Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Os meninos do Brasil
Título do original: "The boys from Brazil"
Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Livraria Francisco Alves
Editora S.A.
468 10 9753
Este livro é uma obra de ficção.
Os acontecimentos nele descritos são imaginários, e as
personagens — com exceção das pessoas famosas citadas por
seus nomes verdadeiros — são também imaginárias e não têm
a intenção de representar determinadas pessoas vivas.
E à memória de
Charles Levin
Um
Em setembro de 1947, ao anoitecer, um pequeno avião bimotor, prateado
e preto, aterrissou numa pista auxiliar do Aeroporto de Congonhas, em São
Paulo. Diminuindo a velocidade, fez uma curva e deslizou em direção a um
hangar, onde uma limusine estava à espera. Três homens, um deles de
branco, passaram do avião para o carro, que saiu de Congonhas em direção
aos arranha-céus brancos do centro de São Paulo. Uns vinte minutos depois,
na Avenida Ipiranga, o veículo parava diante do Sakai, restaurante japonês
em estilo de templo.
Lado a lado, os três homens penetraram no espaçoso vestíbulo laqueado
de vermelho do Sakai. Dois deles, de ternos escuros, eram corpulentos e de
aspecto agressivo, um louro e o outro de cabelos pretos. O terceiro homem,
empertigado entre eles, mais magro e mais velho, vestia-se de branco, do
chapéu aos sapatos, à exceção da gravata amarelo-limão. Balançava na mão
enluvada de branco volumosa pasta bege e assobiava uma música, olhando
em torno com aparente satisfação.
Uma recepcionista de quimono inclinou-se, sorriu graciosamente e,
recebendo o chapéu do homem de branco, fez menção de apanhar sua pasta.
Ele esquivou-se, porém, e dirigiu-se a um jovem e esguio japonês que vinha
ao seu encontro de smoking e com um sorriso.
— Meu nome é Aspiazu — anunciou em português endurecido por
ligeiro sotaque germânico. — Reservei uma sala. — Aparentava sessenta e
pouco anos, tinha cabelos grisalhos cortados rentes, olhos castanhos
brilhantes e joviais e um bigode grisalho, fino e bem aparado.
— Ah, Sr. Aspiazu! — exclamou o japonês, em sua versão própria do
português. — Está tudo pronto para a sua reunião! Quer ter a bondade de me
acompanhar por aqui? Somente alguns degraus. Vai ficar feliz, estou certo,
quando vir os preparativos.
— Feliz já estou — retorquiu o homem de branco, sorrindo. — É um
prazer estar na cidade.
— Mora no interior?
O homem de branco, subindo atrás do louro, fez um sinal afirmativo com
a cabeça e suspirou.
— Sim — proferiu secamente. — Moro no interior. O homem de cabelos
pretos seguiu atrás dele, e o japonês foi por último.
— Primeira porta à direita — exclamou para os da frente. — Querem
fazer a gentileza de tirar os sapatos antes de entrar?
O louro abaixou-se a fim de espreitar através de uma abertura octogonal
na parede, depois firmou a mão no umbral da porta, ergueu o pé para trás e
puxou o sapato. O homem de branco espichou um pé calçado de branco no
tapete do corredor, e o homem de cabelos pretos agachou-se e desapertou-
lhe a fivela dourada lateral. O louro, colocando de lado os sapatos, abriu uma
porta intricadamente entalhada e entrou num aposento verde-claro. O
japonês desembaraçou-se das sapatilhas com grande destreza, usando os
dedos dos pés.
— Nossa melhor sala, Sr. Aspiazu — disse. — Muito agradável.
— Certamente, sem dúvida. — O homem de branco premiu os dedos
enluvados de branco de encontro ao umbral, enquanto observava a remoção
de seu segundo sapato.
— Nosso jantar imperial está marcado para as sete, com cerveja em vez
de saque e conhaque e charutos depois.
O louro foi até a porta. Pequenas cicatrizes cerziam-lhe o rosto; uma de
suas orelhas não tinha lóbulo. Acenou afirmativamente com a cabeça e deu
um passo para trás. O homem de branco, agora mais baixo sem os saltos
avantajados, entrou no recinto. O japonês acompanhou-o.
O cômodo era fresco e de odor adocicado, um plácido retângulo de
paredes de seda, envolto no vago verde-claro de suas esteiras de tatami. No
centro, espaldares de bambu com almofadas estampadas em bege e branco
guarneciam três lados de uma mesa retangular escura e baixa, servida com
xícaras e pratos brancos; três lugares com encosto em cada lado da mesa e
uma na cabeceira da direita. Um descanso baixo para os pés via-se por baixo
da mesa. Na extremidade direita do quarto havia outra mesa baixa e escura
junto à parede, com dois lampiões elétricos em cima. A parede oposta era
feita de biombos de papel branco emoldurado de preto.
— Espaço bastante para sete — disse o japonês, indicando a mesa
central. — E serão servidos pelas nossas melhores garotas. As mais bonitas.
— Sorriu, alçando as sobrancelhas.
O homem de branco, apontando os biombos, perguntou:
— O que há ali atrás?
— Outra sala privada, senhor.
— Está ocupada esta noite?
— Ainda não foi reservada, mas talvez um grupo a queira.
— Reservo-a para mim. — O homem de branco fez um gesto para o
louro abrir os biombos.
O japonês olhou para o louro e de novo para o homem de branco.
— É uma sala para seis — disse, inseguro. — Talvez para oito.
— Certamente. — O homem de branco caminhou até o canto da sala. —
Pagarei mais oito jantares. — Curvou-se a fim de examinar os lampiões
sobre a mesa. Sua volumosa pasta bateu contra a calça.
O louro abria os biombos. O japonês aprestou-se a ajudá-lo, talvez para
evitar que os danificasse. O cômodo vizinho revelou-se uma réplica do
outro, a não ser pelo painel de iluminação no teto, que era escuro, e pela
mesa, que estava posta para seis, dois de cada lado e um em cada cabeceira.
O homem de branco voltou-se para olhar. Do outro lado do aposento, o
japonês sorriu-lhe, embaraçado.
— Só cobrarei se alguém pedir a sala — declarou. — E, nesse caso,
apenas a diferença entre o preço lá de baixo e o que cobramos aqui em cima.
O homem de branco, mostrando-se surpreso, exclamou:
— Esplêndido! Obrigado.
— Com licença, por favor — disse o homem de cabelos pretos ao
japonês. Mantinha-se dentro dos limites do aposento, o terno escuro
amarrotado, o rosto redondo e moreno reluzindo de suor. — Existe algum
modo de tapar isto? — Apontava em direção à abertura octogonal na parede.
Falava como um brasileiro.
— É para as garotas — assegurou o japonês. — Para verem se estarão à
espera do prato seguinte.
— Está bem — disse o homem de branco ao homem de cabelos pretos.
— Você fica do lado de fora.
— Julguei que talvez ele pudesse... — tornou o homem de cabelos
pretos, e encolheu os ombros como que se desculpando.
— Considero tudo satisfatório — disse o homem de branco ao japonês.
— Meus convidados chegarão às oito horas e...
— Virei trazê-los.
— Não precisa. Um de meus homens ficará esperando embaixo. E,
depois de comermos, faremos uma conferência aqui.
— Poderão ficar até as três, se quiserem.
— Não haverá necessidade disso também, espero. Uma hora deverá
bastar. E agora faça-me o favor de trazer um cálice de Dubonnet, tinto, com
gelo e casca de limão.
— Sim, senhor. — O japonês inclinou-se.
— E seria possível um pouco mais de luz? Pretendo ler enquanto espero.
— Infelizmente, senhor, só dispomos desta aí.
— Eu me arranjo. Obrigado.
— Obrigado, Sr. Aspiazu. — O japonês inclinou-se novamente, curvou-
se um pouco menos diante do louro e quase nada para o homem de cabelos
pretos, retirando-se rapidamente da sala.
O homem de cabelos pretos fechou a porta e, frente a ela, levantou os
braços para o alto, curvou os dedos e colocou suas pontas no cimo da
moldura da porta, como se fosse tocar num teclado. Foi afastando as mãos
vagarosamente.
O homem de branco postou-se de costas para a abertura na parede,
enquanto o louro se dirigia para o espaldar na cabeceira da mesa e se
agachava ao lado. Apertou as almofadas beges e brancas, retirou-as da
armação de bambu e deixou-as de lado. Examinou a armação, virou-a para
olhar o fundo e largou-a junto às almofadas. Apalpou a esteira de tatami à
volta de toda a extremidade da mesa; com as mãos abertas, inspecionou o
capim entrançado, apertando-o suavemente.
Pondo-se de joelhos, enfiou a cabeça loura embaixo da mesa e olhou
dentro do descanso para os pés. Curvou-se mais, virou a cabeça e espiou
com um dos olhos azuis o reverso da mesa, esquadrinhando-o
vagarosamente de um a outro lado.
Afastou-se da mesa, pegou a armação de bambu, recolocou as duas
almofadas e dispôs o espaldar em ângulo acessível. Erguendo-se, postou-se,
atento, atrás dele.
