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AGESTAO: ESPACO DE INTERVENGAO, ANALISE E ESPECIFICIDADES TECNICAS. ROSANA ONOCKO CAMPOS* a gestao como uma instancia, um lugar e um tempo Trabalhamos em gestao com a convicgao de que as organizagées e as instituigdes apareceram no mundo humano como espacos privilegiados para a sublimagao e a vida social e cultural. Assim, sem organizag6es e instituigd6es nao haveria humanidade. Contudo, disse Freud em Mal-Estar na Civilizagéo que essa passagem da animalidade a vida social nao se fez impunemente. Por isso, é claro, podemos reconhecer nos espacos organizacionais e institucionais, uma série de precos pagos por nés, humanos, para a vida social. Assim o controle, a dominac&o, 0 narcisismo das pequenas diferengas, etc, desabrocham com espantosa freqliéncia nesses espagos e esquecemos do "para que" vieram a existir. Esse pressuposto sobre o “sentido da existéncia" da vida social e cultural deve ser reativado na vida organizacional. Nos, humanos, tendemos a esquecer do "para que" fundamos a civilizagaéo. O cimento da vida social encarna-se nas instituig6es, que por sua vez sao postas a produzir na vida da organizagao ou do estabelecimento. Sera que estamos com isso propondo um tipo de “acdo institucional ?" Aparentados com o neo-institucionalismo do qual ja disse Lourau (2001 : 112) a originalidade maior esta na preocupagao pela génese das formas sociais? Talvez devamos dizer que vemos na reprodugaio - no sentido da sobrevivéncia - de estabelecimentos e organizagdes, uma permanente brecha aberta para a produgdo do novo. E destacar que nos estamos nos referindo a organizagées de servigos piiblicos (nao lucrativos) de satide, os quais entendemos como produtores de Valores de Uso’. A organizacgao ou estabelecimento produz ativa e estruturalmente dominagao, alienagao e controle.Nao vou deter-me nisso, s6 trazé-lo a tona para ressaltar que essa producao instituida numa diregao pode e deve ser estimulada para produzir outros sentidos: criacao, * para maiores detalhes sobre a utiizagao desse conceito ver Campus (2000) solidariedade, amizade, etc. Assim, trabalhamos na gestéo visando a produgdéo de graus maiores de autonomia, criatividade e desalienagaéo. Gestéo nas duas dimensGes que nos mostra Saramago: gerir e gerar. Cia a natureza as suas diversas criaturas com admiravel brutalidade. Entre mortos € aleijados, considera, nao faltaré quem es cape para garantir os resultados da geréncia, modo ambivalente e portanto equivoco de substantivar o gerir € 0 gerar, ‘com aquela confortavel margem de impreciséo que produz as mutagdes do que se diz, do que se faz e do que se é [. . J" (José Saramago, 1999:45 - grifos meus) A gestao classica sempre trabalhou a dimensao do gerir. O gerir como agéo sobre as acées dos outros. Assim sendo, fortemente amarrado exercicio do poder. Seria ingénuo afirmar que essa abordagem da gestéo nao pressup6e producao. Pois ela produz o tempo todo. A gestao tem sido a disciplina do controle por exceléncia. Preocupada sempre com o aumento da produgao de mais-valia, de produtividade, e de reprodugéo do status quo. As _propostas autogestionarias surgiram para contrarrestar essas mazelas. Num mundo no qual todo mundo se autogestionaria ja nao haveria necessidade de gestores, nem de uma disciplina que os ancorasse. E quando e como chegariamos ao paraiso autogerido? Pensamos que a autogestéo € um u-topos (um ndao-lugar, utopia). Sustentar a autogestéo em um lugar e um tempo fatalmente a faria ser topos e assim cair em graus de co-gestao, pois, no instante de sua instituigao, ela ja nao poderia ser mais pura autogestao. E, entao, renunciamos & autogestéo? Nao, mantemo-la ut6pica, 14, alvo inatingivel, porém sempre procurado, E assim ela produz. Produz busca, movimento, desestabilizacéio do instituido. Entre a heterogestao taylorista e a utopia autogestionaria a vida desenvolve-se em constante co-gestéo (Campos, 2000). E assim podemos vislumbrar a dimensao do gerar da gestdo. E como poderiamos outorgar a gest4o um desenvolvimento de sua dimensdo geratriz? A primeira questo seria abrirmos para a gestao um lugar e um tempo. Criar e instituir espagos nos quais se possa experimentar tomada de decisées coletivas. Espacos nos quais seja possivel formular projetos.Espagos que possam virar instancias (Laplanche & Pontalis, 1992), no sentido de processar aquilo que chega a eles, e ter um grau de analise da implicagdo maior com aquilo que produzem. a gestado nos seus aspectos técnicos: o oferecimento de arranjos e disposi Temos acumulado algumas elaboragées para propiciar a instalag&o desses espagos na organiza¢gao. “A acao contra-institucional, marcada a direita pela agao institucional, 4 esquerda pela acao antiinstitucional custa-Ihe trabalho situar-se [. .]" (Lourau. Ibidem, p. 124), Temos distinguido entre: ARRANJOS Eles tém certa estruturagéo e permanéncia, nesse sentido pretendemos formas de organizacgéo que possam ser institucionalizadas (Lourau. Ibidem, p, 121). A maquina de produzir controle nao opera pulsando, opera como fluxo continuo. Por isso, temos trabalhado tentando desenvolver arranjos que detenham a potencialidade de produzir esses fluxos na diregéo contraria. Digo potencialidade pois, como toda coisa que um dia se institucionaliza, esses arranjos nao estéo a salvo de serem capturados pela légica dominante. Neles, mais do que nunca o preco da liberdade é a eterna vigilancia! Alguns deles: . Colegiados de gest&o e Unidades de producgao”: Imp6em uma mudang¢a estrutural nas linhas formais de mando. Assim eliminam-se todas as coordenagées, ou