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G ABR I E L RO LO N

Reflexões sobre o am or,


o desejo e a ilusão

Pla n e t a
I

Ga b r i e l Ro ló n ap r esen t a seu
n o vo livr o em o it o e n co n t r o s.
Ca d a e n co n t r o se t r a n sfo r m a
em u m ca p ít u lo qu e t r a z à t o n a
sen t im en t o s e sit u a çõ e s em qu e
t od os n ó s já n os e n co n t r a m o s
a lgu m d ia . Afi n a l , q u em n u n ca
est eve a p a ixo n a d o e n ã o sofreu
p o r isso?
Encontros é u m co n vit e p a r a
reflet ir sobre o am or , r esist in d o
à t en t ação de ca ir n os clich és
qu e o id ea liz a m e o veem co m o
a fon t e de t od a a felicid ad e o u
co m o u m a for ça qu e ven ce t u d o .
M a s lon ge de d izer qu e o a m o r
n ã o exist e o u qu e é algo sem
im p o r t â n cia , o au t o r ap resen t a
o sen t im en t o m ais fam oso en t re
as pessoas co m o uma ar t e,
que p recisa ser t r a b a lh a d a . Ele
p en sa n o a p a ixo n a d o co m o u m
ar t ist a qu e con st r ói u m a o b r a ,
cu id a d e la , vo lt a sobre seus
p assos p a r a se co r r igir , m e lh o r a r
e t en t ar d ar o m e lh o r de si p ar a
que o fr u t o de t an t o esfo r ço seja
algo n ob r e e b elo.
GABRIEL ROLÓN

Encontros
Reflexões sobre o amor,
o desejo e a ilusão

Tradução
Sandra Martha Dolinsky

Planèta
Copyright © 2012 Gabriel E Rolón

Título original: Encuentros (El lado B dei amor)


Preparação de texto: Gabriela Ghetti
Revisão: Túlio Kawata
Diagramação: Triall
Capa: A n a D o b ó n
Imagem de capa: Shutterstock / L i Chaoshu

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

R659e

Rolón, Gabriel, 1961-


Encontros: reflexões sobre o amor, o desejo e a ilusão / Gabriel
Rolón; [tradução Sandra Martha Dolinsky]. - 1. ed. - São Paulo:
Planeta, 2013.
il. ; 192 cm.

Tradução de: Encuentros : El lado B dei amor


ISBN 978-85-422-0226-7

1. Ficção espanhola. I . Dolinsky, Sandra Martha. II. Título.

13-04888 CDD:863
CDU: 821.134.2-3

2013
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA.
Avenida Francisco Matarazzo, 1500 - 3 Q andar - conj. 3 2 B
Edifício New York
0 5 0 0 1 - 1 0 0 - São Paulo - SP
www.editoraplaneta.com.br
atendimento@editoraplaneta.com.br
A meu mestre, Horácio
Manfredi, que dividiu comigo seu
conhecimento e me contagiou com
a ética e a paixão pela psicanálise.
Si no creyera en lo más duro,
si no creyera en el deseo,
si no creyera en lo que creo,
si no creyera en algo puro.

Si no creyera en cada herida,


si no creyera en la que ronde,
si no creyera en lo que esconde,
hacerse hermano de la vida.

no creyera en quien me escucha,


si no creyera en lo que duele,
si no creyera en lo que quede,
si no creyera en los que luchan.

Si no creyera en lo que agencio,


si no creyera en mi camino,
si no creyera en mi sonido,
si no creyera en mi silencio...

SILVIO RODRÍGUEZ
[Se n ã o acreditasse no mais difícil,
Se n ã o acreditasse no desejo,
Se n ã o acreditasse no que creio,
Se n ã o acreditasse em algo puro.

Se n ã o acreditasse em cada ferida,


Se n ã o acreditasse na que ronda,
Se n ã o acreditasse no que esconde,
fazer-se i r m ã o da vida.

Se n ã o acreditasse em quem me escuta,


Se n ã o acreditasse no que dói,
Se n ã o acreditasse no que fica,
Se n ã o acreditasse nos que lutam.

Se n ã o acreditasse no que agencio,


Se n ã o acreditasse em meu caminho,
Se n ã o acreditasse em meu som,
Se n ã o acreditasse no silêncio...]

SILVIO RODRÍGUEZ
Sumário

Prólogo 11

Primeiro encontro
UMA INTRODUÇÃO 17

Segundo encontro
RELAÇÕES AFETIVAS 33

Terceiro encontro
O AMOR É UM PONTO DE CHEGADA 51
Interlúdio I: A história 63

Quarto encontro
o CIÚME • 73
Interlúdio II: Nascisismo 99

Quinto encontro
O ENIGMA DA SEXUALIDADE 107

Sexto encontro
SOBRE O AMOR E O DESEJO 125

Sétimo encontro
A INFIDELIDADE 143

Oitavo encontro
AMORES QUE MATAM 163

U m encerramento
UM ENCERRAMENTO 181

Agradecimentos • 189
Prólogo

Os cafés de Buenos Aires t ê m um encanto particular. Seja como


cenário de encontros amistosos, cafés da m a n h ã solitários ou cantinhos
de leitura, espalham-se pela cidade alojando o pensamento, a tristeza,
o tédio, ou simplesmente matizando uma espera.
Por suas janelas vemos desfilar as pessoas que, imersas em seus
mundos, passam pela rua. Alguns apressados, outros distraídos. Até
que alguém abre a porta, escolhe uma mesa e se apossa de u m espa-
ço que, por alguns minutos, se torna absolutamente próprio.
Assim fiz eu t a m b é m , e, durante muitos anos, foram minha sala
de estudos, meu local de trabalho e onde tomei algumas das decisões
mais importantes de minha vida.
Mas o que nunca imaginei é que um desses bares se tornaria o
âmbito no qual eu encontraria as pessoas para dialogar acerca de te-
mas como a sexualidade, a adolescência, a paternidade ou a morte.
Por isso mesmo, quando surgiu a ideia de fazer o primeiro ciclo de en-
contros com o título Histórias de divã, pareceu-me, se n ã o uma loucura,
no m í n i m o uma excentricidade: quem se levantaria num sábado de
m a n h ã , em pleno inverno portenho, para ir até um café tomar o café
da m a n h ã e escutar alguém dizer que o amor nem sempre é algo ma-
ravilhoso e que todos vamos morrer?
Contudo, aceitei a oferta e, à espera de um prazer que durasse
pelo menos umas poucas semanas, fui naquela primeira m a n h ã de
maio até o Clásica y Moderna, lugar que, embora ninguém saiba, faz
parte de minha história mais íntima. A l i passei horas estudando du-
rante minha fase universitária, l i alguns dos livros que me marcaram,
ali escutei, emocionado, artistas admiráveis, e t a m b é m ali me despedi
para sempre de pessoas muito queridas.
Mas, dessa vez, era diferente.
12 ENCONTROS

Dessa vez, estava chegando para tentar refletir com outras pes-
soas, de um modo acessível, mas n ã o por isso menos profundo, sobre
aqueles temas que, como psicanalista, escuto n ã o só em meu consultó-
rio, mas t a m b é m no relato de amigos, familiares ou desconhecidos a
quem v i sofrer em silêncio.