O homem de branco aproximou-se, desabotoando o casaco. Pôs a pasta
no chão, virou-se e se abaixou cuidadosamente, ao encontro dos braços do
espaldar. Dobrou as pernas embaixo da mesa, com os pés na direção do
descanso.
O louro, curvando-se, empurrou o espaldar, ajustando-o à mesa.
— Danke1 — disse o homem de branco.
— Bite2 — respondeu o louro, e foi se colocar de costas para a abertura
da parede.
1 "Obrigado." Em alemão no original. (N. do E.)
2 "De nada." Em alemão no original. (N. do E.)
Ele ouviu durante cerca de cinco minutos, depois parou, voltou atrás e
começou de novo, a partir de quando tinham acabado de admirar qualquer
coisa que estavam admirando, e "Aspiazu" disse "Lasst uns jetzt Geschäft
reden, meine Jungens", e entraram mesmo no assunto. Assunto! Santo Deus!
Ouviu a coisa inteira desta vez, exclamando: "Santo Deus!", e: "Deus
todo-poderoso!", e vez por outra: "Que filho da puta!" Depois de um ruído e
de um longo silêncio, que deveria corresponder à garçonete trazendo para
baixo a terrina, parou, voltou uma parte e tornou a passar alguns pedaços e
trechos, só para se certificar de que estavam ali, e ele não estava delirando
por fome ou qualquer outra coisa.
Em seguida, andou o quanto lhe permitia o espaço do aposento,
balançando a cabeça e cocando a nuca, tentando imaginar que diabo fazer
naquele lodaçal, onde sabe-se-lá-quem-não-é-um-deles-ou-pelo-menos-não-
estará-por-eles-sen-do-pago.
Havia somente uma coisa a fazer, decidiu finalmente. E quanto mais
cedo melhor, não importava a diferença de horas. Levou o gravador para a
mesinha-de-cabeceira e colocou-o junto ao telefone. Retirou sua carteira e
sentou-se na cama. Encontrou o cartão com o nome e o número escritos,
enfiou-o por baixo do aparelho e pegou o fone, embolsando a carteira. Pediu
ligação internacional.
— O senhor será chamado quando eu completar a ligação. — A voz dela
era agradável e sensual.
— Ficarei ao telefone — disse ele, a fim de que ela não se aproveitasse
para ir sambar em algum lugar. — Depressa, por favor.
— Vai demorar cinco ou dez minutos, senhor. Ouviu-a dar o número a
uma telefonista internacional
e ensaiou de cabeça o que iria dizer. Supondo, evidentemente, que
Liebermann estivesse lá e não fora, fazendo alguma conferência ou seguindo
uma pista. Esteja em casa, por favor, Mr. Liebermann!
Soou leve batida na porta.
— Já era tempo — disse ele em inglês e, segurando o fone, levantou-se,
estirou-se, mal conseguindo dar à maçaneta o giro que abria. A porta se abriu
de encontro à sua mão, e o garçom de bigode caído entrou com um prato
coberto com um guardanapo e uma garrafa de Brahma, mas sem copo sobre
a bandeja.
— Desculpe a demora — explicou ele. — Às onze todos eles saem. Tive
de preparar eu mesmo.
— Está bem — retorquiu em português. — Pôr a bandeja na cama, por
favor.
— Esqueci o copo.
— Está bem. Não precisar de copo. A nota e o lápis, por favor.
Assinou a nota de encontro à parede, firmando-a ali com a mão que
segurava o fone. Acrescentou uma gorjeta além da taxa de serviço.
O garçom saiu sem agradecer e arrotou ao fechar a porta.
Jamais deveria ter saído do Del Rey.
Sentou-se de volta na cama, o fone sibilando cavamente no ouvido.
Virou-se para endireitar a bandeja, e olhou com desconfiança o guardanapo
amarelo com "Miramar" gravado em grandes letras pretas, um seguro contra
ladrões, num canto. Levantou-o, e, o que quer que fosse, retirou num puxão:
o sanduíche era grosso e bonito, tudo frango, sem alface ou qualquer outra
merda. Perdoando o garçom, agarrou metade dele, curvou a cabeça ao seu
encontro e deu uma grande e deliciosa mordida até o meio. Deus, como tinha
fome!
— Ich möochte Wien¹ — pedia uma telefonista. — Wien!
1 "Eu queria falar com Viena." Em alemão no original. (N. do E.)
"Dinheiro?
Ligação numa idade anterior?
Onde nasceram?
Primavera de 77?
Parentes? Amigos?
POR QUEM.???"
Olhou a platéia.
— Obrigado — disse. — Vocês não resolveram o problema, mas me
deram sugestões que talvez me levem à solução, por isso têm a minha
gratidão. Voltaremos agora às suas perguntas.
Mãos levantaram-se. Ele apontou. Uma moça junto do rapaz com o jeito
de Barry levantou-se e indagou:
— Herr Liebermann, qual a sua opinião sobre Moshe Gorin e os
Defensores Judaicos?
— Nunca estive com o Rabino Gorin, por isso não tenho opinião pessoal
a seu respeito — respondeu automaticamente. — Quanto aos Jovens
Defensores Judaicos, se estiverem defendendo, ótimo. Mas se, conforme tem
constado às vezes, estiverem atacando, então não será tão bom. Camisas
pardas nunca dão certo, não importa quem as vista.
E Horst Hessen, com os seus cabelos prateados, suando ao sol brilhante,
levou os grandes binóculos aos olhos azuis e observou um homem de peito
nu, de chapéu de sol branco, dirigindo um cortador de grama a motor,
vagarosamente, sobre a relva de um verde brilhante. Num mastro estava
hasteada uma bandeira americana. A casa atrás era uma caixa de sequóia e
vidro, bem-arrumada e de um andar só. Um tiro, e uma nuvem escura, onde
dançava o alaranjado, substituiu o homem e o cortador de grama; um som
surdo de explosão veio bruscamente de longe.
Três
Mengele mudara o retrato do Führer e todas as fotografias menores e
recordações dele para a parede oeste, por cima do sofá — o que significou
mudar seus diplomas, comendas e fotografias de família para quaisquer
espaços que pôde encontrar, entre as duas janelas externas da parte sul e em
volta da janela de observação do laboratório e da porta na parede leste.
Providenciara então que a parede norte, toda limpa, recebesse uma moldura
de madeira de sete centímetros de largura, à altura da metade, acima da qual
fora tirado o papel de parede cinzento-claro. Duas mãos de tinta branca
tinham sido passadas, a primeira fosca e a segunda semilustrosa. A moldura
fora pintada de cinzento-claro. Quando toda a tinta secou inteiramente, ele
mandou vir de avião, do Rio, um pintor de cartazes.
O pintor de cartazes fazia linhas finas magnificamente retas e bonitas
letras, mas nos seus primeiros traços leves, a lápis, revelou inclinação para
copiar errado, e/ou colocar fora do lugar sinais de pronúncia, além de
obedecer à sua maneira brasileira de soletrar. Durante quatro dias, pois,
Mengele sentara-se à sua escrivaninha, observando, ensinado, advertindo.
Aos poucos, foi tendo aversão ao pintor de cartazes, e por volta do segundo
dia aceitava de bom grado a idéia de que o beócio ia ser atirado do avião.
Quando o serviço terminou, e a mesa comprida, com as suas estantes de
jornais arrumadas, foi posta no lugar junto à parede, Mengele pôde recostar-
se na sua cadeira de aço e couro e contemplar o quadro que imaginara. Os
noventa e quatro nomes, cada um com o seu país, data e quadradinho ao
lado, como para as eleições, foram dispostos em três colunas, a do meio
necessariamente contendo um nome a mais que as duas de fora (uma
pequena contrariedade, mas o que poderia ser feito a esta altura?). Ali
estavam todos eles, de "1, Döring — Deutschland — 16/10/74 " a "94.
Ahearn — Kanada — 23/4/77 "— Como ansiava por preencher cada um
desses quadradinhos! Ele próprio faria isso, claro, com tinta vermelha ou
preta, ainda não decidira qual. Talvez tentasse desenhar cruzes, e, se as
primeiras não saíssem uniformes, aí então trataria de cobrir os quadradinhos.
Girou na cadeira e sorriu para o Führer. "Não se importa de ser afastado
para o lado por causa disto, não é mesmo, meu Führer? Claro que não. Como
poderia?"
Por ora, infelizmente, nada restava senão esperar até 1.° de novembro,
quando os chamados chegariam à sede.
Estivera trabalhando no laboratório, tentando, sem muito entusiasmo,
transplantar cromossomos em núcleos de células de rãs.
Certo dia, voara até Assunção. Visitou seu barbeiro e uma prostituta,
comprou um relógio digital, comeu um bom bife no La Calandria, com
Franz Schiff.
E agora, finalmente, chegara o dia — bonito, de uma luminosidade tão
ofuscante que tivera de cerrar as cortinas do escritório. O rádio estava ligado,
sintonizado para a freqüência da sede, com os fones de prontidão ao lado de
um bloco de memorando e uma caneta. Num canto do tampo de vidro da
escrivaninha estava estendida uma toalha de linho branco. Sobre ela, em
ordem cirúrgica, uma latinha fechada de esmalte vermelho, uma chave de
parafuso, um pincel novo e fino de cerdas curtas, uma placa de Petri
descoberta e uma lata de terebintina com tampa de atarraxar. A extremidade
esquerda da mesa comprida fora afastada da parede. Uma escadinha fora
colocada diante da primeira coluna de nomes e países.
