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O ALUNO EM FOCO

Eduardo Fleury Mortimer


Luiz Otávio F. Amaral

A seção “O aluno em foco” traz resultados de pesquisas sobre principais características das concep-
idéias informais dos estudantes, sugerindo formas de levar essas ções cotidianas de calor e temperatura
idéias em consideração no ensino–aprendizagem de conceitos e sugerir atividades que favoreçam sua
científicos. Este artigo discute as concepções dos estudantes sobre explicitação pelos alunos, de modo
calor e temperatura, sugerindo quatro atividades para explicitá-las e que eles possam perceber a relação
favorecer a construção dos conceitos científicos correspondentes, entre essas concepções e os conceitos
que são básicos para a aprendizagem de conceitos mais avançados científicos de mesmo nome. Conside-
de termoquímica. ramos inviável querer extinguir as con-
cepções cotidianas dos alunos sobre
calor, temperatura, ensino de termoquímica, concepções alternativas calor e temperatura, enraizadas que
30 estão na linguagem cotidiana, dada a
existência de um grande número de

E
mbora seja um conceito básico outros. situações a que essas concepções são
para o entendimento da O estudo, no ensino médio, das aplicadas com sucesso. Afinal, mesmo
maioria dos fenômenos de in- transformações envolvidas nesses os cientistas entendem perfeitamente
teresse da ciência, não é simples processos, normalmente sob o nome de o que se quer dizer com uma expres-
definir energia. A definição clássica — termoquímica, envolve o são como “agasa-
a capacidade de realizar trabalho — uso de alguns conceitos lho bem quente”.
A literatura descreve
está relacionada ao uso das primeiras — energia, calor, tempe- Do ponto de vista
três características
máquinas térmicas, nas quais a ener- ratura — que já estamos científico, sabe-se
principais das
gia química de combustíveis como a acostumados a usar no que o agasalho
concepções de calor e
madeira era usada para a produção de nosso dia-a-dia. Essas não é quente, mas
temperatura
vapor, que as movimentava. palavras, no entanto, não apenas um bom
apresentadas por
Praticamente todas as formas de têm o mesmo significado isolante térmico.
estudantes, que estão
energia que conhecemos dependem, na ciência e na linguagem Seria, no entanto,
intimamente
direta ou indiretamente, da energia comum. Isso tem sido desconcertante
relacionadas à forma
luminosa que recebemos do sol. A causa de dificuldades no chegar a uma loja
como nos
fotossíntese é o processo fundamen- ensino de química, pois na é pedir ao vende-
expressamos sobre
tal pelo qual as plantas usam energia maioria da vezes o profes- dor um “agasalho
esses fenômenos na
solar para transformar gás carbônico sor trabalha conceitos feito de um mate-
vida cotidiana:
e água em alimentos e combustíveis. mais avançados como rial que seja um
Nosso corpo depende da energia dos calor de reação, lei de • O calor é uma bom isolante tér-
alimentos para executar suas funções Hess etc., sem uma substância mico e impeça
vitais. Mesmo a energia usada nos revisão dos conceitos • Existem dois tipos de meu corpo de tro-
transportes e na produção da maioria mais básicos. O resultado, ‘calor’: o quente e o car calor com o
dos materiais provém de combustíveis muitas vezes, é um frio ambiente”.
fósseis, que em última análise origina- amálgama indiferenciado • O calor é diretamente Portanto, de-
ram-se também por fotossíntese. A de conceitos científicos e proporcional à pendemos das
obtenção de tanta energia para consu- cotidianos, sem que o temperatura concepções sobre
mo humano tem causado muitos pro- aluno consiga perceber calor e temperatu-
blemas ambientais — a poluição nas claramente os limites e contextos de ra expressas na
grandes cidades, o aumento do efeito aplicação de um e de outro. linguagem cotidiana para comunicar e
estufa e a chuva ácida, entre tantos Neste artigo pretende-se discutir as sobreviver no nosso dia-a-dia. Em lugar

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de tentar suprimi-las, seria melhor por trás da idéia de que um corpo pode a temperatura está alta. Essas idéias
oferecer aos alunos condições para conter calor, ou seja, de que calor e fazem com que os conceitos de calor
tomar consciência de sua existência e frio são atributos dos materiais. Essa e temperatura sejam muitas vezes
saber diferenciá-las dos conceitos cien- idéia já foi aceita por muitos cientistas considerados idênticos.