A escolha dos temas seguiu uma lógica simples. Dado o interes-


se que meus livros Histórias de divã e Palavras cruzadas haviam desper-
tado, pareceu-me interessante retomar a p r o b l e m á t i c a de cada caso
apresentado neles e desenvolvê-los com mais profundidade, tendo a
possibilidade de recorrer a essas histórias como referências quando
fosse necessária a exemplificação. Mas a dinâmica que aqueles encon-
tros foram tomando me levou a incorporar, t a m b é m , excertos de outros
casos clínicos, além de cenas de filmes, poemas e relatos históricos ou
mitológicos.
Dessa maneira, o medo da solidão, a infidelidade, as perdas, os
ciúmes, a sexualidade infantil, os pactos de silêncio na família, a culpa,
a angústia diante da morte, os amores perigosos, os ataques de pânico
e a adolescência foram companheiros intelectuais de cada semana.
Para minha surpresa, as pessoas n ã o só acompanharam maciça-
mente o desenvolvimento de todo esse primeiro ciclo como t a m b é m
propiciaram, com seu desejo, a continuidade desses encontros, e tive-
mos que planejar um novo período.
" O que você vai dar no segundo ciclo?", perguntou alguém que
havia participado de quase todos os encontros; e aí compreendi que essa
linda aventura havia se transformado, para muitos - inclusive para
mim mesmo - em um momento esperado.
Armados de caderno e caneta, havia quem fosse ao bate-papo
como a um seminário académico. Anotavam, faziam perguntas e cita-
vam conceitos que havíamos transitado em encontros anteriores.
Inesperado, é verdade... mas estávamos em Buenos Aires, capital
mundial da psicanálise, e por isso n ã o era estranho que as pessoas se
apaixonassem dessa maneira pela possibilidade de compartilhar duas
horas de reflexão sobre os temas propostos.

Buenos Aires e a psicanálise. D á um bom tema.


PRÓLOGO 13

Certa vez, o poeta H o r á c i o Ferrer disse, fazendo referência à san-


fona - instrumento de origem alemã - , que n ã o era mais que " . . . uma
ave wagneriana que fez ninho em Buenos Aires porque intuiu que aqui
Pichuco 1 o estaria esperando".
D o mesmo modo, muitas vezes pediram minha opinião sobre
o p o r q u ê desse amor, dessa paixão extraordinária que existe entre a
Argentina e a psicanálise, e, como sou argentino e psicanalista, permito-
me arriscar uma ideia que talvez seja mais poética que verdadeira, mas
que, ainda assim, gostaria de compartilhar com os leitores. Afinal de
contas, respalda-me a liberdade de erro e de pensamento.
M i n h a conjectura é a seguinte:
A Argentina em geral, e Buenos Aires em particular, é uma terra
feita de ausências. Filha da imigração de homens e mulheres que, fu-
gindo da guerra, da morte ou da pobreza, deixavam seus países, suas
famílias, seus amigos e seu idioma para buscar aqui um lugar onde reali-
zar seus sonhos, a cidade foi se construindo como u m espaço habitado
por uma imperceptível, mas eficaz, consciência: viver consiste em acei-
tar a falta e superar o perdido.
A essa imigração somou-se a outra, a interna, a daqueles que, n ã o
encontrando em suas cidades de origem a possibilidade de um empre-
go que lhes permitisse viver dignamente, vieram para a "Capital". E
foi se configurando, assim, uma p o p u l a ç ã o composta de pessoas que
compartilhavam como característica comum o fato de terem deixado
- mais longe, mais perto - seus afetos, seu jeito de falar, sua gente e até
mesmo o cheiro de sua terra.
Coisa nada fácil. J á sabiam os gregos que o pior castigo n ã o é a
morte, e sim o desterro; essa c o n d e n a ç ã o que leva uma pessoa a viver
em um lugar do qual n ã o faz parte e onde n ã o reconhece a si mesmo.
Desse modo, tivemos que construir, todos juntos, um lugar p r ó -
prio, um estilo nosso no qual a necessidade afetiva nos fez dar ouvidos
à dor alheia, no qual o a b r a ç o e o c h i m a r r ã o se transformaram em
uma cerimonia de silêncio respeitoso diante do surgimento da angús-

1
Apelido pelo qual ficou conhecido Anibal Trollo (1914-1975), um dos maiores
nomes do tango. (N. da T.)
14 ENCONTROS

tia. E assim fomos construindo uma série de rituais compartilhados


que se tornaram parte de nosso modo de ser.
Por isso, n ã o é estranho que em uma terra adubada pelas lágri-
mas do perdido e pelo desejo do porvir, a psicanálise tenha encontrado
seu lugar no mundo.
Talvez essa fosse uma das causas desses sábados concorridos, des-
sas perguntas que alguém fazia, quem sabe com base em sua própria
dor, sobre os temas mais complexos da vida, os únicos verdadeiramen-
te importantes: morte e sexualidade.

A esta altura, sinto-me na obrigação de fazer alguns esclareci-


mentos.

1) Este n ã o é um livro sobre psicanálise.


E um livro escrito com base na psicanálise, e n ã o tem a pretensão
de ser um texto de consulta.
Nasce de tudo o que aqueles encontros tão próximos com as pes-
soas mobilizaram em mim, e das reflexões que abriram caminho em
meu pensamento com base em suas perguntas e suas contribuições. E
evidente que n ã o se trata de uma transcrição do acontecido naquelas
m a n h ã s , apesar de que, na medida em que um texto permite, tentei
manter a linguagem coloquial para conservar um pouco do frescor e
da espontaneidade daquelas conversas. Por isso, inclusive, em muitos
casos, alguns dos disparadores gerados pelas intervenções dos presen-
tes ficaram aqui sob a forma de frases introdutórias, para que o livro
recupere esse clima de intercâmbio que caracterizou esses ciclos e o
desafio intelectual gerado pela irrupção de uma ideia inesperada.

2) Traduttore, traditore.
Assim diz o ditado italiano, e é uma maneira de dizer que quem
traduz trai; e isso é algo inevitável. Por isso, na tentativa de traduzir
para a linguagem coloquial e cotidiana questões tão complexas como
o cenário edípico, a constituição da identidade sexual ou os caminhos
que levam à escolha do objeto de amor, certamente algumas reflexões
teóricas vão parecer u m tanto forçadas.
3) C o n t e ú d o dos capítulos.
Para este livro selecionei somente as conversas cuja temática
girou em torno ao amor. Todas as demais que se desenrolaram nos
outros encontros - a perda, a constituição da personalidade ou as es-
truturas psíquicas, entre muitas outras - ficam ali à espera de uma
oportunidade; ou, simplesmente, à mercê do p ó do esquecimento. O
leitor e n c o n t r a r á , ainda, dois textos que, intercalados entre os encon-
tros a modo de "interlúdios", desenvolvem de um modo um pouco
mais complexo alguma das ideias que aparecem nos capítulos anterio-
res. E só uma tentativa de aprofundar um pouco algumas questões, e
o livro pode ser lido sem que o leitor se detenha neles. Mas acho que,
quem estiver interessado, e n c o n t r a r á ali algum estímulo a mais para
continuar refletindo.

4) T a m b é m n ã o é um livro de autoajuda.
Esclarecido isso, n i n g u é m p o d e r á se sentir traído em sua boa-fé.
Nestas páginas n ã o vão encontrar conselhos nem soluções, apenas al-
gumas reflexões, formas de abordar a terapia e a compreensão de cer-
tos fenómenos, mas que de maneira alguma pretendem ser um guia de
conduta nem uma soma de máximas do bom viver.
N ã o é essa minha função. Sou um psicanalista que se esforçou
para trabalhar o que Lacan chamou de " a psicanálise em extensão",
ou seja, interrogar outros discursos e aproximar as pessoas "comuns"
de um pouco da complexidade da psicanálise.