Resolveu então tentar as cruzes.
Pouco antes do meio-dia, quando começava a perder a paciência, o
zumbido de um avião chegou com crescente intensidade através das cortinas.
Era o zumbido do avião da sede, o que significava notícias muito boas ou
muito más. Saiu apressado do escritório, passou pelo vestíbulo e chegou à
varanda, onde algumas crianças, filhas dos empregados, estavam sentadas,
partindo uma espécie de bolo achatado. Passou por cima delas, deu a volta
pelo lado da casa, em direção aos fundos, e desceu uns degraus. O avião
acabava de baixar por trás da.copa das árvores. Protegendo os olhos com as
mãos, precipitou-se pelo quintal — um empregado que descansava na
enxada começou a manejá-la — e passou pela casa dos empregados, pelos
barracões e pelo galpão do gerador. Correndo com passos curtos, entrou pela
trilha verdejante aberta por entre a densa folhagem da mata. Ouviu o avião
aterrissar. Passou para uma marcha rápida, enfiou a fralda de trás da camisa
para dentro das calças, tirou o lenço e limpou a testa e o rosto. Por que o
avião e não o rádio? Alguma coisa tinha dado errado; tinha certeza.
Liebermann? Será que aquele lixo conseguira de algum modo pôr fim a
tudo? Em caso afirmativo, ele próprio iria pessoalmente a Viena descobri-lo
e dar cabo dele. O que mais lhe restaria para fazer da vida?
Atingiu a beira da faixa de pouso gramada a tempo de ver o bimotor
vermelho e branco rolando vagarosamente para perto do seu — menor,
prateado e preto. Dois guardas estavam ali com o piloto, que lhe acenou.
Inclinou a cabeça em saudação. Outro guarda estava do outro lado da pista,
junto à cerca gradeada, enfiando alguma coisa através dela, tentando atrair
um animal. Era contra o regulamento, mas não o repreendeu. Observou a
porta do avião vermelho e branco, agora parado, as hélices morrendo. Rezou
baixinho.
A porta foi aberta e um dos guardas apressou-se a ajudar um homem
alto, de terno azul-claro, a descer os degraus.
Coronel Seibert! Tinham de ser más notícias.
Adiantou-se vagarosamente.
O coronel avistou-o, acenou — aparentemente alegre — e veio em sua
direção. Trazia uma sacola vermelha. Mengele andou mais depressa.
— Notícias? — exclamou.
O coronel acenou afirmativamente, sorrindo.
— Sim, boas notícias!
Graças a Deus! Acelerou ainda mais o passo.
— Estava preocupado.
Apertaram-se as mãos. O coronel, com o seu belo e enérgico rosto
nórdico, sorriu e disse:
— Todos os "vendedores" deram notícias. Os "fregueses" de outubro
foram visitados. Quatro nas datas marcadas, dois um dia antes, e um dia
depois.
Mengele apertou o peito e respirou.
— Graças a Deus! Estava preocupado com a chegada do avião.
— Senti vontade de dar um vôo — retorquiu o coronel. — O dia está tão
bonito!
Caminharam juntos em direção à trilha. Todos os sete?
— Todos os sete. Sem obstáculo algum. — O coronel estendeu a sacola.
— Isto é para você. Um misterioso fardo da parte de Ostreicher.
— Ah — fez Mengele, apanhando-o. — Obrigado. Não é mistério
algum. Pedi-lhe que me arranjasse um pouco de seda. Uma de minhas
empregadas vai me fazer camisas. Você fica para o almoço?
— Não posso — respondeu o coronel. — Tenho um ensaio para o
casamento da minha neta às três horas. Sabia que ela vai se casar com o neto
de Ernst Robbling? Amanhã. Mas aceito um café e conversaremos um
pouco.
— Espere até ver meu quadro.
— Quadro?
— Você vai ver.
O coronel viu e ficou encantado.
— Lindo! Uma verdadeira obra de arte! Não foi você quem fez, pois
não?
Pousando a sacola junto à escrivaninha, Mengele respondeu
alegremente:
— Céus, não, pois se nem estou certo de saber desenhar direito as
cruzes! Mandei vir um homem de avião do Rio.
O coronel voltou-se e fitou-o, surpreso e interrogativo.
— Não se preocupe — tornou Mengele, erguendo tranqüilizadoramente
a mão —, ele teve um acidente na volta.
— Grave, espero — aventou o coronel.
— Muito.
Trouxeram café. O coronel examinou algumas fotografias do Führer e
em seguida sentaram-se no sofá e bebericaram em pequenas xícaras
douradas e brancas de fumegante negror.
— Todos eles instalaram-se em apartamentos — informou o coronel —,
exceto Hessen, que comprou um reboque de acampar. Disse-lhe para dar
notícias uma vez por semana, logo que surgisse alguma coisa. Ele utilizará o
reboque somente até a chegada do mau tempo.
— Preciso das datas em que os homens foram mortos — disse Mengele.
— Para os meus registros.
— Certamente. — O coronel pousou a xícara e o pires sobre a mesa de
café. — Tenho tudo batido a máquina. — Enfiou a mão dentro do casaco.
Mengele pousou a xícara e o pires e pegou a folha dobrada de papel fino
que o coronel lhe entregou. Abriu-a, afastou-a de si, apertando os olhos para
as letras datilografadas. Sorrindo, meneou a cabeça.
— Quatro dentre sete nas datas marcadas! — maravilhou-se. — Não é
sensacional?
— Eles são bons — disse o coronel. — Schwimmer e Mundt já têm os
seus próximos preparados. Farnbach precisou de algumas explicações. Ele é
um tanto perguntador.
— Eu sei — retorquiu Mengele. — Deu-me trabalho quando lhes
transmiti as instruções.
— Não creio que vá dar mais — tornou o coronel. — Passei-lhe uma boa
espinafração.
— Fez bem. — Com um agradável barulhinho cre-pitando, Mengele
dobrou de novo o papel e o deixou no canto da mesa de café, arrumando-o
cuidadosamente na quina. Olhou para o quadro e imaginou as sete cruzes
vermelhas que ia pintar quando o coronel se retirasse. Ergueu a xícara, na
esperança de ver seguido seu exemplo.
— O Coronel Rudel telefonou-me ontem pela manhã
— disse o coronel. — Está na Costa Brava.
— Ah, sim? — Mengele verificou de imediato que o prazer de voar não
fora a única razão para a vinda do coronel. Qual seria? — Como está
passando ele? — indagou, e sorveu seu café.
— Esplendidamente — respondeu o coronel. — Mas um pouco
preocupado. Recebeu uma carta de Günter Wenzler, avisando-o de que
Yakov Liebermann talvez esteja na pista de uma de nossas operações.
Liebermann falou em Heidelberg há duas semanas. Fez à platéia uma
"pergunta hipotética" bastante inusitada. Um amigo de Wenzler, cuja filha
estava lá, disse-lhe que convinha relatar o fato, por via das dúvidas.
— O que Liebermann perguntou exatamente?
O coronel olhou para Mengele por um momento, e disse:
— Por que nós — você e nós — haveríamos de querer matar noventa e
quatro funcionários públicos de sessenta e cinco anos. Uma "pergunta
hipotética".
Mengele encolheu os ombros.
— Então é óbvio que ele não está a par — concluiu.
— Tenho certeza de que ninguém deu a resposta certa.
— Rudel também tem certeza — asseverou o coronel —, mas gostaria de
saber como Liebermann surgiu com a pergunta certa. Você não parece muito
surpreendido.
Mengele sorveu seu café e falou despreocupadamente.
— O americano não estava ouvindo a fita quando o encontramos. Falava
com Liebermann. — Pousou a xícara e sorriu para o coronel. — Estou certo
de que você apurou isso na companhia telefônica ontem à tarde.
O coronel suspirou e inclinou-se na direção de Mengele.
— Por que não nos disse?
— Para ser franco — confessou Mengele —, temi que vocês adiassem a
operação, no caso de Liebermann estar investigando.
— Tem razão, é exatamente o que haveríamos de querer — assentiu o
coronel. — Três ou quatro meses... seria assim tão terrível?
— Poderia modificar completamente os resultados. Acredite-me,
coronel. Pergunte a qualquer psicólogo.
— Então deixaríamos de lado esses homens e cuidaríamos dos outros!
— Fazendo cair em vinte por cento o resultado? Há dezoito homens nos
primeiros quatro meses.
— E não acha que reduziu mais o resultado dessa maneira? — insistiu o
coronel. — Liebermann estará falando apenas a estudantes? Os homens,
nossos homens, poderiam ser presos amanhã! E o resultado reduzido em
noventa e cinco por cento!
— Coronel, por favor — apaziguou Mengele.
— Supondo, é claro, que haja um resultado. Até agora temos apenas sua
palavra quanto a isso, você sabe!
