de barba loura, olhou-o fixamente. Sussurrou :


— Ele está morto! Não podemos interrogá-lo!
— Está bem. Eu tenho a lista.
— O quê?
Cabelo louro crespo, solidéu bordado com alfinete. O mais alto que
pôde:
— Está bem. Eu tenho a lista. Todos os pais. Foi levantado — Ai! — e
arriado.
Numa padiola. Transportado. Aldrava com cabeça de cachorro, luz do
dia, céu azul.
Uma lente cintilante sobre ele, demorando-se, zunindo. Nariz
proeminente do lado.
Oito
Tinham bons médicos, conforme ficou provado. Suficientemente bons,
de qualquer forma, para deixá-lo com a mão no gesso, um tubo enfiado no
braço, e ataduras por todo o corpo — na frente, atrás, em cima, embaixo.
No centro de tratamento intensivo do Lancaster Hospital. Sábado. A
sexta-feira fora perdida.
Ficaria bom, um médico indiano rechonchudo lhe disse. Uma bala havia
passado através do seu "mediastino" — o médico tocou no seu peito coberto
pelo avental branco. Fraturara uma costela, ferira o pulmão esquerdo e uma
coisa chamada "nervo recorrente laringiano" e deixara de atingir a aorta por
milagre. Outra bala fraturara a cintura pélvica e alojara-se no músculo. Outra
danificara ossos e músculos da mão esquerda. Outra esfolara uma costela do
lado direito.
A bala alojada fora removida e todo o estrago remediado. Poderia falar
dentro de uma semana ou dez dias, andaria de muletas dentro de duas
semanas. A embaixada austríaca fora avisada, embora — o médico sorriu —
provavelmente não fosse necessário. Por causa dos jornais e da televisão.
Um detetive queria falar com ele, mas teria de esperar, é claro.
Dena curvou-se e beijou-o, apertando sem parar sua mão direita e
sorrindo. Que dia era? De olheiras, mas bonita.
— Não podia ter dado um jeito de fazer isso na Inglaterra? — indagou
ela.
Foi removido para um centro de tratamento intermediário, pôde sentar-se
e escrever. "Onde estão minhas coisas?"
— Vai receber tudo quando estiver no seu quarto — disse a enfermeira
com um sorriso.
"Quando?"
— Quinta ou sexta, é o mais provável.
Dena leu-lhe as reportagens dos jornais. Mengele foi identificado como
Ramón Aschheim y Negrín, um paraguaio. Matara Wheelock, ferira
Liebermann, e fora morto pelos cães de Wheelock. O filho de Wheelock,
Robert, de treze anos, chamara a polícia, ao voltar da escola. Cinco homens
que haviam chegado imediatamente depois da polícia tinham-se identificado
como membros dos Jovens Defensores Judaicos e amigos de Liebermann.
Tinham a intenção de encontrá-lo, declararam, e acompanhá-lo numa viagem
a Washington. Manifestaram a opinião de que Aschheim y Negrín era um
nazista, mas não puderam dar qualquer explicação para a presença dele ou de
Liebermann na casa de Wheelock, ou para o assassinato de Wheelock. A
polícia esperava que Liebermann, se e quando se recuperasse, pudesse lançar
luz sobre a questão.
— Você pode? — indagou Dena.
Inclinou a cabeça, fazendo uma boca de "talvez".
— Quando você se aproximou dos JDJ?
"Na semana passada."
Uma enfermeira veio avisar a Dena que alguém queria vê-la.
O Dr. Chavan entrou, examinou o quadro de Liebermann, segurou-lhe o
queixo, olhou-o atentamente e declarou-lhe que a pior coisa que havia com
ele era estar precisando fazer a barba.
Dena voltou, inclinada ao peso da valise de Liebermann.
— É falar no diabo... — disse, arriando-a junto à divisória. Greenspan
trouxera a valise. Fora buscar o carro, que a polícia não lhe permitira retirar
na quinta-feira. Deixara com Dena um bilhete para Liebermann: "Primeiro,
fique bom; segundo, o Rabino Gorin o procurará logo que puder. Ele tem
problemas pessoais. Observe os jornais".
Doía-lhe o corpo todo. Dormiu um bocado.
