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1966 - Michel Foucault, As palavras e as coisas 139

1966 condição de possibilidade dos conhecimentos, das instituições


e das práticas.
Esse estilo de pesquisa me interessa no seguinte sentido:
ele permite evitar todo problema de anterioridade da teoria
Michel Foucault, As palavras e as coisas em relação à prática e inversamente. De fato, trato no mesmo
plano e segundo seus isomorfismos as práticas, as instituições
e as teorias, e pesquiso o saber comum que as tornou possí-
veis, a camada do saber constituinte e histórico. Mais do que
"Mlchel Foucault, Les mots et les choses" (entrevista com R. Bellour). Les
buscar explicar esse saber do ponto de vista do prático-inerte,
Lettres Françatses , n . 1.125, 31 de março-6 de abril de 1966, p . 3-4. procuro formular uma análise do que se poderia chamar o
"teórico-ativo".
- Você então se defronta com um duplo problema: de his-
- Como As palavras e as coisas se articulam com a História tória e de formalização.
da loucura? - Todas essas práticas, essas instituições, essas teorias, eu
- A História da loucura era, resumidamente, a história da as tomo no nível de traços, ou seja, quase sempre traços ver-
divisão, a história sobretudo de um certo corte que toda so- bais. O conjunto desses traços constitui uma espécie de domí-
ciedade se vê obrigada a instaurar. Em contrapartida, nesse nio considerado como homogêneo: a priori , não se faz entre
livro eu quis fazer a história da ordem, dizer a maneira como eles nenhuma diferença, o problema é, então, encontrar, entre
uma sociedade reflete a semelhança das coisas entre elas e a esses traços de ordem diferente, traços comuns o suficiente
maneira como as diferenças entre as coisas podem ser domi- para se constituir o que os lógicos chamam classes, os esteti-
nadas, organizadas em redes, delinear-se segundo esquemas cistas, formas , as pessoas de ciências humanas, estruturas, e
racionais. A História da loucura é a história da diferença, As que são a invariante comum a ce~ número de ses traços.
palavras e as coisas, a história da semelhança, do mesmo, da - Como sejormulam para você os problemas âa escolha e
identidade. da não escolha?
- No subtítulo que você deu ao livro, encontramos a palavra - Eu lhe responderei que, de fato, não deve haver ali escolha
"arqueologia", quejáfl.gurava como subtítulo em Nascimento privilegiada. É preciso tudo ler, conhecer todas as instituições
da clínica e Já aparecia no prefácio de História da loucura. e todas as práticas. Nenhum dos valores reconhecidos tradi-
- Por arqueologia, eu queria designar não exatamente uma cionalmente na história das ideias e da filosofia deve ser aceito
disciplina, mas um domínio de pesquisa que seria o seguin- como tal. Temos de nos haver com um campo que ignorará
te: numa sociedade, os conhecimentos, as ideias filosóficas, as as diferenças, as importâncias tradicionais. Resulta daí o fato
opiniões cotidianas, mas também as instituições, as práticas de se tratar na mesma fi a Dom Quixote , Des.carte e um
comerciais e policiais, os costumes, tudo remet a um certo decreto sobre a criação de casas de internação or Pomponne
saber implícito, próP, !Q_a e s s a ~ e sse saber é profun- e ell ' vre. Perceber-se- igualmente que os gr~ átlc os do
tiamente diferente os conhecimentos que podemos encontrar seculo XVIII têm tanta "importância" quanto os filósofos reco-
nos livros científicos, nas teorias filosóficas, nas justiftcativ: nhecidos na mesma época.
religiosas, embora seja ele que torne possível, num dado mo - É nesse sentido que você diz , por exemplo, que ~
mento, a aparição de uma teoria, de uma opinião, e uma rá- e Ricardo lhe ensinaram tanto ou mais do ue Kant H l.
tica. sim, para que no fmãí do séciilo XVII se abrissem os Nesse sentido, tornou-se premente a questão da informação:
grandes centros de internação em toda a Europa, foi preciso como ler tudo?
um certo saber da loucura oposta à não loucura, um saber da - Podem-se ler todos os gramáticos, todos os economistas.