Mengele, sentado em silêncio, respirou profundamente. O coronel
ergueu sua xícara, olhou-a fixamente, e pousou-a de novo.
Mengele suspirou.
— Haverá exatamente o resultado que prometi — assegurou. —
Coronel, pare e pense um momento. Liebermann se preocuparia em fazer
perguntas a estudantes se alguém mais o estivesse ouvindo? Os homens
partiram, não? Cumprindo suas missões? Claro que Liebermann falou com
outros — talvez com todos os promotores e policiais da Europa! Mas
evidentemente não lhe deram atenção. O que mais poderiam fazer? — um
velho nazífobo como ele procurando-os com uma história que há de parecer
louca, uma vez que ele não pode fornecer o motivo que a justifique. Foi com
isso que contei quando tomei minha decisão.
— Não cabia a você tomar essa decisão — retrucou o coronel. — Você
submeteu seis de nossos homens a muito mais perigo do que constou de
nosso pacto.
— E assim fazendo ficou preservado seu enorme investimento, para não
falar no destino da raça. — Mengele levantou-se e foi até a escrivaninha,
tirando um cigarro de uma salva de bronze cheia deles. — Seja como for,
são águas passadas — disse.
O coronel sorveu o café, olhando para as costas de Mengele. Baixou a
xícara, anunciando:
— Rudel queria que eu mandasse chamar os homens hoje.
Mengele voltou-se, tirou o cigarro aceso dos lábios.
— Não acredito nisso — proferiu. O coronel acenou com a cabeça.
— Ele leva suas responsabilidades de oficial muito a sério.
— Ele tem responsabilidades é como ariano!
— Certo, mas ele nunca esteve tão seguro quanto nós de que o projeto
daria resultado. Você sabe disso, Josef. Bom Deus, quanto tempo para que o
convencêssemos!
Mengele permaneceu calado; hostil, em expectativa.
— Disse-lhe praticamente o que você acaba de me dizer — falou o
coronel. — Se os homens deram notícias e tudo corre bem, sem que
Liebermann tenha podido interferir, então por que não deixá-los em ação?
Ele acabou concordando. Mas Liebermann será vigiado de agora em diante
— Mundt encarregou-se disso — e, se houver qualquer sinal de que esteja
interferindo, então terá de ser tomada uma decisão: matá-lo, o que só poderia
complicar ainda mais as coisas, ou então trazer os homens de volta.
— Faça isso e irá tudo por água abaixo — asseverou Mengele. — Tudo
o que consegui. Todo o dinheiro que você gastou em pessoal, equipamento e
distribuição de tarefas. Como ele sequer ousaria pensar nisso? Eu enviaria
seis outros homens se os atuais fossem apanhados. E mais seis. E mais seis!
— Concordo, Josef, concordo — acalmou o coronel. — E gostaria muito
que você tivesse voz ativa na decisão, se ela viesse mesmo a ser tomada.
Voz forte. Mas se Rudel souber que você deixou os homens partirem
sabendo que Liebermann estava avisado... ele há de cortá-lo por completo da
operação. Você nem receberá os relatórios mensais. Por isso, prefiro não lhe
contar. Mas, antes, tenho de obter de você a garantia de que não... tomará
mais decisões sozinho.
— Acerca de quê? Não há mais decisões a tomar, a não ser manter os
homens em operação.
O coronel sorriu.
— Não duvido que você fosse capaz de pular sozinho num avião e sair
atrás de Liebermann.
Mengele tirou uma baforada do cigarro.
— Não seja ridículo — disse. — Sabe que eu não ousaria ir à Europa. —
Voltou-se para a escrivaninha e bateu a cinza numa bandeja.
— Posso ter sua palavra — indagou o coronel — de que não fará coisa
alguma capaz de afetar a operação, sem consultar a Organização?
— É claro que pode — disse Mengele. — Absoluta.
— Então direi a Rudel que é um mistério Liebermann saber das coisas.
Mengele meneou, incrédulo, a cabeça.
— Não posso crer — asseverou — que esse velho idiota — refiro-me a
Rudel, não a Liebermann — seja capaz de malbaratar tanto dinheiro,
juntamente com o destino ariano, só por amor à segurança de seis homens
comuns.
— O dinheiro era apenas uma fração do que dispomos — declarou o
coronel. — Exageramos sua importância a fim de que você mantivesse a
noção dos gastos. Quanto ao destino ariano... bem, como eu já disse, ele
nunca acreditou de fato que o projeto funcionasse. Acho que para ele cheira
um pouco a magia ou feitiçaria. Ele está longe de ser um homem com
mentalidade científica.
— Você seria louco se lhe confiasse a última decisão.
— Atravessaremos a ponte quando a atingirmos — disse o coronel. —
Se a atingirmos. Esperemos que Liebermann pare de falar, mesmo a
estudantes, e você desenhe noventa e quatro cruzes nesse belo quadro. —
Levantou-se. — Acompanhe-me ao avião. — Esticou à frente uma rígida
perna de robô e deu uma passada pesada, cantarolando: — "Lá vem a noiva"
— uma passada! — "Toda de branco" — outra passada! — Que amolação!
Prefiro casamentos simples, e você? Mas experimente dizer isso a uma
mulher.
Mengele levou-o até o avião, acenou quando este decolou e voltou para
casa. Seu almoço estava à espera na sala de jantar, por isso comeu-o, depois
lavou as mãos na pia do laboratório e foi para o escritório. Deu uma boa
sacudidela na lata de esmalte e utilizou a chave de parafuso para abrir-lhe a
tampa. Pôs os óculos e, segurando a lata de vermelho-vivo e o novo pincel
fino, subiu a escadinha.
Molhou as cerdas, raspou-as de encontro à borda da lata, tomou uma
respiração reanimadora e levou o pincel de ponta vermelha até o
quadradinho depois de "Döring — Deutschland — 16/10/74".
A cruz saiu bastante boa: vermelha, reluzente sobre o branco, de bordas
retas e vistosa.
Retocou-a um pouco e pintou uma cruz igual no quadradinho de "Horve
— Dänemark — 18/10/74". E no de "Guthrie — V. St. A. — 19/10/74".
Desceu da escadinha, recuou e estudou através dos óculos as três cruzes.
Sim, elas serviriam.
Subiu novamente na escadinha e pintou cruzes nos quadradinhos de
"Runsten — Schweden — 22/10/74"', "Rausenberger — Deutschland —
22/10/74"', "Lyman — England — 24/10/74", e "Oste — Holland —
27/10/74".
Desceu e deu outra olhada.
Muito bem. Sete cruzes vermelhas.
Mas praticamente nenhum prazer. Maldito Rudel! Maldito Seibert!
Maldito Liebermann! Malditos todos!
Os seios de Hannah haviam secado, Dena estava chorando, por isso era
natural que Hannah se preocupasse. Muito compreensível. Mas haveria
algum motivo para mudar o nome de Dena? Hannah insistia nisso.
— Não discuta comigo — dizia ela. — De agora em diante, vamos
chamá-la Frieda. É o nome perfeito para um bebê, depois disso terei leite de
novo.
— Não faz sentido, Hannah — tornou ele, paciente, andando com
dificuldade ao seu lado, através da neve. — Uma coisa nada tem a ver com a
outra.
— O nome dela será Frieda — anunciou Hannah. — Vamos mudá-lo
legalmente.
A neve abriu-se numa garganta profunda, adiante, e ela deslizou para
dentro, Dena em prantos nos seus braços. Oh, Deus! Ele olhou a neve, agora
compacta, e achou-se deitado de barriga para cima na escuridão, numa cama,
num quarto. Worcester. Labowitz. Seis meninos. Dena crescida, Hannah
morta.
Que sonho. De onde tirara aquilo? Frieda ainda por cima! E Hannah e
Dena deslizando para dentro daquele abismo...
Permaneceu imóvel por um minuto, desfazendo com o bater das
pálpebras a terrível visão, e em seguida levantou-se; uma luz clara recortava-
se por baixo das persianas móveis da janela. Foi ao banheiro.
Não acordara uma vez sequer durante a noite, realmente dormira bem.
Exceto quanto ao sonho.
Voltou ao quarto de dormir, chegou o relógio para junto de uma das
janelas, apertando os olhos. Vinte para as sete.
Voltou à cama tépida, aconchegou as cobertas e quedou-se refletindo,
com um novo vigor.
Seis meninos idênticos — não, seis meninos muito parecidos, talvez
idênticos — viviam em seis lugares diferentes, com seis mães diferentes,
todas da mesma idade, e seis pais vítimas de morte violenta, todos da mesma
idade, com ocupações semelhantes. Não era impossível, era real, um fato.
Portanto, precisava ser encarado, esclarecido, compreendido.
Imóvel e tranqüilo, deixou a mente flutuar livre. Meninos. Mães. Os
seios de Hannah. Leite.
O nome ideal para um bebê...
Santo Deus, claro. Tinha de ser.
Deixou que tudo se reunisse...
Pelo menos, uma parte.
Estava explicado o suco de grapefruit, e a maneira como a mulher o
havia despedido. A maneira como despedira o menino também. Pensara
rápido, fingindo que os seus pés descalços e a falta do roupão constituíssem
motivos de preocupação.
