Você está na página 1de 6

FICHAMENTO

ENCARCERAMENTO EM MASSA – Juliana Borges


BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. 1. ed. São Paulo: Pólen, 2019

Capítulo I – Breve Histórico. Punição e aprisionamento. Qual


ideologia
Nosso pensamento é condicionado a pensar as prisões como algo inevitável para
quaisquer transgressões convencionadas socialmente. Portanto, a punição já foi
naturalizada no imaginário social. – p.28
Vivemos em uma sociedade marcada pela lógica hoje neoliberal, e, desde sua
fundação, racista e com desigualdades de gênero. São opressões estruturais e
estruturantes da constituição de uma sociedade que surge, para o mundo ocidental, pela
exploração colonialista e ainda marca, em todos os seus processos, relações e
instituições sociais, as características da violência, a usurpação, a repressão e o
extermínio daquele período. – p.32
Capítulo II – Brasil: ideologia racista e sistema de justiça
criminal
Nosso país foi construído tendo na instituição da escravização de populações
sequestradas do continente africano um de seus pilares mais importantes. Portanto, o
processo de colonização no Brasil baseou-se na exploração de mão de obra escravizada
e teve como foco a superexploração e a extração de recursos naturais, principalmente
em seu primeiro ciclo. O eixo de sustentação da economia brasileira advinha do
processo de escravização. Nesse sentido, a primeira mercadoria do colonialismo, e seu
posterior desenvolvimento capitalista no país, foi o corpo negro escravizado. Este foi
um processo que não se fixou apenas na esfera física da opressão, mas estruturou
funcionamento e organização social e política do país. Sendo assim, as dinâmicas das
relações sociais são totalmente atravessadas por essa hierarquização racial. Não se
consegue, portanto, discutir os efeitos do racismo e sua articulação com o sistema de
justiça criminal sem retomarmos, mesmo que brevemente, historicamente este processo.
– p. 39
O Estado no Brasil é o que formula, corrobora e aplica um discurso e políticas
de que negros são indivíduos pelos quais deve se nutrir medo e, portanto, sujeitos à
repressão. A sociedade, imbuída de medo por esse discurso e pano de fundo ideológico,
corrobora e incentiva a violência, a tortura, as prisões e o genocídio. – p.41
Para garantir o controle desses corpos foi, então, aplicada a “pedagogia do
medo”, na qual a punição, o constrangimento, a violência e a coerção foram impingidas
para que se estabelecesse explicitamente a mensagem de qual lugar negros e negras
teriam na sociedade baseada nessas hierarquizações – p. 47
Havia, com isso, diferenciação das penas entre escravizados e livres. Um
exemplo é a execução da pena capital em que os “bem-nascidos” eram executados pelo
machado, considerada uma morte digna, e aos demais era utilizada a corda, considerada
uma morte desonrosa. Posteriormente, essa diferenciação não aparecerá na letra da lei,
mas será exercida e sentida na aplicação da punição aos réus. – p. 47
Com o crescimento das cidades, diversas são as ações tomadas no período
objetivando o aumento da vigilância sobre os negros e pobres livres. A polícia ganha
outros contornos e a vadiagem, embasada e definida por valores morais e raciais de que
as “classes menos favorecidas” eram preguiçosas, corruptas e imorais, alimentavam o
imaginário do que se entenderia como “crime” e da representação do sujeito que seria
criminalizado, o “criminoso”. A capoeiragem, por exemplo, foi inserida no Código
Penal Brasileiro, em 1890, intensificando ainda mais o controle social sobre negros.
Além disso, um conjunto de leis foram sendo promulgadas e intensificadas,
criminalizando a cultura afro-brasileira como o samba e os batuques, as religiões, as
reuniões musicais que passaram a ter que ser registradas nas delegacias e sofriam forte
repressão. – p. 53
Tráfico, ademais, é a tipificação com maior incidência no sistema prisional, em
uma média de 27%. Contudo, se fizermos o recorte de gênero, o número é assustador:
62% das mulheres encarceradas estão tipificadas na Lei de Drogas (Lei n o 11.343/06),
enquanto que esse percentual cai para 26% entre os homens encarcerados. – p. 56
A sociedade é compelida a acreditar que o sistema de justiça criminal surge para
garantir normas e leis que assegurarão segurança para seus indivíduos. Mas, na verdade,
trata-se de um sistema que surge já com uma repressão que cria o alvo que intenta
reprimir. – p. 56
A realidade do sistema de justiça criminal é absolutamente diversa de garantir