Mudaram-no para um bom quarto, com cortinas listradas e um aparelho
de televisão na parede, sua pasta sobre uma cadeira. Logo que o colocaram
na cama, abriu a gaveta de mesinha-de-cabeceira. A lista estava ali, junto
com suas outras coisas. Pôs os óculos e olhou os nomes datilografados. Os
números de 1 a 17 riscados. Riscado o de Wheelock também. A data de
Wheelock fora 19 de fevereiro.
Um barbeiro veio fazer-lhe a barba.
Podia falar, roucamente, mas não devia. Tanto melhor, teria tempo para
pensar.
Dena escreveu cartas. Ele leu o Philadelphia Inquirer e o The New York
Times, viu as notícias na televisão de controle remoto. Nada sobre Gorin.
Kissinger em Jerusalém, num encontro com Rabin. Crime, desemprego.
— O que é que há, pai?
— Nada.
— Não fale.
— Você perguntou.
— Não fale! Escreva! Para isso tem o bloco!
"NADA!"
Às vezes, bem que ela era uma praga.
Chegaram cartões e flores: de amigos, contribuintes, da agência de
conferências, da irmandade do templo local. Uma carta de Klaus, que
obtivera o endereço do hospital através de Max: "Por favor, escreva logo que
puder. Dispensável dizer que eu, Lena e Nürnberger também estamos por
demais ansiosos para saber além do que está nos jornais".
Um dia depois que teve licença para falar, um detetive de nome Banhart
veio procurá-lo, um rapaz ruivo, corpulento, cortês, de voz suave.
Liebermann não tinha muita luz a lançar sobre o caso. Nunca vira Ramón
Aschheim y Negrín antes do dia em que este atirara nele. Nem sequer ouvira
falar do nome. Sim, Mrs. Wheelock estava certa: ele telefonara para
Wheelock um dia antes e lhe dissera que um nazista poderia aparecer com a
intenção de matá-lo. Isso se prendia a um informe que recebera de fonte não
muito fidedigna da América do Sul. Viera procurar Wheelock a fim de tentar
descobrir se havia realmente algum fundamento naquilo. Aschheim o
recebera, disparara. Ele deixara os cães entrarem. Os cães mataram
Aschheim.
— O governo do Paraguai declarou que o passaporte é falso. Tampouco
sabem quem ele é.
— Não têm registro das suas impressões digitais?
— Não, senhor, não têm. Mas quem quer que fosse, parece que andava
atrás do senhor, não de Wheelock. Sabe, ele morreu apenas um pouco antes
de chegarmos. O senhor deve ter chegado por volta de duas e meia, não foi?
Liebermann refletiu e acenou afirmativamente.
— Sim.
— Mas Wheelock morreu entre onze e meio-dia. Portanto "Aschheim"
esperou umas duas horas pelo senhor. Esse seu informe faz pensar numa
arapuca, senhor. Wheelock nada tinha a ver com o tipo de gente que o
senhor vive caçando, temos certeza disso. Será melhor ficar de orelha em pé
quanto a informes futuros, se me permite dizê-lo.
— Perfeitamente, trata-se de um bom conselho. Obrigado. Ficar de
"orelha em pé". Perfeitamente.
Gorin surgiu no noticiário daquela noite. Estava em livramento
condicional desde 1973, quando recebera suspensão da pena de três anos,
por conspiração de ataque a bomba, de cuja acusação se confessara culpado.
Agora o governo federal tentava obter a revogação de seu livramento
condicional, baseando-se em que ele conspirara novamente, desta vez para
raptar um diplomata russo. Um juiz marcara audiência para 26 de fevereiro.
A revogação significaria que Gorin teria de voltar à prisão para o restante da
sua sentença, um ano. É, ele tinha problemas, sim, não havia dúvida.
E Liebermann também. Estudou a lista quando ficou sozinho. Cinco
páginas de papel fino, habilmente datilografadas. Noventa e quatro nomes.
Fitou a parede. Meneou a cabeça e suspirou. Dobrou a lista várias vezes e
enfiou-a na capa do passaporte.
Escreveu cartas para Max e Klaus, sem dizer grande coisa. Começou a
receber e a dar telefonemas, embora ainda estivesse rouco e não pudesse
falar em volume normal.
Dena tivera de voltar para casa. Providenciara a respeito da conta do
hospital. Marvin Farb e alguns outros cuidariam da conta, e, quando
Liebermann voltasse à Áustria e recebesse o seguro, trataria de reembolsá-
los.