Permaneceu ali, na esperança de que o resto viesse. A parte principal, a
de Mengele. Mas não.
Bem, um passo de cada vez...
Levantou-se, tomou um banho de chuveiro, barbeou-se, aparou o bigode,
penteou os cabelos, tomou suas pílulas, escovou os dentes, colocou sua
ponte. Vestiu-se e arrumou a mala.
Às sete e vinte, dirigiu-se à cozinha. A empregada Francês estava lá, e
Bert Labowitz, em mangas de camisa, comia e lia. Após os cumprimentos
matinais, sentou-se diante de Labowitz e propôs:
— Tenho de ir a Boston mais cedo do que pensava. Posso ir com você?
— Certamente — respondeu Labowitz. — Sairei às cinco para as oito.
— Perfeito. Preciso dar um telefonema para Lenox.
— Aposto como alguém o avisou a respeito de Dolly, da maneira como
ela dirige.
— Não, é que surgiu um dado novo.
— Gostará mais da viagem vindo comigo.
Às quinze para as oito, na biblioteca, ele telefonou para Mrs. Curry.
— Alô?
— Bom dia, é Yakov Liebermann de novo. Espero não tê-la acordado.
Pausa.
— Eu já tinha levantado.
— Como está seu filho esta manhã?
— Não sei, ainda está dormindo.
— Isso é bom. É a melhor coisa, bastante sono. Ele não sabe que é
adotado, sabe? Por isso é que ficou nervosa quando eu lhe disse que ele tinha
um gêmeo.
Silêncio.
— Não fique nervosa, Mrs. Curry. Não vou dizer a ele. Se quiser manter
segredo, não direi uma palavra. Diga-me só uma coisa, por favor. É muito
importante. Conseguiu-o através de uma mulher chamada Frieda Maloney?
Silêncio.
— Conseguiu, ja?
— Não! Espere um minuto. — O ruído do fone sendo arriado, passos se
afastando. Silêncio. Passos voltando. Suavemente: — Alô?
— Sim?
— Nós o conseguimos através de uma agência. Em Nova York. Foi uma
adoção perfeitamente legal.
— Por intermédio da Agência Rush-Gaddis?
— Sim.
— Ela trabalhou lá de 1960 a 1963. Frieda Maloney.
— Jamais ouvi este nome antes! Por que se intromete desta maneira?
Que diferença faz se ele tiver mesmo um gêmeo?
— Não tenho certeza.
— Então, não me importune de novo! E não se aproxime de Jack! —
Estalido do fone. Silêncio.
Bert Labowitz levou-o ao Aeroporto Logan e ele pegou o vôo das nove,
da ponte aérea para Nova York.
Às dez e quarenta, estava no gabinete da assistente do diretor-executivo
da Agência de Adoção Rush-Gaddis, Mrs. Teague, uma mulher de cabelos
grisalhos, magra e bonita.
— Nenhuma — disse-lhe ela.
— Nenhuma?
— Nenhuma. Ela não selecionava casos. Carecia de habilitações para
isso. Era uma arquivista. Evidentemente, seu advogado, quando ela lutava
contra a extradição, tentou criar-lhe aspecto mais favorável, por isso
insinuou que ela desempenhava um papel mais importante aqui do que na
realidade. Mas ela era simplesmente arquivista. Cientificamos os advogados
do governo — naturalmente, estávamos bastante ansiosos para colocar
nossas ligações com ela em sua verdadeira perspectiva — e o nosso chefe de
pessoal foi convocado como testemunha. Entretanto, ela jamais foi chamada.
Pensamos em divulgar posteriormente alguma forma de declaração ou
informe, mas acabamos decidindo que, naquela altura, o melhor era
simplesmente deixar o assunto morrer.
— Então ela não procurava lares para os bebês. — Liebermann puxou o
lóbulo de sua orelha.
— Nenhum — respondeu Mrs. Teague. Sorriu para ele. — E o senhor
está calçando o sapato no pé errado: trata-se de uma questão de encontrar
bebês para os lares. A procura excede de muito a oferta. Especialmente a
partir da modificação das leis sobre o aborto. Só conseguimos atender uma
pequena fração das pessoas que a nós recorrem.
— E naquela época também? De 1960 a 1963?
— Então e sempre, mas atualmente estamos na pior fase.
— Muitos pedidos?
— Mais de trinta mil no ano passado. De todas as partes do país. Do
continente, para ser mais exata.
— Permita-me indagar-lhe o seguinte — aventou Liebermann. — Um
casal vem procurá-la, ou lhe escreve, nesse período de 1961-62. Gente boa,
em boa situação. Ele é funcionário público, emprego seguro. Ela — agora
deixe-me pensar um segundo — ela... tem cerca de vinte e oito ou vinte e
nove anos, e ele cinqüenta e dois. Que possibilidades teriam de arranjar um
bebê com a senhora?
— Nenhuma — respondeu Mrs. Teague. — Não aceitamos pedidos
quando o marido tem essa idade. Quarenta e cinco é o nosso limite, e só
chegamos a tanto quando existem fatores especiais. Aceitamos geralmente
casais com trinta e poucos — com idade bastante para serem estáveis no
casamento e suficientemente jovens para assegurar à criança uma assistência
contínua dos pais. Ou uma promessa disso, diria eu.
— Então, onde um casal como eu descrevi conseguiria um bebê?
— Não por intermédio da Rush-Gaddis. Algumas outras agências são
mais complacentes. E está claro que exista o mercado negro. O advogado ou
médico poderá saber de uma adolescente grávida que não deseje abortar. Ou
que possa ser paga para não fazer isso.
— Mas caso tenham recorrido à senhora, a senhora os recusou.
— Sim. Nunca aceitamos alguém com mais de quarenta e cinco anos.
Existem milhares de casais mais convenientes, rezando, na expectativa.
— E os pedidos recusados — aventurou Liebermann
— talvez fossem arquivados por Frieda Maloney, não?
— Por ela ou algum outro de nossos empregados — esclareceu Mrs.
Teague. — Guardamos todos os pedidos e a correspondência durante três
anos. Cinco, naquela época, mas atualmente dispomos de pouco espaço.
— Obrigado. — Liebermann levantou-se com a pasta.
— A senhora me auxiliou bastante. Agradeço-lhe muito.
Numa pequena cabine telefônica em frente ao Museu Guggenheim, com
a pasta e a mala ao seu lado, na calçada, ele telefonou para Mr. Goldwasser,
da agência de conferências.
— Tenho péssimas notícias. Preciso ir à Alemanha.
— Ah, meu Deus. Quando?
— Agora.
— Não pode! Falará esta noite na Universidade de Boston! Onde é que
você está?
— Em Nova York. Esta noite estarei num avião.
— Você não pode! Aceitou o contrato! Eles venderam os ingressos! E
amanhã...
— Eu sei, eu sei! Julga que me agrada cancelar desse jeito? Julga que
não sei que é uma dor de cabeça para o senhor e para eles, e que poderia até
mesmo processar-me? Trata-se...
— Ninguém está falando em...
— Trata-se de questão de vida ou morte, Mr. Goldwasser. Vida ou
morte. Talvez até mais.
— Que chateação! Quando volta?
— Não sei. Talvez tenha de permanecer na Alemanha por algum tempo.
E depois, ir para outro lugar.
— Quer dizer que está cancelando todo o resto da temporada?
— Acredite-me, se não tivesse que...
— Isso só me aconteceu uma vez em dezoito anos, e então se tratava de
um cantor, e não de uma pessoa responsável como você. Escute, Yakov,
admiro-o e quero muito bem a você. Estou falando não apenas como seu
representante, mas como ser humano, um outro judeu. Peço-lhe que pense
com muito cuidado: se cancelar toda uma temporada dessa maneira, de um
momento para o outro, como poderemos continuar a representá-lo? Ninguém
vai querer ser seu empresário. Nenhum grupo irá contratá-lo. Estará acabado
como conferencista nos Estados Unidos da América. Imploro-lhe: reflita,
por favor.
— Já refleti enquanto o senhor falava — respondeu ele. — Tenho de ir.
Antes não tivesse!
Tomou um táxi para o Aeroporto Kennedy e trocou a sua passagem de
volta para Viena por uma para Düsseldorf, via Frankfurt: no primeiro vôo
disponível, com partida marcada para as seis horas.
Comprou um exemplar do livro de Farago sobre Bormann e passou a
tarde junto a uma janela, lendo.
Cinco
Uma denúncia acusando Frieda Altschul Maloney e mais oito pessoas de
assassinato em massa no campo de concentração de Ravensbrück era
esperada a qualquer momento. Por isso, quando, na sexta-feira, 17 de
janeiro, Yakov Liebermann se apresentou nos escritórios dos advogados de
Frau Maloney, Zweibel & Fassler, de Düsseldorf, não recebeu acolhimento
cálido, nem sequer à temperatura ambiente. Mas Joachim Fassler era
suficientemente advogado para perceber que Liebermann não viera ali para
vangloriar-se ou matar o tempo. Devia querer alguma coisa, e portanto
alguma coisa iria oferecer, dando margem a que se pedisse algo em troca.
