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AQUECIMENTO

om 21 anos e estudante de design, minha primeira Copa

C do Mundo foi em 1966, na Liverpool dos Beatles, graças


à generosidade de meu pai e de meu tio Max, que me
hospedou em Londres. Era demais para um jovem
coração percorrer extasiado aquelas ruas enevoadas por onde os
Beatles andaram e cantaram, onde chorei e sofri num velho estádio
de madeira vendo o Brasil bicampeão ser massacrado por Hungria e
Portugal e acabar eliminado da Copa.
Hoje, vários livros sobre futebol falam daquela partida contra os
húngaros como uma das grandes da história da bola. No entanto,
naquela tarde cinzenta e chuvosa, minha única lembrança é de
desespero e sufoco, com os de camisa bordô dominando o campo
todo e nos enfiando três gols. Dizem os experts que o Brasil, mesmo
perdendo para aquele time fabuloso de Albert, Farkas e Bene, bateu
um bolão.
Mas não vi nada disso: só me lembro do ocaso doloroso de
Garrincha e de Pelé fora de combate após um coice de um zagueiro
lusitano, e da bad trip que foi o melancólico retorno no trem lotado
para Londres, com um grupo de torcedores brasileiros improvisando
uma batucada lenta e cantando o velho samba: “Tristeza, por favor,
vá embora, minha alma que chora...”.
Até a Victoria Station.

Em 1970, titular da coluna diária “Roda Viva” no segundo caderno


do Última Hora, de Samuel Wainer, embarquei para o México, poucos
dias antes da estreia do Brasil, como único colunista não esportivo na
cobertura da Copa. Minha missão era enviar por telex notas e
comentários sobre tudo que não fosse o jogo no estádio. A ideia de
Samuel era dar ao leitor mais do que a maciça cobertura esportiva de
seu scratch de repórteres e comentaristas. Queria colocar o leitor nos
estádios e nas ruas de Guadalajara e da Cidade do México,
convivendo com nossos torcedores, jogadores, cartolas e jornalistas,
dividindo as fofocas e as piadas, os dramas e comédias no front de
batalha.
O Brasil dava shows de futebol em campo, a torcida arrebentava
nas ruas, Wilson Simonal superlotava os maiores e mais luxuosos
night clubs mexicanos, tudo conspirava a favor. Com minha
credencial da FIFA, eu podia frequentar os treinos do Brasil, falar com
os jogadores, com Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira, falar
mal dos cartolas. Naqueles dias de calor e felicidade, do primeiro jogo
contra a Tchecoslováquia até a épica batalha contra a Inglaterra, pela
minha cabeça nunca passava a hipótese de o Brasil não ser
campeão. Mas ninguém imaginava que tudo seria tão grande e tão
bonito. Com o câmbio favorável, era tudo baratíssimo no México, tudo
muito quente e lento, nas ruas de Guadalajara o povo meio feioso e
muito simpático saía da melancolia e se animava nos carnavais
brasileiros pós-embates. Assisti à final na tribuna de imprensa do
estádio Azteca, ao lado do cronista Armando Nogueira, e vi o
jornalista João Luiz Albuquerque invadindo o campo com a bandeira
brasileira depois do jogo.
Após a final consagradora, numa festa de celebração da vitória
na suíte presidencial de um dos hotéis mais chiques da Cidade do
México, vi várias grã-finas cariocas disputando para ver quem dava
para Jairzinho e Paulo Cézar Caju. Não se sabe quem comeu quem.
Em 1978, colunista de arte e cultura de O Globo, fui enviado por
Evandro Carlos de Andrade para escrever uma coluna diária sobre
tudo que acontecesse fora do campo na Copa do Mundo na
Argentina, em plena ditadura militar.
No inverno gelado de uma Rosário cinzenta e úmida, com meu
colega do Esporte de O Globo, Marcelo Rezende, que depois se
tornaria repórter policial na televisão, Eduardo Bueno, o Peninha,
repórter estreante do Zero Hora, e Telmo Zanini, da TV Globo, passei
acordado uma das piores vésperas de jogo de minha carreira
esportiva. A torcida argentina gritou e bateu bumbo a noite inteira nas
ruas e ninguém dormiu. Tampouco dormiu o time do Brasil, de
Cláudio Coutinho, que foi a campo com o violento volante de
contenção Chicão como capitão para enfrentar a Argentina em jogo
decisivo: o timaço de Ardiles, Passarella e Mario Kempes, embalado
por uma torcida fanática e emocionante, que encontrava na paixão
pelo futebol uma válvula de escape para a pressão dos anos de
chumbo e um alívio para os terrores da ditadura.
Num jogo duro e feio, amarrado e violento, reprimido como os
dois países, um 0 x 0 castigou as duas seleções. Depois, a Argentina
enfiou seis gols nos peruanos, num dos jogos mais suspeitos de
todas as Copas, acabou campeã e o Brasil caiu fora – invicto, mas
fora. No entanto, antes, quando destroçamos o Peru e a Polônia num
estádio lindo, em Mendoza, chegamos a acreditar que podíamos ir à
final. Com entusiasmo, porém com certa ironia, gritávamos na tribuna
de imprensa do “Mendozão”:
“Hei, hei, hei, Jorge Mendonça é o nosso rei.” Não podíamos
mesmo ter sido campeões.
Em 1982, com o Brasil vivendo intensamente a abertura política e
a anistia, tínhamos uma das melhores seleções brasileiras de todos
os tempos, que parecia ainda mais rápida, mais elegante, mais
harmoniosa que a do tri. E uma espetacular torcida. O país estava
quebrado, porém mais animado do que nunca.
ESPANHA, 1982
TURBILHÃO DE EMOÇÕES
oca o telefone.

