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A PAPADA PRECIOSA"

HANNA LITWINSKI

Começo esse post com um pedido. Por favor, “leia” as imagens


para entender melhor o que está descrito a seguir. Existem
alguns cortes de carne que são historicamente relegados por nós
brasileiros. Aliás, essa classificação de carne “de primeira”, “carne
de segunda” que fazemos é um completo absurdo. Não existe
um corte de carne mais nobre que outro (isso estende-se a
todos os ingredientes) e sim o modo mais adequado de preparo
para extrair o que cada parte tem de melhor. Existem cortes
totalmente ignorados por nós que são verdadeiras iguarias em
outros países. Esse é o caso da papada suína ou bochecha suína.
Com um sabor forte, textura delicada e rica e gordura, é um
corte feito a partir do pescoço do porco. Esse pitéu vem sido
introduzido e evidenciado nos cardápios dos jovens talentos da
nossa culinária como o fera Jefferson Rueda. No seu restaurante,
o afamado Casa do Porco em São Paulo, a papada é apresentada
na inusitada versão de sushi.
Dito tudo isso, onde eu quero chegar? Pois bem, sou assinante
do ChefsClub; um dentre tantos grupos de descontos. Hoje
recebi um e-mail anunciando um prato em promoção no
restaurante Glutoun, do nosso aclamado chef Leonardo Paixão. É
um prato como podem conferir pelo “print” da imagem
(ilustrativa, acredito que não é a porção servida); belo, simples e
convidativo como todo bom prato deveria ser. Na descrição:
papada suína acompanhada de mandioca, batata doce, acelga e
molho de laranja. Que poesia! Ingredientes simples, saborosos e
abundantes na mesa brasileira. Entretanto, a gente tem um
talento enorme para complicar as coisas. O que era pra ser
simples vira modinha, gourmetiza. E aí a papada honesta,
saborosa e até outro dia desperdiçada (sim, a maioria dos
açougues só faz esse corte sob
encomenda porque não tem muito valor comercial) passa a ter
peso de ouro. O “prato apaixonante” como é descrito no anúncio
sai dos originais R$74,00 pela bagatela de R$51,80 na oferta! Só
faltou a emenda: “Corram! Promoção assim, você não vê todo
dia”! Fala sério, gente?! Porque insistimos em fazer essa triste
inversão de valores? Será que a gente tem um prazer sórdido em
ser feito de trouxa
Porque transformar coisas simples, acessíveis e que são
absolutamente maravilhosas por isso mesmo, em produtos de
boutique? Com esse preço (entendo e sei bem de todos os
custos envolvidos num restaurante) o que era pra ser mais
acessível justamente porque é desconhecido e desvalorizado por
aqui é apresentado ao público numa lamentável versão deluxe.
Não existe diferença na nobreza dos alimentos como afirmei
anteriormente, mas o valor de custo sempre existiu e é
enormemente variante de produto pra produto a partir da básica
lei da oferta/procura até análises muito mais complexas que
determinam o valor comercial das coisas. Falta comunicação na
nossa gastronomia. Falta informação, falta cultura e por vezes
sinto falta de um pouco mais de honestidade. Este texto não tem
a intenção de polemizar muito menos de condenar. “Ninguém é
de todo bom ou de todo mau” como nos ensinou a maravilhosa
Rachel de Queiroz. Aliás, essa polarização e a mania de colocar as
coisas no plano do antagonismo é que está empobrecendo e
emburrecendo o nosso mundo. Existem muitas nuances,
perspectivas e discussões valiosas que nos tornam
absolutamente melhores. Esse é o meu propósito sincero aqui;
um convite ao bom debate através do portentoso exercício da
argumentação, fundamentada e lógica.
Em tempo: pesquisei no pai dos burros Google, e, dos poucos
açougues que comercializam a papada suína, encontrei a Piné
Casa de Carnes de Campinas/SP (casadecarnespine.com.br). O
preço do kg? R$8,99. Ah! Não precisa correr porque não é
promoção
Resposta ao texto
“PAPO RETO: A PAPADA
PRECIOSA”
LEO PAIXÃO
Chef de BH responde crítica e dá aula sobre
administração de restauranteso