— Não se esqueça da cópia da conta — preveniu-o ela. — Não tente
andar antes do tempo. E não saia até que eles digam que deve sair.
— Prometo, prometo, prometo.
Depois que ela saiu, ele constatou que não tinha abordado a questão
entre ela e Gary. Teve remorsos. Que pai.
Andou de muletas de um lado para o outro do corredor, trabalho penoso
com a mão ainda engessada. Conheceu outros pacientes, reclamou da
comida.
Gorin telefonou.
— Yakov? Como vai?
— Bem, obrigado. Sairei dentro de uma semana. Como vai você?
— Não vou grande coisa. Viu o que andam fazendo comigo?
— Sim. É uma vergonha.
— Estamos tentando conseguir um adiamento, mas a coisa não vai bem.
Estão realmente dispostos a me pegar. E eu sou apontado como conspirador.
Oh, droga. Escute, como vão as coisas? Pode falar? Estou numa cabine,
portanto não há problema.
Ele respondeu em ídiche:
— Será melhor falarmos em ídiche. Não haverá mais assassinatos. Os
homens foram chamados de volta.
— Ah, é?
— E o que atirou em mim, que foi apanhado pelos cachorros, era... o
Anjo. Entende o que quero dizer?
Silêncio.
— Tem certeza?
— Absoluta. Nós conversamos.
— Oh, meu Deus! Graças a Deus! Graças a Deus! Os cães foram bons
demais para ele! E você vai ficar calado? Eu convocaria a maior entrevista
coletiva da história!
— E o que vou dizer quando perguntarem o que ele estava fazendo ali?
Um joão-ninguém do Paraguai é uma coisa, mas ele? E, se eu não explicar, o
FBI entrará em cena para descobrir. Isso seria bom? Não sei ainda.
— Não, não, está claro que você tem razão. Mas saber e não poder dizer!
Você vem a Nova York?
— Sim.
— Onde vai ficar? Entrarei em contato. Ele lhe deu o número dos Farb.
— Phil disse que você tem uma lista. Liebermann pestanejou.
— Como ele sabe?
— Você lhe disse.
— Eu? Quando?
— Lá na casa. Não disse?
— Sim. Agora me lembro. É um problema, rabino.
— Eu que o diga. Fique de sobreaviso. Até breve. Shalom.
— Shalom.
Conversou com alguns repórteres e garotos de ginásio. Andou de
muletas de um lado para o outro do corredor, pegando o jeito da coisa.
Uma tarde, uma mulher de cabelos castanhos, corpulenta, de casaco
vermelho e pasta, aproximou-se e indagou:
— Mr. Liebermann?
— Sim?
Ela sorriu para ele: covinhas, bons dentes.
— Posso falar com o senhor um minuto, por favor? Sou Mrs. Wheelock.
Mrs. Hank Wheelock.
Ele fitou-a.
— Sim — respondeu. — Certamente.
Foram para o quarto. Ela sentou-se numa das cadeiras, com a pasta no
colo, e ele encostou as muletas na cama e arriou-se sobre a outra cadeira.
— Meus sentimentos — disse ele.
Ela acenou com a cabeça, olhando para a pasta, esfregando nela o
polegar de unha vermelha. Levantou os olhos.
— A polícia me disse que aquele homem veio para apanhar o senhor, e
não para matar Hank. Ele não tinha interesse em Hank, ou em nós. Estava
apenas interessado no senhor.
Liebermann acenou afirmativamente.
— Mas enquanto ele esperava — prosseguiu ela —, examinou nosso
álbum de família. Estava lá no chão, onde ele... — Ela moveu um ombro,
olhou para Liebermann.
— Talvez — tornou ele — o seu marido estivesse examinando-o. Antes
de o homem chegar.
Ela meneou a cabeça, os cantos da boca caídos.
— Ele nunca olhou para o álbum. Fui eu quem tirou aquelas fotografias.
Fui eu quem as arrumou lá, e fiz as legendas. O homem é que estava
olhando.
— Talvez quisesse apenas passar o tempo — ponderou Liebermann.
Mrs. Wheelock permaneceu calada, olhando o quarto, as mãos cruzadas
sobre a pasta.
— Nosso filho é adotivo — declarou. — Meu filho. Ele não sabe. Fazia
parte do acordo não lhe dizermos. Na noite de anteontem ele me perguntou
se tinha sido adotado. A primeira vez que tocou no assunto. — Olhou para
Liebermann. — O senhor lhe disse alguma coisa naquele dia que pudesse
ter-lhe posto a idéia na cabeça?