U m a última reflexão para finalizar este prólogo


Muitas vezes foi questionado o fato de a Argentina ser o país com
mais psicólogos per capita do mundo. Isso, longe de ser uma desvanta-
gem ou u m sinal de loucura, é um motivo de orgulho. Porque significa
que, depois de uma longa luta, que ainda n ã o acabou, conseguimos que
em nosso país a saúde psíquica seja considerada um direito de uma
grande quantidade de pessoas, e n ã o o privilégio de poucas.
N a antiga disputa existente entre o corpo e a mente, a saúde
parecia ter ficado exclusivamente do lado do corpo, ao passo que o
sofrimento psíquico havia sido deslocado ao território da solidão, do
16 ENCONTROS

"vire-se como puder". E acho pertinente dizer que v i pessoas sofrerem


mais pela perda de um amor que por uma angina.
N ã o é casual a vergonha que ainda gera a existência de um
"doente mental" na família, visto que a própria cultura distorceu an-
tigas leituras religiosas sobre um fenómeno pertencente ao campo da
saúde. Assim, o "louco" de hoje, como o de então, continua imagina-
riamente mais ligado ao d e m o n í a c o que ao clínico. Como explicar, a
n ã o ser desse modo, aquelas histéricas que, em outros tempos, foram
queimadas nas fogueiras pela Inquisição acusadas de bruxaria?
Precisamos entender que somos fruto de uma interação permanen-
te entre o biológico e o psíquico, e que restringir a saúde a um só desses
campos é um ato de ignorância, quando n ã o resultado de um perverso
interesse económico daqueles convénios médicos que n ã o querem pagar
mais de trinta sessões anuais pela saúde psíquica de seus associados.

Comemoro, então, o fato de sermos o país com mais psicólogos


per capita do mundo. Repito: n ã o é motivo de vergonha, e sim de or-
gulho. Mas deixem-me dizer que ainda nos resta um longo trecho a
percorrer.
Muitas cidades do interior ainda se encontram afastadas da pos-
sibilidade desse direito, e nas unidades de terapia intensiva de todo o
país nossos entes queridos continuam morrendo sem que haja psicó-
logos de plantão que os possam amparar e que escutem o que eles,
agarrados aos últimos segundos de sua vida, t ê m a dizer.
Primeiro encontro
UMA INTRODUÇÃO

No início era o amor.

OVÍDIO
18 ENCONTROS

Café , croissants e psi c an ál i se (ou Algumas


ferramentas para abordar o amor)

Assim que abri a porta, senti o impacto. E r a o primeiro encontro


programado e, embora todos desejássemos um bom começo, foi uma
surpresa encontrar, em uma m a n h ã um pouco fria de sábado, o lugar
lotado de pessoas e vê-las tomando u m café enquanto esperavam, feliz-
mente, com grande interesse que eu desse início a minha exposição. Se
bem que - vocês h ã o de compreender - n ã o pude evitar reparar nos
demais ingredientes que havia nessas mesas: torradas, croissants, man-
teiga, geleia... e confesso que, ao me sentar em meu banquinho, diante
do suporte onde estavam minhas poucas anotações, eu me perguntei
se meu sonho seria possível, se esse seria o modo adequado para falar
dos temas que nos convocavam: as emoções e os conflitos humanos.
Mas, em resposta a essa primeira impressão - um tanto preconcei-
tuosa, n ã o vou negar —, veio a minha memória aquele velho costume
dos gregos de se reunir para refletir e debater sobre os temas importan-
tes da vida em volta de uma mesa coberta de vinhos e iguarias.
Como testemunho disso chegou até nós 0 banquete, de Platão, livro
que justamente leva esse nome porque alude a isso, a um banquete
no qual cinco amigos se r e ú n e m para comer, ainda sob os efeitos da
ressaca de uma reunião parecida que haviam tido no dia anterior, visto
que, ao que parece, os pensadores de então eram bastante chegados à
conversa, à comida e ao bom vinho.
Aquelas reuniões tinham uma característica: giravam sempre em
torno de um tema previamente escolhido. E no encontro dessa noite
em particular à que alude o livro, um dos presentes, Erixímaco, propôs
consagrar a noite a Eros. Os outros aceitaram e decidiram que cada
comensal, um por vez, faria uma exposição sobre o amor. Definiram a
ordem em que falariam e assim começou a noite.
Devo dizer que Eros, na realidade, n ã o era mais que uma divin-
dade bastante menor, algo assim como um deus de segunda ou terceira
categoria. Q u e m era realmente importante nesses temas era Afrodite,
deusa do desejo, e - c o m e ç a n d o a trilhar nosso caminho - digamos
que desejo e amor n ã o são a mesma coisa, e que, se nos deixarmos guiar
pelos relatos da mitologia clássica, poderemos pelo menos arriscar a
UMA INTRODUÇÃO 19

ideia de que, para os gregos, o desejo era ainda muito mais importante
que o amor.
Dependendo do foco, nada muito diferente do que acontece nes-
tes tempos de hoje.
Mas, voltando a 0 banquete, quando chega a hora de Aristófanes
falar, ele desenvolve uma teoria para explicar a origem das diferentes
tendências amorosas. E o que se conhece como " O mito dos a n d r ó -
ginos", e veremos como a ideia que percorre essa teoria, exposta em
uma noite de bebedeira h á tantos séculos, tem muita relação com a
maneira como muitas pessoas, provavelmente a maioria, pensa ainda
hoje o amor.
Segundo esse mito, no c o m e ç o o mundo era habitado por seres
circulares chamados andróginos, cada um deles formado por dois dos
que somos agora. O u seja, havia a n d r ó g i n o s compostos por dois
homens, outros por duas mulheres e um terceiro grupo formado por
um homem e uma mulher. E r a m seres eternos e completos, que, por isso,
n ã o precisavam se reproduzir e desconheciam a morte.
Essa condição de imortalidade e completude os embriagou de
soberba, a tal ponto que ousaram se comparar com os deuses. Estes,
zangados, e como represália, partiram-nos ao meio, dividindo cada
um em duas metades que misturaram e espalharam pelo mundo.
Nesse mesmo ato, t a m b é m lhes foi arrebatada a vida eterna, e conta
Aristófanes que, a partir de então, todos andamos pela vida desejando
encontrar essa outra metade para nos unirmos a ela e sermos
novamente seres completos e imortais.
Assim, os andróginos compostos por dois homens deram origem
à homossexualidade masculina, os compostos por duas mulheres à
homossexualidade feminina, e os compostos por um homem e uma
mulher, à heterossexualidade.
Como vemos, esse mito deixa no ar duas questões muito
importantes. A primeira, a união existente entre a sexualidade e a
morte, e a segunda, a ideia de que é possível encontrar nossa outra
metade que nos complete.
Desde j á , adianto que isso n ã o é mais que um sonho romântico,
um desejo inalcançável, visto que - e aqui entramos com tudo em uma
ideia psicanalítica - a completude n ã o existe. N i n g u é m pode ter tudo,
20 ENCONTROS

e viver implica aceitar que tudo tem u m custo e que em cada conquis-
ta h á uma perda.
A sensação de completude gerada pelo amor - e sabemos disso
porque, bem ou mal, todos nós j á nos apaixonamos um dia - é só u m
engano que dura apenas u m pouco, se tivermos muita sorte.
Como diz Alejandro Dolina, "amar é inventar a cada dia falsida-
des compartilhadas". O u poderíamos ser u m pouco menos poéticos
e mais psicanalíticos e dizer, como Jacques Lacan, que "amar é dar o
que n ã o se tem a quem n ã o o é".
Pois bem, tenho que ser sincero: acho que, nestes tempos, o amor
está em alta, e parece pairar no ar a ideia de que é sempre algo mara-
vilhoso; garanto que n ã o é, que nem todos os amores são necessariá-
mente bons e que jamais nos proporcionam a completude desejada.
Contudo, diferentemente do que possa parecer, essa n ã o é uma
postura cínica acerca do amor; pelo contrário, acho que o amor é u m
dos motores mais importantes da vida. E , para n ã o criar confusão, di-
gamos que afirmar que a sensação de completude que o amor gera é
enganosa n ã o implica afirmar que o amor n ã o pode ser u m sentimen-
to verdadeiro.