tíficos. A proposta de ensino que orienta no passado, que consideravam que O conceito de temperatura, do
esse artigo prevê, portanto, o alar- todos os corpos possuíam em seu in- ponto de vista científico, deriva da
gamento do perfil conceitual do aluno, terior uma substância fluida invisível e observação de que energia pode fluir
que incorporará novos significados — de massa desprezível que deno- de um corpo para outro quando eles
científicos — que passarão a conviver minavam calórico. Um corpo de maior estão em contato. A temperatura é a
com os significados cotidianos. temperatura possuía mais calórico do propriedade que nos diz a direção do
que um corpo de menor temperatura. fluxo de energia. Assim, se a energia
Idéias informais e científicas Lavoisier (1743-1794), por exemplo, flui de um corpo A para um corpo B,
sobre calor e temperatura listava o calórico como uma das podemos dizer que A está a uma
A literatura descreve três caracte- substâncias elementares. Hoje sabe- temperatura maior do que B. Essa ma-
rísticas principais das concepções de mos que uma substância pode arma- neira de definir a temperatura também
calor e temperatura apresentadas por zenar energia, mas não contém calor. estabelece a relação entre calor e tem-
estudantes, que estão intimamente A teoria do calórico pensado como peratura. O calor, como fluxo de ener-
relacionadas à forma como nos ex- substância foi abandonada em favor gia, sempre passa de um sistema a
pressamos sobre esses fenômenos na da teoria do calor pensado como uma temperatura maior para um outro
vida cotidiana: energia, principalmente por não poder a uma temperatura menor, quando os
• O calor é uma substância. explicar o aquecimento de objetos de dois estão em contato. Deve-se desta-
• Existem dois tipos de ‘calor’: o outra maneira que não por meio de car que só há fluxo de energia e, por-
quente e o frio. uma fonte de calor — por exemplo, por tanto, calor, quando há diferença de
• O calor é diretamente proporcio- atrito. Benjamin Thompson (1753- temperatura. O calor é, dessa maneira,
nal à temperatura. 1814), engenheiro americano exilado diretamente proporcional à diferença
A primeira idéia, de que o calor é na Inglaterra e conde do Sacro Império de temperatura entre os dois sistemas 31
uma substância, combinada com a Romano que adotou o título de Conde entre os quais está havendo a trans-
segunda, de que existem dois tipos de Rumford em homenagem ao local nos ferência de calor, e não à temperatura
calor, resulta em que o calor e o frio Estados Unidos de onde provinha sua de qualquer dos sistemas.
sejam pensados como atributos de esposa (hoje Concord), introduziu a
substâncias e materiais. De idéia de que ca- Algumas atividades para
acordo com essas idéias, lor era energia e explicitar as idéias informais
A idéia de que o calor é
um corpo quente possui diretamente não substância sobre calor e temperatura
calor enquanto um corpo proporcional à em 1798, ao atri- A seguir, sugerimos algumas ativi-
frio possui frio. Afinal, esta- temperatura tem sua buir o aqueci- dades simples que podem ser úteis
mos acostumados a dizer origem na maneira mento de peças para explicitar as idéias informais dos
que colocamos uma pedra como lidamos com metálicas, quan- estudantes e ajudar na construção das
de gelo numa bebida para ‘calor’ na vida do perfuradas, à idéias científicas. O objetivo é levar o
esfriar essa bebida. Essa cotidiana. As energia mecâ- estudante a tomar consciência desses
maneira de dizer sugere expressões ‘faz muito nica empregada dois conjuntos de idéias — informais
que o gelo transfere ‘frio’ calor’, ‘calor humano’ em sua perfura- e científicas — e a perceber a diferença
para a bebida. Na ciência, etc. são exemplos de ção. entre elas.