— Eu? — Ele meneou a cabeça. — Não. Como poderia saber?
— Julguei que talvez houvesse uma ligação. A mulher que arranjou a
adoção era alemã. Aschheim é nome alemão. Um homem com sotaque
alemão telefonou e perguntou acerca de Bobby. E eu sei que o senhor é...
contra os alemães.
— Contra os nazistas — retrucou Liebermann. — Não, Mrs. Wheelock,
não tinha idéia de que ele fosse adotivo, e não estava podendo falar quando
ele chegou. Não estou falando muito bem agora, como pode ouvir. Talvez
pense desta maneira por ter perdido o pai. Ela suspirou, concordando.
— Talvez — disse. Esboçou um sorriso. — Desculpe tê-lo incomodado.
Estava preocupada... que isso pudesse dizer respeito a Bobby.
— Está bem — tornou ele. — Fiquei satisfeito de nos termos
encontrado. Ia telefonar-lhe antes de partir, a fim de expressar-lhe meus
sentimentos.
— O senhor viu o filme? — indagou ela. — Não, suponho que não tenha
podido. Engraçado como as coisas acontecem, não é mesmo? Coisas boas
resultando das más. Toda essa desgraça: Hank morto, o senhor ferido tão
gravemente, aquele homem... e também os cães. Tivemos de pô-los para
dormir, sabe? E Bobby tem a sua grande oportunidade.
— Sua oportunidade? — redargüiu Liebermann. Mrs. Wheelock
assentiu.
— A WGAL comprou o filme que ele fez naquele dia, e exibiu uma parte
— o senhor sendo levado para a ambulância, os cães cobertos de sangue,
aquele homem e Hank ao serem carregados —, e a CBS, isto é, a cadeia,
todas as estações do país inteiro, aproveitaram-no, exibindo-o nas "Notícias
matinais de Hughes Rudd", na manhã seguinte. Somente o senhor sendo
levado na ambulância. Uma oportunidade dessas pode ser tremendamente
importante para um menino da idade de Bobby. Não somente pelos contatos,
como também por questão da autoconfiança. Ele quer ser diretor de cinema.
Liebermann olhou-a e disse:
— Faço votos que o consiga.
— Acho que tem possibilidades — asseverou ela, levantando-se com um
leve sorriso de orgulho. — Não lhe falta talento.
Os Farb vieram na sexta, 28 de fevereiro, e acomodaram Liebermann,
muletas, valise e pasta no seu deslumbrante Lincoln novo. Marvin Farb
entregou-lhe uma cópia da conta do hospital.
Ele examinou-a, e fitou Farb.
— E ainda está barato — assegurou Farb. — Em Nova York teria sido
duas vezes isto.
— Gott im Himmel!

Sandy, a garota do escritório dos JDJ, telefonou transmitindo um convite


para um almoço na terça-feira, dia 11, ao meio-dia.
— Será de despedida.
Ele ia partir no dia 13. Seria para ele?
— Para quem é? — indagou.
— Para o rabino. Não soube?
— O recurso não foi aceito?
— Ele desistiu. Quer acabar logo com a coisa.
— Oh, céus! Lamento sabê-lo. Sim, claro, estarei lá. Ela lhe deu o
endereço: Restaurante Smilkstein, na Canal Street.
O Times fizera uma reportagem de uma coluna, que ele perdera. Ao
invés de contestar a nova acusação de conspiração, Gorin decidira aceitar a
decisão do juiz revogando o seu livramento condicional. Daria entrada na
penitenciária federal da Pensilvânia em 16 de março.
— Humm... — Liebermann balançou a cabeça. Na terça-feira, dia 11,
pouco depois de meio-dia, subiu vagarosamente a escada do Smilkstein,
apoiado a uma bengala. Um degrau de cada vez, segurando com a mão
direita o corrimão. Um suplício.
No alto da escada, ofegante e suarento, viu-se diante de um salão onde
havia um dossel nupcial de folhagem sobre um tablado de orquestra, uma
quantidade de mesas descobertas e cadeiras douradas de armar, e no centro,
na pista de danças, homens sentados a uma mesa, consultando cardápios, e
um garçom recurvado, tomando notas. Gorin, à cabeceira da mesa, avistou-o,
pousou o cardápio e o guardanapo, levantou-se e aproximou-se rapidamente.
