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Ze Pensamento Criminol6gico & Ber WC) EEE Pensamento Criminolégico Diregao Prof. Dr. Nilo Batista © 2005 Instituto Carioca de Criminologia Rua Aprazivel, 85 - Santa Tereza Rio de Janeiro/RJ CEP: 20241-270 Tel: (21)2221 1663 fax (21)2224 3265 criminologia@icc-rio.org.br Edig¢ao Editora Revan Av. Paulo de Frontin, 163 20260-010 Rio de Janeiro RU tel: (21) 2502 7495 fax: (21) 2273 6873 editora@revan.com.br/ www.revan.com.br Projeto grafico Luiz Fernando Gerhardt Reviséo Sylvia Moretzsohn Diagramagaéo lido Nascimento de Castro, Lola Aniyar Criminologia da libertagao / Lola Aniyar de Cas- tro, Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005. 2* reimpressdo, 2015 (Pensamento criminolégico; v. 10) 288p. Inclui bibliografia ISBN 85-7106-332-X 1. Direito penal Dedicatéria Este livro é, afinal, apenas um reflexo de doze anos de vivéncias ininterruptas em meio ao que aconteceu em nossa criminologia. Doze anos em que vimos nascer e crescer dois movimentos totalmente novos e produtivos: o Grupo Latino-Americano de Cri- minologia Comparada e o Grupo de Crimindlogos Criticos Latino- Americanos. Nos quais vimos nascer e crescer crimindlogos, teses e teorias. Com suas contradigdes, seus avangos e retrocessos. E nos quais, dolorosamente, testemunhamos a morte de alguns colegas. Acreditamos ser necessario contar parte dessa histéria e, também, como fomos aprofundando, pouco a pouco, ¢ entre todos, a tarefa de reconstruir criticamente a realidade latino-americana que nos concernia: primeiro foi a pesquisa sobre violéncia, depois sobre o delito dos pode- rosos. E, finalmente, em sequéncia légica, a do controle social. Queremos dedicar este livro, em primeiro lugar, aos companhei- ros de nossa cotidiana paixdo pela criminologia e pelo latino-ameri- cano. Refiro-me aos integrantes do Instituto de Criminologia da Uni- versidade de Zulia: Francisco Burgos, Thamara Santos, Audelina Tineo, Emperatriz Arreaza, Elsa Villa, Tito Cordova, Susaba Iglesias, Francisco Delgado, Maria Angélica Jiménez e Guillermo Ramos. A mais lticida, coesa, coerente ¢ solidaria equipe de trabalho. Pela ami- zade profunda, e pelo muito que aprendemos juntos. Também a todos aqueles que durante o perfodo mencionado vi- veram conosco a aventura de inventar e construir algo distinto e proprio: 0 Grupo Latino-Americano de Criminologia Comparada. Seria excessivo enumerar seus membros. Cada um deles foi tinico €, entretanto, constituiram verdadeiramente um grupo. Eles sao, praticamente, a hist6ria da criminologia latino-americana. Este livro é dedicado também 4 meméria de nossos irmaos des- se€ grupo que morreram pelo ou no campo de batalha do compro- misso com a verdade, os direitos humanos e a libertagdo. Estamos falando dos professores Guillermo Monz6n Paz e Jor- ge Palacios Mota, da Guatemala. De Heleno Fragoso, do Brasil. E dos magistrados Alfonso Reyes, duas vezes irméio, e Emiro Sandoval, da Colémbia, estes tiltimos massacrados pela barbarie oficial no simbélico holocausto da Corte Suprema de Justica de Bogota. Lola Aniyar de Castro Sumario Apresentagio Prefacio 4 edic¢fo brasileira s. 13 Partel Teoria criminolégica e controle social . lf I. A historia ainda nao contada da criminologia latino-americana (1974-1986) ....... ae LD II. Conhecimento e ordem social: criminologia como legitimagao e criminologia da libertagao 1. Introdugao 2. Criminologia como legitimag&o: o saber e 0 poder ........ 43 3. O caso latino-americano ... 4, Propostas de uma criminologia como teoria cr do controle social na América Latina Il. Criminologia como controle social informal ou criminologia e sistemas de poder 67 1. A criminologia classica .... 2. A criminologia positivista .... 3. Criminologia, direito e sistemas sociopoliticos na América Latina T4 4. O modelo do conflito: contetido contemporaneo de uma criminologia alternativa ..... 81 5. Uma avaliagao do estado atual da criminologia ........... 85 IV. Criminologia da libertagao: estado atual-e discussées ... 2 OD 93 1, Libertagdo como deslegitimagao 2. Estado atual da criminologia da libertacao na América Latina «= 99 3. A criminologia da libertagao é uma “teoria criminolégica latino-americana”? .. vowgs LOS » 111 4. Linhas de desenvolvimento atuais .... V. Direitos humanos e sistemas penais latino-americanos ... 1, Um modelo penal integrado? . 2. Os direitos humanos e suas garantias .... 3. O Projeto Zaffaroni .. 4. O sistema penal como parte do sistema juridico total e como parte do sistema social .... 5. Sistema penal subterraneo e sistema penal aparente VI. A busca da legitimagao: justica participativa e dircito de punir......... 133: a 133 1. A crise do sistema penal ..... 2. O direito de punir e a justiga (formal ou participativa) .... 137 3.A justiga totalmente participativa: conciliagaéo e abandono do sistema penal. A posigdo hulsmaniana....... 140 4. A transparéncia do discurso e as regras do jogo ........+ 144 Parte II 151 4 153 1, Educagaio como controle e controle como educagao .... 153 O controle social em agaio I. Aeducagao como forma de controle social 8 156 157 158 158 161 2. A obediéncia 3. A disciplina . 4, A fungao reprodutora da escola 4.1 A escolaridade e 0 acesso ao poder 4.2 Os textos escolares: aprender a aceitar .. 4,3 As atitudes dos professores e a estigmatizacao: da escola a prisdo .... . 164 5. A teoria critica do controle social: professores e crimindélogos .. . 165 6. Uma reflexao conclusiva ebBie acriminologia atieenttve eo controle social ..... IL. Legitimagao interna e estratégias de dominagaio na campanha contra drogas na Venezuela .................. 171 1. As “campanhas” 2. As convengées internacionais € os interesses estratégicos .... 3. As industrias legais derivadas ... 4. A utilizagao de esteredtipos 5. Droga e subversdo .... ico-econémica emergente .. 180 . 181 6. O perigo de uma ordem pol como produto da criminalizagéo da droga 7. As campanhas contra drogas na Venezuela ..... 8. O marco sociopolitico da campanha de 1984 ..... 9. O impacto publicitario .... 183 10. As cifras sobre 0 consumo ..... .. 184 11. Drogas, grupos poderosos e subversdo na campanha .. 187 189 192 12. O que existe, na realidade, por tras de tudo isso 13, Legitimagao e autoritarismo 9g 194. 195 14. As duas campanhas: semelhangas 15. Conclusées ..... IL. Meios de comunicagio e inseguranga social 199 1. Introdugio 1. 199 2. A publicidade do delito e o sentimento de inseguranga .... essaee 205 2.1 A noticia como construgao social da realidade ........ 205 2.2. A noticia como mercadoria, o entretenimento como mercadoria e aconformagao de um sentimento de inseguranga ...... 221 2.3. A decodificagao da mensagem: processos que favorecem maior implicagao e maior influéncia no receptor .... 3. A influéncia das mensagens violentas na agressividade ..... TV. Notas para a discussio de um controle social alternativo ................... 237 O controle social em geral ... O direito e o sistema de administragao da Justiga ........... 239 Elementos para uma proposta nao formulada O controle social formal na Venezuela .... A fungdo policial .... A violéncia e a agressio A delingiiéncia dos poderosos... O sentimento de inseguranga cidada. Anexos Bibliografia ...... Apresentacao Este € 0 segundo livro da Prof Dr’ Lola Aniyar de Castro publicado no Brasil. Hé cerca de duas décadas, em esmerada tra- dugao da Prof’ Dr* Ester Kosovski, os Icitores brasilciros trava- yam conhecimento com o compéndio que pioneiramente efetua- ra, na América Latina, a viragem metodoldogica que caracteriza o conjunto de tendéncias que podemos agrupar sob a denominacaio de criminologia critica (A criminologia da reagao social, Rio, 1983, ed. Forense). Seria, contudo, extremamente injusto privilegiar a quali- dade tedrica e o pioneirismo da obra criminolégica de Lola Aniyar de Castro como seu principal merecimento. Lolita—como ca- rinhosamente a tratam seus colegas ¢ alunos — destacou-se igual- mente pela militéncia académica a qual se dedicou a partir do Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia, que hoje ostenta seu nome. No ambiente cinzento dos anos setenta, 0 programa de mestrado daquela universidade reunia estudantes ¢ professores (juristas e criminélogos) latino-americanos insa- tisfeitos com a incapacidade do positivismo hegeménico, ou de suas variantes funcionalistas, para dar conta dos comple- xos processos de criminalizagao das classes populares, e de suas ocasionais vanguardas, que estayam no cerne das opres- sdes que pretendiam emudecer nosso continente e de certo modo manté-lo colonizado. Nos cursos de Maracaibo, nos niime- ros do Capitulo Criminolégico, nos seminarios e encontros que retomavam as linhas de pesquisa daquele profundo projeto uni- versitario, Lolita era uma comandante respeitada e querida. 1 Tive a sorte de ter estado 14, de ter desconfiado das altas muralhas metodolégicas que impediam os juristas de manter uma interlocu¢&o com o pensamento criminolégico. Pude acompanhar, de longe, como a militancia académica se resolveria em militancia partidaria, e eis Lola Aniyar de Castro Governadora da Provincia de Zulia, exposta a todas as retaliagdes que as oligarquias latino- americanas desfecham contra governantes que se recusam aos padrées duros, impregnados ainda da cultura escravista, no ma- nejo do poder punitivo. Como a Autora frisa em seu prefacio para a edigao brasileira, este livro viu-se atualizado pela importancia estratégica que, no capitalismo sem trabalho periférico, adquiriram os sistemas pe- nais. Para ficar numa s6 de suas contribuigdes, o conceito de “sistema penal subterraneo”, que Ratil Zaffaroni incorporou as bases de sua teoria geral do direito penal, permite nao sé expandir 0 objeto dos estudos juridicos-penais, como também compreen- der os espagos de ilegalidade nos quais transitam cotidianamente certas agéncias do sistema penal, sob intensa ovag4o ou “siléncio sorridente” da midia. Para o Instituto Carioca de Criminologia, é uma honra poder incluir na Cole¢ao Pensamento Criminoldégico um volume de au- toria de Lola Aniyar de Castro. Nilo Batista Prefacio 4 edicao brasileira Reli este livro na expectativa da edigao em portugués nesse pais espléndido, complexo, fascinante e sofrido que € o Brasil de hoje e de todos os tempos, pais que conta sem dtivida com uma audiéncia intelectual da mais alta categoria critica. O que imediatamente me ocorre declarar é minha surpresa quanto a constatagao de que o livro é perfeitamente adequado 4 situag&o atual. Quer isto dizer que aparentemente nada de novo aconteceu nos ultimos anos, apesar da ampliacao do fenémeno globalizante e da desinstitucionalizagio dos controles penais, consi- derando-se a tendéncia a sua privatizacao. Porque este livro aborda os momentos preparatérios, as ve- zes muito dolorosos, do que é hoje a pratica dos controles formais ¢ informais do aparato da dominagao por meio da ideologizacao e da utilizago da via penal. Entretanto, ainda se verifica o que nessas paginas chamamos de “sistema penal subterraneo”, através de ba- tidas policiais ou de mortes em supostos confrontos com a policia, ou de prisdes como pena antecipada sem condenagao, e — neste Ultimo caso — apesar das novas legislagdes processuais em quase todo 0 continente. Embora essa proposta tenha provocado alguns debates, hoje mais do que nunca é¢ urgente a necessidade de que a criminologia latino-americana estude os controles informais, além dos formais. Vejamos algumas razdes para isso: Agora ha técnicas de controle informal baseadas no medo ¢ na necessidade de se manter as zonas de convivio comum sob o manto conceitual da Tolerancia Zero. 13 A globalizagao comunicacional incorporou modelos de atitude diante do “diferente”, que na Europa, e também em muitos de nos- sos paises, é representado pela figura do imigrante, novo esteredti- po do elemento perigoso ou inimigo comum, que se soma ao do pobre perigoso, visto como delinqiiente nas representaces sociais, policiais e jurisdicionais, A globalizag&o institucional, sob a capa ideoldégica da “moder- nizag&o” dos nossos sistemas, financiada em muitos casos com recursos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desen- volvimento, além de outras fundagdes nao suficientemente neutras, introduziu na América Latina modelos processuais e penais nem sempre inocentes, tanto para adultos quanto para jovens. Portanto, quando defendemos nestas paginas que nossa crimi- nologia devia analisar a atuacao dos controles ideolégicos, que co- megavam como “processos de socializagaio” ou “modelos edu- cativos” e logo se transformavam em modelos de intervengdio pe- nal, talvez nao previssemos algumas das varidveis mais contempo- réneas, mas a raz&o para que adotdssemos essa linha em nossos estudos é hoje mais claramente valida. Diria que a matéria dos con- troles informais é hoje mais asfixiante e que a necessidade de analis4- la, conseqiientemente, se tornou mais aguda. Este livro abrange momentos muito intensos e de muito inten- sa reflexdo sobre o que deveria ser o pensamento criminolégico latino-americano, numa época em que as expectativas € os confli- tos sociais e politicos se manifestaram muito intensamente no mapa de nossa América. Enquanto o sangue escorria nesse mapa, fosse nas guerras centro-americanas de alta e baixa intensidade, fosse nas ditaduras do chamado Cone Sul, despertou-se, naqueles nicleos geograficos em que a universidade funcionava em clima de liberdade e autono- mia, um inusitado interesse em conhecer os mecanismos pelos quais se exercia a dominagaio através de elementos de grande poder coativo, como o sistema penal, e no campo mais sofisticado da construgao das ideologias. Assim, num periodo privilegiado de interagao académica lati- no-americana, produziram-se projetos de pesquisa coletivos, que procuraram conhecer nao apenas os controles penais mas a histé- 14 ria da punig&o e da recompensa através da histéria do controle, tanto rural e pré-colombiano (em alguns casos) como urbano, em sua maioria. Por isso pesquisamos os meios de comunicagao, a educacao e a religiao, temas que até entao raramente apareciam nos nossos livros de criminologia — pelo menos, nesses termos —, ja que eram estudados sempre e apenas como formas de socializagao. Creio que hoje deverfamos prosseguir, pelo menos em parte, nesse caminho, sobretudo porque atualmente chama-se de “glo- balizag&o” — palavra que esconde muitas coisas — o que em certos aspectos nao é mais que a expresso de meios informais e formais da dominagao internacional. Hoje defendemos cada vez mais a necessidade de integrar a reflexao penal e criminolégica como caminho para recuperar, onde esto sendo violados, as vezes de maneira subrepticia, os procla- mados direitos humanos. E disso que falamos nestas paginas, as- sim como dos duplos discursos que existem no 4mbito da praxis para desarticular o pensamento humanista. Ayangamos pouco, embora novas mascaras fagam soar as vozes de maneira diferente. Lolita Aniyar de Castro Venezuela, 2005 15 Parte I Teoria criminolégica e controle social i A hist6ria ainda nao contada da criminologia latino-americana (1974-1986) O que pretendo narrar aqui nao é exatamente um conto de fadas. E a historia que até agora no foi contada de um movimento criminolégico de grande transcendéncia no continente latino-ameri- cano. Uma histéria na qual dizem que hd espides, na qual ha sem duvida mortos e feridos, mas na qual se informa que na América Latina acriminologia nao esta disposta a ficar sempre do lado do poder. Como testemunha presencial e militante dessa histéria, creio- me no dever de torné-la publica. A histéria é sempre um testemunho, direto ou referencial, e, por isso, um elemento responsavel pelo juizo de um acontecimento ou de um processo. Como todo testemunho, para ser valido, deve ser o mais pré- ximo possivel da verdade, e também o mais completo. Ao contré- rio, e para utilizar as precisas palavras dos cédigos penais, um tes- temunho é falso quando nega o verdadeiro, afirma o que niio é ver- dade ou oculta total ou parcialmente 0 que se sabe sobre os fatos que constituem seu objeto. Uma histéria pode ser uma simples narragao de acontecimen- tos, uma relagao de documentos, datas, listas, livros, nomes — isso que um historiador, j4 cldssico, definiu como “o peso morto da hist6ria”. Ou pode integré-los numa interpretagao coerente com uma maneira particular de entender a sociedade. Este segundo caminho n&o pode ser percorrido sem 0 primeiro. Mas, em ambos os casos, ho risco, nunca superado, da visdo parcial; no primeiro caso, toda selegao de fatos ou documentos implica um juizo de valor e, portan- to, faz-se de acordo com pautas epistemoldgicas e pessoais que necessariamente deixam na sombra elementos que poderiam com- plementar, iluminar ou contradizer o resultado. No segundo caso, toda interpretag4o esta comprometida e contaminada por conclu- 19 sdes tendenciosas. Por isso nunca se pode dizer que uma historia é totalmente verdadeira. Mas podemos pretender, pelo menos, contri- buir para conta-la com nosso conhecimento direto das coisas, sem ocultar o que sabemos. Recentemente apareceu um livro! que pretendeu, contraditoria- mente, ser o testemunho da América Latina e de sua criminologia. Dissemos “contraditoriamente” porque 0 livro todo esta orientado no sentido de demonstrar que nao existe uma criminologia latino- americana, mas uma transnacionalizagao do saber criminoldgico (e portanto do controle social), de acordo com os modelos impostos pelos centros de poder localizados nos chamados paises centrais, dos quais as sociedades cientificas internacionais seriam os instru- mentos de ordem e penetragao. Esta é uma interpretagado que nao hesitamos em considerar interessante; mas nao nos atreveriamos a afirmar que seja, linear e esquematicamente, a tinica varidvel que explique a criminologia vi- vida na América Latina. Nem, muito menos, que a historia narrada nesse livro seja a historia da América Latina e de sua criminologia. Certamente, a criminologia que geralmente se viveu na Améri- ca Latina (0 que nao é o mesmo que a “criminologia latino-america- na”) nao é uma excegiio a toda a problematica de dependéncia que caracterizou a ciéncia, a técnica e mesmo as politicas dos paises periféricos. Isto é um lugar-comum. Em boa parte, no que diz res- peito ao nosso campo, essa situac4o decorreu das atividades das sociedades cientificas organizadas, cujas sedes esto principalmen- tena Europa. Mas decorreu também, em grande parte, da necessi- dade de preencher um vazio evidente, e da dependéncia cultural e ideoldgica, que levou legides de latino-americanos a acorrerem aque- les centros de formagao profissional, fundamentalmente europeus (em outras areas da ciéncia 0 6xodo foi para os Estados Unidos), que pretendiam manter vivo seu prestigio sobre as glérias pseudo- cientificas debaixo das cinzas dos ultimos residuos do positivismo. Na Europa e nos Estados Unidos gestou-se a criminologia tra- dicional. Em nenhum outro lugar se havia feito criminologia. Como ' Rosa del Olmo. América Latina y su criminologia. México, Siglo XX1, 1981 (trad. bras. A América Latina e sua criminologia, Rio de Janeiro, Revan, 2004). 