geréncias, ou direcées especializadas, e instituem-se as Unidades de Produgaéo. O que qualifica uma Unidade de Produgéo é 0 seu produto, ou seja: 0 que produz? Visando-se uma certa homogeneidade dele (isso em satide 6 Baseado em CAMPOS 1998 sempre pouco, por exemplo: a producao de uma Unidade de Satide da crianga € diferente da de uma unidade de queimados. Assim, nessa nova estrutura organizacional todos os que trabalham com um mesmo. objeto (que em satde quase sempre é um sujeito) estao “obrigados" a trabalhar juntos sob 0 mesmo comando gerencial. Toda Unidade de producéo deve ter um espago colegiado de deliberacdo e discussao clinica, por sua vez, os coordenadores dessas unidades, todos juntos, constituem o Colegiado da organizac&o. Esse Colegiado delibera sobre diretrizes gerais, rumos da organizagao, etc. Os coordenadores das Unidades de Produgao levam para esse espaco aquelas questées sobre as quais a propria Unidade nao tem autonomia para decidir, em forma de demandas que desencadeiam deliberacdes. Exemplo: necessidade de ampliar infra-estrutura, contratagéo de mais pessoal, etc. Na medida do possivel todas as outras decisées sao tomadas pela equipe na propria unidade de produgéio, ou em comunicacao lateral com as outras unidades. S6 chegariam ao Colegiado se nao conseguissem formular novos contratos pela via horizontal. Esta exploragao da governabilidade e autonomia das equipes das Unidades de Produgao é fundamental e fundante da grupalidade de cada equipe. Cria efeito setting, institui as reunides periddicas e se abre a possibilidade de recriar processos intermediarios entre os membros da equipe. Kaes (1997) diz que sempre que ha um grupo empirico comeca a se constituir um grupo interno. Esses arranjos ajudam a constituir 0 grupo empirico, 6 nele que uma certa ligacéo do ponto de vista funcional e gerencial pode acontecer contribuindo para a criagdo de novo padrao de relacées intersubjetivas. Apoio Matricial*: Em nossa proposta 0 suporte especializado (técnico) continua a existir como um apoio matricial e desvinculado de linha de mando, Assim, pode-se ter uma enfermeira que ensina técnicas de enfermagem, faz formacao em servigo, etc., s6 que agora ela nao manda no pessoal, nao faz suas escalas de horarios e folgas, nem organiza os plantes. Essas antigas fungdes correspondem ao gerente da unidade de produc&o em permanente negociagéio com sua equipe, Esse descolar 0 apoio técnico da linha formal de mando é fundamental ® Baseado em Campos (1998), para aprimorar um certo desvelamento dos usos do poder*. E para, de certa forma, desnaturalizar a forte associagao vigente (pelo menos na satide) entre técnica e poder... Equipe de referéncia, adscri¢ao de usuario.® Todo usuario tem um profissional (ou equipe) de referéncia, a quem se dirigir ante suas demandas. Isso cria vinculo com o usuario, estimula a responsabilizac&o, e amplia a clinica. E muito mais dificil tratar burocraticamente alguém que se conhece que alguém que nunca vimos. O vinculo também contribui para aproximar o controle social da instancia na qual os cuidados sao prestados. Assim, no caso do Sistema de Satide Brasileiro, além de o usuario ter voz somente no Conselho local, ele cria novos padrées de contratualidade com a equipe profissional, aumentando-lhe a autonomia. Para viabilizar essa proposta é necessario mudar as condigées de contratagaio da equipe. E preciso trabalhar com diaristas que passem - pelo menos - um periodo por dia na Unidade, e ja néo mais no muito difundido esquema de plantées (um médico trabalha doze ou vinte e quatro horas seguidas, uma vez por semana). Assim, esse arranjo também propicia maior implicagaio dos profissionais com seu lugar e objeto de trabalho. Sera a mesma equipe de referéncia a que se responsabilizara por encaminhamentos, cobrar interconsultas, conversar com a familia, etc. Essa produc&o ativa de vinculo propiciada por esses arranjos € central para contribuir para desalienar os trabalhadores de seu objeto de trabalho, criar maior compromisso e responsabilizagéo, e potencializar 0 fato de se enxergar o préprio trabalho como produtor de "obras" (Campos, 1997). DISPOSITIVOS Buscam subverter as linhas de poder instituidas. Um dispositivo 6 podera ser confirmado nessa funcao a posteriori. Temos utilizado os mais variados: > Oficinas de planejamento > Cursos | treinamentos | formagao. * 0 pensador argentino Mario Testa (1993) tem aprofundado a analise dos tipos de poder nas organizagies de satide. Ele distingue poder politico de poder técnico e poder administrativo, No molde gerencial tradicional, e ainda hegeménico, por exemplo, a chefia de enfermagem costuma concentrar uso dos trés tipos (sabe as técnicas, controla as normas burocrétticas e detém influéncia politica no Hospital) Baseado em Campos (1998), € Carvalho & Campos 2000 » Analise | supervisdo institucional, > Assembléias. > E todos os que vierem a_ ser inventados. a gestao como produtora de intersubjetividade e processos intermediarios Na maioria das situacées institucionais, 0 modelo gerencial hegeménico (Campos, 2000), contribui para o estabelecimento de padrdes de relacionamentos interpessoais muito marcados pela ameaca que outro representa. A maioria desses grupos que encontramos nos servigos de satide n&o s&o grupos, porém agrupamentos, ou nado tém constituida uma area de relacdes intersubjetivas que permita que a experiéncia da diferenga nao seja vivida como mortal. © outro como ameaga. O outro como depositario de tudo 0 que ha de ruim. O outro como o que me impede de desabrochar. O outro como lugar onde despejar o que eu quiser. O outro como