De aparência tão satisfeita como se tivesse lutado contra a decisão e vencido.
— Yakov! Que prazer vê-lo! — Apertou a mão de Liebermann, segurou-
lhe o braço. — Você está ótimo! Que droga, esqueci que tinha escada.
— Não faz mal — retorquiu Liebermann, tomando fôlego.
— Faz mal, sim, foi burrice minha. Devia ter escolhido outro lugar. —
Encaminharam-se para a mesa, Gorin na frente, Liebermann apoiado na
bengala. — Meus dirigentes da ramificação daqui — apresentou Gorin — e
mais Phil e Paul. Quando parte, Yakov?
— Depois de amanhã. Lamento que você...
— Esqueça, esqueça, estarei em boa companhia — toda a assessoria de
Nixon. É o "quente" para conspiradores. Senhores, este é Yakov. E aqui,
Dan, Stig, Arnie...
Havia cinco ou seis deles, além de Phil Greenspan e Paul Stern.
— O senhor está com aparência cem por cento melhor do que da última
vez que o vi — declarou Greenspan, sorridente, partindo um pão.
Sentado numa cadeira em frente a ele, Liebermann confessou:
— Quer saber, naquele dia nem me lembro de ter visto o senhor!
— Acredito — tornou Greenspan. — O senhor estava cor de terra.
— Médicos esplêndidos os que eles têm lá — disse Liebermann. —
Fiquei de fato surpreendido. — Chegou para a frente a cadeira, com auxílio
do homem à sua direita. Encostou a bengala na beira da mesa, pegou o seu
cardápio.
À sua esquerda, Gorin preveniu:
— O garçom não aconselha carne assada. Gosta de pato? Fazem muito
bem aqui.
Foi uma despedida triste. Enquanto comiam, Gorin discorreu acerca de
diretrizes de comando, e providências que ele e Greenspan estavam tomando
a fim de manterem contato enquanto estivesse na prisão. Propuseram-se
ações retaliatórias, disseram-se piadas amargas. Liebermann tentou alegrar o
ambiente com uma história sobre Kissinger, supostamente verdadeira, que
Marvin Farb lhe contara. Não ajudou muito.
Depois que o garçom tirou a mesa e desceu, deixando-os com o doce e o
chá, Gorin, os antebraços na mesa, cruzou as mãos e olhou para todos
gravemente.
— Estes nossos problemas atuais são café pequeno — declarou, e olhou
para Liebermann. — Não é verdade, Yakov?
De olhar sobre ele, Liebermann acenou afirmativamente.
Gorin olhou para Greenspan e Stern, para cada um dos dirigentes.
— Há noventa e quatro meninos — disse ele — de treze anos de idade,
alguns deles com doze e onze, que precisam ser mortos antes que fiquem
mais velhos. Não — reiterou —, não estou brincando. Quem me dera que
estivesse. Alguns estão na Inglaterra, Rafe. Alguns na Escandinávia, Stig.
Outros aqui e no Canadá, outros na Alemanha. Não sei como iremos
apanhá-los, mas o faremos, teremos de fazê-lo. Yakov explicará quem eles
são e como... vieram a existir. — Recostou-se e fez um gesto em direção a
Liebermann. — Faça uma síntese — solicitou. — Não precisa fornecer todos
os detalhes. — E para os outros: — Confirmo cada palavra que ele disser,
assim como Phil e Paul também o farão. Eles viram um deles. Pode começar,
Yakov.
Liebermann ficou de olhos postos na colher do seu chá.
— Você está com a palavra — tornou Gorin. Liebermann olhou-o e
indagou com a voz enrouquecida:
— Poderíamos falar um minuto em particular? — E pigarreou.
Gorin fitou-o, inquisitivo, e em seguida mudou de expressão. Respirou
sonoramente pelas narinas, sorriu.
— Está bem — retorquiu, e levantou-se. Liebermann pegou a bengala,
segurou a borda da mesa e ergueu-se da cadeira. Deu um passo apoiado na
bengala, e Gorin pôs a mão nas suas costas e caminhou junto dele,
murmurando:
— Já sei o que vai dizer.
Afastaram-se em direção ao tablado da orquestra, com o seu dossel
nupcial.