Mas n ã o tenhamos pressa. J á iremos percorrer um caminho que


nos leve a pensar com mais atenção o que é o amor. Porque nem todos
queremos dizer a mesma coisa quando falamos do amor.
Como irão descobrindo ao longo destas páginas, nós, psicanalis-
tas, estamos muito mais perto de Borges que de Platão. E penso nesse
lindo parágrafo de História da eternidade, no qual Borges cita Lucrécio e
o faz dizer o seguinte:

Como o sedento que no sonho quer beber e esgota formas de


água que não o saciam e perece abrasado pela sede no meio de um
rio: assim Vénus engana os amantes com simulacros, e a vista de um
corpo não lhes dá fartura, e nada podem desprender ou guardar,
embora as mãos indecisas e mútuas percorram todo o corpo. Ao fim,
quando nos corpos há presságio de felicidade e Vénus está prestes a
semear o corpo da mulher, os amantes se apertam com ansiedade,
dente amoroso contra dente; totalmente em vão, visto que não con-
seguem se perder no outro nem ser um mesmo ser.
UMA INTRODUÇÃO 21

É impressionante ver como a força da poesia pode embelezar tan-


to uma ideia que, n ã o podemos negar, soa bastante decepcionante -
essa de que o amor gera sensações enganosas e que a completude n ã o
existe.
E com essa premissa, como eu dizia, começamos a andar pelo ca-
minho da psicanálise, e nessa trilha alguns conceitos vão nos acompa-
nhar; um deles, por exemplo, vai lhes parecer familiar porque é quase
de uso cotidiano. E o conceito de inconsciente.

O que é o inconsciente?

Lembro que, quando pronunciei o termo "inconsciente" naquele


primeiro encontro, percebi que a maioria dos presentes assentia, como
dando a entender que sabia do que estávamos falando. Mas me permi-
ti duvidar por um segundo e, como se fosse um jogo de associação l i -
vre, eu lhes pedi que dissessem a primeira coisa que lhes viesse à mente
acerca do que lhes sugeria essa palavra:

"Esquecimento."
"Dor."
"Que não ê consciente."
"Repressão."

Essa última ideia provinha, obviamente, de alguém j á ligado ao


âmbito da psicologia, mais exatamente de uma aluna da Universidade
de Buenos Aires. E houve quem tenha acrescentado: " E como alguém
que vive dentro de nós e nos faz realizar coisas que n ã o queremos...
um estranho."
Percebem quantas coisas surgem em nosso imaginário quando
pensamos o que é o inconsciente? E devo dizer que, de alguma manei-
ra, o inconsciente é tudo isso que disseram e muito mais.
N ã o é fácil tentar transmitir um conceito tão complexo com pala-
vras simples, mas vamos tentar. Para isso, peço a ajuda do leitor para
fazer um pequeno exercício; simplesmente que, neste instante, pense
qual é seu segundo nome - pergunta que naquela ocasião fiz a uma
22 ENCONTROS

jovem que estava na primeira mesa. E l a respondeu que seu segundo


nome era Denise.
Alguém havia sugerido que inconsciente era aquilo que n ã o é
consciente. Bem, até que eu lhes pedi que pensassem em seu segundo
nome, essa palavra "Denise", em nosso exemplo, n ã o estava na cons-
ciência, o que quer dizer que era inconsciente. Mas esse é o conceito
de inconsciente para a psicanálise?
A resposta é sim e n ã o , porque n ã o h á uma teorização única acer-
ca do que é o inconsciente. A o contrário, h á três momentos na teoria
psicanalítica que determinam modos bem diferentes de concebê-lo.
O primeiro deles tem a ver com essa ideia de que é inconsciente
aquilo que n ã o está na consciência; e é o exemplo do nome Denise. E n -
quanto eu n ã o formulei a pergunta, n ã o estava na consciência dessa
moça, então era, pelo menos até o momento, inconsciente. E podemos
deduzir que, segundo essa concepção, o inconsciente seria algo assim
como um depósito cujo conteúdo podemos pegar simplesmente com o
esforço de ir buscá-lo.
Bem, aí está o que os psicanalistas chamam de inconsciente des-
critivo, um lugar onde se encontra aquilo que é inconsciente só pelo
fato de n ã o estar na consciência, mas que pode se tornar consciente as-
sim que lhe prestarmos a atenção necessária. Isso é o que tecnicamen-
te se chama "pré-consciente", e é a primeira formulação freudiana do
inconsciente.
E necessário saber que, em psicanálise, a teoria guia a prática
clínica, ou seja, os conceitos n ã o são algo menor, porque é com base
neles que os psicanalistas pensam os pacientes e estabelecem uma dire-
ção para essa cura em particular.
Por que estou dizendo isso? Porque nessa época na qual se pen-
sava em um inconsciente que podia ser trazido de novo à consciência,
como no caso do segundo nome, a psicanálise se constitui como " a
arte de tornar consciente o inconsciente", e nessa direção avançava o
tratamento. Se o paciente recordasse, se trouxesse a sua m e m ó r i a uma
vivência esquecida, se a tornasse consciente, estaria curado. E n ã o é
verdade, embora ainda hoje muitos profissionais, inclusive, confundam
isso com psicanálise.
UMA INTRODUÇÃO 23

Mas o certo é que esse foi apenas um primeiro ideal de Freud,


que, apaixonado pela técnica que estava descobrindo, e, como todo
apaixonado na primeira etapa, tinha ilusões grandes demais acerca do
objeto de seu amor. Mas, nem bem avançou um pouco, compreendeu
que o assunto era bem mais complicado que isso.
E como foi se dando conta disso? C o m e ç o u a perceber que havia
lembranças reticentes a voltar, como se alguma força as retivesse pre-
sas em u m lugar inacessível para o pensamento, ou como se na própria
consciência se erguesse uma barreira para n ã o as deixar passar. Dedu-
ziu, então, a existência de uma resistência à possibilidade de retorno
dessas lembranças. E foi nesse ponto que descobriu a existência de um
inconsciente de outro tipo, diferente, mais difícil de ser trazido à cons-
ciência; e a coisa começou a se complicar.
E m um de seus primeiros escritos, Freud j á havia antecipado cla-
ramente essa ideia, mas, como costuma acontecer em terapia, é prová-
vel que nem ele mesmo houvesse conseguido escutar a importância do
que estava dizendo.
O texto a que me refiro se chama "As neuropsicoses de defesa", e
embora eu n ã o pretenda apelar a conhecimentos académicos dos lei-
tores, parece-me honesto definir as bases do que estou falando, porque,
senão, o discurso se instala com a prepotência de quem está transmi-
tindo uma verdade revelada, e n ã o é essa minha intenção. A o contrá-
rio, muitos de vocês vão encontrar diferenças entre os conceitos aqui
expostos e suas ideias ou crenças. E t ê m direito a isso.
Por isso esclareço - parece-me pertinente - que tudo que for dito
neste livro provém das reflexões de um psicólogo que deseja pensar com
vocês, e que, movido por suas próprias inquietudes, fala e escuta com base
na teoria e prática psicanalítica. E nossas possíveis diferenças n ã o vão
surgir só por questões religiosas ou concepções de outras ciências; dentro
da própria psicologia vamos ter posturas totalmente contrárias na hora
de pensar o que é um paciente e como se trabalha, em que direção,
quais palavras são relevantes e quais não, se adentramos em sua história
ou ficamos observando seu comportamento presente.
Por isso, por um compromisso de honestidade intelectual, sempre
é bom esclarecer a base daquilo que se fala e admitir com respeito que
h á outras maneiras de conceber os mesmos temas.
24 ENCONTROS

Psi cól ogo ou psicanalista?