O renomado chef Léo Paixão, responsável pelo restaurante


Glouton resolveu responder  uma crítica  feita ao seu restaurante
em um grupo do Facebook chamado  Restaurantes de Belo
Horizonte.Em sua resposta, o empresário lista todos os custos e
desafios diários necessários para manter um restaurante de alta
gastronomia na cidade.A critica que originou a resposta comparava
o preço da matéria prima ao preço do prato no restaurante. Já a
longa resposta/explicação mostrou que esse valor representa
somente 1/3 das despesas totais.
Resposta ao texto “PAPO RETO: A PAPADA PRECIOSA”Gostaria de
começar o texto agradecendo ao enorme carinho dos nossos
queridos conterrâneos. Fiquei emocionado com a quantidade de
gente que nos apoiou nos comentários. Fico muito feliz que exista
tanta gente que valoriza, respeita e aprecia a gastronomia. Isso me
deixa muito inspirado para continuar na luta. Tenho muito carinho
por vocês que compartilham comigo essa paixão pela
culinária.Recentemente foi escrito um texto que me cita e cita meu
restaurante, Glouton, como exemplo de cobranças abusivas por
ingredientes baratos “gourmetizados”. Disse também que “Falta
informação, falta cultura e por vezes sinto falta de um pouco mais
de honestidade.”
Acho muito fortes insinuações de desonestidade direcionadas aos
empresários do setor de restaurantes, um dos mais difíceis do
mercado.Apesar de ter dito no texto que entende bem os custos
envolvidos em um restaurante, vou fazer uma continha aqui e dar
um pouco mais dessa informação.Nosso gasto mensal com água,
luz, gás, aluguel, telefone, alarme, limpeza de fossa, lavanderia,
controle de pragas, contador, recolhimento de lixo e manutenção
em geral (equipamentos, jardinagem, limpeza de calhas, quebra
de pratos, taças, perdas de talheres e etc) é aproximadamente
70.000.
Nosso gasto com salários, transporte de funcionários e
gratificações é aproximadamente 135.000.Nosso gasto mensal
com impostos em geral (somos uma média empresa) é 95.000
reais.Nosso gasto mensal com produtos em geral: insumos e
bebidas é em torno de 160.000Atendemos uma média de 4000
clientes por mês. Sendo assim nosso gasto por cliente atendido é
115 reais, sendo que desse valor 40 reais é o custo de produtos
aproximado. Vale frizar que sempre a margem direta sobre as
bebidas é pelo menos 4 vezes menor que sobre alimentos, uma
vez que custa muito mais caro para se preparar um prato que
servir uma bebida.Dessa forma nosso custo de matéria prima
vendida, ou CMV, é 34,7% de nossos gastos. Daí você pode ver
como o Glouton é um restaurante bem administrado. Poucos
conseguem manter um CMV destes, próximo a 33,33%, que é
considerado o ideal para uma administração saudável.Trocando
em miúdos, do custo dessa papada pra mim, somente 1/3 foi de
ingrediente. Fazendo essa continha perversa por cliente e
analisando os números de forma fria, se um casal vem aqui com
Chef’s Club e o consumo fica em 250 reais (duas papadas e um
vinho de 102, água gratuita), você paga 205,60 (44,4 reais de
desconto). Essa conta é 24,4 reais mais baixo que o simples custo
médio de dois clientes na casa seja, “alguém pagou sua conta.”.
Respondo à pergunta: “Será que a gente tem um prazer sórdido
em ser feito de trouxa?”Na realidade acho difícil isso acontecer na
gastronomia. Manter um restaurante com os custos altíssimos e a
pequena margem de lucro é tão difícil que, segundo a ABRASEL
70% das casas abertas no Brasil fecham antes de completar 5
anos. Se fosse esse negócio da China, a história seria bem
diferente. E respondo especialmente à essa, muito obrigado por
me dar a chance:“Porque transformar coisas simples, acessíveis e
que são absolutamente maravilhosas por isso mesmo, em
produtos de boutique?”Ora, essa é a essência da gastronomia e o
real sentido da minha vida. Isso é meu sonho, de transformar o
ordinário em extraordinário! É duro, é árduo e muitas vezes vai
contra muita gente, mas é a poesia da minha existência. E citando
também Rachel de Queiroz:“A vida sem sonhos é muitíssimo mais
fácil. Sonhar custa caro. E não digo só em moeda corrente do País,
mas daquilo que forma a própria substância dos sonhos".
Agora, pensando na papada, eu não pago 8,90 no quilo, pago 6,50.
Ela gera uma perda de 70% no processo de limpeza e
desengorduramento e mais uma perda no forno. Segundo nossos
cálculos, cada quilo de papada nos da 1 porção. Servimos
aproximadamente 160 papadas por semana. .
Ela precisa de duas funcionarias qualificadas durante meio horário
para a limpeza, mais tempo de outros dois funcionários para
grelhar. Gastamos muito suco de laranja espremida na hora, caldo
de carne feito no Glouton com mocotó e carne moída. Esse caldo
leva dois dias para ficar pronto, gasta energia de 5 horas de forno
para cozinhar a carne, mais 12 horas cozinhando, mais 6 horas
reduzindo. No dia seguinte uma funcionaria escorre a papada e
enrola ela durante meio horário. Outro funcionário pega os caldos
e faz o molho, que leva 6 horas para reduzir e vários temperos. A
guarnição de mil folhas de mandioca gasta 2 quilos de manteiga e
sete de mandioca por tabuleiro, um tabuleiro da 36 porções, gasta
o dia inteiro de duas funcionarias para laminar e intercalar as
mandiocas, depois 7 horas de forno durante a noite. Depois
resfria por 24 horas e é porcionada por outro funcionário,
grelhada e finalizada. Os pasteizinhos de batata doce são feitos
com recheio de puré de batata e massa de guioza que custa caro.
A acelga é selecionada, aparada e lavada por outro funcionário. O
prato é servido em uma louça artesanal super frágil que custa 110
reais por prato e possui razoável quebra, que entra no custo de
manutenção. Se colocar tudo no papel, ela é mais cara que o atum
que, apesar de custar 89 reais o quilo, não gasta equipamento,
mão de obra ou tempo de preparo.
Dando um pouco mais de informação, carnes de porco não são
divididas entre carne de primeira e carne de segunda. O critério
para dividir as carnes é a dureza: carnes de primeira são
naturalmente macias e carnes de segunda são, por definição, mais
duras e precisam ser amaciadas pela cocção para serem comidas.
É uma nomenclatura besta, mesmo porque uma rabada, por
exemplo, tem tanta perda em osso que fica mais cara por quilo
que um filé mignon.Eu realmente acredito na gastronomia,
acredito na magia da boa experiência em um restaurante, que
inclui desde a decoração, climatização, ambiente, serviço, bebidas
e comidas. Acho que é das coisas mais extraordinárias da vida,
alimenta o corpo e a alma, um lugar para ser feliz com a família,
amigos e pessoas que ama. Faço isso com muito carinho e tomo
extremo cuidado para cobrar o preço mais justo possível por isso.

Abraços,
Leo Paixão
Chef, proprietário Restaurante Glouton.

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