20 0 positivismo pretendia fazer ciéncia universal, pouco importava a realidade sociopolitica em que seus resultados se aplicaram. Como esta era uma criminologia a servigo do poder, os interesses locais viam utilidade na aplicagao dessa “ciéncia” além-fronteiras. E justo dizer que tampouco a criminologia desmistificadora, que se iniciara com os primeiros questionamentos apresentados pela chamada criminologia da reagdo social, surgiu nos paises periféri- cos. Como € 6bvio, os impulsos intelectuais de maior alcance geo- grafico surgem dos centros de grande poder de financiamento e difusdo. Também esta criminologia vem de fora. Mas 0 que importa na chamada nova criminologia (ou radical, ou critica, com seus matizes) é que, por motivos imanentes 4 me- todologia que lhe é propria, ela deve necessariamente construir-se em ¢ para cada sociedade, em cada momento histérico, em cada conjuntura especifica. Por esta razio, apenas o desenvolvimento de uma criminologia desse tipo pode ser chamada, em nosso continente, de latino-ame- ricana, por ter sido feitana América Latina e para a América Latina. Nao podemos dizer que a criminologia da América Latina éa que estd descrita minuciosamente no mencionado livro: a defensivista, por exemplo, a positivista, a antropolégica, a médico-legista, a correcionalista ou qualquer das variantes homélogas que se tradu- zem numa criminologia da diversidade e que reflete o modelo socio- légico do consenso. Criminologia latino-americana é, pelos motivos referidos aci- ma, aquela que tentou ser construida gragas a uma pesquisa funda- da em premissas muito distintas (o materialismo histérico, a filosofia critica, por exemplo, e que por certo tampouco sao de origem latino- americana), sobre arealidade sociopolitica concreta do continente. Essa criminologia nao aparece nessa historia”. Mas existe e ecoa ao longo de todo o continente, no qual ergueu-se com uma 2 Nao nos referimos somente a parte que é objeto da narragao desse capitulo, mas também a obras significativas de criminologia critica reali- zadas na Venezuela, por parte de pesquisadores universitérios como Tosca Hernandez, Mirla Linares, Carlos Villalba, Rosa del Olmo, Thamara Santos, Emperatriz Arreaza, Luis Gémez, Emilio Garcia Méndez, ‘Tito Cérdova, Argenis Riera, Elsa Villa, Maria Angélica Jiménez, Juan Manuel 21 poténcia inusitada um movimento que envolve alguns dos mais impor- tantes centros académicos latino-americanos de pesquisa, que tem a ver, ou podem tera ver, com os problemas da criminologia, ou do poder, ou do controle social, o que, em suma, é a mesma coisa. Sobre essa criminologia latino-americana, a tinica, a verda- deira, nés, que a acompanhamos de muito perto, queremos deixar aqui, como historia, um testemunho pessoal e direto, complemen- tar. Algo que permita ds gerag6es futuras conhecer os esforgos, as vezes herdicos e as vezes sangrentos, que essa luta contra as estru- turas ideoldgicas estabelecidas representou. Essa vontade de cons- truir, as vezes com infimos recursos; essa vontade de revelar ver- dades, mesmo quando isso implicava o sacrificio de algumas vi- das, como veremos mais adiante. Nao cremos que em qualquer outro lugar o processo de cria- ao de uma criminologia da libertagao tenha ocorrido com matizes mais dramaticos, Sem desmerecer os esforgos individuais, alguns realmente valiosos, orientadores, pioneiros, boa parte dessa hist6- ria da verdadeira criminologia latino-americana corresponde ao tra- balho do Grupo Latino-americano de Criminologia Comparada. Nossa hist6ria comega mais ou menos como todos os movi- mentos surgidos do nada, ou pouco menos, em 1974. Eo ano em que se realiza, em Maracaibo, o 23° Curso Internacional de Cri- minologia, sob os auspicios da Sociedade Internacional de Crimi- nologia, com uma comissdo organizadora constituida basicamente por integrantes do Instituto de Criminologia (nessa época, Centro Mayorca, José Francisco Martinez e algumas de minha autoria. E os livros de Fernando Rojas na Colémbia, por exemplo. Muitos desses trabalhos foram escritos antes do nascimento do Grupo Latino-americano de Criminologia Comparada, ou foram simulténeos a ele. Também a revista Capitulo Criminolégico, que, nos seus tiltimos anos, paralelamente ao desenvolvimento da criminologia critica, foi assumindo posigdes cada vez mais homogéneas nesse sentido. E programas da criminologia lecio- nada em algumas universidades venezuelanas, em que a parte critica ocu- pa lugar definitivo, como é 0 caso da Universidade de Zulia, em Maracai- bo, € estamos certos de que também em outras universidades latino-ame- ricanas. Um livro publicado em 1981 nao poderia ignorar todos esses desenvolvimentos, certamente parciais, mas de aberta orientagdo critica. 22 de Pesquisas Criminoldégicas) da Universidade de Zulia, mas tam- bém de outras universidades auténomas venezuelanas. O curso con- centrou-se no tema da violéncia>. Fomos indicados para organizar um curso internacional na Venezuela sem que se definisse o tema. Sugerimos o da violénciae o temério foi acertado e discutido pelo comité organizador, forma- do, como dissemos, por membros de institutos de criminologia das universidades de Zulia, Central de Venezuela, Carabobo e México. Nao houve ingeréncia de entidades transnacionais, nem tentaculos interpostos através da Sociedade Internacional de Criminologia ou do Centro Internacional de Criminologia Comparada, que soube- ram do tema e do temario posteriormente, através dos seus respec- tivos institutos universitarios. A selegao dos conferencistas das manhis foi feita atendendo 4 pluralidade de orientagdes que um tema téo complexo merecia. Foram eles Jean Pinatel, Denis Szabo, Philippe Robert, Stanley Cohen, Franco Basaglia, Severin-Carlos Versele, Nils Christie, Karl Otto Christiansen, José Luis Vethencourt, Rosa del Olmo, Francis- co Canestri, Robert Staples, V. V. Stanciu, S. Giora Shoham, Héctor A. Nieves, Luis Geraldo Gabaldén. J4 4 primeira vista se pode veri- ficar que todas as correntes de pensamento criminoldgico da época estavam ali representadas. Entendeu-se que a violéncia era fundamentalmente estrutural e que suas manifestagdes principais eram a violéncia institucional e institucionalizada, sem se desprezarem as variantes interpessoais da agressdo, consideradas intensamente mediatizadas pelas primeiras, nao apenas em sua forma de aparecer como, basicamente, através das definigdes. Foram selecionados igualmente crimindlogos de dife- rentes paises latino-americanos para que, no period da tarde, expu- sessem suas respectivas realidades quanto ao fenédmeno estudado. 3 Todos os fatos aqui expostos sfo avalizados por nossa propria expe- riéncia pessoal, na condig&o de diretora desse Instituto e do menciona- do curso, e por documentos oficiais publicados em Los Rostros de la Violencia (vol. 1 ¢ 11), do Centro de Pesquisas Criminolégicas da Univer sidade de Zulia, em 1976, e em um Boletim Informativo do mesmo Centro de Pesquisas Criminolégicas dedicado especialmente a esse evento, 23 Note-se que em 1974 nenhum centro oficial ou académico da América Latina, 4 excegiio de alguns casos individuais (j4 mencio- nados) na Venezuela, havia trabalhado sobre parametros criminol6- gicos afastados do positivismo ou do defensivismo. Note-se igual- mente que em muitos paises latino-americanos nao existia naquela data nenhum desenvolvimento, nem sequer como reflexo dos pai- ses centrais, do trabalho criminoldgico. Intmeras universidades care- ciam ainda de uma cétedra de criminologia. A pesquisa era prati- camente inexistente. Podemos dizer que, sem duvida alguma, 0 23° Curso Interna- cional de Criminologia de Maracaibo representou 0 inicio, na Amé- rica Latina, de um esforgo combinado para entender a criminologia de forma critica, nao dependente das definigdes legais, de acordo com uma concepgao que a colocava, pela primeira vez, no terreno sociopolitico*. Otranscorrer do curso foi especialmente contraditério, e for- tes criticas se levantaram contra as comunicagdes apresentadas pelo Brasil (que havia circunscrito 0 tema aos delitos de transito, num momento em que o fenémeno da violéncia politica nesse pais se destacava como uma das mais agudas e sangrentas da época); e de Porto Rico, cujos representantes alegaram no ser violéncia a imposigao ao seu pais do inglés como lingua e do délar como moe- da, porque sua nacionalidade era, em primeiro lugar, norte-ameri- cana. Uma afirmagao dessa indole no contexto da América Latina tinha um sentido de provocag&o que n&o escapou aos quase 300 latino-americanos presentes ao evento. Entre as conclusdes aprovadas, uma se destinava a eliminar das atas as comunicagdes acima mencionadas. Isso, de saida, era totalmente impréprio e, efetivamente, em nossa intervengao final, consideramos invalida uma concluso que pretendia tornar inexis- +O 23° Curso Internacional de Criminologia, organizado em Maracaibo (Venezuela) de 28 de julho a3 de agosto de 1974, pela dra. Lola Aniyar de Castro, e centrado no tema da violéncia, fez eco as idéias de uma nova tendéncia que se esta manifestando em criminologia: a tendéncia criti- ca”. Jean Pinatel, Revue de Science Criminelle et de Droit Penal Comparé. Paris, Sirey, 1975, p. 189. 24 tente algo que havia estado presente e que por isso mesmo provo- cara importantes discussdes, Além disso, porque era uma sugest&o alheia ao jogo democratico que havia permitido, durante o curso, a exposi¢do de todas as posigdes, das mais criticas as mais conser- vadoras. Mas nossa afirmagio nao se limitou a declarar invalida aquela conclusao, Outras palavras, que expressavam claramente nosso compromisso com posi¢6es criticas, acompanharam o ar- gumento’, * “Nos corredores se debateu — talvez com mais insisténcia que nas proprias sess6es — qual havia sido a verdadeira natureza de algumas das proposig6es apresentadas. ‘O poder ¢ o poder de definir’, dizia, no pri- meiro dia, em sua conferéncia, o prof. Christie. Os representantes do establishment criminolégico afirmam que as sessdes da tarde tiveram um contetido que pode ser considerado mais politico que cientifico. Evidentemente, o establishment tem hoje o poder de definir 0 contetido de nossa gestio intelectual. Isso é importante porque a Sociedade Inter- nacional de Criminologia, que possui um estatuto consultivo das Na- ges Unidas, nao esta disposta a patrocinar ou divulgar problemas con- siderados de estrita natureza politica que pudessem comprometer a harmonia interna do concerto de nagdes que a integram; portanto, sugeriu que as recomendagdes aprovadas fossem consideradas provenientes das Jornadas Venezuelanas de Criminologia e no do Curso Internacional. Eu me sentiria desonesta se expusesse hoje diante dos senhores que as propo- sigdes dos 251 participantes, representantes de 24 paises do mundo, ins- critos formalmente num Curso Internacional que incorporou essas Jorna- das (que s6 nominalmente apareciam como tais) € que votaram questdes que abrangiam evidentemente o Ambito internacional, propostas em gran- de parte por nfio-venezuelanos, com a inteng&io de que fossem difundi- das nesse nivel, fossem proposigdes de um simples encontro regional de crimindlogos. Mas ocorre também que esses 251 participantes tive- ram aqui o poder de definir 0 que é ciéncia ¢ o que é politica, E o interesse sociopolitico nfo é alheio ao fazer criminoldgico; antes, é 0 suporte fun- damental dessa nova concepgao de criminologia. Basaglia dizia ontem, com otimismo, que em Maracaibo a velha criminologia havia morrido e que uma ciéncia alternativa se abria para enxergar 0 homem numa di- mensao mais humana. Efetivamente, os problemas do desvio e do con- trole social ja nfio podem deixar de ser enfocados a partir da perspectiva do poder”. Los Rostros de la Violencia, vol. Il. Maracaibo, Centro .de Pesquisas Criminolégicas da Universidade de Zulia, 1977, p. 294. 25 Oencontro dos latino-americanos nesse evento, apresentan- do comunicagdes sobre um mesmo tema, mas com esquemas de desenvolvimento diferentes, e a circunstancia de que o tema em questao era justamente a matéria central para entender toda a pro- blematica histérica e sociopolitica latino-americana, incluidos os aspectos fundamentais de uma nova perspectiva da criminologia, fizeram surgir a idéia de se realizar uma pesquisa comparada entre nossos paises. Esta deveria ter um tinico esquema e ser discutida em semindrios periddicos, nos quais se iriam afinando tanto os con- ceitos quanto os instrumentos de andlise. Para isso organizou-se, improvisadamente, uma reuniao paralela ao curso. Muitos dos presentes nessa reuniao eram apenas juristas ou socidlogos. Poucos eram “criminélogos”, no sentido que se costu- ma entender sobre essa especialidade. Nessa reuniao decidiu-se que o Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia, organizador daquele curso, se encarregaria da coordenac&o latino-americana. O Centro Internacional de Criminologia Comparada, ent&o, se interessou por patrocinar 0 pro- jeto no marco de sua competéncia internacional. Esse patrocinio foi certamente importante para mobilizar o apoio das universidades a iniciativa. Com esses elementos, a primeira tarefa de nosso Instituto foi selecionar os especialistas que assumiriam 0 projeto em cada pais. Rejeitamos trabalhar com organismos dependentes de gover- nos, conhecendo a instabilidade ea pouca liberdade que geralmente afetam esses centros no continente. Voltamo-nos para as universi- dades, especialmente porque a antiga tradi¢ao de autonomia garan- tia a liberdade de pesquisa. Em algumas, “inventaram-se” crimi- nélogos: sociélogos, juristas, mesmo economistas, todos os que se interessaram em enfrentar a aventura de nos entender, num con- texto em que as diversidades culturais, geogrficas, étnicas, politi cas e econémicas pareciam ser mais significativas que uma historia comum de exploragao e dependéncia. A experiéncia demonstrou 0 contrario. Sucessivos semindrios realizados em Quito (em 1976, com a organizagao da Universidade Central do Equador e seu Instituto dirigido por Hernando Rosero Cuevas), Lima (em 1977, gragas ao patrocinio da Universidade San 26 Martin de Porres e 4 coordenacao de Juan M. Portocarrero Hidalgo e Daniel Jiménez Bruno) e Bogotd (em 1978, com a hospitalidade e a organizagao da Universidade Externado da Colémbia e do diretor de seu Instituto, Alfonso Reyes Echandia) viram concretizar-se lenta porém solidamente esses esforgos, demonstrando a vital importan- cia das semelhangas estruturais que proporcionavam uma unidade indiscutivel ao continente latino-americano. O esquema original do projeto foi realizado na Venezuela pelos integrantes do Instituto da Universidade de Zulia, com a participa- ao de professores da Universidade Central da Venezuela, Agustin Blanco, Rosa del Olmo e Héctor Silva Michelena. Esse esbogo foi aperfeigoado em Quito, com a colaborago de Jorge Enrique Tor- res e Xavier Ossandon, os quais, com a professora del Olmo, fo- ram indicados para a elaboragao do texto final. Especificamos aqui em detalhe a origem desse projeto e os responsaveis por ele porque no livro antes mencionado assevera-se que “a motivacao inicial do Centro Internacional de Criminologia Comparada para patrocinar esse tipo de pesquisa foi o interesse de conhecer as razdes da vio- léncia na América Latina, com vistas a buscar formas de contrar- resta-las e assim evitar a ‘intranquilidade social’. Entretanto, a par- ticipag&o de uma série de especialistas latino-americanos com uma visdo critica e comprometida deu lugar a produgiio de trabalhos que pouco podem ajudar a formular politicas de defesa social den- tro dos limites em que se vinha atuando”®. E, em outra parte, diz-se que foi feito “de acordo com a nova politica de que fossem especi- alistas ‘nativos’ os encarregados de levar a cabo as pesquisas”” Certamente, toda pesquisa € publicada e circula. Pode-se uti- lizar seus resultados de muitas maneiras. Nao se pesquisa para engavetar projetos de transformacao social, passiveis de serem dis- cutidos apenas em magonarias de iniciados, nem para transmitir de “Del Olmo, op. cit, p. 218. 7 Ibidem, p. 216. O livro de José Maria Rico, Crimen y justicia en América Latina (México, Siglo XXI, 1977), conclufdo em 1976, data em que se aper- feigoava 0 esbogo do projeto em Quito, nao levou em conta os resultados de nossa pesquisa, que entio ainda nao estava desenvolvida. 27 boca a ouvido resultados clandestinos de uma verdade tao grande, tdo 6bvia e tao difundida como a espoliagdo historicamente perma- nente de nossos paises; a explorag&o escancarada por parte do po- der nacional; a dependéncia dos poderes transnacionais; 0 estimulo constante do equilibrio instavel entre paises limitrofes em beneficio da inddstria armamentista e a violéncia-agress4o aos miseraveis da América Latina, a contra-violéncia da desnutrigao, do alcoolismo, da ignorncia e da midiatizagao cultural. Nao houve financiamento internacional para esse projeto; cada universidade contribuiu com suas possibilidades econ6émicas por- que, internamente, o tema era interessante. E assim que se constitui, quase espontaneamente, o Grupo Latino-americano de Criminologia Comparada. Esse projeto se realizou e cada pais se comprometeu a publi- car sua monografia nacional®, Dele participaram 14 paises do con- tinente: Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, Peru, Colémbia, Venezuela, Guiana, Reptiblica Dominicana, Panama, México, El Sal- vador, Guatemala e Guadalupe. Alguns apresentaram a monografia concluida, outros apenas parcialmente. Quase todos estiveram re- presentados na totalidade dos seminarios periddicos e dos debates, alguns dos quais nao foram transcritos, a pedido de participantes que temiam represdlias em seus paises — como foi 0 caso da Gua- temala, com reduzido grau de desenvolvimento politico e, em con- trapartida, um elevado nivel de repressdo a qualquer tipo de exposi- ¢4o que representasse uma deniincia dos excessos do poder. O nivel de consciéncia e de conhecimento dos participantes foi sendo aperfeigoado ao longo desses anos. Como experiéncia, pode-se dizer que foi, de um lado, pedagégica para todos nés: ensi- nou muito sobre o poder, ensinou, sobretudo, que a criminologia n&o é uma disciplina inocente. Nao sé porque a criminologia tradi- cional é parte importante da vertente ideolégica e politica do con- trole social, mas porque a nova, a critica, a libertadora, como ini- miga do poder, pode ser perigosa para os que a exercem. * O Instituto de Zulia publicou também a parte da Violéncia Interestatal de Incidéncia Transnacional, projeto paralelo desenvolvido por um de seus pesquisadores, E. Garcia Méndez. 