T Uma voz forte, grossa e audivelmente alcoolizada


conclama, amistosa e entusiasmada: “Venga, venga, my
boy, el sol brilla y las chicas sonrien en Sevilla! La
bola vai rolar!”
No meio de uma zoada de copos e vozes, o sotaque norte-
americano carregado e o estrépito da gargalhada anunciam
indiscutivelmente Ernest Scott, o brasilianista do futebol, pra lá de
alegre em meio ao alarido espanhol.
Somos amigos há 16 anos. Nos conhecemos na Copa do Mundo
de Londres, em 1966, eu pouco mais que um adolescente e ele
quarentão amigo de meu tio Max. De lá para cá, muita bola rolou.
Encantado com a seleção brasileira – que tinha visto e amado desde
a Copa do Chile, em 1962 –, Ernest era certamente o mais animado
de nosso grupo em Londres, e, na mesma proporção, o que mais
sofria depois das humilhações de Liverpool e do ocaso dramático de
seu idolatrado Garrincha. Inesquecível Ernest, ainda de barba preta,
uivando “Garrrríínnnn-chaaa” varado de dor e de brandy na Victoria
Station.
Ernest é um brasilianista diferente, que aprendeu português para
ler Jorge Amado e Guimarães Rosa e entender as letras da Bossa
Nova no original, e se considera o maior fã norte-americano do
futebol brasileiro – que segue pelo mundo e do qual se acredita um
dos grandes experts e teóricos. Diz-se autor de vários ensaios
inéditos sobre o tema, escritos nos intervalos da vida acadêmica – se
é que se pode chamar de acadêmica aquela vida...
Já nos encontramos algumas vezes em sua nativa Manhattan e
nos festivais de jazz de Montreux, que ele adora, onde o apresentei a
Milton Nascimento, Elis Regina e outras estrelas da “Noite Brasileira”.
Cada vez mais gordo, extrovertido e espaçoso, Ernest desloca sua
formidável massa com facilidade e leveza pelo mundo inteiro,
principalmente por estádios e bares.
“Sevilha é uma festa...” – a zoada cresce e a voz se dissolve no
barulho. Provavelmente dormiu ao telefone.
Amanhã o encontro em Sevilha.

Escrevo a primeira crônica no avião que cruza o Atlântico


noturno. A bordo, dormem o festejado colunista do samba e do
futebol Sérgio Cabral, além do cronista Carlos Swann e outros
repórteres, comentaristas, fotógrafos e companheiros de O Globo do
Rio de Janeiro.
Dormi e sonhei com o poeta Vinicius de Moraes de camisa preta,
se esbaldando de rir não sei do quê, mas interpretei aquilo como um
bom augúrio.
Acordei animado, já sobrevoando Madri, onde trocaríamos de
avião para seguir até Sevilha. Naquela radiosa manhã de verão
europeu, desembarquei excitado e ansioso para testemunhar os
dramas, as comédias e os grandes personagens do maior Mundial de
todos os tempos, no maior e mais apaixonado evento esportivo do
planeta.
Bom dia, torcida amiga.

Ernest nos esperava no aeroporto de Sevilha, com abraços de


urso e um formidável bafo de cerveja.
O brasilianista traduzia sua fé inabalável na gloriosa jaqueta
canarinho que envergava com orgulho sob o sol do meio-dia andaluz.
“É melhor que a seleção húngara do Armando Nogueira”, ele
repetia nelson-rodrigueanamente, com os olhos rútilos e o lábio
trêmulo, enquanto esperávamos exaustos pelas malas-lesmas.
Já aboletados no velho carrão norte-americano alugado de um
desconhecido na porta do hotel, ouvi-o dizer ao Sérgio Cabral e a um
recente amigo espanhol que a seleção brasileira era uma obra de arte
em movimento, um exército de artistas, a mais expressiva
manifestação da criatividade e invenção da cultura popular brasileira.
Foi quando adormeci sob o sol do deserto e acordei no Porta Coeli.
Não é um colégio de freiras, mas um hotel de seis andares,
moderno e confortável, onde ficaremos todos de O Globo e da TV
Globo, a poucas quadras do estádio. Vou dividir um quarto com o
Sérgio Cabral. Enquanto trocamos gentilezas e critérios sobre quem
tomará primeiro o banho ansiado e redentor, ele se lembra de um
episódio em que dividiu um quarto com Glauber Rocha em Nova York
nos anos 1960.
“Um dia eu entrei, a porta do banheiro estava entreaberta e
eu entrevi o Glauber tocando uma punheta.” E acrescentou,
matreiro: “um pau enorme... um pau enorme...”.
Ele prosseguiu:
“No dia seguinte, ele me disse: ‘sabe, Cabral, ontem eu
toquei uma punheta’, e eu falei: ‘eu sei’. Ele perguntou: ‘como?’,
e eu respondi: ‘porque eu vi’ e nós morremos de rir.”
Tomamos banho, por critério de “antiguidade”, fechamos a janela
e, poucas horas depois, eu acordava com o cantor Raimundo Fagner
ao telefone. Ele não cantava, dizia que estava na cidade e que
passaria mais tarde para bebermos unas copas e ouvir um pouco de
música em Triana, o bairro boêmio.
O cearense Raimundo já morou em Sevilha por alguns meses,
gravou um disco aqui e conhece muitas pessoas e lugares
interessantes: diz que vai nos levar para conhecer a parte mais bonita
da cidade: a velha, naturalmente. Na rua, a noite é clara, a brisa leve,
o casario antigo e a lua cheia. Melhor que isso eu não aguento,
pensei, até olhar para Ernest roncando no banco de trás de seu
carrão e pensar na remoção do corpo para o hotel.
Surpreendentemente dócil, o brasilianista atende às primeiras
ponderações e levanta-se; caminha paquidérmico até a margem do
Guadalquivir, mija e, levando a chave do carrão, adentra um táxi e
parte.
As tascas e a música dos ciganos nos esperam. Fagner me
garante a pureza febril e imaculada do flamenco que os ciganos
cantam nas noites de Andaluzia, sua terra-mãe, de seu amigo
guitarrista Paco de Lucía, mejor del mundo, e do genial cantor cigano
Camarón de la Isla.
Caminhando sem pressa pelas velhas ruas de pedra, passamos
por muitos pequenos bares cheios de cadeiras na calçada, mas
música, quando havia, era de rádio FM, que toca mais ou menos as
mesmas coisas que no Brasil ou na Itália: rock’n’roll, funk, disco. Gal
Costa cantando “Balancê”.
Tomamos uns vinhos, beliscamos umas tapas e quando íamos
partir para os ciganos, atravessando a praça, umas calças vermelhas,
animadíssimas, nos chamavam: o craque Paulo Cézar Lima, contente
por nos encontrar assim de repente na porta de um boteco numa
pracinha do Bajo Sevilla.
Quem é muito popular aqui é o craque Carlos Alberto Pintinho,
estrela do time do Sevilla, ídolo da torcida, que está levando seu
velho amigo PC à noite sevilhana. Pintinho acaba de estacionar seu
BMW escarlate e vem juntar-se a nós para mais unzinho.
“E os ciganos, Raimundo?” – cochichei, enquanto ele me
servia um copo de vinho e surgia um prato de camarões na mesa da
calçada. Pintinho dava autógrafos e PC traçava paralelos entre a
noite carioca e a parisiense; Fagner ajeitava o boné e eu percorria a
praça com os olhos e ouvidos em busca de alguma música gitana, ou
de qualquer música.
Pilotando o BMW escarlate, Pintinho se movia com rapidez e
intimidade pelas ruas estreitas de casas velhas e bonitas. Entramos
num bar e só lá dentro vi que não estávamos numa tasca gitana, mas
num bar cheio de brasileiros bebendo caipirinha e batidas variadas,
com disco de samba na caixa. Os donos do barzinho, dois espanhóis
jovens que moraram uns tempos no Rio de Janeiro, são amigos de
Pintinho e ficaram encantados com o sucesso que as presenças
ilustres provocaram na sala cheia e animada. Foram gentilíssimos,
constrangedoramente amistosos, e Fagner, atendendo a pedidos,
acabou cantando com violão e coro. É claro que não vim aqui para
isso. Quando os aplausos entusiasmados terminaram, insisti, já meio
de saco cheio:
“E os ciganos, Raimundo, onde estão os ciganos?”
Algumas batidas de coco depois, estávamos de novo levados em
turbilhão a bordo do BMW escarlate, rumo ao desconhecido. Por
delicadeza, pode-se perder uma noite, pensei, a minha primeira na
Sevilha cigana e mourisca que tantos sonhos me inspirava quando
desembarcamos...
... na porta da discoteca El Tucano, toda de espelhos e alumínio,
ofuscante. Como um touro patético, adentrei a arena. Raimundo
procurava me acalmar enquanto os craques bailavam e nós
bebíamos um uísque péssimo vendo mulheres horrendas e homens
ciumentos e vigilantes.
“Buenas noches, muchachos” – nos despedimos dos craques
quando passamos por eles na pista, rumo à porta.
No táxi: “E os ciganos, Raimundo, e os ciganos?”.
“A essa hora, até os ciganos já estão dormindo”, admitiu,
pesaroso, enquanto o carro tomava o rumo do hotel.
“E tem mais”, acrescentou, “não imagine você que os ciganos
aqui têm esse negócio de carroça, fogueira, guitarras e
pandeiros: os ciganos agora moram em conjuntos habitacionais
tipo BNH, conjugados mínimos ligados por escadas e corredores
escuros e sujos como uma favela vertical...”