Por isso, após ligar o seu gravador, Fassler recebeu Liebermann no
escritório.
Tinha razão. O judeu queria ter um encontro com Frieda e interrogá-la
acerca de certos assuntos de algum modo relacionados com as suas
atividades de tempo de guerra e sem conexão com o seu próximo
julgamento. Eram assuntos americanos, envolvendo o período de 1960 a
1963. Que assuntos americanos? Adoções que ela ou alguém mais
selecionara, na base de informações obtidas dos arquivos da Agência Rush-
Gaddis.
— Nada sei de tais adoções — declarou Fassler.
— Frau Maloney sabe — retorquiu Liebermann.
Se ela o recebesse e respondesse de maneira completa e sincera às suas
perguntas, ele revelaria a Fassler alguma coisa acerca dos depoimentos que
iam ser prestados contra ela, através das testemunhas que localizara.
— Quais?
— Não os seus nomes, apenas parte de seu depoimento.
— Vamos, Herr Liebermann, sabe muito bem que não estou disposto a
comprar nabos em sacos.
— O preço é bastante barato, não? Uma hora e pouco do tempo dela?
Não deve ter muito o que fazer, sentada numa cela.
— Ela pode não querer falar sobre essas supostas adoções.
— Por que não perguntar a ela? Existem três testemunhas cujo
depoimento eu conheço. O senhor poderá ouvi-las simplesmente no tribunal,
ou então ter uma pré-estréia amanhã.
— A verdade é que não estou tão interessado assim.
— Neste caso, acho que não vamos chegar a um acordo.
Levou quatro dias para que tudo ficasse combinado. Frau Maloney
conversaria meia hora com Liebermann a respeito dos assuntos que
interessassem a ele, contanto que: a) Fassler estivesse presente; b) não
houvesse mais ninguém presente; c) nada fosse escrito; e d) Liebermann
permitisse a Fassler revistá-lo, imediatamente antes do encontro, para ver se
tinha um gravador. Em troca, Liebermann diria a Fassler tudo o que
soubesse do provável depoimento das três testemunhas, dando a idade, sexo,
ocupação e atuais condições físicas e mentais de cada uma, principalmente
em relação a cicatrizes, deformidades ou invalidez resultantes de
experiências em Ravensbrück. O depoimento e a descrição de uma
testemunha seriam fornecidos antes do encontro. Os das outras duas, após o
mesmo. Acordo de ambas as partes.
Na manhã de quarta-feira, dia 22, Liebermann e Fassler, no carro-esporte
cinza-metálico deste último, dirigiram-se à prisão federal de Düsseldorf,
onde Frieda Maloney estivera confinada desde a sua extradição dos Estados
Unidos em 1973. Fassler, homem corpulento e bem-vestido, com os seus
cinqüenta e poucos anos, estava tão corado quanto de costume, mas, ao se
identificarem e serem admitidos, ainda não havia recobrado a arrogante
segurança costumeira. Liebermann tratara com ele do depoimento da
testemunha mais prejudicial, em primeiro lugar, na esperança de que o temor
de que o pior estivesse para vir o tornasse, e através dele Frieda Maloney,
ansioso de que o encontro não deixasse de ser satisfatório.
Um guarda levou-os de elevador e conduziu-os ao longo de um corredor
atapetado, onde alguns guardas e inspetoras encontravam-se sentados em
bancos, entre portas de nogueira marcadas com letras cromadas. O guarda
abriu uma porta marcada com um G e introduziu Fassler e Liebermann numa
sala quadrada, de paredes bege, com uma mesa de entrevistas redonda e
várias cadeiras. Duas janelas, com cortinas de rede, forneciam luz em
paredes adjacentes, uma delas com grades e a outra não, o que pareceu
esquisito a Liebermann.
O guarda acendeu uma luz geral, fazendo pouca diferença no aposento já
claro. Retirou-se, fechando a porta.
Eles colocaram seus chapéus e pastas em escaninhos, tiraram os
sobretudos e os penduraram nos cabides. Liebermann ficou de braços
estirados e Fassler revistou-o, com empenho e decisão. Apalpou os bolsos do
seu sobretudo pendurado e pediu-lhe que abrisse a pasta. Liebermann
suspirou, mas desafivelou-a e abriu-a. Exibiu documentos, o livro de Farago,
fechou-a e voltou a passar-lhe a fivela.
Esclareceu suas dúvidas com relação às janelas — a que não tinha grades
dava para um pátio de muros altos lá embaixo, a gradeada tinha um telhado
escuro bem próximo — e em seguida sentou-se à mesa, de costas voltadas
para a janela sem grades. Imediatamente, porém, levantou-se, para não ficar
embaraçado quando Frieda Maloney entrasse.
Fassler abriu um pouco a janela gradeada e pôs-se a olhar por ela,
afastando a cortina bege de rede.
Liebermann cruzou os braços, de olhos postos numa garrafa e copos
envoltos em papel sobre a mesa, numa bandeja.
Ele dera informações sobre a ficha e paradeiro de Frieda Altschul às
autoridades alemãs e americanas, em 1967. A ficha fizera parte do arquivo
do Centro, e fora extraída de conversações e correspondência com dúzias de
sobreviventes de Ravensbrück (entre eles as três futuras testemunhas). O
paradeiro lhe fora fornecido por mais duas outras sobreviventes, irmãs, que
haviam localizado sua antiga guarda num hipódromo de Nova York, tendo-a
seguido até sua residência. Ele próprio nunca se encontrara com a mulher.
Não lhe agradava a perspectiva de sentar-se à mesma mesa com ela.
Independentemente de tudo o mais, sua irmã do meio, Ida, morrera em
Ravensbrück, sendo muito possível que Frieda Altschul Maloney tivesse
colaborado na sua morte.
Tirou Ida da mente. Retirar tudo do pensamento, exceto a Agência Rush-
Gaddis e os seis meninos ou mais que pareciam idênticos. Uma antiga
arquivista da Rush-Gaddis vem aí, disse consigo. Vamos sentar em torno
desta mesa e conversar um pouco, talvez eu descubra que diabo está
acontecendo.
Fassler voltou-se da janela, arregaçou o punho, franziu o olhar para o
relógio.
A porta abriu-se e Frieda Maloney entrou, de uniforme azul-claro, mãos
nos bolsos. Uma inspetora sorriu por cima de seu ombro e disse:
— Bom dia, Herr Fassler.
— Bom dia — respondeu Fassler, adiantando-se. — Como vai?
— Bem, obrigada — tornou a inspetora. Sorriu para Liebermann e
terminou fechando a porta atrás de si.
Fassler tomou Frieda Maloney pelos ombros, beijou-lhe o rosto e levou-a
a um canto, falando baixinho. Ela desaparecera atrás de sua corpulência.
Liebermann limpou a garganta e sentou-se, chegando a cadeira para mais
perto da mesa.
Acabara de ver o que já conhecia de fotografias: uma mulher de meia-
idade e aparência comum. Mais para pequena, cabelos grisalhos levantados
dos lados e ondulados em cima. Pele de aspecto doentio, de um branco
pardacento, queixo largo, boca desanimada. Olhar fatigado, porém resoluto.
No uniforme da prisão, Frieda Maloney poderia passar por uma camareira ou
garçonete sobrecarregada de trabalho. Algum dia, pensou, gostaria de
encontrar um monstro que parecesse um monstro.
Agarrou a grossa borda de madeira da mesa e tentou ouvir o que Fassler
estava dizendo.
Eles dirigiram-se à mesa.
Olhou para Frieda Maloney, e ela — enquanto Fassler puxava a cadeira
em frente — fitou-o, olhos azuis perscrutadores, boca de lábios finos caídos.
Cumprimentou com a cabeça, sentando-se.
Ele devolveu o cumprimento.
Ela esboçou um sorriso de agradecimento a Fassler e, com os cotovelos
sobre os braços da cadeira, tamborilou com os dedos na beirada da mesa,
primeiro os de uma mão, depois os da outra, bastante depressa. Em seguida,
parou e descansou-os ali, contemplando-os.
Liebermann olhou também para eles.
— São exatamente, agora — Fassler, sentado à direita de Liebermann,
consultou o relógio em seu pulso erguido —, vinte e cinco para as doze. —
Olhou para Liebermann.
Liebermann olhou para Frieda Maloney.
Ela olhou para ele. Suas sobrancelhas soergueram-se.
Ele verificou que não conseguia falar. Nenhum alento sobrava nele — só
pensamentos em torno de Ida. Seu coração batia forte.
Frieda Maloney mordeu o lábio inferior, olhou para Fassler, de novo
para Liebermann.
— Não me oponho a falar acerca da questão dos bebês — disse. — Fiz
muita gente feliz. É coisa que em nada me envergonha. — Tinha um suave
acento do sul da Alemanha. Mais agradável de ouvir do que o de Fassler,
áspero, de Düsseldorf. — E quanto à Organização dos Camaradas —
acrescentou, com desdém —, não são mais meus camaradas. Se o fossem, eu
não estaria aqui, não é verdade? Estaria na Amérrica to Sul — seus olhos
dilataram-se — lefanto a poa fita... — Ergueu a mão acima da cabeça e
estalou os dedos, gingando o torso, num arremedo do ritmo latino.