ao contrário do que ocorre como essa idéia está A idéia de
na vida cotidiana, não que o calor é di- Atividade 1: Comparação de um
arraigada na
admitimos a existência de retamente pro- termômetro de laboratório com um
linguagem cotidiana.
dois processos de transfe- Afinal, só falamos que porcional à tem- termômetro clínico
rência de energia — o do ‘faz muito calor’ peratura tem sua A primeira atividade consiste em
calor e o do frio —, mas quando a temperatura origem na ma- solicitar aos alunos que observem e
apenas de um, o do calor. está alta. Essas idéias neira como lida- desenhem o bulbo e o capilar de um
Isso significa que a bebida fazem com que os mos com ‘calor’ termômetro clínico (‘de febre’) e de um
esfria porque transfere conceitos de calor e na vida cotidia- termômetro de laboratório, para poder
energia para a pedra de temperatura sejam na. As expres- explicar por que um termômetro de
gelo até que todo o sistema muitas vezes sões ‘faz muito laboratório não precisa ser agitado
esteja a uma mesma tem- considerados idênticos calor’, ‘calor hu- antes do uso e não pode ser retirado
peratura. mano’ etc. são do sistema cuja temperatura queremos
O calor, sendo uma forma de exemplos de como essa idéia está conhecer, enquanto o termômetro
energia, não é uma substância. A idéia arraigada na linguagem. Afinal, só clínico precisa ser agitado antes do uso
de que o calor é uma substância está dizemos que ‘faz muito calor’ quando e pode ser retirado do sistema (o corpo

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da pessoa) cuja temperatura se quer Atividade 2: Sensação de quente e Essa diferença de comportamento
conhecer. O objetivo dessa atividade frio, temperatura e calor específico entre a madeira e o metal pode ser
é entender o funcionamento dos explicada em termos de calor especí-
termômetros e discutir a idéia de O objetivo dessa atividade é enten-
fico, que é uma propriedade que ajuda
equilíbrio térmico. der a diferença entre a sensação de
a entender uma série de fenômenos
Por que podemos afirmar que um quente e frio e o conceito de tem-
cotidianos, como o motivo por que as
termômetro mede a temperatura de um peratura. Usamos nosso corpo como
panelas de metal esquentam mais rapi-
corpo? Com base nas observações um termômetro em várias situações. As
damente dos que as de barro ou pedra.
feitas nessa primeira atividade, é mães sabem avaliar se o leite da
O valor do calor específico de cada
possível notar que, por causa de um mamadeira do bebê está na tempera-
material apresenta pequenas variações
detalhe na sua fabricação, o termôme- tura ideal pingando algumas gotas no
com a temperatura. No entanto, pode-
tro clínico pode ser retirado do corpo dorso das mãos. De maneira seme-
mos considerar esses valores constan-
da pessoa para efetuar a leitura, en- lhante, elas sabem avaliar se seu filho
tes para as situações sugeridas neste
quanto o termômetro de laboratório está febril ou não colocando a palma
artigo.
deve, durante a leitura, permanecer em da mão sobre a testa da criança.