ordem e da desordem, e eu quis interrogar esse saber como Para Nascimento da clínica, li, do período entre 1780-1820,
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toda a obra de medicina cujo método era importante. As esco- - a da ordem empírica, da constituição das ordens empíri-
lhas que se podem fazer são inconfessáveis e não devem exis- cas.
tir. Deveríamos ler tudo, estudar tudo. m outras palavras, e Pareceu-me que, de fato , a idade clássica que se tem o há-
preciso ter sua disposiçao o-arquivo geral de uma época num bito de considerar como a idade da mecanização radical da
momento dado. E a arqueologia é, em sentido estrito, a ciênci natureza, da matematização do vivo era, na realidade, comple-
desse arg_uivo. j tamente diferente, existia um domínio muito importante que
- O que é que determina a escolha do período histórico compreendia a gramática geral, a história natural e a análise J
(aqui, como em História da loucura, do Renascimento aos das riquezas. E esse domínio emp'rico se s entava no prQje~
nossos dias) e sua relação com a perspectiva arqueológica de uma ordenâção coi s. E isso não a as à at , -
adotada por você? ticas, à geometria, J!lªS as ~ a sistemática dos ~ s
- Esse gênero de pesquisas só é possível como análise de uma espécie de taxinomia ger e si temática das co as,.:
nosso ró ri su s . Não é uma falha dessas disciplinas re- --:!! Foi então o reenvio à idade c ássica que determinou os
trospectivas encon arem seu ponto de partida em nossa atua- três eixos. E como se opera, nesses três domínios, a passa-
lidade. Não resta nenhuma dúvida de que a questão da divisão gem da idade clássica para o século XIX?
entre razão e desrazão só se tornou possível a partir de Nietzs- - Fui intensamente surpreendido por algo que ali se reve-
che e de Artaud. E foi o subsolo de nossa consciência moderna lou: o homem não exis a n interior do saber clássico. Nesse
sobre a loucura que eu quis interrogar. Se não tivesse havido lugar :Õndefioje descobrimos o homem, exis a o poder pró-
nesse solo alguma coisa como uma falha , sua arqueologia não prio ao discurso, à ordem verbal de representar a ordem das
teria sido nem possível, nem requerida. Do mesmo modo se, coisas. Para estudar a gramática ou o sistema das riquezas,
depois de Freud, Saussure e Husserl, a questão do sentido e não havia necessidade de pa sar por uma ciência do homem,
da relação entre o sentido e o signo não tivesse aparecido na mas, sim, pelo discur~o.
cultura europeia, é evidente que não seria requerido pesquisar - No entanto, aparentemente, uma literatura que parecia
o subsolo de nossa consciência do sentido. Nos dois casos, são de Jato falar do homem era a nossa literatura do século XVII.
análises críticas n ssa cond ção. - Uma vez que no saber clássico existiam representações
~ que o impeliu a adotar os rês eixos que orientam toda ordenadas num discurso, todas as noções fundamentais à nos-
a sua análise? sa concepção do homem como as de vida, de trabalho e de
- De um modo geral, foi o seguinte. Depois do final do sécu- linguagem não tinham razão de ser nem nenhum lugar naquela
lo XIX, as ciências humanas apareceram como se tomadas por época.
uma dupla obrigação, uma dupla postulação simultânea: a da No final do século XVIII, o discurso
hermenêutica, ou da interpretação, ou da exegese, segundo a o papel or anizado - or el
qual é preciso compreender o sentido que se oculta; e a outra, ouve mais transparência entre a or em as coisas e a as I
segundo a qual é preciso formalizar , encontrar o sistema, a ;representações que se podiam ter delas; as coisas, de algum
invariante estrutural, a rede das simultaneidades. Ora, essas modo, redobraram-se sobre suas próprias espessuras e sobre
duas questões pareciam defrontar-se de maneira privilegiada uma exigência exterior à representação. E assim apareceram
nas ciências humanas, a ponto de termos a impressão de ser as linguagens com sua história, a vida com sua organização
necessário que elas fossem isto ou aquilo, interpretação ou or- e sua autonomia, o tra , ia ca
malizaç -o. Empreendi precisamente a esquisa arq oló ·c pr ão Diãi~an
~t~ e~~~~~=~~~ _________,.~
do que havia tornado essa ambi idade oss'vel quis encon-
trar o ramo que trazia a bifurcação. Tive então de responder a
uma dupla questão concernindo à época clássica:
- a da teoria dos signos; vive, fala e trabalha.