Isto posto, certamente muitos estarão se perguntando se é a mes-


ma coisa consultar u m psicanalista ou um psicólogo que trabalha com
outra técnica. E a resposta é que n ã o é a mesma coisa.
Mas, então, dado que um paciente n ã o tem por que conhecer as
diferentes técnicas, como alguém pode saber qual é a que melhor se
adapta ao seu caso particular, se a psicanalítica, ou a sistémica, ou a
cognitiva? E , de fato, essa é uma questão bastante habitual.
A resposta é que ele n ã o tem por que saber, visto que, como diz
o psicanalista argentino J u a n David Nasio em seu livro Um psicanalista
no divã, "o realmente importante é a pessoa do terapeuta". As questões
teóricas e técnicas são motivo de discussão interna entre psicólogos e
n ã o devem ser uma p r e o c u p a ç ã o para o paciente.
Poderíamos pensar em uma analogia entre a psicologia e a me-
dicina e dizer que, assim como dentro da medicina existem diversas
especialidades - , mesmo que todos sejam médicos, um cardiologista
n ã o é a mesma coisa que um oftalmologista - , algo parecido acontece
com a psicologia; é possível ser psicólogo clínico e ser especializado em
psicologia psicanalítica, comportamental, sistémica ou gestáltica, só
para citar algumas. E , assim como um hematologista presta atenção a
certos aspectos de um paciente e n ã o a outros, o mesmo acontece com
os psicólogos. Mas devo dizer que, teoricamente, para ser psicanalista,
nem sequer seria necessário ser psicólogo. Mas esse j á é outro assunto.
O que quero transmitir é a ideia de que se alguém falasse de sua
vida diante de diferentes profissionais, utilizando inclusive as mesmas
palavras, n ã o iria escutar o mesmo de um psicanalista e de um com-
portamentalista. E n ã o só n ã o vai escutar o mesmo; certamente, os
profissionais n ã o focalizarão a mesma parte do discurso. Permito-me
um exemplo para ilustrar o que digo.
Certa vez, um paciente, ao qual em meu livro Histórias de divã cha-
mei de Dario, disse-me a seguinte frase: " E u tive uma infância muito
feliz. Meus pais sempre foram muito unidos e meu sonho como homem
é um dia ter uma mulher e uma família como a de meu pai".
Pois bem, h á muitas maneiras de escutar essa frase, dependendo
do foco do terapeuta. Alguém poderia dizer: bom, esse paciente teve
uma infância feliz, com pais que foram muito unidos, de modo que,
UMA INTRODUÇÃO 25

no que diz respeito aos sistemas familiares, parece que tudo está bem.
Temos que procurar por outro lado.
Outro poderia escutar que o paciente manifesta um desejo de for-
mar uma família como a que teve, e tem certa dificuldade com esse
tema, e se perguntar quais de suas condutas o desviam desse desejo
para ver como agir para corrigir essas atitudes.
U m terceiro terapeuta poderia se apoiar nessa família forte e idea-
lizada para construir algo que se relacione ao bem-estar desse paciente.
E u , como psicanalista, n ã o escutei nada disso. E esclareço que foi mi-
nha escuta pessoal, porque nem todos os psicanalistas escutam a mesma
coisa t a m b é m . Mas o que eu escutei é que esse paciente "sonha em
um dia ter uma mulher como a de seu pai". E a mulher de seu pai é
sua m ã e . O u seja, h á um desejo que se evidencia em suas palavras e
que ele nem sequer percebe. E me antecipo às objeções que poderiam
surgir e argumentar que n ã o foi isso que o paciente quis dizer. E u sei que
sua vontade foi transmitir outra coisa, mas é justamente isso o que diz a
teoria psicanalítica: que n ã o é o sujeito que faz uso da linguagem, e sim
que é a linguagem que usa o sujeito para dizer outra coisa diferente
da que este quer dizer. E é justamente nesse além da vontade do paciente
que, de modo distinto de outras técnicas, um psicanalista presta atenção.
N ã o no sentido que voluntariamente alguém quis dar a suas palavras,
mas no que as palavras o fizeram dizer mesmo contra sua vontade.
Esse paciente adulto, Dario, tem uma questão erótica muito forte
com a m ã e que n ã o é capaz de tornar consciente. D i z claramente, mas
n ã o escuta. E , assim sendo, quer dizer que sua infância provavelmen-
te n ã o foi t ã o feliz quanto ele acredita, visto que os impulsos sexuais
dirigidos a seus pais, típicos dos primeiros anos de vida, n ã o foram
resolvidos, o que p õ e em xeque a veracidade de toda a frase.
Mas, então, se o que ele diz n ã o proveio de sua vontade, de sua
decisão, de onde surge isso que dizemos sem querer dizer?

As l e m bran ç as reprimidas
(ou Dizer o que n ão se quis dizer)

Alguém havia dito naquele primeiro encontro que o inconsciente


era algo assim como um estranho que vive dentro de nós e nos leva a
26 ENCONTROS

fazer coisas que n ã o queremos fazer. E u acrescentaria que t a m b é m


nos faz dizer coisas que n ã o queremos dizer, e aqui encontramos a se-
gunda formulação do conceito de inconsciente. O que chamamos de
inconsciente dinâmico.
Citamos t a m b é m a repressão. Pois bem, esse segundo inconsciente,
diferentemente do primeiro, está relacionado com esse conceito de repres-
são, que t a m b é m é algo do que se fala muito, mas, em geral, de u m
modo equivocado. Digo isso porque é comum escutar frases do tipo:
" n ã o se reprima", principalmente entre amigas que aconselham ati-
tudes descontraídas, ou entre homens que às quatro da m a n h ã que-
rem convencer uma mulher a fazer algo que ela j á decidiu fazer h á
duas horas.
Mas isso de conseguir, graças a um pedido ou conselho, que al-
g u é m voluntariamente escolha reprimir ou n ã o reprimir é impossível,
porque a repressão é u m mecanismo de defesa inconsciente. N ã o
age porque alguém decide usá-lo, acontece sem que nossa vontade te-
nha nada a ver com isso.
Algumas linhas antes citei um texto de Freud que explica um pou-
co como se d á esse processo.