O calor específico pode ser definido
contato com o sistema no qual esta- No entanto, essas sensações
como a quantidade de calor que um
mos efetuando a medida. De qualquer muitas vezes podem nos iludir. Nessa
grama de determinado material deve
forma, só podemos afirmar que a atividade, sugere-se que os alunos
ganhar ou perder para que sua tem-
temperatura lida no termômetro é a toquem dois blocos — um de madeira
peratura varie em um grau Celsius. Um
mesma temperatura do sistema por- e outro de alumínio — e tentem avaliar,
material que possua alto calor especí-
que houve uma transferência de ener- pelo toque, suas temperaturas. Esses
fico aquece — e também esfria —
gia do sistema para o termômetro, blocos devem conter um orifício para
muito mais lentamente do que um
quando o primeiro está a uma tempe- que possa ser introduzido um termô-
material de baixo calor específico. O
ratura mais alta, e do termômetro para metro. Após a avaliação da tempe-
calor específico dos metais é baixo
o sistema na situação inversa. Por que ratura pelo tato, os alunos deverão
quando comparado a materiais como
ocorre essa transferência? Porque dois introduzir um termômetro nos orifícios
32 argila ou pedra, usados na fabricação
corpos, objetos ou sistemas em con- de cada um dos blocos e anotar a tem-
de panelas. Isso significa que, consi-
tato tendem a igualar suas tempera- peratura. A constatação de que a
derando panelas de mesma massa, é
turas e atingir o equilíbrio térmico, temperatura dos dois blocos é a mes-
necessário fornecer menos calor para
havendo a transferência de energia ma, apesar de o bloco de alumínio
o metal do que para a argila para fazer
sempre do corpo, objeto ou sistema à parecer mais frio, causa certo espanto
com que ele atinja a temperatura de
maior temperatura para aquele à me- e alguma dificuldade para
cozimento. Da
nor temperatura. Esse princípio, que os alunos. Usamos nosso corpo mesma forma, a
está ‘por trás’ do funcionamento dos A conclusão mais impor- como um termômetro panela de metal
termômetros, é conhecido como lei tante dessa atividade é que em várias situações. vai esfriar mais
zero da termodinâmica. Outra maneira nem sempre a sensação de As mães sabem avaliar rapidamente,
de formulá-lo é: “se um sistema A está quente e frio corresponde a se o leite da pois a quanti-
em equilíbrio térmico com um sistema uma diferença real de tem- mamadeira do bebê dade de calor
B, e B está em equilíbrio térmico com peratura. No caso estudado, está na temperatura que ela deve ce-
C, então C também está em equilíbrio o que ocorre é que a mão ideal pingando der ao ambiente
térmico com A”. está numa temperatura algumas gotas no para esfriar é
Esse princípio já contém algo que maior que a temperatura dorso das mãos. De bem menor que
é estranho à nossa visão cotidiana dos dos blocos. Quando a mão maneira semelhante, no caso, por
fenômenos envolvendo calor e tempe- — uma fonte de calor — elas sabem avaliar se exemplo, da ar-
ratura. O ‘estranho’ é a idéia de que a toca os blocos, há uma seu filho está febril ou gila.
transferência de calor sempre ocorre modificação na temperatura não colocando a palma No caso da
do corpo à maior temperatura para o dos blocos. Nessa situação, da mão sobre a testa atividade com
corpo à menor temperatura, não ha- nosso corpo estava em uma da criança. os blocos, po-
vendo portanto dois processos de temperatura maior que a No entanto, essas deríamos expli-
transferência de energia, mas apenas temperatura ambiente, que sensações muitas car a diferença
um, o do calor. é também a temperatura vezes podem nos iludir entre as sensa-
Para completar essa atividade, dos blocos. Nesse caso, ções provoca-
pode-se discutir com os alunos por que houve transferência de energia do das pela madeira e pelo metal também
certos sistemas — por exemplo, o nosso corpo para os blocos. A tempe- em termos de calor específico. Como
corpo humano, uma vela e um ferro de ratura do metal se modifica mais o calor específico do metal é menor,
passar roupa — não seguem o princí- rapidamente do que a da madeira, o ele sofre uma variação de temperatura
pio do equilíbrio térmico, por serem que provoca a sensação de que o me- maior do que a da madeira ao entrar
fontes de calor. tal está mais frio do que a madeira. em contato com nossa mão, atingindo

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mais rapidamente a temperatura de ou perdido. Em seguida, solicita-se ao uma implicação importante para o