testemunha para quem representar, 0 agrupamento como palco. E essa situagéo se reedita em todos os niveis organizativos. Entre os gerentes, com os usuarios, etc, Para trabalhar em gestaéo com instancias é necessario propiciar nesses arranjos outras formas de experimentar a grupalidade. Para ter um projeto muitas vezes um grupo precisara de suporte e manejo que o ajude a se estruturar como intersubjetividade (com grau razoavel de circulacgéo de afetos), e o planejamento comega ai e nao depois, no plano (Onocko Campos, 2001). A caracteristica fundamental dos processos intermediarios para Winnicott é a de serem processos que requerem um lugar e um tempo e se caracterizam pelo fazer, ndo pelo puro pensar. Os processos intermediarios precisam de suporte e de manejo para se desenvolverem. Assim, destacamos a importancia de dar a esses espacos de gestéio uma certa regularidade. Os encontros como suporte. Suporte aqui na concepcao winnicottiana do termo: a funcdo que sustenta, estrutura uma personalidade, para Winnicott funcao materna por exceléncia (no caso, sustentaria uma grupalidade).Uma questo que merece aprofundamento teérico, 6 a das formagdes de compromisso singulares (de cada um) atentando, o tempo todo, contra a construcdo de contratos®. Com efeito, o deslocamento do “eu" ao “nés" @ paradigmatico da construgaéo de um espaco intermediario, espaco intersubjetivo. Portanto, a nosso ver, quem trabalhe em gestao precisa de uma qualificagaéo para compreender, suportar e interagir com os dramas intersubjetivos no palco grupal. Contudo, concordamos com Lourau quando nos diz: “o antiinstitucionalismo moderno, quando esta despolitizado, opta pela idéia e 0 mito grupalista como alternativa a instituigéo" (ibidem, p. 119). Portanto, naéo estamos defendendo a incorporagaéo de uma psicanalise sem compromisso, asséptica ou neutra, nem a exclusdo da politica, mas propondo reconhecer nessa especificidade um compromisso e uma escolha que séo também politicos, e que ndo podem ser subsumidos em nome da " grande" politica. A Politica com P que almejamos sé se faz com gente, e nds, todos nés gente, sempre daremos com o nariz nessas questdes. O caminho que achamos para experimentar processos de institucionalizagéio tem que ver com a institucionalizag&o de arranjos (como propostas técnicas de uma outra forma de organizacéo da gestao e do trabalho em satide), e também com um certo " recheio" e recriagéo permanente desses arranjos. Os quais, na nossa experiéncia, sé prosperam se forem mais bem compreendidas as mediag6es intersubjetivas e de poder que regem na organizacao. Ainda para que esses espagos nado acabem descompromissados com sua tarefa primaria e seu contexto (distraidos no gozo da prépria grupalidade como as vezes temos visto acontecer), sera necessario, além de criar e sustentar esses espagos, fazer neles oferecimentos (Campos, 2001). Usar das ofertas como suporte. As vezes, as ofertas operam como uma condig&éo que mediaria a transferéncia (algo parecido com a concep¢ao de alguns psicanalistas de sujeito ao qual é suposto um saber). As ofertas sao também parte do manejo (handing), vinculado as técnicas. Assim, nesse sentido haveria uma certa competéncia técnica para escolher o que ofertar segundo os entraves de cada coletivo organizado (Campos, 2000) - digamos: se faltar vinculo a oferta é "Para Campos (2000) a formagao de compromisso e a construgo de contratos seriam as formas sob as quais se apresenta a relacdo entre os sujeitos e as instituigées. Na primeira, predominariam os mecanismos inconscientes e, na segunda, processos deliberados. Assumindo ue ambas estéo sempre presentes, seria desejavel que os coletivos organizados para a produgaio Pudessem desenvolver graus cada vez mais amplos de contratagao, 0 que indicaria diminui¢ao do Coeficiente de alienagao dos sujeitos. adscrigéio, mas se faltar resolutividade talvez se possa oferecer uma discussdo sobre campo e nucleo, etc. Assim, a qualificagaéo desses espagos - segundo vimos até agora precisara de: um lugar e um tempo, suporte, e manejo. As ofertas poderaéo desempenhar papel ora de suporte, ora de manejo. E sera preciso, é claro, alguém que se responsabilize pelo exercicio dessas fungdes (analista, assessor, gerente, apoiador, etc,). a gestao como intervengao O Dicionario Aurélio nos diz que intervir é: 1. Tomar parte voluntariamente; meter-se de permeio, vir ou colocar-se entre, por iniciativa propria: ingerir-se. 2. Interpor a sua autoridade, ou os seus bons oficios, ou a sua diligéncia. 3. Ser ou estar presente; assistir. 4. Ocorrer incidentemente; sobrevir. 5.Tomar parte voluntariamente, meter-se de permeio, em discussdo, conflito, etc, Intervir é um verbo que nos convoca pessoalmente. Para intervir ha de se estar implicado. E alguém acha que o gerente taylorista nao esta implicado? Ele esta geralmente sobre-implicado com a sua fungao, e ele intervém. Controla, manda, ordena, programa. Geralmente para quem entra dessa forma na gest&o, exercer a fungao de suporte Ihe € muito dificil. Essas pessoas, em geral, € que sao suportadas pela gest&o. E isso nos leva a quest&o da pessoa do gerente. Em algumas experiéncias de trabalho institucional que realizamos nos deparamos com a falta de um sistema de geréncia, e isso nos fez pensar no papel de suporte que a geréncia detém. E dificil para um grupo assumir 0 co-governo de uma instituigéo quando nao existe tradigao para isso, e quando as mensagens da alta geréncia sao altamente contraditérias nesse sentido. Procurando compreender a fungao subjetiva da “geréncia’ percebemos, com varias experiéncias de intervencao