segurança, mas um mecanismo que retroalimenta insegurança, e aprofunda vigilância e
repressão. – p. 56
Ao perguntar para qualquer pessoa negra periférica quais são as instruções que
ela recebe desde pequena sobre comportamento, conduta e confiabilidade na polícia, um
braço central para o funcionamento das engrenagens de exclusão, certamente será
percebida não uma mera distorção de um suposto papel da organização. – p. 56
Não se trata de um entrave e de uma opressão apenas policial, seria simplista
colocar nesses termos e pouco sistêmico-estrutural. A falta de acesso à justiça, a
advogados e defensores com tempo e qualidade desse tempo para atendimento de réus e
vítimas, a morosidade, o tratamento desigual baseado no fenótipo: são todos indícios de
que há, na verdade, uma constante insegurança sobre garantia de direitos no contato
com esse sistema. – p. 57
Acreditar que o elemento de classe não está informado pelo contexto e pelo
elemento racializado e colonial da sociedade brasileira é invalidar que negros são 76%
entre os mais pobres no país, que três em cada quatro negros estão presentes entre os
10% com a menor renda do país ou que, em 2015, negros recebiam, em média, 59,2%
do rendimento dos brancos, mesmo com as políticas afirmativas e de incentivo
implementadas nos últimos anos. – p. 57
Há desproporção no peso da definição das penas entre brancos e negros que
cometeram um mesmo crime. Dos acusados em varas criminais, 57,6% são negros, 86
enquanto que em juizados especiais que analisam casos menos graves, esse número se
inverte, tendo uma maioria branca (52,6%). Essa diferença ocorre porque a
determinação de qual vara será tramitado o processo depende do tipo de pena pedida,
decisão do promotor de Justiça. Nas varas criminais, a prisão é praticamente inevitável,
diferente dos juizados que encaminham mais penas alternativas. – p. 57
Segundo relatório divulgado pelo IPEA, “A aplicação de penas e medidas
alternativas”, 90,3% dos acusados são homens e 9,7% são mulheres. Desses, 75,6%
possuíam, no máximo, ensino fundamental completo. A prisão provisória é uma regra
no sistema de justiça criminal, sendo 54,6% dos processos transcorridas com a prisão
provisória decretada. Um dado preocupante e que demonstra as falhas do sistema é o de
que em 46% dos casos houve troca de defensores, em 75,4% houve troca de promotores
e em 73,5% houve troca de juízes. O que significa maiores dificuldades ao acusado e
distorções nas penas, já que defensores não terão tempo para conhecer o processo com a
qualidade necessária; assim como promotores e juízes, decisivos na definição da pena,
também não terão condições desejáveis para o entendimento do caso e, portanto, para a
decisão adequada. – p. 57
Uma questão assustadora é de que ainda são realizadas no Brasil prisões com o
objetivo terapêutico, em casos de acusados usuários de drogas, bem como de pessoas
sem domicílio e em situação de rua. – p. 57
É preciso pensar, portanto, o sistema de justiça criminal como esse
reordenamento sistêmico pela manutenção desse sistema racial de castas. Ao passo que
começam a existir avanços quaisquer na vida da população negra que coloquem em
risco o funcionamento desse sistema de castas, há uma reorganização do racismo, que
passa a operar em outras instituições para que as coisas mudem, mas mantendo tudo
como está. – p. 57
Sistema de Justiça Criminal Brasileiro em cores 87 • 84,5% dos juízes,
desembargadores e ministros do Judiciário são brancos, 15,4% negros, 88 e 0,1%
indígenas; • 64% dos magistrados são homens, 36% das magistradas são mulheres; •
82% das vagas nos tribunais superiores são ocupadas por homens; • 30,2% de mulheres
já sofreram reação negativa por serem do sexo feminino; • 69,1% dos servidores do
Judiciário são brancos, 28,8% são negros, 1,9% amarelos; • 67% da população prisional
é negra (tanto entre homens quanto entre mulheres); • 56% da população prisional
masculina é jovem, 50% da população prisional feminina é jovem. – p. 57
Capítulo III – gênero, raça e classe e guerra às drogas:
estruturas de manutenção das desigualdades
Na grande parte dos estudos e ativismos em torno da pauta do sistema de justiça
criminal, pouca é a atenção dada ao debate de gênero. [...] A situação das mulheres
encarceradas sofre uma dupla invisibilidade, tanto pela invisibilidade da prisão quanto
pelo fato de serem mulheres. Ninguém quer saber ou discutir sobre o sistema prisional.
– p. 61
Apesar do ainda pequeno contingente em números absolutos (35.218), as
mulheres compõem o segmento que mais cresce no encarceramento. Entre 2000 e 2014,