28 Com efeito, em 1977, Jorge Enrique Torres Lezama, destaca- do jurista e socidlogo guatemalteco desse grupo, foi vitima de um estranho “acidente de transito”. Ele e sua mulher ficaram grave- mente feridos. Praticamente incapacitado para caminhar, Torres exilou-se na Costa Rica, onde continuaria a exercer a docéncia uni- versitaria. Atilio Ramirez Amaya, professor da Universidade de El Salvador, iniciador da catedra de criminologia—a partir de sua ex- periéncia no Grupo de Criminologia Comparada—e de um pequeno grupo de pesquisa com alunos, uma atividade realizada de forma acentuadamente critica, e juiz de instrugao, responsavel por suma- riar 0 assassinato politico do arcebispo Romero, sofreu atentado com metralhadoras em sua casa, precisando sair do pais com sua familia, primeiro para a Costa Rica, depois para a Nicardgua. Guillermo Monzon Paz e Jorge Paldcios Motta, professores de direito penal e de criminologia na Universidade de S40 Carlos, na Guatemala, tiveram menos sorte: foram assassinados a tiros, a pou- cos dias de intervalo um do outro, no primeiro semestre de 1981. Monz6n Paz, especialmente, apresentara trabalhos e documentos sobre a criminalidade e 0 exercicio do poder na Guatemala, tanto no 23° Curso Internacional de Criminologia como nos semindrios do Projeto Violéncia, do Projeto Delito de Colarinho Branco e dos de Criminologia Comparada dos paises do Caribe. Todos eles foram nervos e sangue do Grupo Latino-america- no de Criminologia Comparada, colegas sérios e estimados, ho- mens de ciéncia que conheciam as implicages politicas da ciéncia. Sua dispersao ou desaparecimento foram um duro golpe para os que continuamos a tarefa. Uma importante denincia, de caréter politico, como devia ser, foi feita sob 0 titulo “Criminologiae repressdo na América Latina”, por Denis Szabo e José Maria Rico, e enviada a muitas revistas cientificas para difusdo internacional. Num dos pargrafos, diz: “Tendo tido 0 privilégio de participar desse despertar da criminologia latino-americana e de constatar as imensas dificuldades da tarefa empreendida, queremos denunciar de maneira enérgica — pois, de- safortunadamente, é nossa tinica agao possivel — esses assassina- tos, essa repressdo da qual nossos colegas da América Latina fo- ram e ainda so vitimas. Queremos igualmente que os crimindlogos 29 ¢ os juristas do mundo inteiro conhegam esses horrores e se indig- nem como nés (...). E extremamente perigoso fazer criminologia na América Latina. No que nos concerne, temos a firme intengao de continuar a tarefa empreendida em 1974, apoiando permanente- mente nossos amigos e colegas latino-americanos, participando em sua missao de desenvolver e reafirmar uma criminologia propria, mas também dando a conhecer a comunidade internacional as difi- culdades em que se encontram nessa tarefa e os nomes dos marti- res que marcam esse caminho”. Por outro lado, seja por insuficiéncia de recursos para a pes- quisa, seja pelas caracteristicas do exilio de alguns dos participan- tes, especialmente chilenos e argentinos, alguns sairam do grupo de pesquisas comparadas. A historia nao termina af, certamente. E felizmente. Apesar das baixas sofridas pelo grupo desde 1977, uma nova pesquisa se inaugurou sobre as bases teéricas que a primeira havia proporcio- nado. Trata-se do projeto Delito de Colarinho Branco na América Latina, cuja estrutura foi esbogada originalmente por esta que aqui escreve. Para aperfeigoar esse trabalho, contribuiram os pesquisa- dores da Universidade de Zulia e, em Bogoté, os integrantes do Grupo Latino-americano que desde 1978 recomegaram o trabalho de averiguar as relagdes entre o poder politico e econédmico na América Latina (infra-estrutura econdmica) e, portanto, como isso determinava: 1°. Uma estrutura legislativa e institucional em geral que extrai da esfera penal ou penitenciaria as agdes delitivas dos poderosos (estrutura juridico-politica); 2°. Uma transmissao dife- rencial de valores em relagao a esses delitos e os convencionais (superestrutura ideoldgica); 3°. A influéncia das transnacionais; 4°. Os falsos delingiientes de colarinho branco como bodes expiatérios que facilitam a impunidade dos delingitientes maiores; 5°. Anatureza puramente simbélica da lei, o que se evidenciou em importantes subprojetos sobre 0 delito ecolégico (México, Panama, Venezuela), delitos contra a seguran¢a industrial (Venezuela), fraudes contra o consumidor (Colémbia e Costa Rica). Realizaram-se semindrios desse projeto no Rio de Janeiro (1979), sob 0 patrocinio do Instituto de Ciéncias Penais do Rio de Janeiro, dirigido por Heleno Fragoso, na Universidade Candido 30 Mendes; em Valéncia (1980), organizado pelo Instituto de Ciéncias Penais e Criminoldgicas da Universidade de Carabobo, na Venezuela, representado por seus diretores, Héctor Nieves e Julio Mayaudén; €no México (1981), sediado pela Universidade Aut6noma Metro- politana e seu Departamento de Ciéncias Jurfdicas e Sociais, com organizagao de Luis Marcé del Pont, Luis de la Barreda e Zulita Fellini de Righi. Como se pode ver, nao é um grupo marginal de pseudo- crimindlogos que esta escrevendo, desde 1974, esta Histéria da Criminologia Latino-americana. E uma equipe sdlidae séria, avalizada por prestigiosas universidades, de uma perseveranga no tempo e no propésito que é tinica na histéria da criminologia mundial. Novos especialistas se incorporaram ao grupo, atraidos pela seriedade dos trabalhos, todos sustentados por verdadeiras pesquisas? . Como corolario desse grupo, surgiu no México, em 1981 ,um manifesto que especifica e retine os postulados e os militantes de uma Criminologia da Libertagao. Esse manifesto implica um novo grupo, mas nao a morte do anterior. O novo se dedicaré a constru- go de uma teoria critica do controle social na América Latina. O ° Luis Gémez, Oscar Moreno, José Isidro Sazbon, Mariano Moreno, Hernan Pardo, Hugo Madriaga, Roberto Bergalli, Luis Marcé del Pont, Heleno Fragoso, Elisabeth Sussekind, Esther Kosovski, Juarez Cirino dos Santos, José Maria Rico, Alfonso Reyes, Irma Patino, Emiro Sandoval, Edgar Saavedra Rojas, Marfa Luzsabel Pérez, Myriam Ramos de Saavedra, Enrique Castillo, Ana Isabel Garita, Dora Maria Wedel, Key Doorten, Hernando Rosero, Luis Muiioz, Efrain Torres, Guillermo Monzén Paz, Jorge Palacios, Michael Parris, Luis Rodriguez Manzanera, Marcela Marquez, Carmen Antony, Atilio Ramirez Amaya, Lola Aniyar de Castro, Audelina de Suérez, Emperatriz. Arreaza, Elsa Villa, Tito Cérdova, Carlos Sulbardn, Guillermo Ramos, Maria Angélica Jiménez, Julio Mayaudén, Fernando Tocora, Emilio Garcia, Carlos Valenzuela, Gerardo Ruiz, Luis Lachner Trejos, Rodrigo Bucheli Mera, Fabién Guido Flores, Alfredo Jaramillo, Arellano Estuardo, Xavier Ossandén, Eltsidiet, Anibal Torres, José Davalos, Victor Vega, Lauro Escobar, Oswaldo Bolagay, Eric Lepointe, Jorge Enrique Torres, David J. Dodd, Emilio Champigneul, Daniel Jiménez B., Ricardo Vazcones, Juan Portocarrero, Rafael Rivera, Héctor Cabral Ortega, Thamara Santos, Rosa Del Olmo e Héctor Silva participaram permanente ou ocasionalmente dos projetos. 31 Grupo de Criminologia Comparada continuara fazendo suas pes- quisas, as quais, pouco a pouco, iam fornecendo fundamentagao a teoria que se procura construir. Considerando todas essas informagées, seria interessante agora verificar como essa circunstancia pode contribuir para uma maior subjugagao do continente latino-americano, para preservar a ordem estabelecida e silenciar todo esse trabalho de contra-ideologia que, nesse terreno pantanoso que é a criminologia institucionalizada, o grupo de atreveu a difundir. Sao exatamente os mais antigos membros desse grupo que se filiam ao Manifesto de Criminélogos Criticos Latino-americanos, no México, em 1981. Originalmente redigido por Bergalli, Julio Mayaudon, Emiro Sandoval e Lola Aniyar de Castro, o manifesto foi aprovado, com pequenas modificagées, pelos participantes da reuniao do México. Modificagdes que obedeceram a conveniéncia de aglutinar o maior numero possivel de pesquisadores progressistas, com trabalhos de forte contetido denunciativo e que, entretanto, nao queriam estar associados a definigées politicas previamente rotuladas. O manifesto estabelece o seguinte: “1, Desde 1976, um grupo de interessados em questdes criminolégicas vem trabalhando sobre a violéncia e a criminalidade de colarinho branco na América Latina. Esse grupo, com a coordenagao imediata do Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia e sob 0 patrocinio do Centro Internacional de Criminologia Comparada, superou, felizmente, os estreitos marcos da criminologia tradicional, que impera oficial- mente neste subcontinente, até chegar a preocupar-se com os as- pectos relativos ao controle social em geral. Alguns dos participantes desse grupo decidiram pela organizagao de um movimento criminolégico auténomo de contetido critico, in- dependentemente da continuagao, em paralelo, do trabalho investiga- tivo do Grupo Latino-americano de Criminologia Comparada. O presente texto contém um resumo das preocupag6es que conduziram a constitui¢do desse novo movimento. 2. As realidades sociais da América Latina, embora diversas 32 entre si, respondem a uma légica uniforme que foi ditada pela poli- tica que divide o mundo em paises centrais e periféricos, embora estes Ultimos — entre os quais os latino-americanos — tenham intrin- secamente nao apenas as possibilidades materiais mas, também, as capacidades individuais que lhes permitiriam converter-se em uma forga homogénea, a fim de fazerem valer os interesses regionais. As situagdes nacionais internas corresponderam, coeren- temente, a essa légica. Entre elas sobressairam, em geral, os privi- légios de grupo em detrimento das maiorias. As distintas oligarqui- as constituiram sempre os pontos de penetragao do dominio dos paises poderosos e, salvo poucas excecées, nao enfrentaram mai- ores obstaculos para impor as polfticas mais apropriadas a seus propésitos de usufruto das riquezas naturais e de exploragdo dos recursos humanos. 3. No discurso da centralidade e da periferia do poder, inscre- ve-se a questo do controle social como um tema prioritario. O tipo de disciplina necessdria para que as relagdes sociais nos paises perifé- ricos se mantenham dentro do marco previsto pelas poténcias impe- riais condiciona 0 tipo e a forma dos sistemas de controle. As rela- g6es de producao baseadas na exploragaéo do homem e geradoras de desocupagaio, analfabetismo, mortalidade infantil, grandes mas- sas de marginalizados, etc., so, entre outros, os meios titeis com que se mantém a submissao, se fortalece o poder de certas minori- as e através do qual o capital transnacional obtém elevados lucros. E tal como a atualidade o demonstra, salvo em casos isola- dos, a violéncia estatal e a repressao constituiram as ferramentas basicas daquele controle. 4, Tudo 0 que manifestamos, entretanto, ndo significa que, embora nas situagdes mais extremas, nao se utilize o aparelho do Estado como um mecanismo de cobertura ideolégica. O direito penal serviu de instrumento para aprofundar as diferengas sociais e a ciéncia juridico-penal justificou a interven¢ao punitiva oficial em auxilio a privilégios minoritarios. Uma clara demonstracao disso éa prote¢fio que os cédigos penais latino-americanos dao a determina- dos interesses juridicos particulares, enquanto mantém sem prote- ¢&o importantes necessidades coletivas; maxime que as descrig6es legais omitem muitas das condutas que ofendem bens de carter 33 social. Entretanto, é necessdrio reafirmar que as garantias supostas pelo direito penal liberal devem ser definidas de modo a que a opres- sao e 0 autoritarismo estatais possam ser combatidos. 5. A legitimagao de um direito penal desigual para a América Latina foi corroborada pelo papel subalterno que a criminologia tra- dicional desempenhou. A determinagao de uma criminalidade a-his- térica foi formulada a partir de modelos e tipologia construidos pelo sistema — particularmente pelo carcere —, os quais geralmente se aplicam a quem ja foi previamente marginalizado pela ordem social constituida. 6. O movimento que se inicia teré como objetivo a construgao de uma teoria critica do controle social na América Latina. Portanto, entre outras coisas, tera como objeto 0 estudo e a dentncia das situag6es referidas, 0 assinalamento do papel legi- timador cumprido pela criminologia tradicional e a elaboracao de estratégias alternativas para o controle social na América Latina. Desse modo se procuraré reunir valiosos esforgos individuais que muitos latino-americanos esto levando adiante. As pautas basicas que hao de orientar 0 trabalho conjunto devem estar determinadas pela erradicag&o das ideologias positivista ou defensivista, que determinaram o tratamento patolégico da criminalidade e a falsa concepg&o médica e ressocializante da exe- cug&o penal; e, definitivamente, pela erradicagao de toda ideologia que tenda a converter a questdo criminal em um simples problema de ordem publica. O movimento deverd dirigir seus esforgos ao exame das rea- lidades especfficas de cada pafs. Daf surgirao propostas para 0 emprego do sistema penal, as quais deverao ter em conta, funda- mentalmente, a protego dos direitos dos setores sociais mais nu- merosos e vulneraveis, que sao os que esto verdadeiramente inte- ressados em propostas alternativas de politica criminal, numa luta radical contra a criminalidade, na superacao dos fatores que a ge- ram e, por fim, numa transformacao profunda e democratica dos atuais mecanismos do controle social do delito que, ao fim e ao cabo, so os que o criam e multiplicam. Para esses fins se procurara a maior difusdo possfvel, tanto nas instancias cientificas como em nivel de massa, dos resultados 34 das pesquisas pertinentes, assim como dos postulados que funda- mentam o movimento. México, 1981”. ‘No momento da aprovagao desse manifesto, acordou-se que as reunides de ambos os grupos, o de Criminologia Comparada e 0 de Criminologia Critica, fossem simultdneas, a cada ano, j4 que os participantes de ambos eram, numa altfssima porcentagem, os mes- mos. Assim, a primeira coordenagao do movimento coube a Marcela Marquez, diretora do Instituto de Criminologia da Universidade do Panama, que deveria organizar, no ano seguinte, o Semindrio de Pesquisas de Criminologia Comparada correspondente. Porém, nessa oportunidade no houve espago para a outra reunido. Um ano de- pois, em 1983, no semindrio patrocinado pelo Ilanud (Instituto La- tino-americano das Nagdes Unidas para a Prevencao do Crime e Tratamento do Delinqiiente), na Costa Rica, combinou-se aceitar 0 oferecimento da sede, feito por Juan Guillermo Sepiilveda (que assis- tia pela primeira vez a nossos reuniGes), para o semindrio de 1984 e o Segundo Encontro de Criminélogos Criticos, na Universidade de Medelin. Assim, ele se torna 0 segundo coordenador do grupo. Definiu-se também que o tema do Encontro de Crimindlogos Criticos trataria da “Educagéio como forma de controle social”, iniciando-se assim 0 programa, previsto no manifesto, de desen- volver a teoria critica do controle social. Partiamos, dessa maneira, da andlise de uma das formas mais amplas de controle socializado e aceitavamos por essa via que o controle informal seria o primeiro passo para entender o controle social formal. O Encontro de Medelin realizou-se juntamente com um Pri- meiro Semindrio de Criminologia Critica, 0 Gnico publicado pela Universidade de Medelin. Concomitantemente, decorre o Congres- so Mundial de Delinqiiéncia de Colarinho Branco, no qual seriam discutidos os resultados parciais da pesquisa sobre corrupgao ad- ministrativa. Como havia mais de 300 assistentes, os pesquisadores mudaram as regras tradicionais de seus pequenos encontros anuais de trabalho e limitaram-se a apresentar suas conclusées parciais, em forma de conferéncias. Em 1985, a Corte Suprema de Justiga da Nicaragua candidata- se a sediar 0 Terceiro Encontro de Crimindlogos Criticos e também 35 um dos Semindrios de Criminologia Comparada dos Paises do Caribe, que se realizam na regiaio a cada trés anos —o primeiro foi em Guadalupe, 0 segundo em Sao José, 0 terceiro em Porto da Cruz (Venezuela), o quarto em Mandgua. Desses seminérios parti- ciparam sempre os mesmos criminélogos do Grupo Latino-ameri- cano de Criminologia Comparada que residem nessa area, tratando de temas relacionados 4 administragao da justiga, bastante enciclo- pédicos, alids, considerando-se a limitac&o da pesquisa’ criminolégica nesses paises. A observagao de Argenis Riera'® sobre o interesse desses semindrios no Caribe, Washington e de associagGes interna- cionais de criminologia, motivado pelo perigo representado pela in- dependéncia de dois paises da area (Cuba e Nicaragua), nao deixa de ser surpreendente: como coordenadora de pesquisas compara- das na América Latina, posso comprovar, através de cartas, que 0 semindrio de Mandgua foi solicitado expressamente pelo governo daquele pais. E os que participaram desse encontro testemunharam 0 pedido do vice-ministro da Justiga de Cuba para que a proxima reunido fosse em Havana. A partir do seminario de Managua, a nova coordenagao do Grupo Critico vai, por decistio unanime, para a vice-presidente da Corte Suprema de Justica da Nicaragua, Vilma Nufiez de Escorcia. A doutora Nuifiez ja havia participado em dois seminarios do Grupo de Criminologia Comparada, 0 do México (em que se aprovou 0 Manifesto) e o do Panama. A Nicaragua também fora representada nos encontros de Sao José, por Carmen Lépez e Humberto Obreg6n. ‘A doutora Nufiez é delegada nacional da Sociedade Internacio- nal de Criminologia, organizagio cientffica que reane crimindélogos dé todos os paises, capitalistas ou socialistas, e de todas as ideolo- gias, sendo talvez.a tinica organizagao que compreende o mais amplo espectro de escolas e tendéncias criminolégicas, as quais tem aco- ‘© Em Hacia una criminologia de las contradicciones, livro publicado conjuntamente com del Olmo em 1985, edigo dos autores, p. 86. Tudo isso dé a impressio de que ha uma espécie de “terrorismo criminolégico”, apon- tando-se interesses perversos onde nfo os ha. O que, lamentavelmente, destréi mais do que constréi o desenvolvimento do pensamento crimino- légico progressista: precisamente por pessoas que dizem filiar-se a ele. 36 Ihida em todas as oficinas e sessdes de seus congressos, semina- trios e encontros regionais e internacionais. Quanto ao Grupo Latino-americano de Criminologia Compa- rada, cuja coordenagdo exercemos por dez anos, passou-se a alternancia de coordenadores a cada dois anos. Em 1985, quando se inicia o novo projeto “Controle Social na América Latina” (para continuar dando apoio investigativo a teoria critica do controle so- cial), o coordenador é Luis Rodriguez Manzanera, do México. O seminério seguinte foi em Havana, sob os auspicios do Ministério da Justiga de Cuba, que recebe igualmente o Grupo de Criminologia Critica, conjuntamente, em 1986. O préximo semindrio foi marca- do para Maracaibo, em 1987. As pesquisas desse grupo, que, como foi dito, seriam publi- cadas pelas equipes de cada pais, tiveram assim ampla difusao. Capitulo Criminolégico, revista do Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia, dedicou 0 nimero 7-8 ao projeto sobre De- lito de Colarinho Branco, o nimero 11-12 a trabalhos do Encontro de Medelin, e publicou uma colecao de quatro livros sobre 0 Proje- to Violéncia. Mais de 200 comunicados periddicos sao enviados pela América Latina e parte da Europa, por iniciativa das sucessivas coordenagées. Acaba ser publicado o resultado do seminario “Deli- to de Colarinho Branco” realizado na Universidade Auténoma Me- tropolitana (UAM) do México, sob a coordenagao de Luis Marco del Pont. Também o Ilanud e a Revista de Derecho Penal y Criminologia, da Universidade Externado, da Colémbia, divulga- ram amplamente as pesquisas!!. Pretendemos narrar ao longo desse livro, mesmo quando seja apenas baseado em nossa participagao, a histéria que esse grupo experimentou relativamente ao crescimento tedrico sobre 0 con- tetido que deveria ter a criminologia latino-americana. De alguma maneira, consideramo-nos observadores privilegiados desse pro- '' Isso corrige a desinformagao de del Olmo em Hacia una criminologia de las contradicciones, op. cit., p. 69. Além disso, recordamos que os Annales Internationales de Criminologie dedicaram um nimero ao se- minario sobre O Direito de Punir, realizado em Mérida (Cenipec), em 1981, sob coordenagdes semelhantes. 37 cesso, ndo apenas por ter iniciado, em 1974, o que posteriormente foi chamado de Grupo Latino-americano de Criminologia Compa- rada (recrutando membros, sugerindo temas para projetos e coor- denando, por dez anos, as relagdes entre paises e entre os grupos universitarios que patrocinaram semindrios anuais de pesquisa); nao apenas por isso, mas porque, formando parte do pequeno grupo que redigiu 0 projeto do Manifesto dos Crimindlogos Criticos Lati- no-americanos, assistimos, desde entao, e sem excegao, a todas e cada uma das reunides de trabalho de ambos os grupos. Essa historia é também a historia da “criminologia da libertagao”. Para ela chegaram, parcial ou intensamente, muitas contribui ges tedricas — algumas escritas, outras orais —, de varios parti pantes dos grupos, talvez mais no desenvolvimento dos projetos comparados do que nas escassas reunides do Grupo Critico. Pode- mos citar especialmente, entre outros, Roberto Bergalli, Thamara Santos, Emperatriz Arreaza, Francisco Delgado, Luis Marcé del Pont, Emiro Sandoval, Luis Gémez, Carlos Sulbaran, Emilio Garcia Méndez, Carmen Antony, Edgar Saavedra Rojas, Antonio Mufioz, Fernando Tocora, Luis de la Barreda e nds mesmos. Raul Zaffaroni aceita integrar o Grupo Comparado em 1984, quando da produgao de seu préprio ¢ hist6rico projeto latino-ame- ricano, patrocinado pelo IIDH, “Direitos Humanos e Sistemas Pe- nais na América Latina”, projeto esse que traz contribuigdes subs- tanciais, embora nao plenamente incorporadas, aos objetivos de uma criminologia da libertagao. De fora, Alessandro Baratta foi, indubitavelmente, o crimind- logo europeu mais influente na criminologia latino-americana de vanguarda. Ha alguns anos participa pessoalmente das reunides do Grupo de Criminologia Comparada (seminarios de Sao José, Medelin e Managua) e também do Grupo Critico. E interessante notar sua afinidade com algumas linhas teéricas latino-americanas: sua mag- nifica conferéncia na reuniao de Managua, em 1985, denominava- se “Contribuig6es para a Criminologia da Libertago”. E 0 tema dos direitos humanos, certamente redefinido numa perspectiva critica, foi incorporado ao seu pensamento. 