nosso corpo. Essa rápida variação de aluno que calcule, usando a expressão entendimento de calor e temperatura
temperatura do metal nos dá a sensa- Q = m c ∆T, a quantidade de calor do ponto de vista científico. Em
ção de frio. Essas situações são impor- perdida pelo sistema primeiro lugar, só há
tantes para evidenciar a grande dife- contendo água à tem- Os alunos calor quando há dife-
rença que existe entre nossas noções peratura mais elevada normalmente ficam rença de temperatura,
cotidianas de calor e a noção científica. e a quantidade de surpresos com o fato pois o calor é o pro-
Enquanto nas primeiras o calor e o frio calor ganha pelo sis- de que a água não cesso de transferência
são tratados como atributos dos mate- tema contendo água entra em ebulição de energia de um sis-
riais, a noção científica estabelece que à temperatura mais dentro do tubo de tema a uma tempera-
o calor depende da relação entre dois baixa, quando essas ensaio, mesmo tendo tura mais alta para
sistemas. Assim, não tem sentido, do duas quantidades de atingido a temperatura outro a uma tempera-
ponto de vista da ciência, falar do calor água são misturadas. necessária para tal. tura mais baixa. Além
de um corpo ou de um sistema, já que Deve-se usar a mes- Nesse caso, não há disso, a quantidade de
só existirá calor quando existir diferen- ma massa de água fluxo de calor entre a calor transferida é pro-
ça de temperatura entre dois sistemas para todos os siste- água do béquer e a porcional à diferença
ou entre duas partes de um mesmo mas (50 mL) e anotar água do tubo de de temperatura e não
sistema. a temperatura dos ensaio, pois estando à temperatura, o que
Para completar essa atividade, dois sistemas imedia- os dois sistemas à implica que pode ha-
poderia ser solicitado ao aluno que res- tamente antes de mis- mesma temperatura, o ver mais calor sendo
pondesse a algumas perguntas usando turá-los. valor de T entre eles é transferido entre siste-
valores tabelados de calor específico. O cálculo das igual a zero mas a baixas tempera-
Considerando, por exemplo, que o calor quantidades de calor turas do que entre dois
específico da água, em cal g-1 °C-1, é ganho e perdido indi- sistemas a temperatu-
igual a 1,0 e que o do ar, nas mesmas cará que houve maior troca de calor ras mais altas. Isso ocorrerá se a dife-
unidades, é aproximadamente 0,24, é entre os sistemas que estavam a uma rença de temperatura entre os siste- 33
possível explicar por que a água de temperatura mais baixa, pois a diferen- mas a baixa temperatura for maior do
uma piscina, no verão, geralmente é ça de temperatura entre eles (20 e que entre os sistemas a temperatura
mais fria que o ar durante o dia e mais 40 °C, aproximadamente) é maior que mais alta, desde que as massas consi-
quente durante a noite. entre os sistemas a temperaturas mais deradas sejam as mesmas.
elevadas (60 e 70 °C, aproximadamen- A necessidade de comparar massas
Atividade 3: Temperatura e calor te). Esse dado normalmente contraria iguais quando se quer comparar o calor
O objetivo dessa atividade é esta- a expectativa dos alunos de que a uma envolvido nos processos é importante
belecer a relação entre calor e diferen- temperatura maior corresponde maior porque a quantidade de calor neces-
ça de temperatura, por meio do cálculo quantidade de calor. Deve-se chamar sária para elevar a temperatura de um
da quantidade de calor transferida en- a atenção para o fato de que os valores corpo em uma certa quantidade de-
tre duas massas iguais de água, a do calor ganho e perdido deveriam ser pende do calor específico do material
diferentes temperaturas. Na linguagem iguais, mas esse resultado não é de que é feito o corpo e da massa do
cotidiana, estamos acostumados a obtido devido às perdas de calor para corpo. Quanto maior o calor específico
considerar o calor como diretamente o frasco de vidro e para o ambiente. do material, mais calor é necessário
proporcional à temperatura. De acordo Pode-se discutir com os alunos formas para aquecer o corpo. O mesmo se
com essa concepção, sempre há mais de melhorar esse resultado — por pode dizer em relação à massa do
calor quando a temperatura é mais exemplo, considerando a quantidade corpo: quanto maior a massa, mais ca-
elevada. de calor ganha pelo vidro do béquer e lor é necessário para aquecer o corpo.