Gomo age a re pre ssão ? (Sonhos,


brincadeiras e tudo o mais)

Suponhamos que em algum momento de nossa vida, diante de


uma situação determinada, surge alguma ideia, alguma representação
mental que é intolerável e a m e a ç a causar uma ruptura no equilíbrio
psíquico e emocional, e então nós a reprimimos. Isso acontece sem
que percebamos. N ã o é que essa pessoa diga: "neste momento estou
reprimindo". N ã o . Simplesmente, essa ideia t r a u m á t i c a tem acesso
proibido à consciência sem que o sujeito saiba nada sobre isso.
Mas isso que n ã o consegue ganhar um lugar em nosso pensamento
n ã o desaparece para sempre, fica no inconsciente. Mas j á n ã o se trata
de u m inconsciente como o anterior, o descritivo, do qual podíamos
dispor quando quiséssemos. Porque essas lembranças estão reprimidas,
e então n ã o podemos trazê-las à consciência voluntariamente, visto
UMA INTRODUÇÃO 27

que existe uma força que n ã o as deixa passar e as m a n t é m nesse terri-


tório obscuro e desconhecido.
"Bem melhor", poderia dizer alguém, "assim n ã o incomodam e
n ã o voltam nunca mais." Mas isso n ã o funciona desse jeito, e mui-
tas vezes essas lembranças retornam, embora de u m modo disfarçado.
Vou dar um exemplo.
Imaginem que uma adolescente apresenta a seus pais o rapaz
com quem está saindo. U m garoto de barba, relaxado, meio sujo e
de maus modos. Quando ficam a sós, os pais dizem a sua filha que
n ã o gostam desse garoto e que n ã o querem que ela o veja nunca mais.
Mas ela m a n t é m o relacionamento em segredo. Passam-se os anos e
chega o momento em que os jovens querem se casar. A moça, então,
apresenta o rapaz j á sem barba, bem-vestido, limpo e educado. Então,
os pais a a b r a ç a m emocionados e lhe dizem: "Este sim. N ã o d á para
comparar com a outra tranqueira que você nos apresentou h á cinco
anos". E o mesmo homem, mas sua imagem está muito longe daquela
que motivou sua expulsão, e os pais n ã o conseguem relacionar u m j o -
vem com o outro.
De u m modo análogo, quando algo que foi expulso da consciência
quer voltar, precisa se disfarçar. Os psicanalistas chamam esse disfarce
de "formações do inconsciente"; e embora a expressão seja teórica,
todos as conhecem. O u nunca ouviram falar de um sonho ou de uma
brincadeira?
Essas são as maneiras disfarçadas nas quais algo pode voltar do
inconsciente. T a m b é m pode tomar a forma do que chamamos de lapso,
um ato falho, ou, como costuma acontecer, de u m sintoma que faz
o sujeito sofrer.
U m dos trabalhos da psicanálise é justamente desmascarar essa
lembrança, e, para isso, contamos com a associação livre do paciente e
as intervenções do psicanalista; que n ã o necessariamente são interpre-
tações, como se costuma pensar, visto que a interpretação é só uma das
tantas formas que um psicanalista tem de intervir. E l e t a m b é m pode
perguntar, apontar ou ficar em silêncio.
Muitas pessoas, ao pensar em u m psicanalista, t ê m o estereóti-
po do profissional que n ã o fala e só diz: "Aham". Brincam com isso e
acham que é uma coisa fácil e que adoramos ficar calados a sessão in-
28 ENCONTROS

teira. Estão enganadas. N ã o sabem como isso é difícil às vezes. Porque


o silêncio do psicanalista é um silêncio diferente. E um silêncio ativo
que o profissional decide manter para que a sessão n ã o se transforme
em uma conversa entre pares.
H á , inclusive, pacientes que no início resistem ao divã porque dizem
que precisam olhar o outro nos olhos quando falam. Esses pacientes
requerem tempo para se adaptar à técnica e compreender que a psica-
nálise n ã o é um diálogo, e sim um modo de relação diferente do habitual.
Mas é melhor seguirmos em frente, visto que n ã o é a intenção
nos determos nos detalhes da técnica psicanalítica. Só quero deixar
aqui algumas ferramentas que certamente vão nos servir mais adiante,
quando pensarmos nos temas que giram ao redor do amor.
N ã o obstante, antes disso, eu gostaria de concluir a ideia do que é
o inconsciente. Porque ainda n ã o dissemos nada sobre o inconsciente
estrutural, talvez o mais difícil de aceitar e de entender.

O sussurro do inconsciente
(ou Esse barulho de fundo)

Para nos aproximarmos um pouco de um conceito tão complexo,


tomo uma frase de Freud que diz: "Tudo que é reprimido é incons-
ciente, mas nem tudo que é inconsciente é reprimido". O que isso quer
dizer? Que no inconsciente n ã o estão somente aquelas coisas que ex-
pulsamos por serem dolorosas ou traumáticas; h á algo mais, algo ante-
rior a isso. U m inconsciente diferente, que nasceu inconsciente e que
sempre o será, por mais terapia que se faça. Quer dizer que existe um
limite para a interpretação do psicanalista; que a própria psicanálise
n ã o escapa do fato de que nem tudo é possível. Isso é o que costuma-
mos chamar de "castração", que é outra maneira de falar da aceitação
da falta.
Mas vamos dar um exemplo para ilustrar o conceito de incons-
ciente estrutural.
Certa vez, minha m ã e estava olhando pela varanda de sua casa,
que d á para uma rua muito movimentada, e me disse: "Filho, veja esse
inconsciente".
UMA INTRODUÇÃO 29

E u olhei e v i u m homem atravessando a rua, lendo o j o r n a l em


meio a u m trânsito feroz, com o semáforo vermelho para ele. E m i -
nha m ã e , que nunca leu Freud nem fez terapia, notou que ali havia
u m ato perigoso que o sujeito n ã o percebia. Que esse homem punha
em risco sua vida e, por que n ã o , a dos outros, sem ter consciência
disso.
B e m , aí está em a ç ã o o inconsciente estrutural, que t a m b é m
denominamos I d . U m a força que nos impulsiona a ir em busca daqui-
lo que pode nos causar dor. E esse é um inconsciente que jamais se tor-
n a r á consciente, porque n ã o pode voltar à consciência algo que nunca
esteve lá. E um inconsciente, digamos assim, com o qual nascemos.
Por isso é estrutural.
Lembro que uma paciente, no meio de uma sessão, disse-me uma
frase muito interessante. Estava falando de seu relacionamento com os
homens, de sua dificuldade de se relacionar, e no meio de sua alocução
disse: " E u n ã o sei por que sempre me envolvo com homens casados".
Essa frase foi dita por alguém que faz terapia e, como tal, diz mais
do que acredita dizer.
Vou propor u m jogo. Vamos desmontar a frase mudando o ponto
de lugar para ver o que acontece. Vemos que a primeira coisa que a
paciente diz é: " E U " . O U seja, o tema tem a ver com ela, e essa é a con-
dição necessária para trabalhar qualquer problemática com a psicaná-
lise: que o paciente se envolva.
Se levarmos um pouco mais o ponto para a direita, ela diz: " E u
NÃO SEI".
Aí h á uma proposição interessante do que experimenta como um
desconhecimento. Algo que vem de outro lugar, alheio. E ali, a pacien-
te n ã o sabe. N a realidade, eu diria, citando Freud: ainda n ã o sabe que
sabe.
Mas vamos seguir. " E u n ã o sei POR QUÊ".
O u seja, h á u m p o r q u ê ; embora ela o desconheça, está reconhe-
cendo que h á um motivo para isso que faz.
Agora vem, para nós, psicanalistas, a cereja do bolo: " E u n ã o sei
por que SEMPRE".
E digo isso porque aqui aparece essa palavra que instala a pre-
sença do inconsciente estrutural: sempre. O u nunca, d á no mesmo.
30 ENCONTROS

Palavras que fazem alusão ao fato de que o paciente n ã o pode evitar.