institucional das quais participamos, muito claramente, um pedido da equipe a geréncia, para nao se omitir, para se diferenciar, para poder também cuidar dos profissionais. Em relagéo a esse tema é€ interessante constatar que a primeira vivéncia de "nds" e dos "outros" sempre aparece como "falta" de alguém que - claro - € sempre do outro. Muitas vezes, 0 movimento recai na figura do gerente. Esse movimento grupal é repetido e pode ser constatado em varias situag6es institucionais. Do gerente autoritario pede-se que se " abra” (as vezes ele 6 t&o autoritario que nado se pede nada). Do gerente do SUS, que por definigaéo carrega uma encomenda de democratismo, pede-se muitas vezes que possa - de fato - exercer papel diferenciado. Trata-se da questaéo do gerente em fungao, na sua fungao. Alguém que possa exercer a func&o coordenagéio, que esteja gerente, sem necessariamente sentir que 6 gerente. A figura do gerente: pura coordenagao? Qual deveria ser a func&o desse gerente? Gerente, chefe, coordenador, estou fugindo da pureza das palavras e utilizando-as como sinénimos. Refiro-me, de fato, a esse sujeito que tem funcao diferenciada na equipe. Portanto, uma primeira ressalva: o gerente é membro da equipe, porém nao € mais um ou qualquer um. Ele deve possuir funcao diferenciada, é por isso, também, que na maioria das organizagées paga-se uma diferenga salarial. Diferenga que busca ressaltar essa outra diferenga: a de fungao. Dito isso, partimos, entao, de uma postura que assume que toda equipe sera uma equipe de diferentes, e nado de iguais. Em alguns ambientes de trabalho - ditos democraticos - isso é permanentemente velado por um discurso da igualdade politicamente correto. Discordamos e afirmamos que essa questao faz obstaculos a tarefa muito freqiientemente.Para Pichon- Riviere (1999), no grupo operativo, a fungao do coordenador é manter © grupo operando, triangulando com a tarefa. Na proposta do grupo operativo essa fungdo poderia - teoricamente - ser rodiziada com certa freqliéncia. La nas estruturas de poder organizacional nao é tao assim. Muitissimas vezes 0 sujeito néo esta coordenador (exercendo a fungao), porém é chefe. A figura do gerente merece uma tentativa de compreensdo aprimorada. O que acontece com a pessoa desse sujeito que se transforma em um gerente, ja nao mais esta, ele(a) é gerente. Muitas vezes, reconhecemos nas organizagées papéis de gerente estereotipados: ou omisso (mais um da equipe, sem diferenga), ou autoritario (0 mais sabido tecnicamente, o mais poderoso, etc.), ou superprotetor (protege sua equipe de tudo, até da realidade). Nenhum desses papéis é assim exercido somente por um viés de personalidade do sujeito-gerente, mas também por ela, claro. Entendemos que essa configuragaéo de geréncia € sempre co- produzida por um conjunto de relagées e linhas de forga que vao desde a conformacgao do grupo-equipe, passando pela estrutura de poder organizacional (e seus arranjos gerenciais), pelas questées de inserg&o social da organizagéo (€ muito diferente uma organizacéo lucrativa de uma pUblica), pelo objeto de trabalho que diferencia sua tarefa primaria, etc. Mas entéo, 0 que é que um gerente deve ser para poder estar gerente? a)Formagao técnica em geréncia e em satide: em satide, classica mente escolhem-se gerentes por sua competéncia técnica em procedimentos de satide, muitas vezes nem sequer na produgéo de satide. (Isso apareceu em varias experiéncias de supervisdo, os grupos vinculando a figura do coordenador a quem "sabe".) Ressaltamos que alguém que se dispde a estar gerente vai ter de estudar algumas questoes técnicas proprias da tarefa gerencial. Dependendo do lugar: planejamento, gestéo de pessoas, custeio, calculos de insumos, etc., etc., etc. Isso é facil, pois é técnico e qualquer um apreende uma ou varias técnicas se se esforcar 0 suficiente. Outra moda recente - trazida da mao dos eficientistas - tem sido contratar gerentes ja formados (em técnicas gerenciais) mas que nao sabem nada de satide. Tenho discutido (Onocko Campos, 2000) por que isso é inviadvel - e indesejavel - no Brasil de hoje (a necessidade de o gerente se incumbir da discuss&o sobre modelos assistenciais e modelagens clinicas propostas). b) A pessoa do gerente: no modelo gerencial que propomos, o gerente se vera freqtientemente confrontado com questées advindas da grupalidade, das légicas de producao de subjetividade institucional, que o colocaréo na dificil posigéo de governar (pelo menos seu espaco micropolitico). Freud dizia que dentre as fungdes impossiveis encontrava-se a de governar. Quando cobrar? Quando cortar uma discussao no tempo em vista da urgéncia ou necessidade de se tomar decisées? Entre o autoritarismo e a omissao, qual é a " distancia justa? Essa distancia justa esta, para mim, na afirmativa freudiana da impossibilidade. Ou seja, nunca poderemos estabelecer a priori tal distancia, nao ha técnica que dé conta dessa questo (pois isso se vincula mais a phronesis - prudéncia - grega no sentido de buscar conselho consigo mesmo perante a situacdo, do que de ter respostas prontas e estereotipadas)’ e se é assim - ou seja, se nao ha uma técnica que dé conta disso -, entéo, é impossivel pensarmos nisso como uma distancia justa, sem duvidas, incertezas, angustias. Uma possibilidade é pensar nessa distancia, j4 néo mais como justa, porém, como um imenso territorio a ser explorado. c) Um pouco coordenador, entre a maternagem e a castracao: Se resgatarmos que a grupalidade que desejamos contribuir a produzir das equipes 6 uma grupalidade operativa, em que as pessoas ai possam explorar autonomia