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- Sobre essefundo, como então se apresenta nossa situa- primeiro humanismo, o do romantismo, a Flaubert, depois à
ção nos dias de hoje?
literatura do sujeito encarnada pela geração da NRF (Nouvel-
- Atualmente, encontramo-nos numa situação muito ambí- le Revue FrançaiseJ, ao novo humanismo do antes e do pós-
gua. O homem só existiu de ois do século XIX ~o ue o guerra e, nos dias de hoje, ao formalismo do p,52vo rom nc .
curso cessara de ter for a d i sobre o m do írico. o Todavia, a literatura alemã obstaculiza inteU-amente um es-
homem existiu ali onde o scurso calou-se. Ora, eis que com quema evolutivo dessa ordem, seja qualfor o sentido em que
Saussure, Freud e Husserl, no cerne do que há de mais fun- a consideremos.
damental no conhecimento do homem, o roblema do senti o - Talvez pelo fato de o classicismo alemão ter sido contem-
e do signo reapare~ . Quer dizer que podemos nos perguntar porâneo dessa idade da história e da interpretação, a literatura
se esse retorno o grande problema do signo, do sentido e da alemã encontrou-se, desde sua origem, diante de;,se confronto
ordem dos signos, constitui uma espécie de superposição em que conhecemos hoje. Isso explicaria o fato de Nietzsch«; não
nossa cultura do que havia constituído a idade clássica e a mo- ter feito outra coisa senão tomar consciência dessà.--sttUãção, e,
dernidade, ou então se é questão de marcas anunciadoras do agora, é ele que nos serve de luz.
desaparecimento do homem, já que, até o presente, ordem - Isso explicaria como ele pôde aparecer, ao longo de todo
do homem e a dos signos aviam sido incompatíyeis em o seu livro, como afigura exemplar, o sujeito cuja arqueolo-
~ ª-
Q homem morria dgg sigQQ§..na&: os nele, foi
Nietzsche, o rimeiro ui er. ,-=~::... "11...
gia não poderia ser feita (ou não ainda) , já que a questão só
pôde se formular em toda a sua violência a partir do que ele
- Parece-me que essa ideia de uma f.;!í;ompatibilidade en- abriu.
tre a ordem dos signos e a ordem~dóhomem deve ter certo . po o e e qu . aves cultura e ã, compre-
número de consequências. ~ f>G..~ endeu que a redescoberta da dimensão própri~ à linguagem é
- Sim, por exemplo: >~ {).;::::. -41-compatível com o homem. Disso resulta o fato de Nietzsclie
l ll) enviar às quimeras a ideia de urna ciência do ho er ornado um valor profético para nós e, em contrapartida,
que seja ao mesmo tempo análise dos signos; de ser preciso condenar com total severidade todas as tenta-
2ll) anunciar a primeira deterioração na história europ ia do tivas para insipidar esse problema. Por exemplo, a u~
e isódio antropoló~ _./'Ie humanista ~ I
que conhecemos no sé o das noções mais familiare do século XVIII, os esquemas de
.., , quan d o se ensava que as ciencias do homem ser ao seme ança e de contigui ade,t'üdo isso para constru ,ciên-
mesmo tempo a libe[s!&ão do homem, do ser humano, evi a cias humanas e fundam tá-las me parece ser uma covardia
plenitude. ~experiência mostrou que, ao se desenvolverem as intelectual e serve ara co mar o fato do que :t,f_ietz h n
ciências do homem coo uzem muito..ID__ ats ao des ~~o entanto, nos significou, há-aproximaaamente um século, a sa-
do pmem do que à sua apote se; oer: ali onde há signo não pode haver o homem, ali ode se faz
3ll) ~ ª· que mudou de s tatus no século XIX, quando faÍar os signos, é precis que o homem se RJe·
cessou de pertencer à ordem do discurso e se tornou a m - O que me parece decepcionante, ingênuo nas reflexões, nas
~ tação da 11,? em em sua s essura, deve agora, sem. análises sobre os signos, é que os supomos sempre já ali , de-
duvi~a. passar a um outro status; e a hesitação manifestada postos sobre a figura do mundo ou constituídos pelos homens