— Já sei o que vai dizer, Yakov.
— Pois eu ainda não. Ainda bem que você sabe.
— Está bem, direi por você: "Não devemos fazê-lo. Deveríamos dar-lhes
uma oportunidade. Mesmo os que perderam os pais podem vir a se tornar
pessoas comuns".
— Pessoas comuns, não, não acredito. Mas não Hitlers.
— Por isso, deveríamos ser judeus à moda antiga, bons e generosos, e
respeitar seus direitos civis. E, quando alguns deles se tornarem de fato
Hitlers, bem, então, deixemos simplesmente que nossos filhos se preocupem
com isso. A caminho das câmaras de gás.
Liebermann deteve-se junto ao tablado da orquestra, voltou-se para
Gorin.
— Rabino — disse —, ninguém sabe quais as possibilidades. Mengele
julgou que eram boas, mas se tratava do seu projeto, da sua ambição. Pode
ser que nenhum deles se torne Hitler, mesmo que houvesse mil deles. Eles
são meninos. Não importa quais sejam os seus genes. São crianças. Como
poderemos matá-los? Este seria serviço para Mengele, matar crianças.
Deverá ser o nosso? Eu nem sequer...
— Você de fato me surpreende.
— Deixe-me terminar, por favor. Eu nem sequer acho que deveríamos
mantê-los vigiados por seus governos, porque isso transpirará, esteja
absolutamente certo, há de colocá-los em evidência, atraindo para eles
exatamente o tipo de meshuganahs que fariam deles Hitlers, encorajando-os.
Ou até mesmo de dentro de um governo poderiam vir os meshuganahs.
Quanto menos souberem, melhor.
— Yakov, se um deles se tornar um Hitler, apenas um... meu Deus, você
sabe o que teremos!
— Não — retorquiu Liebermann. — Não. Venho pensando nisso há
semanas. Digo nas minhas conferências que são necessárias duas coisas para
fazer com que isso aconteça novamente: um novo Hitler, e condições sociais
como as dos anos 30. Mas isso não é verdade. São necessárias três coisas:
um Hitler, as condições... e pessoas que seguissem esse Hitler.
— E não acha que ele as encontraria?
— Não, não em número suficiente. Acredito de fato que atualmente as
pessoas são melhores e mais inteligentes, não há tantos julgando que seus
líderes são Deus. A televisão faz uma grande diferença. E a história, o
conhecimento... Alguns ele encontraria, sim. Mas não mais, acho... tenho a
esperança... do que os pretensos Hitlers que temos agora, na Alemanha e na
América do Sul.
— Bem, você tem uma fé dos diabos na natureza humana, muito mais
que eu — disse Gorin. — Olhe, Yakov, pode ficar aí falando até ficar roxo,
que eu não irei mudar de idéia sobre isso. Não apenas temos o direito de
matá-los, temos também o dever. Deus não os fez e sim Mengele.
Liebermann permaneceu olhando para ele, e acenou afirmativamente.
— Está bem — declarou. — Pensei em levantar a questão.
— Já a levantou — tornou Gorin, e fez um gesto em direção à mesa. —
Quer explicar-lhes agora? Temos um bocado de coisas para resolver antes de
sair.
— Minha voz se gastou por hoje — retorquiu Liebermann. — É melhor
você explicar.
Voltaram juntos em direção à mesa.
— Aproveitando que estou de pé — indagou Liebermann —, onde fica o
banheiro dos homens?
— Ali.
Liebermann encaminhou-se para a escada, apoiado na bengala. Gorin foi
para a mesa e sentou-se.
Liebermann entrou no banheiro dos homens apoiado na bengala — era
pequeno — e passou para a privada, trancando-se. Pendurou a bengala no
pulso direito, retirou o passaporte, de cujo invólucro puxou a lista bem
dobrada. Pôs o passaporte de volta no casaco, desdobrou a lista e rasgou-a,
juntou os pedaços e rasgou novamente, e ainda mais uma vez juntou-os e
rasgou. Jogou o bolo de pedacinhos dentro do vaso sanitário, e quando os
fragmentos datilografados se haviam separado e assentado sobre a água,
girou para baixo a alavanca preta do tanque. O papel e a água remoinharam,
afunilando-se, num gorgolejo. Pedaços de papel grudaram nos lados, outros
voltaram na água que subiu.
Ele esperou o tanque encher de novo.