houve um aumento em 567,4% no contingente de mulheres encarceradas, enquanto que
o aumento entre os homens foi de 220%. – p. 61
Mas um dado importante na história punitiva sobre as mulheres é de que, ao
passo que homens começaram a ser penalizados em prisões, foram utilizados contra as
mulheres os hospitais psiquiátricos, as instituições mentais, os conventos e os espaços
religiosos. Então, aos homens, a criminalidade era considerada algo da normalidade,
uma quebra de contrato e, portanto, em se tratando o crime de algo da esfera de um
sistema de justiça público, a punição se exercia também no âmbito público. Em paralelo
se constrói nesse período a ideia de mulheres anormalizadas e desestabilizadas, portanto
loucas e histéricas, e que deveriam ser tratadas sob normas e condutas médicas e
psiquiátricas. Até hoje, as mulheres formam o contingente mais medicalizado da
sociedade moderna, com todo tipo de fármacos para controle de “distúrbios” de ordem
psíquica, além de apresentarem alto grau de doenças mentais. – p. 62
Diversas estudiosas e intelectuais têm apontado a chamada “guerra às drogas”
como um fator central no aumento exponencial do encarceramento e como discurso que
impulsiona e sustenta a manutenção de desigualdades baseadas em hierarquias raciais.
As mulheres, por sua vez, são o segmento que mais tem sentido esses impactos. O
tráfico é a primeira das tipificações para o encarceramento. Das mulheres encarceradas,
62% estão respondendo por crimes relacionados às drogas, enquanto que entre os
homens esse percentual cai para 26%. – p. 64
A Lei de Drogas aprovada no Brasil (Lei n o 11.343, de agosto de 2006) teve
impactos diretos no hiperencarceramento do país. A nova lei substituiu uma anterior, de
1976, e instituiu uma Política Nacional sobre Drogas, orientando estados na integração
de políticas públicas. Ocorre que, além disso, ela traz uma distinção no tratamento entre
usuários e traficantes. No campo do usuário, a lei se aproxima mais de medidas de
saúde pública, ou seja, o usuário não pode mais ser preso em flagrante e responde em
penas alternativas, além da assinatura de um termo circunstanciado. Já ao traficante, a
pena foi endurecida com punição de 5 a 15 anos, e condenados por tráfico não podem
beneficiar-se de extinções de penas. – p. 66
A pergunta levantada é: quem define se uma pessoa é usuária ou traficante?
Diante de tudo que discutimos até aqui, quais são as chances de uma mulher negra, com
uma pequena quantidade de substância ilícita, ser considerada traficante e não usuária?
Quais as influências sociais, políticas, territoriais, raciais e de gênero para a definição
dessa diferenciação? Eu respondo: todas as influências. – p. 66
Considerando tudo isso, a nova lei teve impacto direto no número abrupto e
acentuado que levou o Brasil ao posto de terceira população carcerária do mundo. – p.
66
De 2006 a 2014, quando temos dados oficiais pelo InfoPen, o número de
encarcerados aumentou em mais de 200 mil pessoas em um período de oito anos, sendo
que de 1990 a 2005, um período de 15 anos, houve cerca de 27 mil pessoas
encarceradas. O aumento é assustador. – p. 66
Além disso, diversos são os estudos que demonstram que várias prisões de
mulheres são realizadas em operações nas quais o foco eram os parceiros ou familiares
dessas mulheres, que acabam sendo detidas por associação ao tráfico. (Um estudo
importante é: ALVES, Enedina do Amparo. Rés negras, judiciário branco: uma análise
da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão
paulistana. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2015, 173 f.) – p.66
No caso das mulheres, é muito comum o relato de buscas e “apreensões” e
invasões sem mandado de busca em seus domicílios; tortura e humilhação para obter
informações das quais sequer elas têm conhecimento; relatos de prisão pela
proximidade com algum familiar envolvido com o tráfico; prisões quando transportando
pequenas quantidades, sendo que muitas são intimidadas a fazer isso. – p. 68
Precisamos pensar que as prisões não estão distantes de nós. Elas são produto de
negligência e políticas que tratam diferenças como desigualdades. Em sendo o
feminismo negro e a produção teórica e ativista de mulheres negras um questionamento
às desigualdades baseadas em hierarquias raciais e a busca radical por transformações,
lutar contra uma guerra às drogas que violenta, encarcera e mata nossos filhos,
companheiros, irmãos, tios, pais, sobrinhos, filhas, irmãs, primas e nós mesmas é uma
emergência. – p. 77

Você também pode gostar