Nessa atividade, solicita-se aos isolando os béqueres com isopor ou Isso fornece uma explicação razoável
alunos que misturem quantidades mesmo com jornal. para certos fatos que observamos no
iguais de água (50 mL, por exemplo) Por meio dessa atividade, fica evi- nosso dia-a-dia. Na prática, sabemos
a temperaturas diferentes, de tal modo dente como os conceitos científicos de que uma panela de alumínio aquece
que no sistema de maior temperatura calor e temperatura são diferentes dos muito mais rapidamente do que uma
a diferença de temperatura seja menor, nossos conceitos cotidianos. Na vida panela de ferro, quando colocadas em
e vice-versa. Por exemplo, pode-se cotidiana associamos calor diretamen- trempes de fogão aproximadamente
pedir ao aluno que misture quantida- te à temperatura, considerando que a iguais. No entanto, o calor específico
des iguais de água a 20 e a 40 °C e uma temperatura mais alta correspon- do alumínio (0,22 cal g-1 °C-1) é maior
depois repita o mesmo procedimento de uma quantidade maior de calor. É que o do ferro (0,11 cal g-1 °C-1,). Se
para água a 60 e a 70 °C. Deve-se possível verificar, por meio da Atividade considerássemos somente o calor
solicitar ao aluno que faça a previsão 3, que o conceito científico de calor específico, seria de se esperar que a
sobre qual das duas situações envol- relaciona-se com a diferença de tem- panela de ferro aquecesse mais
verá maior quantidade de calor, ganho peratura entre dois sistemas. Isso tem rapidamente. No entanto, se

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compararmos panelas de ferro e de dessas moléculas, íons ou átomos. Em
alumínio de mesmo tamanho, consta- outras palavras, pode-se considerar
taremos que a panela de alumínio é que a temperatura expressa o maior ou
muito mais leve. Logo, embora o calor menor grau de agitação térmica das
específico do ferro seja menor, a massa moléculas de um corpo. Quanto maior
de ferro a ser aquecida é muito maior, a temperatura, maior será a agitação
o que torna o alumínio mais vantajoso térmica dessas moléculas. Esse mo-
sob esse aspecto. Esse conjunto de delo pode ser usado também para
informações está, de certa forma, explicar a transmissão de calor por
sintetizado na fórmula matemática que condução térmica. Quando uma fonte
usamos para calcular a transferência quente entra em contato com uma
Esquema do sistema de aquecimento de
de calor: Q = m c ∆T. Ou seja, a quan- panela de alumínio, por exemplo, ela
água
tidade de calor que um corpo pode aumenta a agitação térmica e portanto
receber depende da diferença de presos com o fato de que a água não a energia cinética dos átomos da
temperatura entre o corpo e a fonte de entra em ebulição dentro do tubo de superfície do metal em contato com a
calor (no caso de aquecimento do ensaio, mesmo tendo atingido a fonte. Por meio de sucessivas colisões,
temperatura necessária para tal. Nesse parte da energia cinética dos átomos
corpo), do calor específico do material
caso, não há fluxo de calor entre a água da região aquecida é transferida para
de que é feito o corpo e de sua massa.