E, já que estava ali, abriu a braguilha.
Quando saiu, vendo que um dos homens na extremidade da mesa o
avistara, apontou para Gorin. O homem falou com Gorin, e este voltou-se e
olhou para ele. Fez um sinal. Gorin hesitou um momento, levantou-se e veio
em sua direção, parecendo aborrecido.
— O que há agora?
— Prepare-se.
— Para o quê?
— Joguei a lista dentro da privada. Gorin fitou-o.
Confirmou com a cabeça.
— É a coisa certa a fazer — disse. — Acredite-me. Gorin olhava-o,
lívido.
— Sinto-me sem graça de dizer a um rabino...
— A lista não era sua — exclamou Gorin. — Era... de todos! Do povo
judeu!
— Não podia dar meu voto? — redargüiu Liebermann. — Estava
sozinho lá. — Meneou a cabeça. — Matar crianças, quaisquer crianças, é
errado.
O rosto de Gorin ficou rubro. Suas narinas fremiram, seus olhos
castanhos abrasaram-se, rodeados de negro.
— Não me venha dizer o que é certo ou errado — contrapôs. — Seu
bunda-mole! Seu estúpido e ignorante peido humano!
Liebermann encarou-o.
— Devia jogá-lo escada abaixo!
— Encoste a mão em mim que lhe quebro o pescoço
— ameaçou Liebermann.
Gorin respirou fundo, de punhos cerrados.
— São judeus iguais a você — disse — que deixaram acontecer da
última vez.
Liebermann fitou-o.
— Os judeus não "deixaram" acontecer — retorquiu.
— Os nazistas é que fizeram com que acontecesse. Gente que mataria até
crianças para conseguir o que desejava.
Gorin cerrou os maxilares enrubescidos.
— Dê o fora daqui — proferiu. E, fazendo meia-volta, afastou-se
empertigado.
Liebermann observou-o ir-se, respirou fundo e voltou-se para a escada.
Segurou no corrimão e começou a descer vagarosamente, apoiado à bengala,
um degrau de cada vez.

Através da janela do táxi, entrando no Aeroporto Kennedy, ele avistou


Howard Johnson's Motor Lodge. Onde Frieda Maloney distribuíra os bebês
para os casais dos Estados Unidos e do Canadá. Viu-o passar de relance,
com os seus dez ou doze andares profusamente iluminados ao crepúsculo...
Após se dirigir à Pan Am, telefonou para Mr. Goldwasser, da agência de
conferências.
— Alô! Como vai? Onde está você?
— No Kennedy, de volta para casa. E não estou tão ruim assim. Só tenho
de tomar cuidado durante alguns meses. Recebeu meu bilhete?
— Sim.
— Novamente obrigado. Lindas flores. Boa publicidade, heim? Primeira
página do Times, CBS, a cadeia inteira...
— Espero que você nunca mais receba uma publicidade dessas.
— Ainda assim, foi publicidade. Escute, se lhe der a minha palavra de
honra solene de que não cancelarei, gostaria de me contratar para o final da
primavera ou começo do outono? Minha voz voltará ao normal, o médico
garante.
— Bem...
— Vamos, com tantas flores, o senhor está interessado.
— Está bem, vou sondar alguns grupos.
— Bom. E escute, Mr. Goldwasser...
— Quer me chamar de Ben, pelo amor de Deus? Há quantos anos nos
conhecemos?
— Ben... nada de templos, nem Hadassahs. Jovens das universidades.
Até mesmo dos ginásios.
— Eles não pagam nada.
— Universidades, então. ACMS. Onde quer que existam jovens.
— Tentarei organizar um circuito bem distribuído, está bem?
— Está bem. Preencha os intervalos com os ginásios. Dê-me notícias.
Até a vista.
Desligou e pôs o dedo no depósito de moedas. Apanhou a pasta e,
apoiado à bengala, dirigiu-se ao portão de embarque.
Nove
A escuridão circundava o quarto. Uma maçaneta cintilou, um espelho,
pontas de bastões de esquis. Vulto de uma cama, de uma cadeira. Aro
metálico de uma gaiola. Dentro, uma roda de moinho girando, parando,
girando. Modelos de foguete. Asas de um aviãozinho de prata virando
devagar.