Frustrado e faminto, desembarco no corredor do sexto andar do


Porta Coeli sabendo que às três da madrugada não há nenhum lugar
onde se possa comer qualquer coisa em Sevilha. No corredor
iluminado, como um duende gigantesco, um supergnomo, um elfão,
vejo surgir de um quarto um robusto companheiro de uma cadeia de
rádio do Sul do Brasil, me saudando amistosamente e oferecendo
“uma coisinha para beliscar”: um sonho, que me desperta o corpo
e alegra a alma – Badaró entra em cena.
Entro no quarto e a cena é festiva: cinco jornalistas diante de uma
geladeira abarrotada de gêneros para todas as necessidades,
salames e presuntos pendurados no varal que cruza o quarto,
garrafas abertas na mesa. Eles me saúdam, alguns de boca cheia,
todos de copo na mão.
“Vai um patezinho ou preferes atum?”, oferece o bom amigo
do Sul, de biscoito na mão. “Aceitas um uisquinho?”
Tanta solidariedade e simpatia me comovem, todos comem e
conversam, especulam sobre o início da Copa, contam velhas
histórias de futebol.
Alguém conta que durante uma excursão da seleção brasileira
pela Europa, depois de 10 dias áridos na Arábia Saudita, o time e
mais de 100 jornalistas desembarcaram felizes em Hamburgo. Álcool,
mulheres e música – exatamente tudo que não havia em Jidá. Porno
shops, cinemas, mulheres na vitrine, o pessoal foi endoidando. Sauna
mista. Todo mundo nu. Na sauna, entre belas louras e alguns
companheiros, testemunhas insuspeitas, o intrépido radialista Beltrão
Júnior procurava aparentar naturalidade e não assustar as jovens
simpáticas e descontraídas que entraram. Era uma sauna “família”,
com casais, pais, liberais, nus e naturais. Suando no meio da fumaça
e do calor, uma simpática avozinha pede a Beltrão que lhe passe um
creme hidratante nas costas e ele, gentil e naturalmente, aceita a
tarefa. Percorre com a mão durante alguns segundos aquela
superfície alva e roliça e de repente ejacula incontrolavelmente nas
costas leitosas da frau atônita e pasma.
Ficou conhecido como “O Monstro de Hamburgo”.
Todos riem, comem e bebem na tasca doméstica do “Mercador
de Sevilha”. Sim, porque, em certo momento, o anfitrião
delicadamente apresentou a nota a cada um. Mas os preços são
razoáveis e ninguém reclama, ele gosta e anuncia novo serviço:
jornais brasileiros a domicílio com apenas um dia de atraso, já a partir
de amanhã.
Me despeço do “Mercador” e deixo as pesetas para meu jornal de
amanhã – na verdade, de ontem. Ele diz que posso ficar tranquilo e
que, assim que chegar o jornal, ele o enfia por baixo da porta.
“Não quer levar mais alguma coisinha para viagem?”, ainda o
ouço dizer, enquanto caminho pelo corredor interminável. Entro no
quarto sorrateiramente para não acordar o Sérgio Cabral, mas ele
ainda está “aceso”. Noto-o inquieto. Por pura delicadeza, gagueja um
pouco, mas pergunta, na bucha:
“Escuta aqui... numa boa... roncas?”
Rebato com veemência e ofereço garantias e testemunhos de
sono silencioso.
Tranquilizado e exausto, o querido colunista adormece em
seguida. E ronca delicadamente, como um ronco em FM, mas ronca.
Na manhã seguinte, um alegre despertar:
“Buenos días, Don Cabral.”
“Buenos días, Don Motta.”
Enquanto se levanta, o querido colunista vai falando:
“Olha... não é por nada não, mas que você roncou, roncou.
Leve, mas roncou. Tudo bem, numa boa, um ronco cadenciado,
contínuo, baixinho... sabe que até embala o sono?”
Os roncadores levantam-se, fazem suas abluções matinais e,
alegres e joviais, movimentam-se rumo ao Parador, em Carmona. Lá,
a meia hora de Sevilha, abrigada em um belo castelo medieval, a
seleção se concentra. Todos os dias, do meio-dia à uma, alguns
jogadores e dirigentes saem ao pátio para atender a imprensa. No
mais, o portão está fechado a todos, o tempo todo.
O caminho que leva a Carmona é ocre e gris. Sob um céu de
celestial azul-celeste, passamos por campos de girassóis e vilarejos
caiados, animados e esperançosos: o moral da tropa é elevadíssimo
no Parador. Falo com Júnior, Falcão e Telê Santana, entrego a eles
uns discos que trouxe imaginando a nostalgia musical da rapaziada.
Todos se mostram absolutamente tranquilos, mas a expectativa pelo
jogo de estreia eletriza o ar ao nosso redor.