38 Em dezembro de 1985, o Cenipec (Centro de Pesquisas Pe- nais e Criminolégicas da Universidade de Los Andes, Mérida, Venezuela) realiza um semindrio sobre a criminologia latino-ameri- cana, no qual, além dos crimindlogos criticos habituais, intervém um canadense, Gordon West, para sugerir “Algumas implicagdes da experiéncia nicaraguense para a criminologia latino-americana”, experiéncia vivida pessoalmente e que muito contribuiu para 0 tema do encontro seguinte de criminologia critica, em 1986, sobre “Os delitos internacionais”. Nesse semindrio, habilmente coordenado pelo diretor do Cenipec, José Francisco Martinez Rincones, ha a pre- senca de gente nova como G. Marroquin Grillo e Jaime Camacho sobre a histéria da criminologia na Colombia, e de Alfonso Zambrano Pasquel, sobre a criminologia e o poder no Equador. Entretanto, talvez o mais importante tenha sido a discuss&o, provocada pelo pesquisador do Cenipec Christopher Birbeck, sobre se existe ou no uma teoria criminoldgica latino-americana, além do questio- namento metodolégico de Luis Gerardo Gabald6n. Nossa resposta a Birbeck, sobre o que se converteu afinal numa discussao entre o positivismo légico ea teoria critica, aparece resenhada também no capitulo IV deste volume. Evidentemente, a especial situagao que o continente latino- americano vive, sob as modalidades que a dominagao norte-ameri- cana proporcionou na administragao Reagan, gerou novas refle- x6es sobre o controle social internacional na reuniao de Havana. Ai ficaram claras certas linhas paralelas entre o controle social nacio- nal € 0 internacional: controle formal, a guerra na Nicaragua, por exemplo; controle informal, uma série de formas insidiosas de so- cializago para as estratégias de dominagdo Norte-Sul. Também se especificaram novos critérios para o “referente material” do delito internacional. 39 Conhecimento e ordem social: criminologia como legitimagio e criminologia da libertagao* 1. Introdugao Durante muito tempo, a criminologia proclamou ter como objetivo o estudo do delinqiiente, do delito e da delingiiéncia. Isto é, pretendeu dar uma resposta as perguntas quem?, como?, quanto? (quem é 0 delinqtiente, como se realiza o delito e quanta delingiiéncia existe), através de uma metodologia muito variada, mas sempre causal-explicativa. Recentemente, outras correntes criminolégicas ensaiaram caminhos de aproximagao diferentes: assim, a tendéncia deno- minada labelling ou rotulagao, fundamentada no interacionismo simbdlico, voltou-se para um aspecto do problema que perma- necia oculto e que demonstrou ser determinante para a compre- ens&o e a atuacdo do fendmeno: a reagdo social. Esta determinaria que algumas condutas se tornariam delitivas e criariam a delingiiéncia. Ou seja, pela primeira vez problematizavam-se as definigdes legais. A reacao social deter- minaria que a pratica do controle selecionaria algumas pessoas, e nao outras, para denominda-las delinqtientes, criando a delin- qliéncia também por essa via. Por tiltimo, ao aplicar uma etique- ta sobre a imagem e a auto-imagem da pessoa rotulada, amplia- ria e aprofundaria nessa pessoa 0 status delitivo. Quer dizer, essa tendéncia expés um conceito novo: a criminalizagao. *Texto apresentado como paper de trabalho para a definigaio de uma criminologia da libertagao, na reunido do México, também denominada de Azcapotzalco, em 1981, na qual se instalou o Grupo de Criminélogos Criticos Latino-americanos. 4 Essa escola de pensamento foi, sem divida, chave para o ques- tionamento da criminologia tradicional e abriu caminhos fecundos para que se instaurassem os movimentos radicais que deram origem ao que se chamou “nova criminologia” ou “criminologia critica” ou “radical”! Mas 0 impulso inicial da escola interacionista, que p6de re- criar radicalmente a reflexdo criminoldgica, fica a meio caminho quando retorna as origens de toda a problematica delitiva, isto é, ao estudo do Estado, do poder e dos interesses, e estanca na anilise, também causal-explicativa, da reincidéncia devida 4 rotulagao. Ao mesmo tempo, ao estimular as pesquisas valorativas, contribui para areforma do aparato do controle social formalizado, constituindo- se assim em um instrumento a mais de legitimagao. E preciso dizer, entretanto, que essa escola assumiu matizes mais criticos em sua vertente alema, lamentavelmente nao sistema- tizada, que entendeu o interacionismo como o melhor caminho para chegar as raizes da questao: a seletividade classista do controle ea distribuigao diferencial do que Sack chamou de “bem negativo da criminalidade”'>. Nao foi assim, porém, durante toda a historia da criminologia. A ccriminologia nao nasce, como se quis afirmar repetidamen- te, com a escola positiva. Ao ser controle social — algo que tratare- mos de demonstrar aqui—, devemos reconhecé-la na chamada es- cola classica do direito penal, que fez a maior sistematizacao contro- ladora da ordem de que se tem memoria no campo repressivo. Com raziio, Taylor, Walton e Young! a definem como “uma criminologia administrativa e legal”, " Essas denominagdes implicam matizes significativos no grau e na orientagao de seus conteidos, embora tenham uma matriz comum, " Cf. sobre referéncias a esses pontos Lola Aniyar de Castro, Criminologia de la reaccién social, Maracaibo, Universidade de Zulia, 1977 (trad. bras. Cri- minologia da reacao social, Rio de Janeiro, Forense, 1983); “La crimina- lizaci6n y la decriminalizacién como funciones de un mismo proceso”, em Memérias, 2° Encontro Nacional de Advogados Penalistas, Revista do Colé- gio de Advogados Penalistas del Valle, Cali, n° 4, 1° semestre 1981, e Roberto Bergalli, La recaida en el delito y modos de reaccionar contra ella, Barce- lona, Zeus, 1980. "4 Taylor, Walton e Young. The New Criminology. Londres, Torchbooks, 1973. Ha uma edig&io em espanhol pela Amorrortu. 42 Alguns positivistas reconheceram isso. Por exemplo, Quintilliano Saldafias, num livro que, coincidentemente, se chama como 0 dos autores citados, A nova criminologia's, embora tenha sido publicado em 1936, no qual proclama a criminologia positivista como uma “nova criminologia”, que ele opunha a velha criminologia da escola classica, que ele classificou como uma antropologia cri- minal vindicativa, humanitadria (enciclopedista), especulativa (juri- dica) e pratica (administrativa). Assim, esse autor reconhece que a filosofia da repressao representada pela escola classica, baseada no livre arb{trio, na énfase sobre a pulcritude processual, nas garantias legais e na medida da pena, era j4 uma criminologia. Porém, nenhum classico, nenhum positivista se proclama te- rico do controle social, entendendo-o como as medidas tendentes A manutengdo e reprodugao da ordem socioeconémica e politica estabelecida. Este sera 0 sentido que daremos, em todo este traba- Tho, ao conceito de controle social, e néo o que lhe é comumente conferido pela criminologia funcionalista, isto 6, como as medidas através das quais a reagdo social se expressaria ante uma conduta que frustre as presumidas expectativas sociais. 2. Criminologia como legitimagao: o saber e o poder Devemos necessariamente repetir aqui um breve resumo do que foi a criminologia para poder explicar como ela exerceu uma fungao legitimadora. Por legitimagao entendemos toda forma de con- validar, autorizando-o, principalmente através da promogo do con- senso social, um determinado sistema de dominago. Nao afirmamos que o conhecimento criminoldégico e penal normalmente produzido numa época tenha assumido consciente- mente essa fungio legitimadora, mas que, de um modo ou de outro, produziu legitimagdio. Partindo da afirmagdo de que a criminologia é um brago im- portante do controle social, orientada a assegurar os valores essen- ciais de um sistema, poderiamos rastrear pela histéria todas as for- mas que a criminologia, ainda que nao tenha esse nome, assumiu para legitimar 0 exercicio do poder nos diferentes modos de produgao. 'S Quintillano Saldafias. La nueva criminologia. Madri, Aguilar, 1936. 43 Esta, que nao seria uma tarefa de pouca importdncia, revela- se entretanto excessiva para os fins deste trabalho. Como se trata de propor uma criminologia alternativa para a América Latina, va- mos limitar-nos ao modo de produgao atualmente dominante no con- tinente, que no € outro senao o surgido com a nova classe que produziu a revolugdo francesa e que foi assimilado por nossos pai- ses quando se adaptaram, devido as sucessivas dependéncias eco- némicas, politicas e culturais, a chamada civilizagao ocidental. Como dissemos, esta fungao legitimadora comega com a es- cola classica do direito penal. Essa escola, como se sabe, afasta-se da consideragao particularizada do homem delingiiente e limita-se a tarifar ou a por um preco na conduta definida como delitiva, sobre a base de uma livre-arbitrariedade que justificaria, por si s6, a respon- sabilidade legal, e portanto o direito de punir. Este prego, como era de se esperar, nos parametros conceituais da racionalidade capita- lista, traduz-se na quantidade de liberdade que deve ser suprimida 4 medida que aumenta ou diminui a gravidade convencionalmente estabelecida para o fato cometido. Quer dizer, a liberdade sera con- siderada em seu valor de troca, e entendida também como uma mercadoria!®. Assim, em vez das racionalizagdes parajuridicas do dominio que a criminologia positivista fara posteriormente, a criminologia da escola classica racionalizou o controle através das técnicas legislativas e da conceituagaio da chamada dogmatica penal, usando, prefe- rentemente, as vias legitimadoras que Weber denominou domina- ¢aio legal'7. A legitimacao do poder se produz, ent&o, apenas pelo formal e ritual cumprimento das estruturas juridicas, habilmente elaboradas para garantir os interesses da classe que historicamente emergiu apés 0 feudalismo, isto é, a burguesia. O direito, portanto, e a dogmatica penal, a nascente ciéncia juridica, eram suficientes, por sua capacidade de convencimento e, 6 Cf. Massimo Pavarini. “In tema di economia politica della pena: i rapporti tra struttura economica e lavoro penitenciario alle origini del sistema capitalistico di produzione”, in La Questione Criminale n? 2-3 — Carcere ed Emarginazione Sociale. Bolonha, [1 Mulino, 1976. "Max Weber. Economia y sociedad. México, Fondo de Cultura Econémica, 1944, p. 206 ss. 44 portanto, de autoridade, de aglutinar um consenso em torno do sistema. A escola positiva, por seu lado, respondeu a um apelo epis- temoldgico de sua época. As ciéncias naturais invadiram logo, com o prestigio da expe- rimentagao e da quantificagao, o terreno das ciéncias sociais. Nada era legitimo se nao contaya com o aval da formula matematica ou taxionémica, ou de sua inclusao numa lei geral de fendmenos simi- lares. E 0 império do fisicalismo. Do cientificismo. Era necessério, portanto, recriar os mecanismos da dominagao!’. Se o direito é pura ideologia—logo, 0 direito penal ea criminologia administrativa e legal da repressao, prépria da escola classica, so pura ideologia —, agora se enriquecerao com as contribuigdes da medicina e da an- tropologia biolégica, da genética, da endocrinologia, da psiquiatria e da psicologia. Os gabinetes dos crimindlogos, no inicio, nao sao diferentes do setor de pesagem de um hipédromo, como afirma Saldafias!®, ele mesmo um bom positivista, embora menos afeito do que outros ao determinismo morfolégico. Na América Latina, especificamente em Cuba — para citar apenas um caso, pois 0 positivismo foi o signo dominante da criminologia continental -, Israel Castellanos realiza estudos sobre o desenvolvimento e o peso da mandibula (1914) e da mao (1918) do criminoso. As “novas ciéncias ocultas” da época” seriam a fisionomia, a frenologia e a antropologia criminal, que, embora rudimentares, vao constituir a base das biotipologias contempordneas (Krestschmer, 1924, e Sheldon, 1949), as quais tiveram tanto éxito na criminologia que chegaram a constar em quase todos os manuais descritivos existentes nas penitenciérias latino-americanas. A criminologia '* Cf sobre este ponto Lola Aniyar de Castro, “La criminologia critica 0 la realidad contra los mitos”, in Derecho Penal y Criminologia, revista do Instituto de Ciéncias Penais e Criminolégicas da Universidade Exernado da Colémbia. Bogoté, vol. 2, n° 8, dezembro de 1979, onde ha uma sintese das formas positivas de legitimagéio. Saldafias, op. cit. 2 Cf. Saldafias, op. cit., p. 24. 45 positivista foi uma ciéncia oculta porque, como toda ciéncia oculta, baseou-se na crenga, fundada pela doutrina de Aristételes, de que “toda forma natural aparente sup6e a natureza de uma coisa oculta, a matéria”?!, Da mesma forma que a alquimia, a quiromancia, a astrologia e a cabala ou a magia, a antropologia finissecular preten- de conhecer a esséncia através da aparéncia. Essa criminologia cabalistica durou tanto que, com referentes mais ou menos variados, mais ou menos modernizados e refinados, ainda é ensinada nas universidades latino-americanas e em muitas do exterior. Entre esses referentes, 0 sociologico nem sempre foi excecdo, como veremos. Os juristas socialistas da época, que logo abjuraram, como Ferri, para aderir ao fascismo, por uma curiosa coincidéncia tenta- ram acumular nogées de sociologia para outro tipo de explicagao causal do delinqtiente e da delinqtiéncia. Ao se apoderarem do empiris- mo da ciéncia da repressdo, comega a delinear-se o que culminara numa separagao dramatica da sociedade: mais que entre homens delinqtientes e nao delinqtientes, entre classes delinquentes e classes ndo delingiientes, Occulturalismo, o ecologismo e mais recentemente o funcio- nalismo chegam ao mesmo objetivo, embora por vias diferentes, apesar de conterem em seu 4mago o germe de uma dentncia totalizadora. Sua insisténcia na criminalidade da classe baixa, a aceita- go acrtitica das definigdes legais, o desprezo as relagdes estrutu- rais e do funcionamento do poder convertem essas correntes num instrumento modernizado de legitimagao, embora sua roupagem so- ciologizante lhes conferisse a expectativa de uma andlise mais glo- bal e dinamica da questao criminal. Entre as novas técnicas empregadas pela criminologia positivista para reproduzir a ordem estabelecida esté a utilizag&o do delinqilente estereotipado de classe baixa, 0 que, como explicou Chapman”, permite quebrar a solidariedade intraclasse, ao canalizar para essa classe, produtora de delinqiientes, a agressividade contida na luta 21 Tbidem, p. 239. 2 Denis Chapman. Sociology and the Stereotype of the Criminal. Lon- dres, Tavistock, 1968. 46 de classes. Por outro lado, também esse apelo ao “elemento nefas- to da criminalidade”? contribuiu para caracterizar as tensées inter- nas do sistema e para produzir legitimagao por meio da repressaio desse novo e nico inimigo comum, que agora vai constituir, no seio das classes sociais, um “obstdculo para a coalizio”24. E a criminalizagao de uma classe social. - Oestereétipo do delingtiente (igual a “classe baixa delitiva’”) ser transmitido pelos portadores dos sistemas normativos: a Igre- ja, a familia, a literatura, os legisladores, os partidos, os sindicatos, a opiniao publica, através das chamadas teorias do senso comum * Cf. Jakybowicz e Robert Weinberger. “II declino del diritto come strumento di controllo sociale”, in La Questione Criminale. Bolonha, II Mulino, janeiro/abril 1974, ano 1, n° 1. * Esta “proibigao de coalizio” que se produz por causa de uma “distancia social”, gerada pela hostilidade ou pelo temor em relagao ao delingiiente estereotipado, foi demonstrada por pesquisas KOL na Alemanha (Baratta, Smaus). Cf. Gerlinda Smaus, “Teoria del senso comune sulla criminalita ¢ marginalizazione”, in La Questione Criminale, Bolonha, Il Mulino, 1977, ano III, n° 1. Nao é, portanto, mera especulagao da “imaginagao criadora”. A transmissao diferencial de esteredtipos foi igualmente demonstrada atra- vés de pesquisas realizadas na Universidade de Zulia: Marta Colomina e Xiomira Villasmil, Los medios de comunicacién de masas en una sociedad capitalista, in Los Rostros de la Violencia, vol. 1, Atas do 23° Curso Inter- nacional de Criminologia, recompilagdio de Lola Aniyar de Castro, Centro de Pesquisas Criminolégicas, Universidade de Zulia, Maracaibo, 1976, ¢ Emperatriz Arreaza, Audelina Tineo de Suarez, “Medios de difusién y este- reotipo del delinquente”, Rio de Janeiro, julho de 1979, publicagao mimeografada do Instituto de Maracaibo. Do mesmo modo se pode medir a recepe&o diferencial desses esteresti- Pos, ao pesquisarem-se as reagdes do piblico diante dos delitos con- vencionais € dos de colarinho branco. Cf, Thamara Santos, “La reaccién social ante la criminalidad de cuello blanco”, Rio de Janeiro, julho de 1979, publicagdo mimeografada do Instituto de Criminologia da Univer- sidade de Zulia. A mais exigente solicitag&io de técnicas préprias da tradigtio positivista foi satisfeita, portanto, para ratificar os efeitos dessa mesma criminologia positivista sobre o controle social. 47 (everyday theories), e também pela mesma ciéncia que se apregoa objetivae neutra?>. Hoje, como dissemos, sabe-se que a criminalizagao comega pelas formulagoes legais (vertente “legal” da criminologia), 0 que se faz basicamente segundo o pertencimento de classe. O chamado princfpio da legalidade ou de reserva fara a distribuigo dos ile- galismos, colocando uns em leis penais ¢ outros em leis administra- tivas, civis ou mercantis, basicamente orientado no sentido da pro- tego da ordem burguesa inaugurada pela revolugao francesa. A dogmatica penal tradicional fara a “filosofia da dominagao”. Ela se encarregard de explicar as virtudes axioldgicas e utilitarias do direito, sem ser muito clara em relagdo as diferentes maneiras de tutelar bens juridicos idénticos. Por seu turno, a reabilitagdo (ou ressocializagao, reeducagao, reinsergao, readaptacao, etc., sdo centenas os qualificativos simila- res) constitui o mais refinado instrumento ideolégico, mas também violento, de dominag&o. Através desses conceitos, que ttm como pressuposto basico a inquestionabilidade dos valores representados no codigo ou, ao menos, a presungao de um consenso em torno deles, os individuos de conduta dissonante (delingiientes) serao forgados a aceitar de novo os valores rejeitados. Forgados no seu nivel mais intimo—e portanto mais refinadamente violento —, 0 do convencimento, o da aceitagao profunda do sistema. A criminologia positivista especializou tanto 0 aspecto da ressocializagao que, apenas por isso, pelas derivagdes “cientificas” que gerou, com o surgimento de escolas de tratamento e as experién- cias que daf resultaram, mereceria ter sido apontada desde sempre como a “ciéncia” do controle social. Arealidade de anos e de milhdes de délares inyestidos em formu- las de tratamento demonstraria que esse tratamento “fracassou”, Fra- cassou, diz-se, porque os indices de reincidéncia continuam sendo importantes, apesar das complexas técnicas utilizadas. E 0 que de- monstra uma pesquisa valorativa de Martinson sobre todos os tipos de tratamento experimentados. E “fracassou” sempre entre aspas, por- ?5 Gerlinda Smaus, op. cit. 48 que o tratamento incidiu apenas sobre o homem. Nao sobre as estrutu- ras, no sobre os interesses, nao sobre a reacdo social, n&o sobre o exercicio do poder. Por isso, nos Estados Unidos fala-se hoje, nova- mente, em um retorno as penas fixas, seguras, fortes, garantidas. A “linha dura” afirma nao acreditar mais em tratamento. Mas ser que o tratamento realmente fracassou? Fracassa- ram, talvez, os fins explicitos da pristio e do tratamento, Nao fra- cassou na medida em que tanto o carcere — repressaio pura — como 0 tratamento —repressio ideologizada—lograram cumprir seus fins implicitos: reproduzir o sistema de classes e deixar a classe hegeménica de maos livres para realizar seus objetivos através da racionalidade do mercado; ratificar as teorias do senso comum, as quais, ao separar as classes delinqiientes das classes nao delin- qilentes, consolidam a estratificagao. Os papéis da criminologia e do criminélogo foram portanto muito precisos nas conseqiiéncias que acarretaram através da histéria, Da mesma maneira que atuaram psiquiatras, assisten- tes sociais e psicdlogos, os “conhecimentos” produzidos e o trabalho particular realizado tanto em termos de prevengao geral como de reinser¢ao permitem assimila-los a qualquer outra tare- fa de engenharia social. O bloco histérico apontado por Gramsci tem aqui uma expressdo esclarecedora. A criminologia, ent&o, nao se ocupou apenas da violagao, mas também da preservagao da ordem. Nao sao outra coisa os programas de prevengo geral da delinqiiéncia (medidas de bem- estar social e individual, reforgo do sistema de educagao, orga- nizagao do tempo livre, planejamento urbano e habitacional, etc.). Tudo isso visa a que nao se questione a ordem e, portanto, que nao se promova a delinqiiéncia. Mas também visa a que naio haja contestacdo ao sistema de classes. Dissemos que a manuteng&o da ordem social requer a ideolo- gia. Neste trabalho, entendemos ideologia néo em sua concep- go de projeto politico, mas na sua acepedo de falsa conscién- cia, ocultadora da realidade. Vimos como a ideologia comega a objetivar-se com os cha- mados processos de socializagdo primdria. Sao processos que 49 conformam as atitudes e os valores, que estabelecem os condi- cionamentos para a conformagdo com os padrdes dominantes. Ea forma mais generalizada de controle social e se aplica indis- tintamente a todas as classes sociais. Nao ha davida de que a criminologia incidiu sobre esse aspecto do controle, criando es- teredtipos, atitudes e valores e definindo politicas preventivas. A socializagéio secunddria é a que emerge quando a primeira fracassa”®, Geralmente se considera que é na socializagéo secundé- ria que a criminologia se centrada, através das teorias sobre a re- pressdo e 0 tratamento. E da delimitagao desse espago que deriva boa parte da fungéo reprodutora da criminologia: ao ignorar seu papel substitutivo, nado pode questionar as normas violadas nem compreender a fungo dessas normas para um sistema de domina- go que ela ajudou a legitimar. Schumann também definiu a criminologia como um esforgo intelectual destinado a produzir legitimagao. Mas refere-se apenas 4 legitimagao do direito penal em geral, eas praticas das agéncias do sistema de justiga penal em particular””. A legitimagfo operaria da seguinte maneira: ele pensa que a criminologia serve para racionalizar 0 esquema prioritério do Estado— constituira politica social, através do controle do crime. Isto é, em vez de realizar investimentos sociais (criar frentes de trabalho, por exem- plo), o Estado preferiria atuar com custos sociais (reprimir ou tratar de quem delingiie contra a propriedade, uma vez que o problema se apre- sente)*’, Preferiria reprimir com a lei penal do que promover uma politica de prevengao geral, j4 que com a lei penal convertem-se em delito os protestos individuais contra as desigualdades sociais. 