e criatividade, e assumam e se comprometam com a produgaéo de mundo (diminuigao do coeficiente de alienacdo), entéo o gerente tem de propiciar o acontecer dessa grupalidade fungéo suporte: mudar, arriscar, comprometer-se, sdo todas quest6es que assustam, muitas vezes mais do que imaginamos, a todos nds, humanos. Pensamos que seria parte desse novo papel gerencial poder cuidar, proteger (maternagem, holding, segundo Winnicott) essa grupalidade incipiente. Diz Winnicott (1999) que ninguém faz isso sem um lugar e um tempo (como 0 brincar). Por isso um primeiro cuidado que esse gerente pode tomar € criar uma “regularidade", um ambiente propiciador. Sentar-se olhando uns para os outros, estabelecer horarios e freqliéncias, criar setting para principio de conversa. O que parece uma banalidade, ou um purismo técnico, tem-se mostrado, na nossa experiéncia, de fundamental importancia para introduzir uma primeira diferenga. Quando conseguimos instaurar num grupo a necessidade de respeitar 0 horario da reuniao, de desligar os telefones celulares, de instruir a secretaria para nao interromper, abrimos a possibilidade a uma nova maneira de experimentar 0 tempo. Questao central quando se trata de gestéo, em que costuma primar um ritmo acelerado, que faz obstaculo a reflexao. Limite como continéncia: © grupo incipiente, como a crianca em certa fase de sua vida, néo sabe até onde chega,néo conhece seus limites espaciais. Na gestio, traduza-se isso por nao ter experimentado, ainda, até onde pode ser explorada sua autonomia e governabilidade: 0 que esse grupo pode e deve, de fato, decidir? Na E jd para Arist6teles a prudéncia era um componente fundamental do conhecimento ético crianga, tratar-se-ia da diferenciagaéo entre 0 eu e 0 ndo-eu, processo que se instala com 0 advento dos processos transicionais (Winnicott. Ibidem), Como nunca ainda experimentou, provavelmente vai exceder- se. No nosso caso: a equipe comega a se sentir auténoma, a exercitar e gostar dessa experiéncia da propria poténcia, e tende a “usurpar" 0 espaco de outros niveis de decisdo, de outras equipes, etc, Ai, o mais importante € nao retaliar. O limite a ser posto, entéo, 6 o da continéncia, do suporte, nunca o da retaliagdo. E precisamente o que os chefes nao sabem fazer, pois como eles nao estéo, senao que sao chefes, essa agressividade primaria é vivida como um ataque a eles (eu gerente aqui) e no pode ser compreendida como um momento do grupo. Uma pessoa precisa ter uma certa seguranca em si mesma para se suportar nesse lugar. Ainda, Winnicott vai dizer que é importante que o objeto agredido sobreviva. Essa, acho, é uma das coisas que 0 gerente deve ser como pessoa (alguém que suporte algumas questées e tenha uma minima tolerancia a respeito das proprias fragilidades). E muito dificil gerenciar sendo de louca. Na nossa experiéncia de apoio institucional a varios grupos e servicos de satide, essa questao nos faz refletir sobre o processo de feminilizagao da mao- de-obra na satde, e em muitas mulheres “frageis" desempenhando papel gerencial. Questéo de género que merece aprofundamento, deixo para minhas amigas feministas. Limite como castra¢ao: 0 gerente em fungao, deve também, em alguns momentos, ser a voz da lei organizacional (pois isso faz parte do governar, e nao se governa sem lei). As pessoas gostam da lei quando ela se aplica aos outros. Contudo, ha a lei. No caso do SUS, por exemplo, uma equipe nunca tera autonomia para fechar as portas, € lei que 0 acesso é Universal (esta na Constitui¢ao). Aqui vale a pena ressaltar a importancia de esse registro da lei nao ser exercido de maneira perversa (ha a lei para alguns membros da equipe, porém nao € a mesma para todos, ou se invoca o nome da lei para ocultar relagdes de poder ou retaliar). Essa funcéo que assemelhamos a funcao paterna consiste em ajudar a equipe a compreender que nao pode tudo (castragéio), porém nao sao um bando de impotentes. Em certo sentido o gerente, entdo, tem de poder exercer varias fungées, sé que em momentos e situagées diferentes, e nunca tera certeza da justeza dos meios (ética). Além do que, ele tem de poder entender um pouco e suportar o proprio mal-estar. E impossivel mesmo governar se 0 tempo todo esta em jogo a necessidade de se sentir amada(o) e aprovada(oj por todos, e agradar a tudo mundo permanentemente. Também é impossivel se cada desacordo ou controvérsia faz 0 gerente sentir-se ameacado ou ferido de maneira mortal. ensar nessa funcao — geréncia - como producao intersubjetiva significa expor-se a essa experiéncia da intersubjetividade, para se expor € preciso suportar estar ai (nado no além, no lugar de chefe instituido). a gestéo como ldcus privilegiado = =para__instituir mudangas O que é uma mudanga? O Dicionario Aurélio mostra que a transformagao que indica a palavra mudanga esta relacionada, na maioria das acepg6es, a: movimento, lugares, e ou deslocamentos. A palavra mudanga - assim como € utilizada em portugués - chama minha atengéo desde que comecei a ler nessa lingua. Pois na Argentina, onde nasci, a Unica mudanga que existe 6 a de casa, e concordardo comigo! Isso explica muitas coisas que acontecem nessa terra. Porém, diz 0 dicionario, que € dai que vem a palavra: é catar os trecos e ir-se para outro lugar. E quando nds queremos produzir mudangas? Digo, quando trabalhamos ativamente em prol da mudanga, nao estamos pretendendo que pessoas, organizagées, etc. se mexam para outro lugar? Penso que almejamos mudangas e sofremos as mudancas. Toda mudanga implica uma escolha, e nas escolhas ganham-se coisas e perdem-se outras. E com os grupos e