De volta ao hotel depois da visita à concentração, encontro


Ernest de bermudas e segurando um bloodymary. O calor é
“carioquesco”, diriam os senegaleses naquele verão da Andaluzia.
Ele vai à piscina. Subo para escrever minha crônica.
Não há desculpas: estamos muito bem instalados, o hotel é
confortável e o ar-condicionado funciona. No subsolo, foram
montadas uma redação e uma central técnica, com vários aparelhos
de telex transmitindo no ato todas as nossas palavras: vale o escrito.
A expectativa gera boas matérias, emoções para o país já em
chamas.
À tarde, o treino é no Maireninha, um estadiozinho nas cercanias
da cidade, do lado oposto à Carmona. Nove da noite, dia claro e
luminoso, começa o treino da seleção. Em Mairena, o público aplaude
até ginástica de aquecimento. Às dez e meia, termina o bate-bola sob
o incendiado crepúsculo andaluz. Escrevo a segunda parte da crônica
saboreando um delicioso conhaque local oferecido pelo brasilianista,
que folheia uma Veja da semana passada enquanto eu e o Cabral
mourejamos no 411, o covil dos roncadores.
As perspectivas são boas para a noite: Fagner jurou que ia nos
levar aos ciganos e parece que vamos mesmo.
Na portaria, dois bilhetes: Fagner vai ver o legendário matador El
Cordobés1. Em Córdoba, naturalmente. Ciganos adiados sine die.
“Estou na área. Dom Pepe.”
Magro como um caniço, preto feito um tição, de uma simpatia
irradiante, Dom Pepe é meu amigo desde os 10 anos de idade,
quando ainda se chamava Luiz Francisco, na Copacabana dos anos
1960. É o DJ mais conhecido e querido no Rio de Janeiro há mais de
vinte anos e atualmente faz as pistas do Noites Cariocas pularem
feito pipoca. Luiz começou a trabalhar como DJ em Londres, onde
morou com uma leva de brasileiros no início dos anos 1970, e foi lá
que virou “Pepe”, segundo ele, “mais apropriado ao temperamento
apimentado do crioulo”. Voltou de Londres casado com uma grega
e cheio de discos e se deu bem, primeiro como DJ da boate Sucata,
de Ricardo Amaral, e depois como peça decisiva para o sucesso da
minha discoteca Dancing Days, em 1976. Desde então, as multidões
de jovens o seguem pulando feito pipoca nas noites cariocas.
De volta às noites do Rio, Pepe incorporou o “Dom” com que Tim
Maia e a rapaziada carioca dos bailões-soul designa seus brothers. E
ei-lo chegando à Espanha: um verdadeiro mouro em Sevilha.
Dom Pepe desembarcou vestido do pescoço aos pés com um
macacão verde-amarelo-azul, faltando apenas o “ordem e
progresso”. O “fato-macaco” – como chamam aquelas roupas em
Lisboa – era muito elegante, mas de veludo. Suando e feliz, ele
preencheu sua ficha na recepção do Hotel Sideral.
Na hora de escrever o nome, cansado e louco para chegar à
casa, ele escreveu “Dom Pepe” na ficha. Parou, deu um tempo e
completou: Marques Cantuária – seu nome de batismo.
O espanholito solícito recebeu a ficha e o passaporte e Dom
Pepe o ouviu dizendo a uma camareira enquanto esperavam o velho
elevador:
“Es el Marqués de Cantuária...”
E depois ao crioulo, abrindo a porta:
“Por favor, Señor Marqués...”
Dom Pepe estourava de rir me contando esses lances no
telefone:
“Esse muquifo não é nem de uma estrela: é de quatro
cruzes”, gargalha no telefone, “não tem saguão, tem ‘saguinho’. E
a recepção é a maior decepção...”
Ameaço colocá-lo em minha crônica como alguém hospedado
numa pensão penico-e-moringa – que não tem café da manhã, mas
deixa você fritar um ovo na frigideira da casa.
Pepe ri e diz que vai se esforçar para mudar, mesmo com a
cidade já tomada na véspera da estreia do Brasil. Pergunta por
Ernest.
“Saiu. Disse que ia em busca de... pratos típicos” – contei
rindo. O afrocarioca saca no ato e se diverte:
“Atenção, senhores pais! Cuidado, jovens sevilhanas! Vocês
são os pratos típicos de Ernest Scott!”, adverte Dom Pepe
radiofônico.
Mas o brasilianista voltou desconsolado e só. Nada de pratos
típicos. E ainda ouviu do Sérgio Cabral: “Ernest, decidimos que
você vai ser destaque no Afoxé Filhos de Onan, que sai às ruas
logo depois do jogo...”.
Isso não é consolo, mas realmente a deselegância discreta das
meninas de Sampa cantada por Caetano Veloso veste como luva os
frustrados pratos típicos de Ernest, o jejuador, e confere com sua
descrição da “mesa” local.
Na manhã do jogo de estreia do Brasil, o festejado DJ passa no
Porta Coeli para irmos até o estádio Sanches Pizjuan, a duas quadras
do hotel. O crioulo chegou sem qualquer reserva de hotel ou entrada
para jogo, mas me assegura que estará muito bem posicionado logo
mais, às 9 da noite, quando a bola rolar no “Pai João”, como diz ele.
“Esse negócio de agência de turismo é para otário”, vai
comentando o mouro, enquanto caminhamos sob o sol.