26 Cf, Alessandro Baratta. “Sistema penale ed emarginazione sociale”, in La Questione Criminale. Carcere ed Emarginazione Sociale, ano II, n° 2- 3, 1976, p. 238. 7 Karl F, Schumann. “On Proper and Deviant Criminology. Varieties in the production of legitimation for Penal Law”. Paper apresentado no 8° Encontro do Grupo Europeu para o Estudo do Delito e do Controle Social, Louvain, 1980. 28 Cf. J. O’Connor, The Fiscal Crisis of the State, 1973. 50 A grande debilidade interna da criminologia tradicional pa- rece residir na sua incapacidade de converter-se em teoria, pela multiplicidade de caminhos em que desmembrou seu objetivo fundamental, o do controle social. Assim, enquanto os criminé- logos corriam por diferentes vias esgrimindo hipéteses da mais variada origem — que alguns mais habilmente tentaram, sem muito éxito, reunir na hipotese multidisciplinar -, a criminologia per- deu forga para proclamar-se teoria ou para que fosse considera- da docilmente uma ciéncia. Mas essa debilidade interna nunca transpareceu para o exte- rior. E isso é 0 que importa destacar aqui: sem ter podido alcangar status cientifico, sem que os mesmos crimindlogos verdadeiramente acreditassem nela, 0 objetivo central estava sendo realizado: cons- truir um campo de explicagGes tao florido, facil e atraente que fos- se capaz de concitar um acordo acritico em torno da ordem social ¢, portanto, de seu controle. Outra via legitimante foi o uso das “grandes amostras repre- sentativas”, sem diivida o fetiche preferido pela administragao da justiga, precisamente porque representa o consenso consolidado. O prestigio das mais complexas e modernas técnicas de pesquisa, métodos probabilfsticos, computadores, laboratérios, graficos e cédigos informativos mais ou menos herméticos, tudo isso deu ao controle um touch of science*°, um toque de ciéncia necessdrio para preservar sua autoridade. Como diz Schumann, na batalha contra o crime “a policia, os tribunais eo sistema correcional compéem a frente, enquanto os crimin6logos trabalham a salvo numa remota base militar”>!, Tudo isso é verdade. Entretanto, pensamos, e procuraremos demonstrar aqui, que a criminologia é muito mais do que isso em suas relagdes com o poder. Se criminologia é controle social, crimi- nologia é poder. “CE. Schumann, op. cit., bem como o magnifico trabalho de Gerlinda Smaus, “Vuoto teorico ¢ servilismo politico nelle Ricerche KOL”, in La Questione Criminale, 2-3, ano VI, Bolonha, Il Mulino, maio-dezembro 1980. " Ibidem, "Schumann, op. cit. 51 3. O caso latino-americano Deve-se levar em conta uma situagéio, especialmente no 4m- bito latino-americano: nos paises de capitalismo dependente, da periferia, o vinculo da ciéncia autéctone com o poder é menor. Apenas em situagSes excepcionais a pesquisa € expressamente so- licitada no pais, em raz&o do maior prestigio de que goza o trabalho conduzido por especialistas estrangeiros. Em geral, todas as politi- cas internas sao elaboradas sobre a base do conhecimento produzi- do nos paises centrais. A imitagao, freqtientemente fora de contex- to, é a base de todas as iniciativas reformistas. Na Venezuela, por exemplo, os setores especializados do Ministério da Justiga (a Dire- ¢40 de Prevengdo e a Direcao de Prisdes) fazem pesquisas internas, que, entretanto, costumam estar desvinculadas dos planos nacio- nais oficiais (os chamados Planos da Nagao), tanto os que estdo em vigor como os projetados. Mantém-se como um mero aparato itil para oferecer uma imagem de seriedade cientifica. A menos que sejam pesquisas valorativas (muito poucas), ou auxiliares do siste- ma penalégico. A dependéncia cultural, também neste terreno, im- pediu o surgimento de uma criminologia oficial auto-gerida. A isso se deve, talvez, o enriquecimento inusitado de uma criminologia refugiada exclusivamente na academia, geralmente li- yre, porque protegida pela tradi¢ao latino-americana da autonomia universitaria, e que produziu todo o esforgo de reflexao sociopolitica sobre o papel da criminologia do crimindlogo, em alguns paises de democracia formal, como a Venezuela. A essa autonomia univer- sitdria, onde ela existe, deve-se, no continente, a extrema liberdade dos sucessos alcangados pelo grupo de pesquisas comparadas, que significaram o infcio de uma criminologia transformadora. Assim, paradoxalmente, o subdesenvolvimento econdmico e politico dos nossos paises contribuiu para o desenvolvimento livre dacriminologia. Porém, tentou-se inserir um elemento de mediagao da cri- minologia livre. A Assessoria da Presidéncia da Republica para As- suntos Criminoldgicos e a Direg&o de Prevengao do Delito do Mi- nistério da Justiga esteve em mfos de criminélogos com vocagaio critica. Essa circunstancia pode consolidar a legitimagao ao con- fundir a critica ao poder com o seu exercicio. A democracia formal 52 faz esse jogo de reabsor¢ao da critica, paralisando-a no reforgo da ideologia, ou da atividade ocultadora. Arelagao com o poder, pelo contrdrio, em alguns paises onde as regras do jogo foram rompidas pelas formas autoritdrias de go- verno, evidencia-se justamente através da represso brutal do pen= samento criminolégico emancipado. Na Argentina, por exemplo, como bem demonstra Garcfa Méndez, o desenvolvimento do direi- to penal se fez em detrimento da criminologia, mesmo da oficial (a outra esta proibida), porque o exercicio do dominio aberto requer menos legitimagao*2. Na Guatemala, como dissemos, dois crimindlogos do grupo latino-americano de pesquisas comparadas, Guillermo Monzon Paz e Jorge Palacios Mota, foram assassinados pelas forgas paramilita- res do governo ditatorial. Sua nica atividade subversiva foi procu- rar fazer ciéncia livre. Mais que uma dentincia, esta mengdo é um dado histérico de significagao para todo o discurso que empreen- demos aqui. Contra Jorge Enrique Torres Lezama, outro membro do grupo, também da Guatemala, houve uma tentativa de homici- dio. Contra Atilio Ramirez Amaya, crimindlogo salvadorenho dessa mesma equipe, houve atentado semelhante. Ambos esto exilados, Essas mortes e esses atentados sao um argumento irrefutdvel de que, se a criminologia tradicional é um instrumento de poder, uma criminologia alternativa pode ser inimiga do poder. Consideramos 0 controle social, tal como 0 abordamos aqui, nos termos do quadro a seguir (cf. p. 54), com 0 qual pretendemos definir sua estrutura. Entendemos o controle social, portanto, como “o conjunto de sistemas normativos (religiao, ética, costumes, usos, terapéutica e di- reito— este Ultimo entendido em todos os seus ramos, na medida em que exercem esse controle reprodutor, mas especialmente no campo penal; em seus conettidos como em seus n&o-contetidos) cujos porta- dores, através de processos seletivos (estereotipia e criminalizagao) e estratégias de socializacao (primaria e secundaria ou substitutiva), es- » Emilio Garcia Méndez. “Politica, derecho y critica. Especifica”, in Ca- pitulo Criminolégico 9-10, Instituto de Criminologia da Universida de Zulia, Maracaibo, 1981-82. 53 ESTRUTURA DO CONTROLE SOCIAL NA AMERICA LATINA [DESTINATARIOS| [Sist. NORMATIVoS] PROIBIGOES] [DESTINATARIOS| Direito: civil, comercial, administrativo, penal. _PReigiag, efica, uusos e costumes ORGAOS. ‘Rdministragao do controle socal, juvenil, escolar, judicial, penal. (iscalizacao, tribunais, assisténcia social, lexecugdes penais, Organizagbes beneficentes, com fins terapéuticos. Alcobiicos Antnimos. Socialzagao substtutva, Tratamento € Tepressao. PROC.SELETIVOS Dizemos que as classes s&o “destinatarias" preferencialmente, mas n&o exclusivamente. Nota: a coluna central da esquerda corresponde a sociedade civil; a da direita, A sociedade politica. 54 Tiegalidades_]_ dos bens privadas ou religiosas}-- ~~~ Classe ~ |hegeménica ass subaltemas Clas subal { { 4 assos subalteras NIVEIS| Tegislativo Policial Classes Judicial |--""~ subaltemas Assistencial Perda de previlégios, indenizagoes, | ...[ Classe multas e outras hegeménica medidas administrativas liberdade em termos gramscianos, tabelecem uma rede de conteng6es que garantem a fidelidade (ou, no fracasso dela, a submissio) das massas aos valores do sistema de dominagao; 0 que, por motivos inerentes aos potenciais tipos de con- duta dissonante, se faz sobre destinatarios sociais diferencialmente controlados segundo a classe a que pertencem”. Trata-se, sem duvida, de uma defini¢&o muito condensada de uma matéria que apresenta multiplos aspectos e matizes. Por isso nos deteremos, embora sinteticamente, em alguns pontos que mere= cem um esclarecimento maior, para melhor compreender nossa de- finigo da criminologia tradicional como “a organizaciio sistematica de conhecimentos e técnicas, originais ou provenientes de ciéncias ou disciplinas diferentes, orientadas para o fortalecimento do contro- le social e para a manutengao, por essa via, do sistema ao qual serve”. Essa defini¢do nao é ortodoxa, porque nenhum criminédlogo tradicional a assumiria. Porque é precisamente ao pretender ser outra coisa (0 estudo causal-explicativo do delito, do delingtiente e da delinqiiéncia, por exemplo) que a criminologia adota mais am- plamente a ideologia ocultadora. Digamos, assim, que a novidade de nossa defini¢ao estaria ndo tanto em afirmar que a criminologia é esse conjunto de conhe- cimentos e técnicas aplicadas ao controle social, mas sim em en- tender esse controle social do modo expresso no quadro apresenta- do, em que o controle social é algo mais que o sistema penal, como procuraremos explicar, e é um instrumento reprodutor. Além disso, e em contrapartida, proporemos para a América Latina uma criminologia orientada, sim, ao estudo do controle so- cial, mas segundo uma pratica teérica substancialmente diferente, nao uma pratica teérica reprodutora mas transformadora. Por isso, proporemos para ela o nome de teoria critica do controle social. Trataremos disso mais adiante. Para chegar ld, é necessdrio rever, em todos os campos da politica social cotidiana, tanto a explicita como a implicita, e analiti- camente, quais so os multiplos fios que tecem a trama do controle social, e seguir os passos da velha criminologia em seu trabalho de habitual artifice dessa rede. Nao ha divida de que o controle social, para seu objetivo de manutengao-reprodugao de uma ordem qualquer, pode valer-se de 55 meios muito mais gerais que os mencionados. Por exemplo, o pla- nejamento urbano, a politica de imigragao, os programas de nutri- co, assisténcia, alfabetizagao e habitagao, a manipulagao do mer- cado de trabalho e, evidentemente, a politica de comunicagao. Mas tudo isso, considerado assim amplamente, nao foi nem € objeto da criminologia. O é apenas na medida em que o que se ordena, plane- ja ou estabelece é violentado de tal forma que afete os valores es- senciais do sistema historico particular. Com efeito, quando os valores essenciais so afetados, 0 es- pago atingido torna-se uma questo de ordem publica e, portanto, de potencial criminalizagao, isto é, de converso em delito, falta e objeto de repressao, ressocializacao ou tratamento. Quais sao os valores essenciais ao sistema? So, sem ditvida, aqueles que garantem a estabilidade do siste- ma de dominagao. Nos paises com relagGes capitalistas de produ- ¢ao, por exemplo (quadro no qual nos manteremos, por tratar-se daquele que nos concerne diretamente), a manutencao das classes sociais e sua fungao, dialeticamente necessaria, visando 4 acumula- ¢40 de capital por parte de uma delas, é 0 valor fundamental. Esta claro que ha pré-requisitos elementares para que essa dialética se realize sem empecilhos: 0 direito a vida e a integridade pessoal, 4 propriedade privada e 4 conservagao do ambiente siio direitos que se protegem dentro do marco das condigées basicas de sobrevivén- cia. Mas ainda aqui vimos como a protegao, na maioria das vezes, é tendenciosa. Entretanto, embora n&o seja o caso da América Latina, nos sistemas capitalistas desenvolvidos tende-se a prote¢ao total dessas Areas, j4 que a satide e a vida do proletariado e 0 equilibrio ecolégico sao parte do patriménio da burguesia, e sAo assim com- preendidos. Os estudos que realizamos em nosso continente sobre os de- litos de colarinho branco que afetam a satde e a vida da coletivida- de (fraudes contra o consumidor, comercializagao de substancias médicas danosas ¢ proibidas em outros paises, violagao de normas sobre seguranga industrial, delito ecolégico) demonstram uma vez mais o carater do capitalismo dependente e subdesenvolvido de nos- sos paises. Quando se trata de delitos das empresas transnacionais, écompreensfvel a desprotegao desses valores, que apontamos como 56 pré-requisitos, j4 que a dominagéio se exerce entdo numa escala que supera os limites territoriais. O mercado internacional é tio amploe variado que nao sao significativos, para o processo de acumulagao, os prejuizos aos consumidores ou ao meio ambiente de outros paf- ses. Quando se trata de corporagdes ou empresas nacionais, ao con- trario, a desprotegao do consumidor, do ambiente e do proletariado nao indica nada além do atraso politico e econémico de uma burguesia torpe e mal informada sobre os recursos disponiveis e, no caso do meio ambiente, sobre as condigGes necessdrias para o futuro da acu- mulagao de capital e dos bens mesmos de seus préprios filhos. Aexperiéncia latino-americana demonstra que a criminologia ocupa-se do controle social unicamente quando esse controle esté orientado para a consolidagao do sistema de classes. Uma fungéio que chamaremos de “reprodutora” desse controle, fungao que é parte de sua tendéncia a declarar ilegais os interesses da classe subalterna e a transformar em questo de ordem publica a afirma- go desses interesses, seja essa afirmagao através de ages concer- tadas de tipo politico (subversao), seja mediante agdes individuais (delingtiéncia), seja, ainda, quando estas aparecem estrategicamen- te irracionais em sua dimensao politica. 4. Proposta de uma criminologia como teoria critica do controle social na América Latina Estamos propondo fazer, na América Latina, uma criminolo- gia que seja uma teoria critica do controle social. Também para esses efeitos remetemo-nos a estrutura do con- trole social assinalada no quadro ja referido. Todos os seus elemen- tos deverdo ser levados em conta como objeto de estudo. Se isso corresponde ou no ao nome “criminologia”, ou a outro como “con- trolologia”?, cua algum outro diferente, nao nos interessa muito. A criminologia sempre foi controle social, embora sem assumi-lo. Os nomes sao categorias convencionais. A historia nos obri- ga, a NOsso ver, a manter o nome de criminologia, no apenas por quest6es estratégicas — j4 que sob esse nome operam institutos, escolas, catedras, publicagdes e associagées profissionais, nacio- » J, Ditton usou esse nome para referit-se aos problemas da amplifica- go do desvio, segundo o /abelling approach. 57 nais e internacionais, em que se desenvolve a luta sobre todo esse material tao importante — mas também porque uma criminologia como teoria critica do controle social representa a superagdo da criminologia como controle social, isto é, sua critica, sua nega¢ao. Entre ambas as formas de se fazer criminologia, ainda quando 0 objeto de estudo seja o mesmo, a diferenga esté na critica. A teoria se faz critica apenas quando segue pautas metodolégicas determinadas. Por isso faremos alguns apontamentos prévios sobre 0 méto- do que acreditamos necessério para que a pesquisa seja critica. Um método que deriva amplamente, como se vera, do método histérico dialético, ao qual acrescentamos alguns elementos proprios da teo- ria critica da chamada Escola de Frankfurt, que consideramos cor- retivos necessdrios, ou ao menos enriquecedores, na perspectiva das sociedades contemporaneas. Consideragdes metodoldgicas E Marx quem cria a Critica, uma ciéncia nova. Marx nao se contentou em descrever o sistema capitalista de produgao: perfu- rando a superficie econémica do sistema, verifica que detras dela se encontra uma esséncia anti-humana e anti-social. Com efeito, Marx “trata de desmascarar cientificamente o carater ideoldgico que apresenta (...) 0 mecanismo capitalista como encarnagao dos ideais burgueses de liberdade e justi¢a para mostrar que esse meca- nismo s6 pode funcionar sobre pressupostos reais de escravidao e opressao”3#, Algo que Hegel j4 havia descoberto quando encontrou, sob a aparéncia de ordem e harmonia, um “espetéculo de miséria e corrup¢ao”. Isto 6, a injusti¢a oculta através da aparéncia de um intercdmbio justo de equivalentes. Marx faz assim uma interpretacio materialista do desenvolvi- mento historico da humanidade, entendendo-o como 0 resultado do enfrentamento de interesses contrarios que se vao superando a si mes- mos. Esta nova dimenstio do método (entendendo-o em oposigao a metodologias ou técnicas positivistas de pesquisa) estabelece que para alcangar-se um conhecimento cientifico coerente dos fatos sociais é ™ Enrique Urefia. La teoria critica de la sociedad en Habermas. Madti, Tecnos, 1978, p. 21. 58 necessario estudar, primeiro, a histéria constituinte (como devenir e desenvolvimento da superacao da luta entre contrarios) e 0 hist6- rico constituido (como corte transversal da historia, o contexto, 0 momento conjuntural). E ai que se podem encontrar as contradi- ges esclarecedoras, a esséncia do fendmeno, e sua aparéncia. O método dialético explicara essas contradigdes como ele- mentos de requerimento reciproco: assim, a burguesia nao explora porque é “ma”, mas porque é justamente o antagonismo de classes o que define as relagdes de produgao existentes e o proprio modo de produgao. O sistema capitalista, como ocorreu com a ordem feudal, é uma unidade de contrarios em luta: a burguesia e o prole- tariado, as quais se condicionam mutuamente. O direito e toda a ordem social podem ser explicados assim. Esse método também ensinara que os fatos sociais nao esto isolados, nem podem, portanto, ser entendidos fora de seu contex- to histérico, nem descuidando-se das multiplas determinagdes do real. Cada um deles esta articulado a totalidade do sistema de pro- duco e obedece a sua racionalidade. Assim, “o objeto e seu reflexo na consciéncia humana devem ser abordados em todos os seus aspectos: no seu desenvolvimento, nas suas relagdes essenciais com outros objetos através do aparecimento e da solugao de contradi- ges, em suas mudangas quantitativas e qualitativas, etc.”