os átomos da região vizinha e assim
O conceito científico de calor é, do béquer e a água do tubo de ensaio,
sucessivamente, até atingir todos os
portanto, bem diferente da concepção pois estando os dois sistemas à
átomos da panela. Nesse processo, o
cotidiana, que associa calor à tempe- mesma temperatura, o valor de ∆T en-
calor é transmitido de átomo para
ratura e considera que quanto maior a tre eles é igual a zero. Como não há
átomo sem que os mesmos sofram
temperatura, mais calor um corpo ou fluxo de calor, não está sendo fornecida
deslocamento ao longo do metal. Em
sistema tem. Do ponto de vista cientí- a energia necessária para romper as
outras palavras, a energia é transferida
fico, um corpo não possui calor. Ele interações intermoleculares (as liga-
34 sem que haja transporte de matéria. De
armazena energia interna que pode ser ções de hidrogênio) entre as moléculas
forma semelhante, a panela transmite
transferida sob a forma de calor desde de água, condição necessária para
o calor para os alimentos no seu inte-
que haja contato com um corpo a uma que a água entre em ebulição. Essa
rior. O fluxo de calor continuará enquan-
temperatura menor. A transferência de quantidade de energia necessária para to existir uma diferença de temperatura.
calor sempre ocorre do sistema de que 1 g de água entre em ebulição é A discussão desses conceitos
maior temperatura para o de menor. chamada calor de vaporização da básicos de calor e temperatura, por
Essa idéia também contraria a forma água. meio de atividades que procuram
de pensar cotidiana, que admite que Essa atividade oferece oportuni- explicitar as concepções dos estudan-
um corpo quente pode transferir calor dade para que se reforce a idéia de tes e auxiliar na construção dos con-
e um corpo frio pode transferir frio. que só há calor quando há diferença ceitos científicos, parece-nos funda-
de temperatura, além de permitir a dis- mental para evitar que os estudantes
Atividade 4: Condições para que a cussão dos porquês da velha prática aprendam toda uma gama de concei-
água entre em ebulição cotidiana de se usar o ‘banho-maria’ tos mais avançados, como calor de
O objetivo dessa atividade é refor- para aquecer bebidas como o café. reação, lei de Hess, etc. sobre uma ba-
çar a idéia de que só existe transfe- Além disso, é possível introduzir a dis- se frágil em que conceitos científicos
rência de calor quando há uma diferen- cussão sobre o calor envolvido em ficam amalgamados com concepções
ça de temperatura entre dois sistemas. processos como mudanças de estado cotidianas.
Para isso, deve-se montar um sistema e reações químicas.
para aquecimento de água num bé- Eduardo Fleury Mortimer, bacharel e licenciado
Considerações finais: calor e em química pela UFMG e doutor em educação pela
quer (ver esquema da montagem) e USP, é professor da Faculdade de Educação da
colocar um tubo de ensaio contendo
temperatura e modelo
UFMG. Luiz Otávio F. Amaral, bacharel e
água dentro desse béquer com água, cinético-molecular licenciado em quimica e doutorando em educacao
de modo que o tubo de ensaio não No decorrer dessas quatro ativida- na Unicamp, é professor do departamento de química
do Instituto de Ciências Exatas da UFMG.
encoste nas paredes ou no fundo do des, é conveniente possibilitar discus-
béquer, o que caracteriza um ‘banho- sões sobre como os conceitos de calor
maria’. Deve-se perguntar ao aluno se e temperatura podem ser traduzidos
ele espera que a temperatura da água em termos de comportamento molecu- Para saber mais
dentro do tubo de ensaio atinja a mes- lar por meio do modelo cinético-mo-
DRIVER, R., GUESNE, E. e TIBER-
ma temperatura da água no béquer, e lecular. Sendo todos os materiais GHIEN, A., Eds. Ideias científicas en la
se ele espera que a água ferva dentro constituídos por moléculas, íons ou infancia y la adolescencia. Madri: M.E.C.
do tubo. átomos, a temperatura pode ser e Eds. Morata, 1985.
Os alunos normalmente ficam sur- associada à energia cinética média

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