Nas bilheterias do estádio, pequenas filas, tudo calmo. Dom Pepe
riu, vitorioso: “Eu não disse? No Rio tem mais gente na porta do
Ponto Frio Bonzão para comprar TV a cores”.
Na porta do Alfonso XIII, o único hotel cinco estrelas da cidade,
luxo e requinte mourisco, estaciona uma interminável limusine negra
vinda de Lisboa, com motorista fardado: saindo do ar refrigerado do
carro, os bicheiros Anísio da Beija-Flor, Luizinho da Imperatriz, Jorge
Elefante e três assessores, bem fortes e de óculos escuros.
Dom Pepe ouviu um deles dizer, depois de admirar o luxo e
elegância do hotel: “Esse Afonso Galo2 é mesmo demais...”.
Comprou um ingresso para arquibancada. Saindo do guichê, deu
seu primeiro autógrafo: preto como carvão e vestido com a camisa da
seleção, Dom Pepe atrai o olhar de alguns garotos que o abordam:
“Futbolista? Futbolista?”.
“Conoces a Pintinho?”, pergunta um dos pibes.
Dom Pepe sorriu, assinou “Paulo Cézar” e partiu rumo ao
“Afonso Galo”, onde, além dos bicheiros, hospedam-se cartolas, o
pessoal da FIFA, grã-finos e ricos de todos os tipos. Dom Pepe
conhece alguns, e sai em busca de um melhor lugar no estádio.
Estamos em pleno après-midi do dia do embate.
O que faremos até as oito, hora de ir para o estádio? Que para
desgraça de nossa ansiedade, nem sequer é longe? Ninguém mais
esconde nada: todos se admitem nervosíssimos.
Dom Pepe entra sorridente e exibe a todos uma reluzente entrada
para o melhor setor, cadeira especial, colada à tribuna da imprensa,
descolada durante a blitz nos salões do Afonso Galo com um alto
diretor da Globo, seu conhecido da noite carioca.
Bebeu-se muita cerveja naquela tarde interminável. Em alguns
quartos, alguns grupos mais radicais decidiram-se pelo similia
similibus curantur 3 e cheiraram algumas linhas de cocaína para
tentar combater o nervosismo com mais ligação ainda: chegaram ao
estádio trincados. Também rolaram alguns baseados, que
despertaram as fantasias e paranoias mais delirantes na expectativa
do embate. Dom Pepe deu sua velha arquibancada ao garçom e
bebeu quase de graça durante a tarde inteira.
Ninguém aguentava mais, quando, às sete horas, iniciamos a
caminhada até o “Pai João”, que não é grande, nem moderno, nem
bonito, no centro de uma praça de terra avermelhada e seca.
“O sol ainda luzia em Andaluzia quando o Brasil entra em
campo e sua grande torcida delira em todo o estádio”, ouço um
locutor paulista emocionado ao microfone, exaltado e embevecido
com a própria voz.
O estádio estremece quando a seleção brasileira pisa o gramado.
Emudecemos no primeiro gol dos russos e estivemos à beira de
um ataque de nervos até Éder empatar com uma tijolada mortífera.
Com o golaço de Sócrates no final do jogo, a vitória emocionante
enlouquece de alegria a todos. Redimidos todos os porres e
rebordosas, todas as culpas e pecados, o samba explode nas calles
da velha Sevilha. No “Afonso Galo”, os cartolas internacionais que
vieram no trem da alegria da FIFA estão mudos em diversos idiomas
diante do fausto das comemorações dos árabes da Baixada
Fluminense, além de assustados com o samba bárbaro que rola nas
suítes luxuosas, onde jorra o melhor uísque.
Depois de tudo, e de tanto, foi dificílimo escrever e reescrever a
crônica da vitória emocionante, tentando fazer um acordo entre a
emoção exaltada que me animava e a obrigação de exprimir com
precisão esses sentimentos – que demanda frieza e espírito crítico.
Com o dever cumprido, morto de fome, hesito em acompanhar o
pessoal que vai à noite.
“Mas primeiro vamos comer alguma coisa”, digo, antes que
alguém dê qualquer outra ideia.
A essa altura, Sevilha foi uma festa: agora já não há mais festa
alguma na cidade, é uma segunda-feira comum e silenciosa, todos
dormem. Talvez algumas poucas boates ainda toquem velhos discos
brasileiros. E não há mais restaurantes abertos nem no Bajo Sevilha,
só o horroroso Noche y Dia, que, como o próprio nome sugere, deve
ser evitado dia e noite.
Prefiro recorrer ao Mercador, no hotel. A tasca está animada e
Badaró discute acaloradamente, sem tirar a boina basca: ele acha
que o juiz roubou os russos e que o time jogou bem só no final,
dizendo-se apenas um radialista realista, contra a paixão alcoolizada
dos outros cinco que falam ao mesmo tempo, lembrando lances e
fazendo profecias de glória. O Mercador está seguro de que não
deixou a emoção impedi-lo de ver a verdade:
“Claro que o time é ótimo, tem vários grandes craques, pode
ser até genial. Mas hoje não foi...”
Badaró vai inaugurar amanhã os serviços de dois liquidificadores,
que acaba de incorporar à sua frota: sucos andaluzes no menu.
Bafo quente em Andaluzia