instituig6es, quanto tempo Ihes damos para suas escolhas? Dirao: depende do grupo, de quem estimula a mudanga, do carater (politico? Terapéutico?). As mudangas tém sentidos, diregdes. vao para algum lugar (nao quer dizer que af cheguem, nem que nao sofram desvios no caminho). A reflexdo sobre o sentido foi introduzida no planejamento em satide por Testa (1992, 1997).Todo sentido esta amarrado a valores e subjetividades. Nao ha uma verdade a ser revelada sobre 0 sentido. Imaginemos uma viagem, uns querem ir a Roma, outros a Paris. Uns vao a Roma porque querem ver o papa, outros somente querem conhecer Roma. As vezes, na gestéo, forga-se o rumo, coloca-se todo mundo no mesmo caminhao, antes de saber para onde (e por qué) querem - uns e outros - ir. Nao é de estranhar que tombos acontecam, e fiquem todos, e suas coisas, espalhados pelo chao. Utilizo essa metafora do caminhdo pois acho que ha uma tensdo entre esse estimulo € mudanga, e 0 que € suportavel em cada contex to, grupo ou situagao. Na maioria das intervengées institucionais de que alguns de nos ja participamos, geralmente nos chamam onde ha alguma coisa tao cristalizada e instituida que alguém pede ajuda para quebrar o instituido. Em varias intervengdes nas quais tenho trabalhado (na fase ini cial de governos progressistas), creio que temos a chance de intervir nas dores da mudanga. Penso que essa deveria ser uma questéo para a maioria de nés que nos dizemos implicados com a mudanca social no Brasil (e no mundo). Nao podemos usar as mesmas ferramentas para quebrar o instituido que para ajudar a institucionalizar algo que acreditamos ser um pouco melhor. Pergunto-me se a questdo é suficientemente aprofundada por nés, e corretamente problematizada do ponto de vista tedrico. Para Lourau (2001), a chegada tardia do paradigma da institucionalizacéo ao institucionalismo francés e la tino- americano explica-se pela dificuldade pratica de observar fend menos contraditérios da autodissolugao, e pela implicagdo forte que se dirige a sobre-implicacdo. Paradoxalmente talvez a tematica se destaque para nds pelo carater de nossos objetos de interveng&o (servicos publicos, de satide), e por nossa propria implicagao politica, que de certa maneira acolhe o mito da revolugao permanente, de novo, nunca como ponto de chegada, e sempre como caminho a ser explorado. Penso que toda mudanga é doida (e poderemos ver como muitas vezes ela € também doida. . .). Mas nem toda mudanga é somente mudanga. Particularmente, acho que quase nunca é possivel trabalhar somente no "intra" do grupo, mas, nesses casos de intervencéo institucional, em contextos politicos de mudangas progressistas, isso esta gritantemente posto. Digo, podemos concordar com o sentido de uma dada mudanga, mas, ainda assim, teremos um papel de questionar as maneiras e os tempos de experimentar essa mudanca. de qualquer forma, num contexto de mudanga, sempre chegara esse momento da crise do grupo ou equipe, que é ao qual quero me referir. Acrise como lugar de passagem, nao de enlouquecimento definitivo. A crise como irrupgéio do ayon,nao como perda definitiva da histéria (cronos: 0 sentido s6 é possivel no cronolégico, porém sem excluir as disrupgdes, que sendo ficam inscritas como "sem sentido"). A crise como perda de limites espaciais, que devem ser experimentados, para reconstruir um outro espaco. Tenho a sensac&o de que quando chegamos em momentos como esse nao estamos sendo demandados para quebrar nada, porém nos demandando ajuda para cerzir® algumas questdes de maneira tal que, R Roubo a palavra do Nelson Carrozzo 11991 |, que a utiliza para se ref-rir a clinica da psicose rl'alvez se deva & sensac&o que tenho de que as mudangas deixam as pessoas nloucas'r Felicia Knohloch (20011 me chamou a atencao outro dia sobre o perigo de essa palavra ser entendida como costurar " mesmo igual ao que era, El" prefen’ hordadt" mas ai (para mim) perde-se " nocao do rompido. Essa € aidéia, deixo a v'Jcés a discussdo seméntica, A C-~I-STACJ: ESPAC..O WJI~ INI'EKVENcao, ANAILISE E ESPEC'FICIUAI)ES . 141 apesar da incerteza e das dores, seja possivel operar no seu (deles) campo de trabalho. Digo cerzir, pois me parece quendo é esta uma costura que nao deixe marcas, pelo contrario. No cerzido 0 descosturado convive com a possibilidade de manter alguma utilidade ou fungao. Em toda mudanga, penso que € nesse "se enxergar" fazendo alguma coisa de maneira diferente, que pode ser construida uma nova forma de trabalho, mais fraterna e solidaria, mais respeitosa das diferengas e diversidades. O reconhecimento da prdpria poténcia é absolutamente terapéutico, tanto quanto se saber mortal, finito e castrado. Somos hermafroditas castrados, mas nao gente castrada. E nossa sexualidade incompleta que nos impele a poténcia. O ser humano gosta de fazer, de saber, de experimentar. Contudo, no setting institucional parece-me pertinente distinguir entre um fazer que produz, e um fazer que atua (no sentido de acting ® Roubo a palavra do Nelson Carrozzo (1991), que a utiliza para se referir A clinica da pPsicose. Talvez se deva a sensacao que tenho de que as mudangas deixam as pessoas “loucas’. Felicia Knobloch (2001) me chamou a atencéo outro dia sobre 0 perigo de essa palavra ser entendida como costurar mesmo igual ao que era. Ela prefere bordado, mas ai (para mim) perde- se a nogo do rompido. Essa é a idéia, deixo a vocés a discussao semantica. out), Em inimeras experiéncias temos constatado que as pessoas fazem muitas reunides, trabalham muito, tudo sofrido, tudo sem gosto. Talvez nesses casos devéssemos interrogar - qual € 0 sentido que sustenta