Acontece sempre, ou n ã o consegue nunca. Aí está atuando essa força
que o arrasta e n ã o lhe deixa escolha possível. Nessa repetição inevitá-
vel vemos a presença do I d .
Mas vamos terminar a frase: " E u n ã o sei por que sempre ME EN-
VOLVO COM HOMENS CASADOS".
A paciente n ã o diz que é seu destino, que tem azar, que a felici-
dade n ã o foi feita para ela. N ã o . D i z que ela é que se envolve, ou seja,
assume que tem responsabilidade nisso que lhe acontece. Esse é outro
ponto fundamental para poder avançar com a terapia.
Vemos que nessa frase, pronunciada como ao acaso, a paciente
disse muito: que o assunto lhe incumbe, que n ã o sabe de onde vem,
mas que esse comportamento tem u m p o r q u ê que ela desconhece, que
isso acontece sempre e n ã o pode evitar. Portanto, é um sintoma que so-
fre, que ela tem a ver com isso que acontece e que é algo que a leva a
uma situação dolorosa.
Acho que, até aqui, tudo bem.
Melhor retomarmos o tema das formações do inconsciente, e
para isso temos que nos situar novamente no território do inconsciente
d i n â m i c o , ou seja, do inconsciente reprimido, de cujo c o n t e ú d o só
recebemos - j á o dissemos - coisas deformadas, disfarçadas.
E n t ã o , as formações do inconsciente são essas manifestações sob
as quais u m pouco do reprimido volta, ou seja, implicam u m fracasso
da repressão. Por que digo que a repressão fracassou? Porque, en-
quanto for bem-sucedida, n ã o sabemos nada disso. Quando algo rea-
parece é sinal de que o processo repressivo fracassou. O carcereiro foi
ludibriado. Mas digamos, muito superficialmente, em que consiste
cada um desses disfarces.
O lapso é u m erro verbal. Quero dizer uma coisa e digo outra.
Confundo o nome, travo e n ã o consigo dizer uma palavra sem errar.
Isso, inclusive, pode acontecer repetidamente. Outro dia, u m paciente
quis me dizer que era uma pessoa intolerante, mas disse que era uma
pessoa intolerável. E h á uma distância importante entre ter baixa tole-
rância e ser alguém difícil de tolerar para os outros.
Os atos falhos são enganos cometidos nas ações. No caso Mariano,
do livro Histórias de divã, encontramos um.
Mariano é um paciente jovem, muito bem-casado com uma mulher
a quem ama e tem dois filhos. Contudo, h á tempos tem uma amante,
Valentina.
Alguém poderia questionar dizendo que, se enganava a esposa,
então n ã o a amava tanto. Mas eu responderia que está enganado, que
a ama muito, mas, como dissemos antes - e é a chave deste livro - ,
amor e desejo n ã o são a mesma coisa, e às vezes podem entrar em
conflito e levar alguém a uma situação difícil. Falaremos nos próximos
capítulos, entre outras coisas, do amor, do desejo e da infidelidade. Por
enquanto, vamos prosseguir com o exemplo.
A questão é que Mariano chega a um ponto em que, inconscien-
temente, n ã o quer mais isso, mas está imobilizado e n ã o tem coragem
nem de terminar com sua amante nem de confessar sua infidelidade
à esposa. Então, enquanto toma banho para ir se encontrar com sua
amante, deixa o telefone ligado, em cima do travesseiro, ao lado de
sua mulher, sabendo que podia receber uma mensagem de Valentina.
E a mensagem chega, a mulher a vê e descobre tudo.
Isso é o que se chama ato falho. E , com esse ato cometido involun-
tariamente, Mariano conseguiu p ô r todas as cartas na mesa. E l e queria
isso, mas n ã o tinha coragem. Pois bem, esse ato supostamente desafor-
tunado fez o que ele n ã o conseguia fazer. Mas era isso que ele queria?
N ã o conscientemente, por isso é um ato falho. Porque produz um
sentido que vem n ã o de algo que a pessoa quer, e sim de u m desejo
inconsciente que ela desconhece.
Dos sonhos n ã o é necessário falar muito, acho. Basta dizer que,
além do conteúdo manifesto, que podemos recordar quando acorda-
mos, em uma linguagem obscura, quase como se fosse um hieróglifo,
esconde-se um conteúdo latente que tem um sentido inconsciente que
pode ser desvelado.
As brincadeiras propiciam uma justificativa que às vezes relaxa a
repressão e permite falar um pouco daquilo que se esconde. Afinal de
contas, era brincadeira, não?
Quanto aos sintomas, o tema fica mais complexo de explicar por-
que tem a ver com um sofrimento que se impõe a alguém decorrente de
coisas n ã o resolvidas, e, em geral, são os que levam alguém à terapia.
" N ã o consigo sair à rua; Sou impotente; Quando estou para con-
seguir alguma coisa fico angustiado; Gosto de sexo, mas n ã o consigo
32 ENCONTROS

ter u m orgasmo; Sofro desmaios, mas os médicos dizem que n ã o tenho


nada." Essas são só algumas das muitas maneiras como um sintoma
pode nos afetar. E muito.
Vejam o filme Melhor é impossível. Nele, Jack Nicholson interpreta
um neurótico obsessivo que n ã o consegue tocar as coisas sem luvas,
que n ã o pode pisar nas lajotas de determinada cor, que precisa escutar
todas as segundas-feiras a mesma música, diferente da de terça e de
quarta, e que n ã o consegue sequer beijar uma mulher porque pensar
na troca de fluidos o deixa angustiado.
Os sintomas podem condicionar a vida de uma pessoa a ponto de
tornar insuportável seu dia a dia, e é com essa situação que mais lida-
mos em u m tratamento. O que n ã o implica que uma psicanálise tenha
como meta a supressão deles; isso é algo que se d á em consequência do
trabalho psicanalítico.
Mas por que todo este preâmbulo? Que relação h á entre o i n -
consciente, o sintoma e o amor?
Para responder a isso, e antes de passar ao tema que nos convoca,
permito-me citar uma vez mais J u a n David Nasio: "Nos assuntos do
coração [...] n ã o escolhemos mais que o imposto e n ã o queremos mais
que o inevitável".
Segundo encontro
RELAÇÕES AFETIVAS

A antropologia é o estudo do homem


a b r a ç a d o à mulher.

BRONISLAW MALINOWSKI
34 ENCONTROS

H á sempre uma h i st ó ri a de amor


por t rás de uma re l aç ão afetiva?

U m a relação afetiva é mais um dos tantos vínculos que alguém


pode travar com outra pessoa e, como a amizade, as relações familia-
res ou trabalhistas, tem certos modos de funcionamento que a caracte-
rizam. O que n i n g u é m parece discutir é que esse vínculo em particular
se constrói com base no amor. Mas é mesmo assim? H á sempre uma
história de amor por trás de uma relação afetiva?
A primeira resposta que surge é que seria no m í n i m o desejável
que assim fosse, visto que, quando alguém pensa em duas pessoas que
compartilham projetos, fazem sexo, filhos, t ê m coisas em comum, pa-
rece que se impõe a necessidade de que aí haja algo da ordem do amor.
Mas para começar a falar da relação que pode existir entre o concei-
to de relacionamento afetivo e o de amor, primeiro temos que definir
o que queremos dizer quando falamos de amor. Porque essa palavra é
utilizada de muitas maneiras.
Recordo uma paciente que, queixando-se de seu namorado, me
disse: "Bom, tudo bem, ele gosta de mim; mas eu o amo", o que pare-
ce que, para ela, era mais. E algumas pessoas p o d e r ã o concordar com
isso e dizer que sim, que amar é mais que gostar; mas, pessoalmente,
n ã o tenho tanta certeza disso. Porque essas palavras podem querer di-
zer a mesma coisa ou algo diferente, conforme o caso.
Certa vez, em uma sessão, outro paciente que estava muito con-
fuso por conta de uma conversa que havia tido com sua companheira
- que, ao que parece, reclamara que j á era hora de começar a falar
em casamento - , me disse: "Tenho medo de me casar, porque sei que
estou apaixonado por ela, mas n ã o a amo".
Para m i m n ã o estava claro como ele interpretava esses conceitos,
e tive que lhe perguntar para descobrir qual era, segundo ele, a dife-
rença.
N ã o é fácil definir claramente o que é o amor. Mas, pelo menos,
vamos fazer uma tentativa e dizer, embora seja uma obviedade, que o
amor é um sentimento. Mas, ao dizer isso, t a m b é m n ã o estamos dizen-
do muita coisa, porque, o que é um sentimento?
RELAÇÕES AFETIVAS 35