Milagre: choveu em Sevilha e saiu gente às ruas para ver aquela


aguinha minguada que caiu por meia hora. Em seguida, o sol voltou a
arder e o termômetro marcou 40ºC. E o verão, na folhinha, só começa
na semana que vem. Numa mesa na calçada do Café Imperador, leio
os jornais do dia que comentam a vitória brasileira, à beira do Parque
María Luisa, um bosque que parece ser a única área verde da cidade,
por onde me embrenho. E, caminhando sozinho por uma vereda
ensombrecida, torrando um baseadinho e divagando, bem
devagarinho, pelo bosque, imaginei um romance ambientado numa
Copa do Mundo. Depois esqueci tudo.
No hotel, o Mercador me anuncia orgulhoso que fará melhorias, a
pedidos: como os apartamentos do Porta Coeli não têm televisão, ele
acaba de alugar uma TV em cores e instalá-la em seu quarto: por
trezentas pesetas, o preço de uma entrada de cinema, qualquer um
pode assistir confortavelmente ao jogo que quiser. E ainda contará
com os sucos, bebidas, canapés e refeições ligeiras já conhecidos.
Para Inglaterra x França, lotou.

Dom Pepe propôs e o Badaró topou: racharão a diária de um


apartamento que vagou no quinto andar do Porta Coeli. Uma segunda
TV foi alugada e transferida, com alguns gêneros básicos, para o
“Canal Independente” de Dom Pepe-Badaró, que já está operando a
pleno vapor, com casa cheia. Graças à comissão que ganha do
Mercador e à simpatia que Deus lhe deu, morando bem e
praticamente de graça, o mouro de Sevilha está absoluto.
Paralelamente à cobertura do evento, a TV Globo estimula a
torcida local com brindes, gadgets, plásticos, canetas, camisetas,
milhares e milhares de bandeiras, o Instituto Brasileiro do Café
também inundou a cidade de bandeiras verde-amarelas. Começava a
ser criado, com simpatia, o clima de festa que o Brasil queria.
Vamos à piscina do hotel e encontramos Sócrates conversando
com Fagner, Júnior em uma mesa grande, e Zico com a mulher e os
filhos cumprimentando o empresário de moda Humberto Saade e sua
modelo Luiza Brunet: os jogadores têm um dia livre depois da vitória.
Fagner diz que estava tão nervoso que nem viu direito o gol da
vitória, e Sócrates, o autor do gol, tomando uma cervejinha, diz que
também não:
“Bati na bola e quando bati senti tanta certeza que nem olhei,
virei direto para o meio de campo para comemorar; mal dei as
costas, a galera estourou.”
Estamos esperando os escoceses: o embate pode se transferir
do campo para as calles. Eles, os ferozes torcedores beberrões,
comandados por Rod Stewart, são turbulentos tradicionais, por estilo
e prática continuada.
Os brasileiros, apesar da incipiente simpatia dos locais, ainda
assustam um pouco, com suas bermudas e batuques, shorts e
sandálias pelas ruas de gente vestida de preto, marrom e cinza.
E falam alto para cacete.
Todos os jornais locais deram a foto de um brasileiro alucinado
pela vitória e vestido de mulher, como no Carnaval carioca: “Poco
recomendable”, era a legenda.
Bafo quente em Andaluzia.
Na véspera do embate contra os escoceses, Sevilha amanheceu
sem sol. Depois do almoço, pôde-se caminhar um pouco a esmo pela
velha cidade mourisca de ruas estreitas, balcões de ferro e janelas
floridas. Ernest desenvolve ideias sobre a brancura dos sevilhanos:
“Mira, muchacho, aqui o sol é tão quente que todo mundo
fica só na sombra o dia inteiro...”
Olho à volta e, como de outras vezes, não vejo pelas ruas uma
gente morena, queimada de sol. Talvez exista no campo, mas na
cidade eles são brancos como cera, todos de roupas escuras.
Vimos Honduras x Espanha no “Canal Independente” de Dom
Pepe, entre sucos suculentos e salgadinhos salgados. É claro que
torcemos para Honduras, com aquele uniforme azul e branco de
escola pública contra o real fausto espanhol em suas reluzentes
camisas sangre y oro, seus calções azul-rei e suas meias negras.
No jogo, o que se vê é um bando de índios e crioulos centro-
americanos dando um toque de bola na real escuadra de balompié de
España, sob o esplêndido pasmo valenciano, com o negão Gilberto
deixando os espanhóis comendo grama à sua passagem, com
finesse carioca e incomparável vigor tropical. E, mais que todos, o
capitão, o que lidera o time dentro e fora de campo, alguém tão feio
que o chamam de “Primitivo” Mandariaga, como se fosse ele o elo
perdido entre o homem, o macaco e a bola. É ele que comanda a
resistência e o contra-ataque aos espanhóis, que arrancam um
empate milagroso no segundo tempo.
“O calção de Honduras tem bolso!”, aponta Dom Pepe,
passando do pasmo ao riso diante do que vê. Bolso para quê? Será
que eles levam dinheiro pro campo? Talvez um pente.
O locutor espanhol é horroroso. Totalmente desesperado, já torce
escancaradamente e grita “assim não dá” a cada jogada errada dos
compatriotas. Sentimos saudades do Luciano do Valle, com a sua
precisão emocionada: ele está pulando de cidade em cidade a cada
dia, em missão. Se estivesse aqui, tiraríamos o som da TV e ele daria
uma “canja”, narrando para nós o jogo como fazem os músicos de
jazz quando estão entre colegas.
A Argélia ganhou da Alemanha, Honduras e Espanha
empataram, Ernest levanta-se com um grito e um punho fechado:
“Dále Tercer Mundo!”

Consegui ouvir um pouco de flamenco. Não com ajuda de


Fagner, por supuesto, mas de Dom Pepe.
Vestido com uma camisa do Flamengo e elegantíssimas calças
de couro preto, ele me levou ao Patio de San Laureano, onde já tinha
estado em outra noite, de passagem: a dona, Carmen, é filha do
famoso matador Ordóñez, e amiga do craque Pintinho. Bela
andaluza, nos saúda com simpática altivez, e elogia a camisa de Dom
Pepe: cerca de cinquenta dentes brancos iluminam-lhe a cara preta.
Estamos em um velho pátio de antigas calçadas de pedra, circundado
por casas baixas com flores nas janelas. As mesas estão espalhadas
pelo pátio, todas cheias, todos bebem e conversam; entre um
pequeno balcão e elas, Carmen ondula incessantemente suas longas
saias.
O céu que se vê sobre nossas cabeças é limpo, mas o ar esfria a
cada minuto e começa a ventar. Em um tablado, um grupo de cinco
homens, com dura seriedade e grave paixão, canta e bate palmas e
castanholas: flamenco, finalmente. O canto tortuoso e mourisco, a
guitarra rasqueada e a percussão primitiva e áspera a marcar os
ritmos vertiginosos enchem a alma de música e mágica.
Chegando ao hotel, encontramos Ernest contando a Sérgio
Cabral os percalços de mais uma missão de degustação de pratos
típicos, frustrada naturalmente.
A pedidos, Cabral relembra uma história que é atribuída a Sérgio
Porto – mas da qual Sandro Moreyra me disse depois ser o autor:
Londres, Copa do Mundo de 1966, 10 mil brasileiros na cidade
para testemunhar o “tri”. Logo depois da derrota humilhante em
Liverpool, Sérgio e Sandro são abordados na rua por um brasileiro,
que pergunta onde se compram aquelas canequinhas que têm escrito
“Lembrança de Londres”.
“Em Caxambu, meu senhor, em Caxambu!”, fuzilou Sandro.
No bar do Porta Coeli, o clima é típico de véspera de jogo:
ansiedade, expectativa e velhas histórias de futebol.