— Acho que seria melhor — Fassler dirigiu-se a ela — que você
contasse a ele tudo que contou para mim. — Voltou-se para Liebermann. —
E aí então o senhor poderia fazer as perguntas que quisesse. Conforme o
tempo permita. Concordam?
O alento voltou.
— Sim — assentiu Liebermann. — Contanto que haja tempo suficiente
para as perguntas.
— Você não vai contar de fato os minutos, vai? — indagou Frieda
Maloney a Fassler.
— Certamente que vou — retorquiu ele. — Acordo é acordo. — E para
Liebermann: — Haverá tempo suficiente, não se preocupe. — Olhou para
Frieda Maloney e acenou com a cabeça.
Ela cruzou as mãos sobre a mesa, olhando para Liebermann.
— Um homem da Organização entrou em contato comigo — declarou
ela. — Em 1960, na primavera. Um tio meu da Argentina falara-lhes a meu
respeito. Ele já morreu. Queriam que eu me empregasse numa agência de
adoção. Alois — isto é, o homem — tinha uma lista de três ou quatro delas.
Qualquer uma poderia servir, contanto que fosse um serviço através do qual
eu pudesse consultar os arquivos. "Alois" foi o único nome que ele me deu,
sem sobrenome. Mais de setenta, de cabeça branca. O tipo do antigo
soldado, de postura muito empertigada. — Seus olhos interrogaram
Liebermann.
Ele permaneceu impassível, e ela recostou-se na cadeira, examinando as
unhas.
— Fui a todos os lugares — continuou. — Não havia vagas. Após o
verão, porém, Rush-Gaddis chamou-me e me contratou. Como arquivista. —
Ela sorriu, divertida. — Meu marido pensou que eu estava maluca, aceitando
emprego em Manhattan. Trabalhava então num ginásio, a apenas onze
quarteirões de casa. Disse-lhe que na Rush-Gaddis me haviam prometido
que dentro de um ano mais ou menos eu estaria...
— Apenas o essencial, está bem? — atalhou Fassler. Frieda Maloney
franziu a testa, assentiu com a cabeça.
— Muito bem, então. Rush-Gaddis. — Olhou para Liebermann. — O
que fiz lá consistia em percorrer a correspondência e os arquivos, à procura
de pedidos em que o marido houvesse nascido entre 1908 e 1912 e a esposa
entre 1931 e 1935. O marido tinha de ter emprego no serviço público, e os
dois deveriam ser cristãos, brancos e de origem nórdica. Foi o que Alois me
disse. Sempre que achava um, e isso ocorria apenas uma ou duas vezes por
mês, copiava-o na máquina juntamente com toda a correspondência trocada
entre o casal e a Rush-Gaddis. Preparava duas cópias, uma para Alois e outra
para mim. A dele, enviava para a caixa postal que me indicara.
— Onde? — indagou Liebermann.
— Ali mesmo, em Manhattan. Na Estação Planetarium, no West Side.
Continuei fazendo isso — procurar o tipo certo de pedidos e expedi-los —
durante todo o tempo que estive lá. Depois de um ano, mais ou menos, ficou
ainda mais difícil, pois já vasculhara os arquivos nessa altura e só tinha os
novos pedidos para consultar. O dado referente ao serviço público se
modificara, então: bastava que o emprego fosse semelhante ao serviço
público. O homem deveria pertencer a uma grande organização e exercer
alguma autoridade. Um avaliador de companhia de seguros, por exemplo.
Então, tive de recorrer aos arquivos novamente. Ao todo, devo ter expedido
quarenta ou quarenta e cinco.propostas durante os três anos. Cópias de
propostas.
Ela inclinou-se para diante e pegou um dos copos envoltos em papel da
bandeja, girando-o nas mãos.
— Entre... vejamos, o Natal de 1960 e o fim do verão de 1963, quando
terminei e saí, era assim que acontecia: Alois ou um outro homem, Willi,
telefonava para mim. Geralmente Willi. Dizia: "Veja se... 'os Smith', da
Califórnia, querem um para março. Ou qualquer outro mês, geralmente dois
meses depois. Consulte 'os Brown', de Nova Jersey, também". Às vezes me
dava três nomes. — Olhou para Liebermann, explicando: — Gente cujos
pedidos eu expedira anteriormente, H Ele assentiu.
— Pois bem. Aí, eu telefonava para os Smith e os Brown. — Ela retirou
o papel que envolvia o topo do copo. — Eu lhes dizia que um antigo vizinho
deles me informara que estavam querendo um bebê. Estariam ainda
interessados? Quase sempre estavam. — Olhou desafiadoramente para
Liebermann. — Não apenas interessados. Rejubilantes. As mulheres
especialmente. — Segurou o copo na mão, retirando-o pouco a pouco do
invólucro. — Eu lhes dizia que poderia arranjar um, uma criança branca, de
boa saúde, com algumas semanas de nascida, em março ou quando fosse.
Com documentos de adoção do Estado de Nova York. Mas primeiro tinham
de me enviar o mais cedo possível relatórios médicos completos — dava-
lhes o número da caixa postal de Alois — e também teriam de prometer
jamais dizer à criança que fora adotada. A mãe fazia questão disso, dizia eu.
E evidentemente teriam de pagar-me alguma coisa quando viessem apanhar
o bebê, se o conseguissem. Mil, geralmente, às vezes mais, se pudessem.
Isso eu podia verificar através da proposta. O bastante para que parecesse um
ajuste comum de mercado negro.
Amassou o invólucro de papel e colocou-o na bandeja, tirando a rolha da
garrafa.
— Algumas semanas depois eu recebia novo telefonema. "Smith não
serve. Brown poderá recebê-lo a 15 de março." Ou talvez... — Ela inclinou a
garrafa sobre o copo; inclinou mais; nada saiu. — Típico — resmungou,
virando de cabeça para baixo a garrafa preta. — Típico da maneira como
este maldito lugar é dirigido! Os copos são envoltos em papel, mas não há
água na droga da garrafa! Deus do céu! — Depositou a garrafa com
violência sobre a bandeja, fazendo com que os copos pulassem.
Fassler levantou-se.
— Vou providenciar — disse, apanhando a garrafa. — Prossiga. —
Dirigiu-se à porta.
Frieda Maloney voltou-se para Liebermann:
— Podia lhe contar umas coisas acerca da enorme incompetência que
existe aqui... Céus! Pois bem. Sim, aí ele me dizia quem receberia o bebê e
quando. Ou talvez os dois casais servissem, e então ele me diria para
telefonar para o segundo e dizer-lhes que era tarde demais, mas que eu sabia
de uma outra moça que esperava para junho. — Rolou o copo entre as
palmas da mão, de lábios franzidos.
— Na noite em que o bebê era entregue — prosseguiu — tudo era
preparado de antemão com muito cuidado. Tanto por mim como por Alois
ou Willi, tanto por mim como pelo casal. Eu estaria num aposento do Motel
Howard Johnson, no Aeroporto Kennedy — antigo Idlewild —, usando o
nome de Elizabeth Gregory. O bebê chegava às minhas mãos por intermédio
de um jovem casal ou de uma mulher sozinha, às vezes uma aeromoça.
Alguns deles trouxeram mais de um — em ocasiões diferentes, quero dizer
—, mas geralmente em cada ocasião vinha uma pessoa diferente. Traziam os
papéis também. Exatamente como se fossem verdadeiros, com os nomes do
casal preenchidos. Uma hora ou duas depois, o casal aparecia e apanhava o
bebê. Ficavam radiantes. Cheios de gratidão para comigo. — Olhou para
Liebermann. — Boas pessoas, que dariam bons pais. Pagavam-me e
prometiam — eu os fazia jurar sobre a Bíblia ali mesmo — jamais dizer à
criança que era adotada. Eram sempre meninos. Umas graças. Eles os
apanhavam e iam * embora.
— Sabia de onde eles vinham? — indagou Liebermann.
— Originalmente, quero dizer?
— Os meninos? Do Brasil. — Frieda Maloney desviou o olhar. — As
pessoas que os traziam eram brasileiras — acrescentou, estendendo a mão —
, e as aeromoças, da Varig, uma linha aérea brasileira. — Recebeu a garrafa
de Fassler, chegou-a ao copo, despejou a água. Fassler deu a volta à mesa e
sentou-se.
— Do Brasil... — disse Liebermann.
Frieda Maloney bebeu, pousando a garrafa na bandeja. Bebeu, arriou o
copo, passou a língua nos lábios.
— Quase sempre tudo transcorria com a precisão de um cronômetro. —
Certa vez o casal não apareceu. Telefonei e me disseram que haviam
mudado de idéia. Aí então levei o bebê para minha casa e providenciei a
vinda do casal seguinte. Documentos novos outra vez. Disse a meu marido
que houvera uma confusão na Rush-Gaddis e que ninguém tinha lugar para a
criança. Ele não sabia nada de nada. Até hoje não sabe. E eis tudo. Ao todo,
deve ter havido cerca de vinte bebês. Alguns, próximos uns dos outros, no
começo; depois disso, um a cada dois ou três meses. — Ergueu o copo e
tomou um gole.