>>, Assim, histéria, contradigao, totalidade e dialética do real sao 0s principais elementos metodoldégicos para descobrir a verdade e, portanto, para desmontar a ideologia que apresenta aos olhos do pesquisador uma aparéncia ocultadora da esséncia. Dessa forma, quando se faz criminologia puramente clinica, conhece-se apenas uma parte da verdade. A verdade completa sera dada pela articulagdo dos achados clinicos com o contexto global no momento histérico concreto, nao importa se para isso foram ou nao utilizadas técnicas fisicalistas, empiricas, positivistas. Os ques- tiondrios, o laboratério, a medi¢4o, sAo validos apenas se fazem parte de um método mais completo. A auséncia da totalidade cria ideologia por ocultamento. A antipsiquiatria, por exemplo, desco- 35 F, Konstantinov. Los fundamentos de ta filosofia marxista. México, Grijalbo, 1962, p.291. 59 alll eal briu isso, e suas observagées e andlises, ao inserirem-se na totalida- de, contribuiram tanto para incrementar a validade das proprias praticas terapéuticas quanto para descobrir a reprodugio das rela- ges de dominio na sociedade, ¢ entre médico e paciente. A teoria de Marx, como se sabe, é teoria e pratica ao mesmo tempo. No dizer de Urefia*®, como teoria, provoca uma violéncia material nas massas iluminadas por ela, mas apenas quando as con- digdes materiais histéricas permitam as massas descobrir na teoria o reflexo de suas préprias necessidades frustradas. A teoria, portanto, tem em si mesma uma potencialidade trans- formadora. Entretanto, uma pratica tedrica pode ser reprodutora se tende a manutengao da ordem. Serd transformadora se estiver ori- entada para a mudanga. Marx escreve no século XIX. Sua teoria nasce das contradi- Ges da sociedade capitalista de sua época. A teoria critica da Esco- la de Frankfurt”, que se confessa herdeira de Marx, surge da irracionalidade e da barbarie da sociedade contemporanea. Procura também alertar os homens sobre a necessidade de transformar sua propria vida, o que sé € possivel acabando com as relagdes econd- micas alienadas e inumanas. Mas esse enfoque tem a ver com caracteristicas préprias das sociedades desenvolvidas, muito diferentes da sociedade do século XIX em que viveu Marx, e da énfase que se poe sobre a ideologia. A desumanizagao se vé agugada: “o homem nem sequer esta cons- ciente da irracionalidade em que esta imerso”, esta “alienado de sua % Urefia, op. cit, p. 21. >” Como diz José Enrique Rodriguez Ibéfiez, em Teoria critica y sociologia (México, Siglo XXI, 1978, p. 8), “a teoria critica nao se limita a Escola de Frankfurt. Ela também comega pelos clissicos: Hegel (falsa consciéncia), Marx (alienagao e fetichismo da mercadoria), Lukaes (reificagao), Adorno ¢ Horkheimer (instrumentalizagaio ascendente), Marcuse (sociedade unidi- mensional), Weber (desencantamento e racionalizagao), Freud (repressao, interiorizag&o e antagonismo cultura-libido), Reich (critica do carater e da familia), Fromm e Arendt (produtivismo do mundo contempordneo), Le- febvre (sociedade de consumo historicamente dirigido), Baudrillard (econo- mia politica do signo), Habermas (comunicagao distorcida nas sociedades avangadas), Aronwitz (trabalho trivializado, écio colonizado)”. 60 propria alienagao”. O grande milagre do aparato econémico-adminis- trativo de nossa sociedade é 0 de ter conseguido que “os homens possam sentir-se felizes mesmo quando nao 0 séo” (Marcuse)8, Enquanto Marx fazia critica econémica, a teoria critica faz critica cultural. E a critica da ideologia. B preciso combinar as duas. Um dos aspectos mais importantes da teoria critica é 0 que explica o desenvolvimento sociocultural do homem como um pro- cesso de auto-reflexdio, que consiste no desmascaramento de “po- deres opressores, cuja objetividade deriva unicamente do fato de ainda néio terem sido descobertos” (Habermas)°?. Ou seja, a fungi da teoria seré a de desmascarar todo tipo de legitimagdo ideolégica, bem como exigir uma discussao racional de toda relagdo fatica de poder. E, assim, por si mesma, um elemento catalizador do contorno social*?. Isto nos interessa especialmente para o tipo de criminologia que propomos. Nas sociedades contempordneas, segundo Horkheimer’!, existe o império da raz&o instrumental (0 que Adorno chama de raziio identificante), isto é, uma tnica preocupag4o com a resolugao dos problemas técnicos entre meios e fins, sem a andlise da racionalidade dos fins. Os individuos internalizam a razao instrumental se iden- tificam com os interesses tecnicistas do sistema. O positivismo éa consagra¢ao tedrica dessa razao instrumental, nao sé porque utiliza a metodologia das ciéncias naturais mas porque faz dessa meto- dologia 0 tinico critério de cientificidade e de verdade“?. Ao desvincular-se dos fins, isto 6, da “razo pratica” ou mo- ral, que representa o que é verdadeiramente humano (0 justo e 0 injusto, a vida e a morte, a felicidade e a infelicidade), a razdo técni- ca ou instrumental, j4 denunciada por Weber, torna-se opressora, da mesma forma que 0 positivismo é opressor, pois resulta em puro decisionismo. Como diz Urefia, 0 positivismo substituiu a teoria do conhecimento por uma teoria da ciéncia. * Urefia, op. cit., p 47-8. » Apud Urefia, op. cit. “° Urefia, idem, p. 24, 4! [bidem, p. 48-9. Cf, Rodriguez Ibafiez, op. cit., sobretudo no que se refere a evolugao ¢ contetdo da teoria critica. 61 Se a auto-reflexdo é esclarecedora, porque transforma em transparéncia a opacidade do discurso ideolégico necessario para legitimar o sistema, e essa transparéncia destrdi, por sua vez, a opressao, ent&o a pratica tedrica ¢ transformadora e emancipadora. Das varias pautas determinadas pelos diversos autores que conformam a teoria critica, selecionamos dois elementos que nos pareceram mais Uteis para conduzir a pesquisa orientada para uma teoria critica do controle social“, Sao eles: 1. Ateoria critica do controle social deve ser antiformalizante e voluntariamente assistemdtica. Nao procurar consolidar, mas pro- por uma teoria que se perceba como parte de um processo, a0 mesmo tempo que vinculada aos esforgos de libertagao humana. 2. Deve ser auto-reflexiva e historica, em vez de produzir uma critica linear, nao problematica. Isto significa que estard consciente do processo no qual se insere e, portanto, de como esse processo a influen- cia. Ao mesmo tempo, deverd opor-se a ilusao de formalizar todo fe- némeno, isto é, de codificd-lo ou congela-lo através de simbolos pura- mente matematicos ou afirmagées permanentes. 3. Tera carter dialético, como dissemos, j4 que “o acontecer histérico-social se idealiza como uma totalidade concreta expressa em momentos que se relacionam mutuamente’™*. Dessa maneira se en- frentardo os vicios positivistas de fragmentacao do real e da separac4o radical entre sujeito e objeto, global e particular, publico e privado, etc., jA que esses so momentos em tensao de um devenir*>. 4. Serd assumida como uma rejeigao das sociedades em que impere uma racionalidade tecnocratica e/ou autoritaria, ao mesmo tempo que se constituiré num compromisso moral, parte de um projeto emancipatério que se baseia na vontade de diagnosticar corretamente a sociedade e na vontade de superd-la, de nega-la. Nao devera realizar-se num projeto prefixado, pois “a critica n&o pode ser outra coisa sendo a dentincia materialista da injustiga social”, sempre e em qualquer caso. * Cf. Rodriguez Ibafiez, op. cit. * Tbidem. ® Ibidem. * Tbidem. 62 Por outro lado, como elementos do método histérico, indis- pensaveis a apreensdo da complexidade e da amplitude, nem sem- pre mensurdveis, dos fendmenos que devemos estudar, toda pesquisa empreendida pela teoria critica do controle social deverd utilizar: 1. Acompreensio intuitiva, que, com certeza: 1.1. sera qualitativa e nao necessariamente quantitativa; 1.2, deverd ser compreensdo de propésito e significado, mais que busca causal-explicativa; 1.3. deverd utilizar a imaginagao compreensiva (Mills falava de imaginago criadora), e nao empenhar-se no fisicalismo das ge- neralizag6es indutivas, e 1.4. deverd estudar acontecimentos que reconheceré como Unicos, por terem surgido em condigées histéricas determinadas, sem pretender derivar deles explicagdes universalmente validas, ja que os acontecimentos da historia, ao contrario do que acontece nas ciéncias naturais, no se repetem de forma idéntica e, portanto, nao podem ser interpretados por meio de analogias, mas apenas como tendéncias. II. O holismo, que significa entender os fendmenos como uma totalidade, que é algo mais que a soma das partes, A maneira de uma Gestalt. Isso implica: 2.1. eludir os detalhes mesquinhos; 2.2. fazer uma andlise integradora, sintética, reconstrutora do processo*”, Em suma, os elementos do método proposto siio: 1. Ahistéria constituinte e o hist6rico constituido 2. A busca da esséncia por tras da aparéncia 3. Adialética 4. As contradigdes 5. A totalidade (ou holismo) 6. A andlise do real, em vez da metafisica 7. Aauto-reflexividade 8. Acompreensio intuitiva: *’ Sobre esses aspectos do método histérico, cf. Karl Popper, La miseria del historicismo, Madri, Alianza, 1973. 63 8.1..de propésito e significado, n&o causal 8.2. de imaginag4o compreensiva, nao de descrigéo ou busca de generalizagdes 8.3. de acontecimentos tinicos (0 hist6rico constitufdo) 9. Um compromisso permanente com a emancipagao e com arealizagao plena de todos os homens 10. A vontade de nao formalizar-se 11. Anecessidade de ser uma pratica tedrica transformadora. Objetivos Com uma criminologia entendida e praticada dessa maneira, ser possivel proceder a andlise e 4 dentincia da estrutura do con- trole social atual na América Latina, desnudando seu carter legi- timador, apresentando assim As classes subalternas um discurso transparente que estimule a consciéncia de classe e uma compre- ensao das verdadeiras condutas dissonantes. Dessa forma, 0 estudo das condutas dissonantes ou “deli- tivas” s6 deverd ser feito quando se tenha logrado 0 objetivo basico da teoria critica do controle, de vez que demonstramos como este falseia a ontologia do que é verdadeiramente anti-social. O estudo dessas condutas dissonantes, ou, como as classificam alguns, des- viadas, s6 existird para observar como o controle social opera dife- rencialmente sobre elas. Mas nao se deve ficar na pura dentincia. Esta teoria deverd sugerir, quando oportuno*®, uma estrutura alternativa do controle social, sempre em revisdo, que favorega primordialmente os direi- tos coletivos ou aquilo que Sgubbi chamou de “interesses difusos””. Nossa teoria nao se contentard com uma revisao dos proces- sos de socializacao primaria, do papel da propria teoria e da ciéncia, e de todos os sistemas normativos, identificando-os em sua relagao 4 Alessandro Baratta. “Criminologia critica y politica criminal alternati- va”, in Derecho Penal y Criminologia, revista do Instituto de Ciéncias Penais e Criminolégicas da Universidade Externado da Colémbia. Bogo- ta, vol. 2, n® 8, 1979. * Seriam aqueles interesses coletivos (direito a satide, ao trabalho, segu- ranga nos locais de trabalho, a habitagiio, ao meio ambiente, ao territ6rio, & 64 concreta com 0 poder, mas deverd comprometer-se com uma ativi- dade critica permanente, sobre a base de um projeto emancipatério que impe¢a o congelamento de qualquer sistema de controle social ou de dominagao, Diferentemente da velha criminologia, a teoria critica do con- trole social aspiraré a quebrar a ordem ideolégica que construiu uma falsa consciéncia do crime e do criminoso, e logo a combater, tanto na teoria como na pratica (e vimos que ambas podem ser uma unica coisa), as formas ocultas da dominagao. Isso nos devera permitir analisar a problematica que concerne, nos limites concretos da realidade latino-americana, na época em que nos coube viver, a identificagao dos niveis de dominago que dependem dos diversos modelos de acumulagiio de capital locais, internacionais, intercontinentais e transnacionais; identificar as di- ferengas que existem nos varios estagios de desenvolvimento das forgas produtivas, j4 que em nosso continente é possivel observar a coexisténcia de subsistemas feudais, comunitdrios e capitalistas, num mesmo pais e em diferentes paises entre si. Igualmente, devera dar conta das diferengas do controle so- cial nos paises com governos autoritarios, nos que tenham demo- cracias formais e nos que procuram ser a express&o, na América educagiio, ao acesso aos bens de consumo, ao desfrute dos beneficios disponiveis) que consistem na satisfagao de necessidades reais, essen- ciais e de participago no processo econémico. Esses interesses difusos estiio sempre presentes na sociedade, de modo informal, ¢ estéio disseminados em nivel de massa, isto é, n&io sao interesses subjetivos nem individuais, e sua protegéo constituiria o desenvolvimento do principio constitucional da igual- dade. Se esses interesses difiisos estivessem realmente protegidos pelo siste- ma legal (n&o apenas em termos simbdlicos, como na Constituigao, mas em todos os instrumentos legais e na concretizagao real do funcionamento do sistema de administragao da justiga), ter-se-ia superado ideologicamente o velho modelo classico sobre cuja base o interesse da produgao isto é, 0 interesse das classes dominantes em obter beneficios privados, é considerado coincidente com o interesse da coletividade. Cf. Filippo Sgubbi, “Tutela penale de ‘interessi diffusi”, in La Questione Criminale. Bolonha, I! Mulino, setembro- dezembro de 1975, ano 1, n° 3, e Franco Bricola, “Partecipazione e giustizia penale. Le azioni a tutela degli interessi collettivi”, in La Questione Criminale, Bolonha, I! Mulino, janeiro-abril de 1976, ano 1, n° 1. 65 re Latina, dos movimentos populares libertadores, e revisar o papel que a criminologia oficial e a criminologia livre cumprem em cada um deles, sempre atenta a denunciar, em qualquer caso, os poderes opressores e 0 discurso ocultador. Oestudo eritico do direito penal em seus trés momentos (pro- dugao, interpretacaio e aplicagao de normas), com 0 apoio da socio- logia e da ciéncia politica, deveré ser objetivo de primeira linha, entendendo-se o direito penal, evidentemente, como integrado a todo 0 sistema juridico, e articulado com a situagao de dependéncia ou colonizagao dos paises periféricos em relagio aos centrais. Do mes- mo modo, analisaré criticamente a dogmatica penal, que define o momento da interpretacao; o sistema penaldgico e de tratamento e suas alternativas, assistenciais ou nao; os valores e os esteredtipos, os portadores do controle, seus agentes e destinatarios; 0 controle de e sobre a ciéncia. Como tudo isso leva — ou no leva, e isto ¢ importante — a criminalizagéio de condutas, classes sociais, interesses e individu- 0s, acriminalizagao sera 0 objetivo central da teoria critica do con- trole social. Finalmente, ela nos deveré permitir fazer, diante da velha criminologia da repressao, uma criminologia da libertagao. O quadro abaixo esquematiza as diversas tendéncias: Nivel Nivel Nivel Nivel epistemoldgico | criminologico interpretativo politico Criminologia . clinica Passagem Criminologia Positivismo Sociologia a agao da repressao criminal (reeducagao, Criminologia ressocializagao) Se Politica criminal Organizacional Construcionismo] Interacionismo | Reag&o social Materialismo Criminologia Teoria critica Criminologia Historico e critica do controle da liberagéo Teoria Critica Nova social (conscientizagao) criminologia Criminologia radical 66 UL. Acriminologia como controle social informal ou criminologia e sistemas de poder 1. Acriminologia classica Uma das formas pelas quais 0 controle social informal opera pode ser encontrada no trabalho ideologizante das chamadas cién- cias humanas e sociais — portanto, como ja dissemos, também na criminologia. CO interessante aqui é explicar esse papel legitimador em rela- ¢&o as diferentes formagSes sociais e aos diversos graus de desenvol- vimento politico, as vezes complementando o papel do direito, as vezes substituindo-o, ds vezes ocultando-o. O que nos motiva prin- cipalmente é explicar as relages entre a criminologia e o poder na América Latina no momento atual. Mas parece-nos imprescindivel introduzir antes o tema em seu nivel epistemoldgico e politico atra- vés da historia, j4 que, de alguma maneira, isso refletiu-se em nosso continente, embora com matizes indubitavelmente particulares. Quando e por que surge, que conceito de Estado, que estilo de legitimagao do poder e da autoridade representa a criminologia classica? Mesmo uma rapida olhada que procure captar a historia da criminologia deve pertir da crise do pensamento helenistico-roma- no, isto é, da concepgao da sociedade como fato natural e da orde- nago social como produto da necessidade de assegurar a justiga nas relag6es sociais, mediante normas e a supervisdo destas por parte da autoridade. Era o que estava na base da polis grega; aquela entidade que, segundo Aristoteles, era o desdobramento natural de um processo evolutivo (familia, aldeia, polis), na qual o homem se realizava como ser humano, e cujas leis, normas e autoridade introjetava como parte de sua natureza. O século V marca a incapa- cidade de autogoverno da polis grega eo surgimento de um cosmo- 67 politismo ético e metafisico: os homens teriam duas cidadanias, uma local eoutra universal. Haveria uma ordem universal tanto no mundo natural como no humano, e isso conduziria ao direito natural, que seria “o que resulta naturalmente da natureza das coisas”. Da mesma maneira que existia uma harmonia césmica, haveria sempre justiga univer- sal, embora ela nao se evidenciasse sempre nos casos concretos®. Com 0 Estado moderno, surgem as formulag6es contra- tualistas: desde Hobbes, para quem do estado (de terror) da natu- reza se chegaria a sociedade ou ordenagao civil, outorgando-se ao soberano o monopélio da violéncia; passando por Locke, que elabora as bases do pensamento liberal referido a um contrato que legitimaria o poder apenas na medida em que este servisse para regular ou supervisionar os direitos naturais, para cuja de- finigdo se formaria o pacto; e culminando com Rousseau, para quem o pacto social nfo tem como objeto a defesa dos interes- ses individuais, mas a submissaio 4 vontade geral, que seria algo mais que a soma dos interesses individuais. Cria-se assim 0 modelo sociolégico do consenso. Este consenso legitima o poder e legitima todas as manifesta- g6es de controle desse poder. Assim, no que diz respeito direta- mente ao tema tratado, o cédigo penal sera um monumento incontestado e incontestavel. Definidor supremo do bem e do mal. E, historicamente, a criminologia dele derivada é, portanto, uma criminologia acritica e submissa. E 0 periodo que Weber chama de dominagao legal, no qual o direito e seu ritual cumprimento bastam para legitimar 0 poder. Como apontaria posteriormente Durkheim, as normas penais so 0 produto dessa consciéncia coletiva. Mas 0 criminoso nao 0 € por natureza, e sim em relagdio a consciéncia comum. A tinica coisa que seria comum a todos os delitos ¢ a reagdo que eles determinam, que seria sempre, para todos, a mesma. A unidade do efeito revela- riaa unidade da causa. A pena, portanto, seria uma reagao passional 59 Hélio Jaguaribe. Hacia la sociedad no represiva. México, Fondo de Cultura Econémica, 1978. Entretanto, a comunidade de valores da polis existia, como sempre, para o grupo dominante. E preciso no esquecer que ela convivia com a escravidao. 