A noite foi fresca, quase fria, mas o sol voltou a arder na manhã
do embate.
Os jornalistas locais estão excitados com as perspectivas de
choques entre brasileiros e escoceses nas ruas, mas tudo que se
consegue ver nas praças e mesas de bares é troca de garrafas e
amabilidades, eles de saiotes e com as caras vermelhas, e nós
mulatos de camisas amarelas e sotaque nordestino.
A ansiedade pela partida nos consome; como o tempo demora a
passar nesta canícula andaluza.
Estou em dúvida se vou à piscina do “Afonso Galo”, convidado
por amigos financistas, ou se acompanho o Mercador ao centro da
cidade, onde fica o Gran Magazine Cortefiel. Lá, no último andar,
posso cortar o cabelo: não porque esteja grande, mas por pura
ansiedade e para dizer no Brasil que quem me cortou o cabelo foi o
Barbeiro de Sevilha, rá rá rá.
Já o Mercador vai a trabalho.
Fomos para o jogo duas horas antes, convictos da vitória: nem
quando tomamos o primeiro gol nos assustamos. Quase já virou
tradição nesta seleção precisar ser provocada para brilhar, como as
estrelas temperamentais. E veio a resposta fulminante, a chuva de
gols, a exibição de talento, sem forçar o ritmo: tento controlar os gritos
de gol na garganta, ainda convalescendo de rouquidão dolorida e
ridícula, ainda mais em língua estrangeira, depois da epopeia russa.
O jogo foi tão limpo e a vitória tão inquestionável que, na saída do
estádio Benito Villamarín, pelo Paseo de las Delícias afora, o que se
via eram brasileiros e escoceses trocando camisas e bandeiras.
Nos bares, juntos, bebendo para comemorar e para
esquecer.
A Copa começa a esquentar com as goleadas sul-americanas em
Sevilha e Alicante: Brasil e Argentina arrasam adversários.
Na tribuna de imprensa de Vigo, um peruano se emociona com o
dramático empate de sua seleção: Mário Vargas Llosa, cronista
esportivo do La Vanguardia de Barcelona.
Nossa futura vitória contra a Nova Zelândia é líquida e certa,
resta saber o volume da goleada. Como primeiro do grupo, o Brasil
estará na mesma chave da Argentina, em Barcelona. Já estamos com
a cabeça lá e sete longos dias ainda nos separam do último jogo do
Brasil em Sevilha: partir do interior calorento e arribar ao mar que
banha a cidade onde moraram Vargas Llosa e García Marquez, onde
mora por uns tempos qualquer escritor latino-americano que se
preze...
Lembro de novo de Albert Camus dizendo que quase tudo que
aprendeu sobre a moral e os homens foi nos estádios.
Buñuel e Dalí filmando Um cão andaluz em Barcelona. Nos
mesmos cenários áridos, Glauber Rocha rodando Cabeças cortadas.
Dom Pepe tornou-se amigo instantâneo, íntimo, de um escocês
vermelhão e esporrento, Harry, que faz passar uma bolsa de couro
esguichando scotch goelas abaixo. O escocês está com a camisa
canarinho que dom Pepe lhe deu: o mouro já garantiu sua carona
para Barcelona com os escoceses, claro. Diz que agora se chama
MacPepe.
O Mouro de Sevilha fecha as malas, confere a presença de mais
quatro camisas “ensolaradas”, seus mísseis emocionais, “abre-te,
sésamos” multilíngues.
“Juntos até a vitória final” – nos despedimos na porta do Porta
Coeli.
Com a cara preta na janela, rindo com cerca de cinquenta dentes,
a Kombi xadrez some na curva sevilhana com uma bandeira brasileira
na antena.

Ernest conta que Hemingway dizia que ninguém vive com a


intensidade que deseja, salvo os toureiros, enquanto rodávamos rumo
à plaza de toros de La Maestranza, que, como o nome diz...
Tinha razão: na tradicional e carismática arena ensolarada e
repleta, testemunhamos emocionante mano a mano entre dois jovens
matadores: o andaluz Curro Durán, 20 anos, e o catalão Pedro
Castillo, 19. Os dois estavam naquele momento da vida em que os
toureiros assumem todos os riscos que só a fúria e a juventude
permitem, cheios de vontade e ambição de luta: as duas maiores
revelações da temporada taurina de 1982 em duelo de técnica e
coragem sob o sol de sábado.
Curro Durán é um jovem de pele muito branca, maçãs do rosto
rosadas e olhos de um azul muito claro, como pudemos ver da
terceira fila. Na arena exibiu elegância, estilo e valentia
incomparáveis: entre pasodobles e dobrados, matou os três miúras
que lhe couberam com perfeita maestria, e saiu pelos portões de La
Maestranza nos ombros do povo, depois de várias voltas triunfais na
arena, consagrado.
Das barreras e tendidos lhe jogavam flores, chapéus, bolsa de
vinho, bandeiras brasileiras. Próxima de nós, uma bichinha espanhola
grita olés exaltados e arremessa aos pés do matador vitorioso um
buquê de rosas. O matador sorri, doce e juvenil, e ela quase desmaia
com a visão da beleza viril e delicada em momento de alegria e
triunfo.
Entre os que carregavam Curro Durán em triunfo, dois brazucas
de camisa canarinho, desfraldando uma bandeira brasileira e
achando que era para eles o aplauso da massa, que ria mais do que
aplaudia.
À noite, jantar árabe no Hotel Los Lebreros. Humberto Saade e
sua marca de jeans Dijon recebendo quinhentos convidados em
homenagem a Luiza Brunet. Mesa longa e farta.
“Mas não tão farta quanto a da festa de crianças na casa de
Anísio Abrahão Davi, em Nilópolis”, comentei, diante da admiração
de Dom Pepe, enquanto percorríamos metros e metros de doces e
salgados.
Num domingo, fui convidado por Joãozinho Trinta para levar
minhas filhas, então com cinco e dez anos, à festa de aniversário da
filha de Anísio, em Nilópolis. Chegamos ao meio-dia. Já havia muita
gente comendo churrasquinho de filé e tomando uísque Ballantines
de um garrafão de dez litros. Outros se divertiam nas duas piscinas,
no campo de futebol e na sauna. Um clube com tudo grátis, e “do
bão”, como diz o dono da casa, orgulhoso. A casa, com sucessivas
ampliações e múltiplos estilos, planta-se no centro de um grande
jardim e é protegida por um circuito de TV. O ambiente é alegre e
familiar, são muitos os amigos de Anísio, inúmeros os seus afilhados.
Até o temido “homem de ouro” da polícia carioca, Mariel Mariscott,
parecia simpático e delicado, de mão dada com a filha pequena e
tímida. Tudo na mais santa paz: nunca me senti tão seguro. Mais
conversa, comida, bebida, não param de chegar crianças. Arma-se a
mesa interminável: no centro, os mais belos doces, cheios de cores e
sabores. Salgados recém-saídos do forno. Um gigantesco bolo
alegórico, com o castelo da Branca de Neve, fosso com água e
peixes, ponte levadiça e o escambau. Cada criança recebe brindes e
lembranças como em nenhuma das festas mais ricas que minhas
meninas já foram – e a menor comenta:
“Isso é que é luxo, né, pai?”

No jantar do Humberto, Anísio e seu irmão Nelson estavam


impecáveis em suas camisas de seda e anunciavam a próxima
chegada a Barcelona de Joãozinho Trinta e uma trupe de mulatas e
ritmistas da Beija-Flor, ora se apresentando em Paris.
Comemos e bebemos tanto que só conseguimos chegar ao
Teatro Lope de Vega, onde se exibiam dois astros da Nova Trova
Cubana, para as últimas canções. Vou com Fagner e o repórter
Ricardo Pereira, da TV Globo, aos camarins cumprimentar a dupla
Pablo Milanés e Silvio Rodriguez, ovacionados, “bisados” e “trisados”
pela jovem plateia sevilhana. Acompanho-os e testemunho a alegria
dos cubanos em reconhecer Fagner de discos – para deleite do
cearense.
Garrafas de Cutty Sark socializadas de boca em boca,
lembranças do Caribe ao comandante Chico Buarque.
O jantar do Humberto foi tão farto, mas tão farto que no dia
seguinte o Mercador, que encheu incansavelmente sua sacola, já
oferecia croquetes, empadas e doces diversos como sugestão
dominical: o “Menu Dijon”.
Domingo. Praia, que ninguém é de ferro. Mas haveria que sê-lo: a
praia mais próxima fica a mais de cem quilômetros, perto de Cádiz. E
ainda mais no carrão de Ernest, com ele ao volante.
Mas valeu a pena: o mar era limpo, temperatura baiana, embora
a praia fosse mais um barranco que qualquer outra coisa. Do outro
lado da baía de águas escuras, podia-se ver a arabesca Cádiz, que
de tão branca reluzia ao sol mediterrâneo.