o fazer do militante? Se for verdade que, como diz Kaes (1991), seja necessario manter uma certa operatoria (pois ndo se pode cogitar de parar um servigo plblico basico como a assisténcia a satide) enquanto seus agentes "se tratam", essa atividade deve ser interrogada. Tenho pensado muito na necessidade de virarmos virgulas, virgulas do fazer, Como quando lemos em voz alta e vem a virgula: Ah! Dé para respirar. Quem ja tentou cantar sabe da sensagéo de que fato, para cantar 6 preciso saber como e quando respirar. Creio que temos um papel de tornar possivel experimentar um espa¢go no qual seja possivel perceber o ritmo do respirar. Nao das pessoas ai reunidas, do grupo ou coletivo. Fazermos questéio de mudar 0 ritmo do tempo durante a sess&o tem-se mostrado fundamental na nossa experiéncia. HA questées metodolégicas que poderemos introduzir ja desde 0 contrato inicial. Kaes (ibidem) diz que todo incumprimento de contrato é uma falha da fungdo instituinte, ou seja, do contrato inicial ou fundador; assim, temos insistido muito nessa questéo ja nas primeiras reunides de contratacao com as equipes. A maioria dos grupos que encontramos nos servicos de satide nao tem constituida uma area de relagées intersubjetivas, Ai, sempre, © inferno s&o os outros. Creio que nesses grupos, quando reconhecemos esses movimentos, temos papel fundamental de nos constituirmos no terceiro que possa acolher todas essas alteridades que s&o vividas de maneira té0 ameacadora. E nesse momento que nosso papel ai faz viavel esse experimentar 0 mesmo (ou seja, a maneira de cada um) com resultados diferentes (ou seja, onde esperava repeti¢ao encontrei uma diferenga, entéo o mundo pode ser distinto?). Ai nosso holding, suporte, depende mais de uma “postura” nossa: acolhimento, paciéncia, seguranga, siléncio, do que de um “oferecimento". A n&o ser que falemos do oferecimento de nds mesmos contribuindo a esse terceiro intersubjetivo (Ogden, 1996). Reconhego-me implicada com isso. Penso nessa postura como uma postura ao mesmo tempo profundamente compromissada politica, ética e terapeuticamente. A gente 6 um meio , mas no é um meio vazio. Somos um meio recheado de nds mesmos. — quando chega o momento do "oferecimento" nestas intervengdes que temos chamado de hibridas ou mestigas? Penso que se pode fazer oferecimentos quando um certo transito entre esses fragmentos é possivel, as vezes até como meio para se fazer esse transito. Assim, consigo pensar na teoria, nas propostas técnicas ou metodolégicas também como suporte. Contudo, ninguém daria um maravilhoso bife de picanha a um lactante. E é por isso que diremos que a picanha é ruim?° Nao, trata-se simplesmente de que ainda nado chegou seu momento. Temos o desafio de pensar em equipes de referéncia, colegiados, apoios matriciais, etc, como em bifes de picanha. Deliciosos, a hora certa. Se nos apressamos demais corremos risco de matar alguém engasgado. Ainda deveriamos refletir sobre cascas e membranas, ou o tudo imenso. Penso que para um grupo criar uma subjetividade, ele tem de poder ter "efeito membrana". Se o grupo nao mexe e esté muito cristalizado fica cascudo. E essa a verdadeira resisténcia 4 mudanga. (ressalto, pois ultimamente tenho escutado chamar quase qualquer coisa de resisténcia). Nada os toca, est&o fechados - defendidos - no proprio interior. Se conseguirem processar, debater, deliberar sobre o que Ihes é oferecido ou mandado, tém membrana. Nem entra tudo, nem barram tudo. Membrana seletiva. Se estiverem nesse ponto e questionam diretriz, chefe, ordem recebida, isso ndo € resisténcia (no sentido psicanalitico), € resisténcia no sentido politico. Indica maturidade do grupo, e seria absurdo propor-Ihes terapia (seria a terapia do Arquipélago Gulag). Quem de nds gostaria de ser agente dessa dominagao? Ainda tem a opcao tudo imenso. Creio que essa é a da crise de que vinha falando. A crise que muitas vezes a mudanga instaura. Nao tem limite. Nada se sabe onde comega e onde acaba. Na gesto isso costuma se diagnosticar como falta de contrato ou falta de rede de peticao e prestacéo de contas. Aparece muito sob a pergunta - até onde vai a autonomia (de distrito, colegiado, equipe, etc.)? Penso que esse limite € necessario quando o dessas situagdes parece-se mais com o limite da integragdo psiquica que com o da castragao. O reconhecimento do que Winnicott chamaria distingdo entre eu e ndo- eu. Muito depois vira 0 momento do grupo de saber que é castrado (nao pode tudo), finito (mortal), e potente (ndo onipotente). Explorarmos essa questao na sua conseqiléncia pratica seria entender ° Lembro a v6s, leitores, que quem escreve & uma camivora argentina. que nao € mostrando até onde sua autonomia nao vai, porém indagando com eles (fazendo juntos) até onde sim esses limites poderéo ser vivenciados. Aj, continuando com uma _leitura winnicottiana, 0 objeto “agredido" pelo "excesso" de autonomia do grupo (porque o grupo sempre vai exceder-se nessa experimentacao) devera saber resistir sem retaliar. E alguém ja viu isso acontecer assim na gestéo? Eu nunca. Quando um chefe, ou secretario, resiste sem retaliar a ousadia? As vezes nem os analistas 0 suportam e se metem a fazer interpretagdes nessas horas. Winnicott disse que essa é a pior retaliagao. Ai, muitas vezes temos enxergado a necessidade de uma certa,'costura" com a alta geréncia, ajudando-a a suportar e limitar sem retaliar. Assim, em varias experiéncias de intervencaéo institucional, propusemos trabalhar uma instancia de andlise com a alta geréncia.Que, nao casualmente, por “alta” vale-se de sua capacidade técnica e politica geralmente