— Doze minutos — anunciou Fassler, olhando o relógio. Sorriu para
Liebermann. — Está vendo? Ainda tem dezessete minutos.
Liebermann olhou para Frieda Maloney.
— Que aparência tinham os bebês? — perguntou-lhe.
— Eram lindos — respondeu ela. — Olhos azuis, cabelos escuros. —
Eram todos parecidos, mais parecidos do que de costume. Do tipo europeu,
não brasileiro: pele clara e olhos azuis.
— Disseram-lhe que eles eram do Brasil ou deduziu isso apenas de...
— Nada me disseram sobre eles. Apenas a noite e a hora em que seriam
trazidos para o motel.
— De quem seriam os bebês, segundo acha?
— A opinião dela — atalhou Fassler — certamente não tem a menor
importância.
Frieda Maloney teve um gesto dissuasivo.
— Que diferença faz? — redargüiu, e dirigiu-se a Liebermann: —
Imaginei que fossem filhos de alemães da América do Sul. Filhos ilegítimos,
talvez de moças alemãs e rapazes sul-americanos. Quanto ao motivo por que
a Organização os estaria passando para a América do Norte, e escolhendo as
famílias tão cuidadosamente, disso eu não fazia a mínima idéia.
— Não perguntou?
— Bem... no princípio, quando Alois me falou do tipo de propostas a que
devia dar preferência, perguntei-lhe para que tudo aquilo. Ele ordenou-me
que não fizesse perguntas, apenas fizesse o que me mandavam. Pela pátria.
— E estou certo de que você sabia — lembrou-lhe Fassler — que, se não
colaborasse, ele poderia expô-la ao tipo de vexame que acabou ocorrendo
anos depois.
— Sim, claro — retorquiu Frieda Maloney. — Eu sabia disso.
Naturalmente.
Liebermann aventurou:
— Os vinte casais a quem entregou os bebês...
— Cerca de vinte — retificou Frieda Maloney. — Talvez um pouco
menos.
— Eram todos americanos?
— Está querendo dizer... dos Estados Unidos? Não, alguns eram
canadenses. Cinco ou seis. Os demais, dos Estados Unidos.
— Nenhum europeu?
— Não.
Liebermann permaneceu calado, esfregando o lóbulo da orelha.
Fassler olhou para o relógio.
— Lembra-se dos nomes deles? — indagou Liebermann.
Frieda Maloney sorriu.
— Foi há treze, catorze anos. Lembro-me de um, Wheelock, porque eles
me deram um cachorro e telefonei-lhes algumas vezes, pedindo conselhos.
Eram criadores de Dobermanns. Os Henry Wheelock, de New Providence,
Pensilvânia. Falei que estávamos pensando em arranjar um, por isso
trouxeram Sally, então com apenas dez semanas, quando vieram buscar o
bebê. Um cão lindo. Ainda a temos. Meu marido ainda a tem.
— Guthrie? — indagou Liebermann.
Frieda Maloney fitou-o e acenou com a cabeça.
— Sim — assentiu. — O primeiro foi Guthrie, isso mesmo.
— De Tucson.
— Não. De Ohio. Não, Iowa. Sim, Ames, de Iowa.
— Eles mudaram-se para Tucson — asseverou Liebermann. — Ele
morreu num acidente em outubro último.
— Ah, sim?
— Quem veio em seguida, depois dos Guthrie? Frieda Maloney meneou
a cabeça.
— Nessa altura houve vários, com intervalo de apenas duas semanas.
— Curry?
Ela olhou para Liebermann.
— Sim — confirmou. — De Massachusetts. Mas não logo depois dos
Guthrie. Espere um minuto agora. Os Guthrie foram no fim de fevereiro, em
seguida veio outro casal, de um lugar do sul... Macon, acho, e depois os
Curry. Em seguida os Wheelock.
— Duas semanas depois dos Curry?
— Não, dois ou três meses. Após os três primeiros, começaram a se
distanciar.
— Você morreria se eu tomasse nota disso? — indagou Liebermann a
Fassler. — Não vai prejudicá-la; isso aconteceu na América, há tanto tempo.
Fassler carregou o sobrolho e suspirou.
— Está bem — assentiu.
— Por que é tão importante? — indagou Frieda Maloney.
Liebermann retirou a caneta e encontrou um pedaço de papel no bolso.
— Como se escreve "Wheelock"? — perguntou. Ela soletrou para ele.
— New Providence, Pensilvânia?
— Sim.
— Procure lembrar-se: exatamente quanto tempo depois dos Curry eles
apanharam o seu bebê?
— Não me lembro exatamente. Dois ou três meses. Não havia um
esquema regular.
— Mais perto de dois ou de três meses?
— Ela não se lembra — atalhou Fassler.
— Está bem — acedeu Liebermann. — Quem veio depois dos
Wheelock?
Frieda Maloney suspirou.
— Não me lembro quem veio e quando. Foram vinte, num espaço de
dois anos e meio. Houve um Truman, que não era parente de Truman, o
presidente. Acho que foi um dos casais canadenses. E houve um... "Corwin"
ou "Corbin", qualquer coisa parecida. Corbett.
Ela lembrou-se de mais três nomes e de seis cidades. Liebermann
anotou-os.
— Tempo — anunciou Fassler. — Quer ter a gentileza de me esperar lá
fora?
Liebermann pôs de lado a caneta e o papel. Olhou para Frieda Maloney e
acenou com a cabeça.
Ela respondeu ao cumprimento.
Ele levantou-se e dirigiu-se ao cabide. Pôs o sobretudo no braço e tirou o
chapéu e a pasta do escaninho. Caminhou para a porta, parou, ficou imóvel e
voltou-se.
— Gostaria de fazer mais uma pergunta.
Eles o fitaram. Fassler acenou afirmativamente. Liebermann olhou
Frieda Maloney e indagou:
— Quando é o aniversário do seu cachorro? Ela olhou-o, atônita.
— Sabe? — insistiu ele.
— Sim — respondeu ela —, 26 de abril.
— Obrigado — tornou ele, e para Fassler: — Por favor, não demore
muito, quero acabar logo com isso.
Voltou-se, abriu a porta e saiu para o corredor.
Sentou-se no banco, fazendo alguns cálculos com auxílio da caneta e de
um calendário de bolso. A inspetora, sentada ao lado do seu casaco dobrado,
indagou:
— Acha que vai conseguir libertá-la?
— Não sou advogado.
Fassler, enfiando o seu carro por entre o tráfego engarrafado, declarou:
— Estou completamente aturdido. Quer me dizer, por favor, o que fazia
a Organização nesse negócio dos bebês?
— Desculpe — retorquiu Liebermann —, mas isso não faz parte do
nosso acordo.
Como se ele soubesse.
— Fora...
Abriu os olhos e olhou para o outro lado da sala, onde Mengele jazia
estatelado sobre o canapé, entre os Dobermanns rosnadores.
— Fora... — murmurou Mengele brandamente, com cautela. Seu olho
moveu-se do Dobermann diante dele para o Dobermann no seu pescoço, e
para o Dobermann no seu rosto.
— Saiam. Não tenho mais arma. Nenhuma arma. Fora. Saiam. Sejam
bonzinhos.
Os Dobermanns preto-azulados rosnaram, sem se mover.
— Quietinhos — tornou Mengele. — Sansão? Sansão, meu velho.
Saiam. Vão embora. — Virou a cabeça vagarosamente de encontro ao braço
do canapé. Os Dobermanns recuaram um pouco as cabeças, rosnando.
Mengele esboçou um sorriso débil para eles. — Major? — indagou. — Você
é Major? Meu bom Major, meu bom Sansão. Sejam bonzinhos. Amigo. Não
tenho mais arma. — Sua mão, de pulsos avermelhados, agarrou a parte da
frente do braço do canapé, a outra mão segurou as costas do canapé.
Começou a soerguer-se lentamente de lado. — Sejam bonzinhos. Saiam.
Fora.
O Dobermann no meio da sala jazia imóvel, as costelas pretas paradas. A
poça de urina ao seu redor fragmentara-se em outras menores espalhadas,
cintilando nas tábuas largas do chão.
— Sejam bonzinhos... quietinhos...
Deitado de costas, Mengele começou a levantar-se vagarosamente no
canto do canapé. Os Dobermanns rosnaram, mas permaneceram onde
estavam, encontrando outro apoio para as patas enquanto ele se erguia, longe
de seus dentes.
— Fora — disse. — Sou amigo de vocês. Estou fazendo mal a vocês
agora? Não, não, eu gosto de vocês.
Liebermann fechou os olhos, respirou suavemente. Sentava-se no sangue
que lhe escorria por trás.
— Meu bom Sansão, meu bom Major. Beppo? Zarko? Sejam bonzinhos.
Fora. Fora.
— Judeu canalha?
O lenço aderia sozinho ao ferimento, por isso ficou de olhos fechados,
sem respirar — deixe-o pensar —, e então ergueu a mão direita e esticou o
dedo médio.