68 exercida mediante um corpo constitufdo. Uma forma de vingar o que € sagrado na consciéncia coletiva e que, por isso, deve exigira inflig&o de uma dor. Tendo como fung&o manter intacta a coesio social, mantém em toda a sua vitalidade a consciéncia comum*!, Estamos, pois, em pleno apogeu da metafisica idealista. En- tretanto, como veremos, j4 durante 0 chamado periodo do iluminismo aparecem alguns elementos do que sera posteriormente 0 positivismo. Quem melhor representa o liberalismo da fase industrial e madura da revolugao burguesa é John Stuart Mill. Ele rejeita a teo- ria do direito natural e do contrato social, mas aceita o conceito de direitos individuais no sentido de Locke e nao no de Rousseau, que &, como vimos, mais social. O poder encontraria sua legitimidade, entdo, na protegao desses direitos individuais®. A criminologia da escola classica, portanto, tem como marco de filosofia politica as idéias liberais do contratualismo e como mo- delo sociolégico o consenso. E 0 mesmo marco da criminologia liberal chamada “organizacional”, praticada principalmente nos EUA e Canada, que busca pragmaticamente melhorar o sistema de con- trole social (policia, tribunais, servigos de assisténcia social, etc.) e formular, enfim, a politica criminal através de pesquisas valorativas e propostas de reforma. Ea criminologia do “gattopardismo”: mu- dar as coisas para que tudo fique como esta. Gragas a Marx, que toma o momento do surgimento da bur- guesia na sociedade feudal como modelo de desenvolvimento de classe e da consci€ncia de classe, foi possivel entender a aparigéio de ideologias concretas na historia. E assim que se comega a verificar que a escola classica de direito penal nao é pré-criminoldgica, mas é ela mesma uma crimi- nologia administrativa e legal, uma forma de controle social fundante da nova ordem estabelecida (para utilizar 0 conceito weberiano) pela via da dominagio legal*. Ela representou a ideologia de uma 5! Emile Durkheim, La sociologia y las reglas del método sociolégico. Santiago do Chile, 1937. % Jaguaribe, op. cit. * Cf. Taylor, Walton e Young, La nueva criminologia, México, Amortortu, Cf. também o capitulo II deste livro. 69 nova sociedade que pretendia livrar-se do poder absoluto feudal ou monérquico é estabelecer, na nova racionalidade de um libérrimo intercAambio de mercadorias, o reino do direito privado, isto é, da vontade das partes, também no direito penal, da mesma maneira que acontecia no mundo da economia. Sua finalidade era garantir que houvesse um minimo de intervengo estatal. O importante era proteger os individuos do poder do Estado, controlar ao maximo esse poder, privatizando ao maximo as relagées juridicas. O direito constitui “as regras do jogo da paz burguesa”, nas palavras de Amaud. A fungao politica dessa criminologia pode ser resumida nos seguintes passos, mais amplamente descritos por Pavarini: contrato social => monopilio da violéncia nas maos do Principe (definidor ex- clusivo do permitido e do proibido, e portanto dos valores basicos, supostamente consensuais, do sistema); => principio de legalidade (na realidade, selegéio classista dos ilegalismos); => irretroatividade da lei (para a seguranca do mercado); => codificagao sistémica para evitar contradigdes na lei; => interpretacao disciplinada da lei (com os mesmos fins); => presungdo de igualdade entre as partes da relag&o juridica (nao coincidente com 0 social concreto)°*. Odireito penal burgués foi, portanto, uma plataforma juridico- politica que asseguraria a previsibilidade necesséria para o livre desen- volvimento do mercado, interesse central da classe em ascens&o, que antes estava em posi¢do subordinada e que deveria garantir agora seu direito ao poder em face dos res{duos ideolégicos do sistema feudal°>. Por isso era mais propriamente um projeto para um Estado ideal. Em * Cf. Massimo Pavarini, Control social y dominacién. Teorias crimi- nologicas burguesas y proyecto hegeménico. México, Siglo XXI, 1983. Taylor, Walton e Young, La nueva criminologia, op. cit. 55 Sua posigiio de classe era mais propriamente subordinada que domina- da, pois, como bem diz Bottomore, “a burguesia era uma terceira classe na sociedade feudal, nao a classe diretamente explorada, e estava diretamente associada a um novo modo de produgiio baseado em uma nova tecnologia” (T. B. Bottomore, La sociologia como critica social. Barcelona, Peninsula, 1976). Como disse Marx: “o moinho manual determina uma sociedade com o senhor feudal, o moinho a vapor uma sociedade com 0 capitalismo indus- trial”. © problema hoje é que, embora a burguesia produza seus prdprios 70 conformidade a isso, era simples identificar 0 delinqtiente como inimi- g0 de classe ¢ organizar um controle mais efetivo sobre o que entao se podia chamar exército industrial de reserva, a cujos membros se inci- tariaa aceitar sua condigao de nao proprietarios, disciplinando-os para © trabalho assalariado, primeiro nas chamadas “casas de correcéio e de trabalho” e, em seguida, nas penitencidrias®, Com o passar do tempo, uma vez consolidado o poder da nova classe dominante, aqueles princfpios garantidores serviri- am mais 4 defesa do que logo foi a unica classe dominada (a classe nao proprietaria). 2. A criminologia positivista Surge, entao, a criminologia positivista, que procuraria novos caminhos para legitimar o poder. Por trs dela esté também 0 modelo do consenso, embora o positivismo recuse expressamente qualquer enquadramento socio- politico. Sua insisténcia numa suposta neutralidade nao pode enganar, porque, apesar de, como filosofia, centralizar toda a autoridade e todo o poder na ciéncia, o positivismo como criminologia nao ques- tionou a ordem dada, e saiu, cédigo na mo, a perseguir o que desde entdo passou a se chamar de delingiientes natos, loucos morais, personalidades criminosas, desagregados sociais, inadaptados, etc. (as definigGes sao tao variadas quanto as proprias variantes do positi- vismo criminoldgico), fazendo assim tao pouca ciéncia quanto a que criticava nos crimindlogos anteriores a essa escola. Considerando anormais ou desviados os assinalados por uma decisio politica (a Lei), contradizia os postulados de sua pretensio cientifica. idedlogos, as classes atualmente submetidas nfo estiio produzindo — ao menos € 0 que parece — por elas mesmas, sua ideologia libertadora. Por isso Lukécs fala de uma “consciéncia possivel” ou uma “consoiéncia im- putada”, e Lénin distinguia entre “consciéncia sindical” — que é o que pode obter por si s6 a classe operaria — e “consciéncia socialista” — que é elaborada pelos intelectuais revolucionérios, ou “o partido” (ibid., p.115). A discussdo sobre esse ponto permanece aberta. % Ibidem. Ver também Dario Melossi ¢ Massimo Pavarini, Carcel y fé- brica, México, Siglo XXI, 1982. 71 Vemos, portanto, que também o pensamento positivista tem suas origens em uma necessidade politica®’. Em varias, a rigor, de acordo com as épocas: 1. No terreno cognitivo, os iluministas, precursores do positi- vismo, reconheciam a impoténcia da condi¢aéo humana para apre- ender as substancias ocultas 4 experiéncia imediata. Essa procla- mada incapacidade de descobrir a esséncia por tras da aparéncia, pivé de toda a filosofia positivista, representava nessa €poca uma tentativa de igualar todos os homens através da teoria sensorial do conhecimento: todos teriam nascido “tabula rasa”. Substituem-se, assim, as construgdes metafisicas, o que Hume chamava de meros “procedimentos verbais”, pelo estudo metédico das necessidades do homem para sua satisfagao coletiva. 2. Uma nova ideologia se abre aos poucos. Foi uma forma de pér ordem no caos da revolugao burguesa e de instaurar um forte poder unificado: acabando com a metafisica revolucionaria, esse poder seria a busca de uma. fisica social. 3. Os positivistas apregoavam uma ordem organica. A coope- ragao entre os homens nao proviria da ética utilitaria dos iluministas, que supunham um pacto social para a salvaguarda dos interesses individuais, mas de um verdadeiro “instinto social”. A sociedade, para o positivismo, nao é apenas um instrumento que serve para regular os conflitos, mas uma entidade aut6noma e organica. (Dai as futuras formagées funcionalistas, como veremos, que também tém antecedentes positivistas). A sociedade do futuro, organica e racional, estaré baseada na ciéncia. 4. Para os positivistas, fundamentalmente para Comte, a hu- manidade tem ciclos que vao do que ele chama de “épocas organi- cas” para as “épocas criticas”. Esses ciclos ttm uma ordem que segue uma linha ascendente na diregao do progresso. O progresso ser, afinal, a “sociedade positiva”. E esse progresso nao pode alte- rar os caracteres estruturais da vida coletiva, cujo exemplo classico seria a propriedade. E a manutengao do status quo burgués. Toda ordem supée progresso, a menos que seja subversiva. 57 Leszeck Kolakowski. La philosophie positiviste. Paris, Denoél- Gauthier, 1976. Foi esse autor que explorou amplamente todas essas fungées politicas do positivismo. 72 Se 0 positivismo é ordem, o positivismo é a negagdo de uma nova mudanga radical. A revolugao liberal-burguesa deveria ser a tltima. 5. O positivismo resiste expressamente as tentagdes utdpicas da “melhor das sociedades”, cuja perfeigdo proviria da imaginagao. Seus projetos, dizem, estar&o baseados nas propriedades naturais, necessérias, da vida social. E, portanto, resistente 4 mudanga. 6. Como 0 positivismo é 0 império do fato, da indugao, das técnicas de pesquisa, do mensurdvel, do que pode ser convalidado empiricamente, ele nao se interroga além da correlagdo causal; nao se pergunta o porqué. Pois o porqué, para o positivismo, nao é valido interpretativamente, nao é cientifico, a menos que se recorra ao fato, a validagao empirica, coisa que em ciéncias sociais nao é vidvel fazer. Entretanto, a hist6ria demonstra que o homem sempre se per- guntou pelas causas Ultimas, sempre procurou desvendar o misté- rio, apreender a esséncia oculta pela aparéncia, sempre buscou a razao que a Escola de Frankfurt chama de “pratica” ou moral — 0 verdadeiramente humano — e nao a razio cientffica. Essa busca da esséncia, pelo contrario, € 0 que se propde 0 pensamento dialético-materialista ea criminologia que nele se baseia. 7. O positivismo substitui a teoria do conhecimento por uma teoria da ciéncia, ¢ a critica humanistico-revolucionaria implicita em Hegel, e explicita em Marx, pela filosofia naturalistico-conser- vadora de Comte. Reduz a conduta humana a um processo objetivo, carente de subjetividade e de intencionalidade; a um fisicalismo anti-humanista. E substitui “a realidade” pelo que é “suscetivel de pesquisa nas ciéncias”. Esta ideologia da desesperanga, como a chamou Brozowski, ao considerar que a ciéncia é a continuagdo da experiéncia animal — pois nao tem qualquer sentido além da totalidade das experiéncias sobre as quais se baseia —, vé-se obrigada a reconhecer que “a ver- dade”, “o bem”, “o belo”, por exemplo, nao sao elementos da expe- riéncia, Assim, pois, “o sofrimento, a morte, as lutas ideoldgicas, os antagonismos sociais, os conflitos de valores”, tudo isso foi rejeita- do pelo princfpio de nao verificabilidade desses fendmenos®. * Cf. Kolakowski, op. cit., de quem extraimos resumidamente esses principios. 73 Pouco se pode falar de neutralidade politica no positivismo, como se vé. A influéncia do positivismo na criminologia foi tao impactante que alguns dizem que a criminologia positivista é a criminologia tout court, porque nfo créem que a classica, nem a critica, nem a interacionista sejam criminologia. No terreno da criminologia, isso serviu, como se sabe, para estabelecer critérios de anormalidade, doenga, desvio, patologias sociais ou “desagregacao social”, no caso da chamada delingiiéncia eda dita conduta desviada. Mesmo as correntes sociolégicas norte- americanas (ecologista, culturalista, funcionalista) que se conside- ram um avanco frente ao positivismo antropobiopsicoldgico, a am- pliago do objeto de estudo, incluindo também agora asimples “con- duta desviada”, evidencia uma vontade de controle maior que todos aqueles que se afastam do que é protegido pelo sistema. A mesma expresso “conduta desviada” tem j4 uma conotagaio negativa dian- te do que se supde um bloco consensualmente valorativo. Em seu momento “clinico”, o positivismo incorporou, conseqlientemente, a linguagem médica para identificar problemas sociais (clinica crimi- noldgica, diagnéstico, prognéstico, tratamento). Tudo isso serviu para estabelecer, sobre a realidade de classe da populagao penitenciaria, as- sociacées entre o pobre, 0 feio, o anormal eo perigoso. E ao contrario, também: 0 rico, 0 sao, 0 belo, o inofensivo, livrando-se assim as con- dutas danosas dos poderosos e constituindo-se um esteredtipo do delinqiiente, que pertencia sempre as classes subalternas. 3. Criminologia, direito e sistemas sociopoliticos na América Latina No caso da América Latina, um positivismo spenceriano e, portanto, racista, serviu para subjugar minorias étnicas e também para justificar as relagdes de exploragao Norte-Sul, ao estabelecer um suposto vinculo entre subdesenvolvimento, meio geografico e delingiiéncia®®, como o demonstrou amplamente Rosa del Olmo. 5° Cf. Lola Aniyar de Castro, “El movimiento de la teoria criminoldgica y evaluacién de su estado actual”, in Cuadernos de Politica Criminal, Madri, 1984, e Rosa del Olmo, América Latina y su criminologia, Méxi- co, Siglo XXI, 1981, que estudou em profundidade essa fungao legitimadora no continente. 74 A influéncia da criminologia positivista na conformagao de atitudes e valores, como em qualquer lugar, foi ampla na América Latina. As pesquisas do Grupo Latino-americano de Crimi inologia Comparada comprovou um esteredtipo bem sedimentado do delin- qiente ao estudar a delingiiéncia de colarinho branco. Nesse nivel de consciéncia publica, o papel legitimador da criminologia tradicional foi importante. Entretanto, pouco se pode dizer da fungao cumprida pela aplicagao de seus postulados no 4m- bito penitenciério. A criminologia popularmente reconhecida na Venezuela é a criminologia positivista. Mas sua recep¢ao na pratica oficial é quase inexistente. Normalmente, nos paises periféricos, as formulagées teéricas autéctones tém pouco impacto na politica ofi- cial, que desenvolve seus programas, quando existem, sobre a base do que se produz nos paises centrais, o que conduziu a uma situa- ¢4o paradoxal: o subdesenvolvimento politico e econémico contri- buindo para o desenvolvimento da criminologia livre®, Mas isso nao deixa de ter significagao politica. Pode-se fazer criminologia livre enquanto os governos se mantenham com uma base de aprovagio suficiente. A liberdade académica e/ou de ex- press&o, quando nao tem implicagées perigosas de subversio con- creta, cumpre uma fungao simbélica de legitimagao. Por outro lado, na pratica, ndo apenas as propostas da criminologia que poderia- mos chamar de oficial deixam de ser adotadas como —consideran- do-se 0 caso da Venezuela — 0 controle social formal é exercido praticamente sem que se leve em conta o funcionamento prescrito para 0 controle formal estabelecido, através dos operativos polici- ais, a prisdo preventiva como pena antecipada, as execuges extra- judiciais ea lei de vadios e malfeitores. Ante essa escalada do “autoritarismo democratico”, a cri- minologia estigmatizadora adquire uma relevancia funcional. E a luta do mau contra o bom. O anjo exterminador justiceiro nao care- ce de legitimacaio legal. A situagdo é diferente nos paises latino-americanos em que se estabeleceram regimes abertamente autoritarios, Nesses, a crimi- nologia convencional se detém em seu desenvolvimento ea legiti- magao comega a funcionar sobre as bases da necessidade de uma “ Ver, a propésito, nossos argumentos no cap. 2, p. 52. 75 convalidagaio da repressaio politica através da reforma do direito e de uma teorizagao que bem podemos chamar de criminoldgica, embora com novo tipo, conhecida como a doutrina de “seguranca nacional”, Bergalli, Bustos, Garcia Méndez e Baratta descreveram essa situagao no Cone Sul, documentando-a em muitos casos. Por um lado, os juristas, postos ao lado do poder, contribufram para asses- sorar e redigir as novas instituigdes repressivas do dissenso; por outro, a judicatura convalidou a repressdo através da fungao jurisdicional criadora do direito. Eo que Baratta denomina “tendén- cia a politizagao dos sistemas penais”®!. Bergalli chamaa isso de “criminologia do terror”, por consti- tuir uma “importante fonte de recursos conceituais para o treina- mento e a redugao dos elementos refratarios ao sistema social im- posto, conformada por penitenciaristas e penalistas funcionarios da administragao penitencidria ou do Ministério da Justig¢a que pre- pararam os instrumentos juridicos do regime”. Por meio deles, equi- paravam-se os detidos por ordem do Poder Executivo aos que a autoridade penitenciaria classificava como de “periculosidade ma- xima”, associando-se assim a dissidéncia politica 4 criminalidade comum. Instituiu-se a pena de morte, criaram-se tribunais espe- ciais para os casos de subversao, reprimiram-se manifestagdes po- Iiticas ou sindicais e utilizou-se a jurisdigdo militar para civis e para exercer a censura ideolégica. Dessa forma, como diz Bergalli, pro- duziu-se uma reciclagem entre a criminologia positivista e 0 direito penal autoritdrio. Se é assim, nao apenas parece correta a tese de Garcia Méndez de que nos paises autoritarios o desenvolvimento 5! Alessandro Baratta. “Viejas y nuevas estrategias de legitimacién del derecho penal”, mimeo. Conferéncia proferida no Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia, setembro de 1985. Ver também Roberto Bergalli, “La estructura judicial en América Latina”, na tradugiio castelhana de Georg Rusche ¢ Otto Kirchheimer, Pena y estructura social, Bogota, Temis, 1984; Juan Bustos, “Estructura jurfdica y Estado en América Latina”, ibidem; Emilio Garefa Méndez, “Autoritarismo, institucionalizacién y control social en el cono sur latino-americano”, tese de doutorado, Saarbriicken, 1983; Bergalli, “Reflexiones sobre el control social en América Latina”, posficio a Massimo Pavarini, Control y dominacién, México, Siglo XX1, 1983. 76 do direito penal se fez em detrimento da criminologia, mas também que ambas as instancias de controle (direito criminologia) se arti- culavam bem para exercé-lo. Ha pouca documentagao a esse tespeito sobre os demais pai- ses que vivem sob regime ditatorial, nos quais 0 papel da criminologia parece ser passivo, ou seja, apenas referencial, salvo no que se relaciona ao exercfcio da doutrina de seguranga nacional e da utili- Za¢ao de tribunais especiais que conduzem a militarizagao da justiga, em certos paises centro-americanos. Na Guatemala foram feitas algumas tentativas de institucionalizagao da repressao da dissidén- cia politica, com a inclusao, no texto constitucional, de disposigdes que legalizam as Patrulhas de Auto-defesa Civil (PAC) eas Coorde- na¢6es Institucionais (Cl), instrumentos que pdem nas maos do exército as atividades do setor publico e das instituigdes nao-gover- namentais e privadas a ele vinculadas®, questionando-se assim, de antemao, tanto a validade da nova Constituigao elaborada pela As- sembléia Constituinte como a autonomia do governo civil que venha a ser eleito. Algumas restrigdes similares constavam também do Pacto do Clube Naval, anterior as recentes eleig¢des uruguaias, Em termos gerais, 0 maior controle social pode ser verificado nesses casos de maneira paralela, para nao dizer subterranea, através dos esquadrées da morte, dos desaparecimentos e das torturas. Na Guatemala, a criminologia praticamente inexiste, e as violag6es aos direitos humanos so constatadas também de modo extremo dentro das prisées, onde os detentos so torturados e eliminados®, Em E] Salvador, Atilio Ramirez Amaya denunciaa coexistén- cia de cinco sistemas penais: 1. O sistema penal comum, para os delinqtientes comuns, que estariam em melhores condigées de ga- rantia legal e de sistema penitencidrio; 2. O sistema penal para pro- cessados politicos; 3. O sistema penal para os desaparecidos; 4. O sistema penal da imunidade, e 5. O sistema penal para os refugia- © Cf. Boletim Informativo da Comissao de Direitos Humanos da Gua- temala, ano 3, n° 5 ¢ 6, 1985. © Cf. Humberto Estrada, “El delito y el delincuente en el derecho penal guatemalteco. Situacién Actual”, comunicagéio apresentada no 3° En- contro de Criminélogos Criticos, Mandgua, outubro de 1985, 7 dos. Alguns desses ultimos so para-legais. Mas 0 segundo esta legalizado na “Lei de Procedimentos Penais aplicaveis quando da suspensao das garantias constitucionais”, que passou a vigorar com o Decreto 50, na qual a prova principal é a confiss&o extrajudicial, e em que os réus nao tém defesa e bastam os informes do Ministério da Defesa ou do Interior para qualificar certas associagSes como subversivas®, Se acrescentamos a isso que Ramirez Amaya, Unico cri- mindlogo de El Salvador, esta exilado, verificamos que 0 direito e as praticas repressivas assumiram totalmente a fungao controladora nesse pais. Sobre as fungées da criminologia nos paises socialistas, qual- quer afirmacdo definitiva deverd ser confrontada com a experiéncia dos que vivem nesse sistema. Em relacdo a Cuba, a partir da revisaio das publicagdes a que temos acesso e da observagao de algumas instituigdes que conhecemos pessoalmente, poderiamos adiantar algumas opinides, condicionadas, bem entendido, a uma discussaio mais profunda. Em primeiro lugar, parece-nos que a legitimagao do sistema se produz por dois fatores que lhe s&o inerentes: a explicita protecao de interesses generalizaveis e a ampla consulta popular de que sao objeto os textos normativos. O “referente material do delito” parece encontrar af uma sangdo definitiva. Por outro lado, a afirmagao de que a legalidade socialista é “um dos meios para a construgao do socialismo e o principio de organizag4o e atividade dos érgaos do Estado”, e que é de obrigatéria observancia e aplicagao desses e por esses Orgdos, pde a tarefa da legitimagdo na propria lei e na sua necessaria e incondicional aplicagao. Assim, o papel legitimador da dualidade simbélica/fatica dos corpos normativos das democracias burguesas (que converte em programaticas nao apenas as disposi- g6es legais protetoras dos interesses sociais, mas também as que protegem interesses individuais) nao esta presente ai. A fung&o ideolégica, em sua acepcao de “falsa consciéncia”, é suplantada pela fungao da ideologia em seu sentido de “projeto poli- “ Cf. Amaya, Avilez, Ramirez, Reyes, “El sistema y la justicia penal en El Salvador”, apresentado no 3° Encontro de Crimindlogos Criticos, Mana- gua, outubro de 1985. 