No centro do quarto, uma brancura plana enquadrada sob uma lâmpada
recurvada. Uma mão molhou um pincel, enxugou-o, encheu de tinta preta os
contornos a lápis. Fazendo um estádio: imenso, com uma cúpula circular,
transparente.
O menino trabalhava cuidadosamente, chegando o nariz proeminente
perto do papel. Começou a pôr gente, fileiras de curvinhas representando
cabeças, concentradas na plataforma, ao meio. Molhou o pincel, enxugou-o,
afastou a mecha de cabelo com as costas da mão, pintou mais cabeças, mais
gente.
Um piano tocava: uma valsa de Strauss.
O menino levantou os olhos e ouviu. Sorriu.
Debruçou-se sobre o desenho e fez mais cabeças, cantarolando a
melodia.
Jóia sem o papai aqui. Só ele e mamãe. Nada de brigas, nada de portas
abertas com violência e "Largue isso e faça seu dever de casa, senão..."
Bem, não era "jóia", não queria dizer "jóia". Apenas mais fácil, mais
cômodo. Até mesmo vovó costumava dizer que papai era um verdadeiro
ditador. Mandão arrogante, imbuído de preconceitos, sempre agindo como o
homem mais importante do mundo... Por isso, era mais fácil agora. Mas isso
não significava que o tivesse odiado, tivesse querido vê-lo morto. Gostara
um bocado do pai, na verdade. Não chorara no enterro?
Entrou no desenho, onde tudo era mais bonito. Pôs-se na plataforma, no
homem em pé sobre ela. Pequeno na distância. Pinceladas e mais pinceladas
e mais pinceladas. Levantou os braços: pinceladas e mais pinceladas.
Quem haveria de ser ele, aquele homem sobre a plataforma? Eminente,
com toda a certeza, para toda essa gente vir vê-lo. Não apenas um cantor ou
comediante. Um homem fantástico, uma pessoa verdadeiramente boa que
amavam e respeitavam. Pagaram fortunas para entrar, e se não pudessem
pagar ele os deixaria entrar de graça. Um homem bom assim...
Pôs uma pequena câmara de televisão no alto da cúpula. Dirigiu mais
alguns refletores sobre o homem.
Enxugou o pincel, afinando-o ao máximo, e, mediante uns pontinhos,
deu bocas às pessoas maiores mais próximas, para que aclamassem, fazendo
sentir a ele — isto é, ao homem — como ele era bom e quanto o amavam.
Aproximou mais do papel o nariz proeminente e deu bocas com os tais
pontinhos às pessoas menores. Sua mecha caiu. Ele mordeu o lábio, estreitou
os olhos azul-claros. Pontinhos, pontinhos, pontinhos. Começou a ouvir as
pessoas aclamando, rugindo. Uma linda manifestação de amor, como um
trovão que crescia e crescia, e depois pulsava, pulsava, pulsava.
Como naqueles filmes antigos de Hitler.
O AUTOR E SUA OBRA

Alguns críticos já definiram Ira Levin como um dos mais brilhantes


discípulos da escola de Alfred Hitchcock, aquela que reúne os chamados
"mestres do suspense". Enquanto o velho Hitchcock arrepia multidões em
salas de cinema, Ira Levin vem se transformando num conhecido escritor de
best sellers, onde a intriga, o medo e o mistério arrebatam milhares de
leitores em todo o mundo.
Natural de Nova York, onde nasceu a 27 de agosto de 1929, Ira Levin
era um escritor em busca do sucesso desde 1953, época em que escreveu o
primeiro romance, "A kiss before dying". Porém, foi somente em 1967 que
Ira Levin viu realizado o seu objetivo: nesse ano, ao ser editado o romance
"Rosemary's baby", o seu nome passaria a ser rapidamente conhecido, com
o livro esgotando as tiragens em poucas semanas. E chegaria ao êxito
absoluto um ano depois, quando o diretor Roman Polansky transformou "O
bebê de Rosemary" numa das fitas mais célebres da história do cinema de
suspense.
Autor de "Este mundo perfeito" (1972) e "As possuídas" (1974),
lançadas no Brasil, Ira Levin continua nesta obra a técnica de opressão e de
intriga que domina com desenvoltura: "Os meninos do Brasil" (1976) narra
a ambição de um ex-nazista em deflagrar o aparecimento do IV Reich na
América Latina — uma fantasia que o desenvolvimento da engenharia
genética poderá converter em aterradora realidade.

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