por ela entre os humanismos débeis e o formalismo puro da sem jamais interrogarmos o ser esmo os signos. _que quer
linguagem é, sem dúvida, apenas urna das manifestações desse dizer o fato de haver signos, marcas da linguagem? E ,U!Ci o
fenômeno fundamental para nós, que nos faz oscilar entre a apresentar o problema do ser da lin em como tarefa ara
interpretação e a formalização, entre o homem e os signos. nào se voltar a cair um nível de reflexão cme ser!a o o ~
- Vemos, assim, delinearem-se perfeitamente as grandes culo XVIII, o nível do ~ ir~
determinações da literaturafrancesa desde a idade clássica. - Uma coisa me impàcr'o u- muito intensamente em seu li-
Em particular, vê-se muito bem o esquema que levou de um vro: a perfeita singularidade de sua posição no que concerne,
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por ~m lado, à filosofia, à tradição filosqftca, e, por outro, à


historia das ideias, dos métodos, dos conceitos. 1966
, - Fiquei chocado pelo fato de existir, de um lado, uma his-
toria, da filosofia que se dava como objeto privilegiado edificios
filosoficos assinalados pela tradição como importantes (acei-
tava-se, no máximo, quando se estava um tanto "na moda"
Entrevista com Madeleine Chapsal
r~portá-los ao nascimento do capitalismo); de outro, uma his~
torta das ideias, quer dizer, subfilosofias, que tomavam como
objeto privilegiado os textos de Montesquieu, de Diderot ou de
"Entretlen avec Madeleine Chapsal", La Qui nzalne Littéralre, n . 5 , 16 de maio
Fontenelle. Se acrescentarmos que, além disso, há histórias de 1966, p . 14-15.
das ciências, não podemos não nos chocar diante da impos-
sibilidade de nossa cultura formular o problema da história
de seu próprio pensamento. Por essa razão, tentei fazer , num
estilo evidentemente um tanto particular, a história ão do - Você tem 38 anos. É um dos mais Jovens filósofos des-
~ amento em geral, mas de tudo o que "contém pens en- ta geração. Seu último livro, As palavras e as coisas, tenta
to numa c ti.ira tudo aquilo em ue há ensamento. ois ha examinar o que mudou totalmente, há 20 anos, no domínio
~e~same~ o na filosofia, mas também num romance, numa do pensamento. O existencialismo e o pensamento de Sar-
Junsprudencia, no direito, até mesmo num sistema adminis- tre, por exemplo, estão se tornando, segundo você, objetos
ativo, numa prisão. \ de museu. Você vive - e nós também, sem ainda nos darmos
conta disso - num espaço intelectual inteiramente renovado.
As palavras e as coisas, que desvelam em parte essa renova-
ção, é um livro difícil. Você poderia, de modo um tanto mais
simples (ainda que isso não seja mais exatamente assim),
responder à seguinte pergunta: sobre essa questão, onde é
que você está? Onde estamos nós?
- De modo muito súbito, e aparentemente sem haver razão,
demo-nos conta, há mais ou menos 15 anos, de que estávamos
multo distantes da geração precedente, da geração de Sartre,
de Merleau-Ponty, geração dos Tempos modernos que fora
nossa lei para pensar e nosso modelo para existir ...
- Quando você diz "demo-nos conta", "nos", refere-se a
quem?
- À geração das pessoas que não tinham 20 anos durante a
guerra. Percebemos a geração de Sartre como por certo cora-
josa e generosa, apaixonada pela vida, pela política, pela exis-
tência .. . Nós, porém, descobrimos outra coisa, outra paix~
P-aixão J>elo conceit o aquilo que nomearei o "sistema"...
- Como filósofo , em que Sartre se interessa a?
- Em suma, confrontado com um mundo histórico que a
tradição burguesa, por não mais se reconhecer nele, queria
considerar como absurdo, Sartre quis mostrar que, ao coo-

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