78 tico”. Com efeito, a Constituigao cubana proclama clara e expressa- mente: 1, Que “o Estado socialista assegura a ideologia e as normas de convivéncia ¢ de consulta baseadas numa sociedade livre da ex- ploragao do homem pelo homem” (art. 8°); 2. Que “a Constituigao e as leis do Estado socialista dio expresso juridica das relages socia- listas de produgao e dos interesses da vontade do povo trabalha- dor”; 3. Que “a liberdade de discusstio, o exercfcio da critica e da autocritica e a subordinagio da minoria a maioria vigoram em todos Os Srgiaos estatais colegiados” (art. 66). E também, 4. “As massas populares controlam a atividade dos érgios estatais” ( ibidem). Nao ha ocultagao, portanto, nem dos fins nem das fontes do exercicio do poder. Os direitos (sociais ou individuais) so “direi- tos legais” e nao de inspiragao jusnaturalista, anteriores ao Estado e ao direito, Isso torna talvez necessdria a utilizagao de constru¢des crimino- légicas sobre como sao os maus e como so os bons. A vontade expressa do sistema reclama a ressocializacaio. O explorador é um ladrao, O ladrao é um explorador. Aressocializacao é exercida atra- vés da conscientizagao politica. A prevengao também, através do aperfeicoamento da qualidade de vida e da correcao das falhas do Estado no seu dever de proporcionar condi¢des favoraveis ao de- senvolvimento de uma personalidade socializada. A criminologia é mais preventiva, organizacional e ressocializadora do que teérica. Uma tendéncia ao causal-explicativo, mas apenas no terreno socio- légico, parece entretanto estar presente, A consulta prolongada leva a que a legislagdo seja repressiva mas, também, propicia o entendimento do problema delitivo como um instrumento para manter 0 consenso através do castigo e do exercicio da democracia popular. O controle social, formal e infor- mal, pré e pés-delitivo, é exercido também através das organizacées de massa, o que garante um baixo indice de reincidéncia. A tese do “residuo” para explicar a conduta individualista delitiva tem cada vez menos aceitagao. A énfase, de todos os modos, é posta sobre a reeducagao, que consiste expressamente na criagdo de uma cons- ciéncia social. O alto indice de registro delitivo — muito menor, entretan- to, do que nos paises com outra estrutura politica — resulta do 79 alto ntimero de dentincias, isto é, de uma cifra negra minima. O que quer dizer que a comunidade percebe qualquer delinqiente como seu inimigo e busca o castigo ou a reeducagao dele a qual- quer custo. No socialismo, portanto, as cartas estéo na mesa. As regras do jogo, muito claras. Nao ha engano a denunciar. Nao hé discurso aparente e realidade subterranea. Nao se proclama a prote¢ao de todos. E a ditadura do proletariado. Nao se pretende, como nas democracias burguesas, um regime plural®. Na Nicaragua, a criminologia tedrica desapareceu para dar lugar ds reformas institucionais e sociais e 4 fungdo controladora da delinqiiéncia por parte das organizagGes de base®, Cf. Ferndndez Bultés, “La legalidad socialista con la construccién de la nueva sociedad”, in 1° Simpésio Cientifico sobre a Politica e a Ideologia em suas Relagdes com 0 Direito, Havana, Ministério da Justiga, 1984; Marcia Diego Vazquez, “El papel del derecho en la formacién de la conciencia socialista”, ibidem; O. Castanedo e Julio Cazén, “El tratamiento a menores con transtornos de conducta”, ibidem; “La cuestién criminal en América Latina”, comunicagéio apresentada no 3° Encontro de Criminélogos Criti- cos, Managua, outubro de 1985; José Galbe Loshuertos, “El transito de la criminologia burguesa a la socialista”, in Revista Juridica, Havana, Minis- tério da Justiga, ano II, n° 4, 1984; Juan Vega Vega, “El concepto socialista del delito”, ibid, e “La proteccién juridico-penal en el socialismo”, Havana, ed. de Ciéncias Sociais, 1983; A. Cejas Sanchez, “Nuevo enfoque de la criminologia”, in Revista Juridica 6, ano III, 1985; José Francisco Martinez Rincones, “El derecho penal cubano”, mimeo, 1981; Caridad Navarrete Calderén, “Actualidad del enfoque ctiminolégico de la problematica de las transgresiones de la ley entre los menores de edad. Consideraciones acer- ca de la metodologia e metédica de la investigacién criminolégica de la conducta y la personalidad de los menores de edad transgresores de la ley”, in 1° Simpésio Cientifico..., op. cit.; Alvan Sanchez Garcia, “Algunas considerciones sobre la criminalidad y la penologia en la sociedad socialis- ta”, in Revista Cubana de Derecho, n° 12, Havana, 1975. 6 Cf. Vilma Niifiez de Escorcia, “Transformacién revolucionaria y control social de la delincuencia en Nicaragua”. Comunicag&o apresentada & Assembléia da Sociedade Americana de Sociologia, Santo Anténio de Tejas, agosto de 1984, in Capitulo Criminolégico 13, érgio do Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia, Maracaibo, 1985. 80 4. O modelo do conflito: contetido contemporanco de uma criminologia alternativa O modelo do conflito, em oposigao ao do consenso, seré ini- ciado por Hegel, que retoma a critica de Rousseau (abandonando o liberalismo) da sociedade civil como express&o do predominio eco- némico-politico dos detentores da propriedade. O Estado sera, para ele, a sintese da oposigo familia-sociedade civil e estaria submeti- do a historicidade geral do Espirito: o Estado serd despético na antiguidade oriental, democratico ou autocratico no mundo classi- co; com os alemies se instauraria a monarquia constitucional, esta- do perfeito para dirimir os conflitos, pois o monarca nao pertence- ria 4 sociedade civil, mas seria transclassista (Hegel, 1974). Marx, como se sabe, pelo contrério, denuncia o cardter clas- sista de todo Estado fundado em uma sociedade de classes. A clas- se universal de Hegel (funciondrios neutros e racionais) nao é, para Marx, nada mais que a representante dos interesses dominantes, trabalha a seu servico. O proletariado seria, para esse autor, a inica classe universal, porque sua existéncia nao depende da exploracaio de outras e, portanto, expressa os tinicos interesses que podem ser generalizaveis. Conseqiientemente, para este modelo, o cédigo penal nao re- presenta um consenso, mas a garantia preferencial dos interesses da classe dominante. A sociedade n&o tem os mesmos valores; é plural. O que é bom para uns pode ser mau para outros. Uma criminologia que derive desse ponto de vista nao deve, portanto, sair em busca dos seres presumidamente anormais que violam a lei, para puni-los, melhord-los ou readaptd-los, mas liberar-se da cami- sa-de-forga dos codigos penais ¢ estabelecer autonomamente seu objeto de estudo. O modelo do conflito da sustentagao a criminologia intera- cionista, que nao é marxista, e 4 criminologia critica ou radical, ou nova criminologia, como a chamaram Taylor, Walton e Young, ba- seada em fundamentagao marxista mais ou menos ortodoxa segun- do os modelos. Enesse momento que a fungao legitimadora da criminologia comega a ser questionada. Assim, a criminologia deixa de ser uma ciéncia auxiliar do direito penal, instaurando-se entre ambas as instancias académicas a1 uma relacdio inversa, na qual o direito penal seria parte do objeto de estudo da criminologia, por ser um dos miltiplos elementos que compéem 0 controle social®”. Esta nova criminologia pergunta qual deveria ser um contetido justo, para nao dizer “objetivo”, de um cédigo penal que represente interesses validos e, dessa forma, também centrar melhor seu obje- to de estudo sobre o que seria o “socialmente negativo”. Este é talvezo momento mais delicado da nova trajetéria: entre o relativismo absoluto proposto pelo labelling approach e uma defini¢&o pura- mente emocional ou politica do que é “danoso”, surge a necessida- de de construir um “referencial material do delito”, projeto iniciado e desenvolvido por Baratta a partir da tribuna da revista Dei Delitti e delle Pene. A busca de uma reformulagao dos contetidos dos cédigos penais se baseia, sem diivida, em um discurso que pertence a ética, A epistemologia e 4 ciéncia politica, na medida em que esses cam- pos se vinculam aos fenémenos do controle social formal e mesmo a possivel categorizaco cientifica da criminologia. Pertence a ética porque implica 0 reconhecimento do cardter de verdade das questées praticas ou morais, isto é, uma possibili- dade cognitiva dessas questdes, em vez de uma conformagao as posigdes decisionistas caracteristicas da andlise sistémica em cién- cia politica. Ou seja, nao se trata de assumir objetivos comprome- tidos com valores arbitrariamente selecionados, como se fossem atos de fé, mas de ensaiar uma definigao do que é socialmente danoso nao necessariamente vinculada a uma codificagao legal inquestiondvel, com uma discussao livre e racional que descubra quais os critérios para identificar os interesses generalizdveis. Sobre esse ponto ja existem discuss6es representativas (Tappan, Schwendinger e Baratta em criminologia; Habermas e Luhmann em epistemologia e teoria politica). Tappan sustenta a inatacabilidade das definigdes penais como tinico pardmetro objeti- 57 Para a constituig&o e o desenvolvimento deste tema, todos os traba- Ihos de Baratta publicados na Questione Criminale podem ser conside- rados centrais, quase sem excegdio, da mesma forma que os que figuram na revista Dei Delitti e delle Pene. 82 vo, seguro, definido. Luhmann, por sua vez, é puro decisionismo: defende que se deveria chegar a um acordo entre as partes que obedega hoje a determinados interesses, e amanhii a outros, de for- maalternada, utilitaria, desprovida de sentido valorativo. Habermas resgata 0 sentido ideolégico, mas prop6e acordos: “A discrepAncia observavel entre norma e realidade jurfdica, as regras codificadas de exclusao, a divergéncia no nivel efetivo de pretensdes e no nivel de necessidades admitido politicamente, as repressdes que se tor- nam visiveis quando as nagdes s4o comparadas entre si, todas es- sas manifestacdes tém 0 mesmo carter que outras manifestagdes de conflito, que sé podem ser apreciadas no contexto de uma ané- lise da crise quando se logra introduzi-las em um sistema tedrico de descri¢ao ¢ avaliagdo”®. Para tanto, propde “uma determinagiio dos interesses generalizdveis e ao mesmo tempo reprimidos, num dis- curso simulado vicariamente, relacionado a grupos que se deslindam entre si (ou que poderiam deslindar-se de maneira nao arbitraria), por uma posigéio articulada ou ao menos virtual”, Essa intersubjetividade do discurso (necessariamente simula- do pela incapacidade estrutural de dar a ambas as partes em confli- toa igualdade requerida para uma auténtica formacdo da vontade) foi assumida por Baratta, abertamente, nos textos de criminologia. Mas ele Ihe acrescenta outros elementos: 1) a concepgao do ho- mem como portador de necessidades positivas, e 2) a possibilidade de que as condig6es para a emancipagio da classe operdria signifi- quem a emancipacao geral. De nossa parte, sugerimos, na ultima reuniao do Grupo Critico Latino-americano — realizada em Medelin, em 1984 —, a inclusaio do compromisso com as grandes maiorias marginalizadas como um elemento de equilibrio, j4 que nos parecia imposs{vel a elaboragao de uma proposi¢ao transformadora em abs- trato, que nao levasse em conta, na América Latina, e pela urgéncia vivida na regiao— muito diferente da realidade européia-, 0 argu- mento de que toda transformagio passa por uma op¢o pela parte mais fraca do conflito. Esse compromisso n&o esta fundamentado em uma tomada de posi¢ao de carater afetivo. Ea aceitagao do valor e do sentido de “ Jurgen Habermas. Problemas de legitimacién en el capitalismo tardio. Buenos Aires, Amorrortu, 1975, p. 141. 83 interesses que sao préprios de uma classe majoritéria e subal- ternizada, que, segundo Marx, por nao ser a classe geradora da exploracao, é a unica portadora de interesses generalizdveis, e por- tanto emancipadores, no momento histérico atual. No continente europeu, fortemente influenciado pela social- democracia, é quase bvio que se proponha uma forma de transa- go. Para esta via intermediaria, 0 problema reside em resolver as supostas “crises de legitimidade” ¢ em restaurar a coeréncia do sis- tema. N&o vemos sem desconfianga a expressio “crise de legitimida- de”. Como explica Arnaud: “o que o direito do regime de paz bur- guesa exige aos juristas no Ocidente é tomado como racional, de forma que a contestag4o ocorre nos quadros dessa mesma racionali- dade que o anima. Uma das armas prediletas do poder consiste na utilizagao de uma doutrina toda pronta para persuadir da realidade do discurso que sustenta e para apelar a nogio de crise, de modo a assegurar sua propria sobrevivéncia”™. Assim, a tentativa de bus- car um compromisso entre os pares da oposi¢o “dominantes-do- minados” é caracteristico de um sistema que procura manter-se mesmo a custa de alguns sacrificios conjunturais, ao estilo do Esta- do corporativo, renunciando a busca de uma hegemonia alternativa. Entretanto, uma ética mais radical, construida racionalmente sobre a base dos interesses historicamente determinados das classes subalternas, que nao desdenhe da possibilidade de descobrir areas convergentes entre a moral burguesa e a proletéria, mesmo nas circunstancias atuais, também foi proposta em sugestées origina- rias, paradoxalmente, de um pais pés-industrial, talvez porque pou- co tém a ver com a social-democracia: nos Estados Unidos, o casal Schwendinger”® postula como objeto de estudo da criminologia a vio- lago de interesses e necessidades alternativos aos tradicionais, de- A. J. Arnaud, “Algunas reflexiones sobre las relaciones entre la filosofia del derecho y Ia critica jurfdica”. Caderno n° 38 do Instituto de Filosofia do Direito da Universidade de Zulia, Maracaibo, 1974. ™ Cf. S. Schwendinger. “Classes sociais e a definigfo do delito”, in Crime and Social Justice, Issues in Criminology, 7, Primavera-verao de 1977. O tema dos direitos humanos como contetido do que é criminalizavel é também assumido por Baratta em sua formulacdo de “necessidades reais elementares”. 84 duzidos de uma interpretagao dos direitos humanos que partiria da moral proletaria, embora com as flexibilidades taticas necessdrias. Como esta posi¢ao € radical, sem dtivida encontra reticéncias em ambientes criminolégicos europeizantes, Na América Latina, e apesar do que se chamou de “morte das ideologias”, parece dificil chegar a afirmag6es mais elasticas. O controle social, aqui, tam- bém € radical, ou seja, é freqtientemente muito pouco sutil. O pro- blema nao reside na opgao, mas na garantia de que essa opeao, a ser realizavel, nao constitua um momento de poder que se estenda muito além do que o requerido pelas condig6es histéricas. Outros assinalaram a conveniéncia de se estudar a violago dos chamados interesses difusos, que ndo sao muito diferentes dos direitos humanos reinterpretados em chave social, mas esse crité- rio, embora presumivelmente resuma outros anteriores af con- densados numa perspectiva quantitativa, no resolve o problema porque néo aponta quais seriam os elementos para selecionar esses interesses comuns. Nao se pode esquecer, por outro lado, que ha interesses de grupos minoritarios (sexuais e culturais, por exem- plo) cuja significagao precisa ser levada em conta na hora de estu- dar condutas que os violam. 5. Uma avaliacao do estado atual da criminologia A primeira coisa que podemos dizer é que nos encontramos claramente diante da decadéncia de varios movimentos tedricos na criminologia: a velha criminologia positivista parece ter sido relegada aos empoeirados arquivos dos gabinetes penitencidrios e as mais tradicionais escolas de criminologia, embora seja ainda utilizada para manipular situagdes politicas, dar a aparéncia de que “alguma coisa esta sendo feita” e que se trata de algo cientifico. Entretanto, a curva dessa criminologia é abertamente descen- dente, apesar das tentativas dos mais inteligentes de “cruza-la” com sangue novo, O interacionismo, por sua vez, aparece estagnado, incapaz de propor problemas novos, como o da aboli¢ao do sistema penal. Descurando, em seu total relativismo, da realidade de que hd con- dutas que produzem dano a grandes setores populares e que mere- cem ser controladas, fecharam seu proprio caminho na diregao de uma andlise mais rica. 85 Jé.aos crimindlogos radicais norte-americanos interrogam-se hoje sobre o motivo pelo qual sua iniciativa sucumbe diante do surgimento de uma acachapante “nova direita” criminolégica nos Estados Unidos. Platt”! atribui essa situagado ao desconhecimento real da teoria marxista por parte dos que se pretenderam crimindlogos marxistas, os quais, em condi¢des de grande repressdo académica, nao tiveram a oportunidade de se desenvolver teoricamente. Alia criminologia ficou na antitese, mesmo antes de produzir um siste- ma teérico. Uma nova criminologia se estende atualmente pelos Estados Unidos: por um lado, o regresso a clinica, & criminologia médica, genética, biolégica e até morfolégica, com uma forga nova — 0 poder da sofisticada tecnologia norte-americana, que, até o momento, havia sido utilizada em pesquisas meramente socioldégi- cas sobre 0 delito. Fala-se agora de novo da black box, ou boite noire, ou caixa preta: 0 mistério do eérebro. Achamada sociobiologia intervém arrastando os pesquisadores para a procura de proprieda- des genéticas do mais forte na espécie. Trata-se de um tipo de re- gressdo a teoria atavica de Lombroso, que tampouco oferecera so- lugdes, porque ¢ parcial. Por outro lado, também a criminologia liberal fracassou. To- memos as palavras de um seu perfeito representante, € além disso promotor e militante dessa vertente liberal, ou organizacional, Denis Szabo”: “Houve um periodo de prosperidade sem precedentes, que Raymond Aron situa entre 1947 e 1974, que fez retroceder os limi- tes do possfvel a um nivel jamais alcangado (...). Aextrapolagao das curvas de produtividade, de inovagdes tecnolégicas, a civilizagao do tempo livre (...) poderfamos considerar, segundo a expressao de 7 Cf, Tony Platt e Paul Takagi. “Criminologia biosocial: una critica”, in Crime and Social Justice. Issues in Criminology, primavera-verao de 1979, e Tony Platt, “Los intelectuales tradicionales: una nueva derecha y uma nueva izquierda”, in Synthesis. Contradictions on Socialist Construction, vol Ill, n° 1, outono de 1979, in Capitulo Criminolégico 11/12, 6rgao do Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia, Maracaibo, 1983/84. 2 Denis Szabo. “Révolution permanente ou eternel renouvellement: la criminologie en situation”. Comunicagao apresentada no Coléquio da Societé Royale du Canada, in Continuité et Rupture dans les Sciences Sociales au Québec, out. 1982, p. 12-15. 86

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