diferenciada, para exercer seu poder de maneira retaliadora. Contudo, quando ela consegue perceber a propria fortaleza, poder e poténcia (das quais muitas vezes nao tem consciéncia) ela pode comegar a ficar mais "larga", mais suporte, menos retaliadora sem abrir m&o da formulacao politica. Ainda, essa parte da intervengéio é a mais complicada, uma faca de dois gumes. Pois, se por um lado mostrou-se fundamental para viabilizar 0 processo,por outro envolve risco de exacerbar questées parandicas nas equipes locais (afinal somos apoio de quem?).Temos preferido trabalhar no risco dessa borda, a enfrentar o outro risco, o da retaliagdéo esmagadora, que a nosso ver pode acabar com processos interessantissimos do ponto de vista institucional e que acaba reforcando, nos vitimados da hora, o discurso social hegemé6nico: "ta vendo? Nao tem jeito” a gestdo na sua dimensaAo interpretativa Chamamos a gestéo para o exercicio de uma dimensdo interpretativa entendendo a interpretagéo como conformada por dois movimentos: a andlise (desconstrugéo) e também a construcao (Freud, 1997: Mannoni, 1959). Para Freud a construgao fazia parte do trabalho analitico (trabalho - pensamos - criativo, inventor, do analista). Na eficdcia da construcao do analista nao interessa a verdade "material", dizia Freud. Porém ela deve conter algo de verdade “historica". Ela pode ser ficcional (mythos), funcionando sera a construgéo que as vezes permitira derrubar algumas resisténcias e fazer deslanchar a analise. Assim, a interpretacéo, foge da dicotomia entre logos e mythos, se aproxima da mletis de Uilisses, inteligéncia ardilosa, que sabe usar imagens, simulacros e mentiras, néo inocentemente, porém, para brincar com elas, Préxima do jeitinho brasileiro (Gagnebin, 1997). E todo bom malandro que se aprecie por tal sabe 0 que quer e para onde vai. Ou seja, tem uma intengao e um sentido. E isso repde para nds a questaéo da nossa propria implicagao. Uma intervengao pela gestéo tal e como a compreendemos nunca tera sentido "em si", sendo "sentido para”. Nessa proposta de gestéo (como no brincar winnicottiano) o fazer precede o elucidar. A fungao interpretativa procura evitar a cisao, muito freqiente entre o fazer e o elucidar. Assim, faz parte do trabalho escrever textos (Campos, 200()), inventar novas narrativas (Ricoeur, 1990; Onocko Campos, 2001). E diz Ricoeur que as narrativas nada mais s&o do que “historias néo ainda narradas". E que toda narrativa sustenta-se em praticas e feitos que de alguma outra maneira ja estao inscritos na vida social. Assim, entendemos a interpretagaéo como a reescrita da historia, na historia, e a escrita de uma nova historia. Profundamente entrelagada com o conceito de _institucionalizacao, entendido como a organizagao no e do movimento instituinte. Uma gestéo que de fato assuma suas dimensées do gerir e do gerar, analiticamente, ou seja, fazendo escolhas deliberadas sobre o que estimular em cada situacgéo, momento historico e lugar institucional. a gestéo como modo de funcionamento, entre 0 sentido e o acontecimento Entendemos a gestéo sempre como um processo - modo de operar (nesse sentido, vinculada ao tempo cronos, e nao podia ser de outro jeito, pois ai ha a teleologia e a questao do sentido, que somente € possivel no cronos), mas € um modo de produzir, no qual trabalhamos para abrir possibilidades de existéncia ao acontecimento (0 tempo ayon, o sem sentido). A gestao pela qual trabalhamos € cronos e ayon, nao cronos ou ayon, € processo e acontecimento, nao processo ou ato. A gestéo taylorista, racional e cientifica produziu um corpo te6rico que funciona como suposta garantia (estatuto mitico e ilusério) de eliminagao do ayon e do acontecimento. A proposta autogestionaria aponta um objetivo (a meu ver também idealizado) do acontecimento permanente, do puro ayon. Ora, eu acho que isso seria viver em surto psicotico (0 ayon na sua pura irrupcdo). Nem gente, nem estabelecimento, ou organizacao suportaria isso por muito tempo. Se for assim, perde-se 0 agenciamento e cai-se no kaos. Todo desvio sup6e um fluxo, pois se ha de se desviar de alguma direcao, se nao houvesse nenhuma, o que haveria? Um modo de produgao que incorpore os desvios e agenciamentos é 0 que permite a mudanga, e é a principal caracteristica da categoria do devir que 6 mudanca na historia e nao fora dela. Assim, a gest&o seria plano de producaéo de um transito ou passagem. Onde impera a ordem: desordenar um pouco desequilibrar, desviar. Onde reina o kaos fragmentado propiciar o transito, o didlogo, a passagem entre esses fragmentos. Assim, podemos pensar a gestao como permanente produtora de processos de institucionalizacao. Trabalhando sempre numa transversal sempre tensionada entre o instituido e o instituinte, entre a ordem que sustenta a operatoria de outros processos produtivos, e a desordem dos processos criativos e de mudanga. Entre as dores das quebras e rupturas, e as alegres dores do parir. Talvez a metafora do parto nos devolva a dimenséo geratriz: dores de parto ninguém esquece, contudo, ninguém passa a vida sofrendo por elas, Pois, ao final, o que importa € que essas dores anunciam o teimoso e persistente recriar da vida. Bibliografia CAMPOS, Gastaéo Wagner de Sousa, 1997. Subjetividade e administragéo de pessoal: consideragées sobre modos de gerenciar trabalho em equipes de satide. In: Merhy & Onocko (orgs,). Agir em satide, Sao Paulo:Hucitec, pp, 229-66. 1998, O anti-Taylor: sobre a invengao de um método para co- governar instituiges de satide produzindo liberdade e compromisso. 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