Dom Pepe telefona de Barcelona. A cobrar, naturalmente.


“Está tudo ótimo, estou na maior aqui no apê que os
escoceses alugaram, ao lado da Casa dos Horrores de
Barcelona...”
“Casa do quê, Dom Pepe ?”
“Dos Horrores, cara.”
Só pode ser a Caja de Ahorros, que é a Caixa Econômica deles.

Modorra em Sevilha, zorra em Zorilla: lá, um sheik entrou em


campo e (com um cheque?) convenceu o juiz soviético a invalidar um
gol legítimo da França, em lance realmente das arábias. Mesmo
assim, a França ganhou.
Fagner e eu, como cantor e crítico musical, fomos convidados a
dar uma entrevista em um programa de rádio transmitido à noite, ao
vivo, de um bar na Plaza de España.
O pessoal da Rádio Cambio 16 perguntou muito de política,
liberdade de expressão, produção cultural, eleições, imensidão do
país, essas coisas.
Sentimos falta de Dom Pepe e sua maleta de discos, que o
acompanha para onde vai e é seu passaporte para todos os lugares
onde haja música tocando. Em rádio, uma música vale mil palavras.
De repente, um dos apresentadores me solicita uma análise
crítica da música e da personalidade de... Fagner, ao meu lado. Que
situação...
Microfone aberto, boa noite, torcida amiga:
“Raimundo Fagner é um jovem centroavante goleador, que
bate bem como cantor e como compositor, precisando apenas de
um pouco mais de impulso para as jogadas de cabeça. Acusado
por alguns de atropelar os de sua própria equipe na ânsia do gol
pessoal, de ser um ‘fominha’, é saudado por outros como adepto
do jogo solidário nos estúdios e por ajudar muitos novos
talentos, especialmente conterrâneos. Fagner é um goleador
nato, combativo e, apesar das críticas de abusar das firulas para
impressionar a galera, está chegando à maturidade e ainda pode
dar grandes alegrias à torcida”, concluo, bem radiofônico.

Dom Pepe veio de Barcelona muito bem, de trem. Chegou à


estação, viu uma movimentação diante do vagão com a placa “FIFA”,
alguns senhores falando português, sentiu o cheiro de boca livre e
aproveitou o tumulto para embarcar no vagão exclusivo sem ser
incomodado. Comendo canapés e sorvendo coquetéis, chegou alegre
e bem-disposto para o jogo de despedida do Brasil em Sevilha. Não
há nervosismo nem expectativa, todos parecem estar numa estação
de águas. Ninguém diria que é dia de jogo. Com a Nova Zelândia, é
verdade, mas, ainda assim, jogo.
Para ilustrar seu ceticismo, Badaró ameaça levar um caderno de
palavras cruzadas para o estádio.

Se não chegou a surpreender, a goleada brasileira não entediou.


Foi bonito ouvir o estádio inteiro cantando Aquarela do Brasil com a
banda do navio-escola Custódio de Mello, enquanto duas pipas
auriverdes dançavam no céu do Benito Villamarín.
O Brasil sai consagrado de Sevilha e Badaró comprou papel de
seda verde e amarelo para começar a produção de pipas. De
bermudas e boina basca, partiu de manhã bem cedo para Barcelona,
num carro alugado.
Já partiu também a interminável limusine dos bicheiros, apelidada
de Queen Elizabeth, não por causa da rainha, mas do transatlântico.

1 El Cordobés: apelido de Manuel Benítez Pérez, toureiro famoso, nascido em 1936.


2 Galo é o número 13 no jogo do bicho.
3 “Semelhantes são curados por semelhantes”, princípio homeopático.
LEIA MAIS NA EDIÇÃO INTEGRAL

Aquecimento
Espanha, 1982 | Turbilhão de emoções
México, 1986 | Tequila, sombreros e bola murcha
Itália, 1990 | crônica de uma derrota anunciada
Estados Unidos, 1994 | Festa da bola na terra do cinema
Atlanta, 1996 | Crônicas olímpicas
França, 1998 | festa, champanhe e futebol
Japão e Coreia, 2002 | Os perigos de ver a Copa ao vivo
Rio de Janeiro, 2007 | Jogos pan-americanos
África do Sul, 2010 | Vuvuzelas de fogo
Londres, 2012 | Mistérios esportivos

(disponível nas versões impressa e digital)


www.benvira.com.br
SINOPSE

Apaixonado por futebol e animado pela onda que cresce no Brasil


às vésperas da Copa, Nelson Motta reuniu as crônicas que escreveu
durante a cobertura de sete Copas do Mundo, duas Olimpíadas e um
Pan-americano nesta animada Resenha Esportiva, com o melhor e o
pior, os grandes dramas e comédias que testemunhou dentro e fora
de campo.
Além de relembrar vitórias e derrotas, passes e gols que ficaram
marcados na história do futebol, Nelson mergulha nas curiosidades
de cada país que sediou um Mundial e acompanha as aventuras dos
torcedores brasileiros em terras estrangeiras.
Com ele, fazemos check-in, vamos às ruas, às partidas, aos
bares e às festas. Entre Copas e copos, taças e taças, Resenha
Esportiva é uma empolgante prévia e um delicioso aperitivo da euforia
que está prestes a dominar os corações apaixonados pela bola
rolando.
SOBRE O AUTOR

Produtor musical, compositor, jornalista e escritor, Nelson Motta é


um nome fundamental da vida cultural brasileira. Desde o final dos
anos 1960, produziu discos de artistas que marcaram época na cena
musical, como Elis Regina e Marisa Monte, e, como compositor, criou
grandes hits, como “Dancin’Days”, com Ruban e “Como Uma Onda”,
com Lulu Santos. Colunista de O Globo e do Jornal da Globo, é autor,
dentre outros grandes títulos, dos best-sellers Noites Tropicais e Vale
Tudo, biografia de Tim Maia, que também teve adaptação vitoriosa
para o teatro, e O Canto da Sereia, que se transformou em minissérie
de sucesso da TV Globo.
Nelson é um torcedor tricolor que tem paixão por futebol e cobriu
sete Copas do Mundo como colunista de O Globo.

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