Poderíamos c o m e ç a r dizendo, embora pareça um pouco leviano,


que um sentimento é uma ideia, um pensamento, que carece de pala-
vras. E evidente que estou falando do ponto de vista psicológico, por-
que uma pessoa crente, por exemplo, pode pensar que a alma existe
e dizer que é algo que se sente na alma; outro dirá que o sente no co-
ração. B e m , tenho que decepcionar esses últimos. A s emoções e senti-
mentos encontram seu lugar no cérebro, e n ã o no coração. Mas nossa
cultura e sua poesia conseguiram que, quando alguém se emociona,
localize essa sensação no coração. E isso n ã o é mais que uma fantasio-
sa metáfora cultural.

Uma h i st ó ri a de amor, v i n gan ç a e castigo

Os gregos da época clássica, por exemplo, localizavam o amor em


outra parte do corpo. Para eles, o órgão importante era o fígado. O
que justifica o mito de Prometeu; vocês j á conhecem a história.
Prometeu, que era uma espécie de gigante, teve a ideia de en-
ganar os deuses em favor dos humanos. O que fez? Foi até o Monte
Olimpo, roubou dos deuses uma pequena brasa, escondeu-a dentro
de um bambu, saiu disfarçadamente e a deu de presente aos homens,
que até então n ã o conheciam o fogo. Os deuses n ã o gostaram disso e
decidiram castigá-lo dando-lhe um presente.
Que história é essa de castigar alguém dando-lhe um presente?
Disso aquele povo entendia bastante, e era comum que, quando
os gregos dessem u m presente a alguém, o metessem em problemas.
Lembrem-se do Cavalo de Tróia. D e fato, h á um dito popular que fala
de "presente de grego", prevenindo-nos de que a coisa, embora pareça
maravilhosa, esconde algum problema, que algo n ã o vai dar certo.
Os deuses, então, deram a Prometeu - e isso j á tem a ver com
alguma coisa da ordem da sedução e do amor — uma mulher com uma
caixa cheia de presentes. Certamente vocês a conhecem; o nome dessa
mulher era Pandora, e todos nós j á ouvimos falar da famosa caixa de
Pandora.
Pois bem, Pandora, que era muito, mas muito bonita - afinal de
contas, havia sido criada pelos deuses - , foi até Prometeu e lhe entregou
36 ENCONTROS

a caixa em nome dos habitantes do Olimpo. No entanto, o gigante,


que n ã o exatamente por ser ingénuo havia roubado o fogo, agradeceu
muito, mas deixou a caixa fechada em u m canto. A complicação sur-
giu quando seu irmão, Epimeteu, que n ã o era tão lúcido quanto ele,
abriu a caixa por curiosidade.
E o que encontrou? V i u que os deuses haviam colocado dentro
dessa caixa todas as desgraças do mundo, que saíram assim que E p i -
meteu a abriu. E por causa desse ato, desse descuido - e poderíamos
pensá-lo no sentido de um ato falho - é que hoje existem todas as des-
graças e sofremos tanto.
"Tudo por culpa de um imbecil?", poderia perguntar alguém.
Sim, e quem j á n ã o sofreu por causa de um imbecil que atire a primei-
ra pedra.
A história parece fraca para justificar os males do mundo, mas,
afinal de contas, n ã o é mais absurdo que pensar que os padecimentos
existem porque uma mulher resolveu morder um fruto...
Mas, voltando à história, Prometeu, vendo que ao abrir a caixa
escapavam a infelicidade, o desamor e o sofrimento, jogou-se rapida-
mente sobre ela e conseguiu fechá-la, deixando pelo menos uma coisa
presa lá dentro: a esperança. De onde se deduz que, para os gregos,
como para meu amigo Alejandro Dolina, a esperança era u m castigo.
Se n ã o acreditam, pensem no que acontece quando alguém é
abandonado por seu companheiro. E u garanto que uma das piores
coisas que pode acontecer a essa pessoa é ficar esperançosa.
U m a vez, uma paciente me disse que estava com muita raiva -
mas seria melhor dizer que, na realidade, ela se sentia humilhada e
ferida - , e que seu namorado, que havia acabado de abandoná-la, era
um ser desprezível e cruel. E u lhe perguntei por que dizia isso, e ela
me contou que, no momento de se despedir, ela o havia a b r a ç a d o e
lhe dissera que talvez, depois de um tempo, a vida tornaria a uni-los.
E ele, sem corresponder ao abraço, com total frieza, olhara para ela e
dissera: " N ã o . Isso n ã o vai acontecer".
E l a afirmava que o que o homem havia feito era um ato de mal-
dade, e eu disse que talvez, com esse gesto, ele a estava ajudando. Por-
que estava lhe dizendo que n ã o tinha que ter esperanças, que tinha
RELAÇÕES AFETIVAS 37

que c o m e ç a r a elaborar a perda imediatamente, que n ã o esperasse que


ele ligasse ou fizesse contato de algum jeito. O u seja: havia acabado.
E isso é importante. Nós, psicanalistas, muitas vezes temos pacien-
tes em uma situação como essa, e sabemos que, para que alguém possa
começar o trabalho de luto, é fundamental que admita primeiro que
algo se perdeu. E nesse sentido que a esperança costuma ser uma difi-
culdade extra na realização desse trabalho.
Mas vamos concluir o caso de Prometeu. Vocês sabem que os
gregos, antes de comer, tinham que oferecer uma parte do alimento
aos deuses. Então, perguntaram-se que parte dos animais iam lhes dar,
e Prometeu disse: "Bem, vamos deixar que eles escolham, j á que são
deuses", e colocou em um saquinho o pior: as vísceras, a gordura, os
ossos e, por cima, u m lindo p e d a ç o de carne (o que necessariamen-
te remete os psicanalistas ao sonho da bela açougueira relatado por
Freud). A seguir, pôs em outro saco tudo do mais saboroso e o cobriu
com alguns ossos nojentos; e disse aos deuses que pegassem o saco que
quisessem; e eles caíram na armadilha. Escolheram o saco que tinha as
vísceras, e a partir de então ficou estabelecido que tudo que se oferta-
ria aos deuses era o que eles mesmos haviam escolhido. O u seja, o pior.
Imaginem vocês que Zeus e os seus n ã o viram a menor graça nes-
sa nova armadilha de Prometeu e, j á cansados do gigante, impuseram-
-lhe u m castigo. Foi amarrado a uma rocha, e todos os dias uma águia
comia seu fígado, que se regenerava durante a noite para que no outro
dia a ave pudesse fazer o mesmo, retomando o ciclo por toda a eterni-
dade. E por que o fígado? Porque, como dissemos antes, para os gregos
esse era o órgão mais importante, mais que o coração.
N ã o é difícil encontrar nesse mito alguns elementos que nos re-
metem à religião judaico-cristã, não? Esse Prometeu que rouba o fogo
sagrado (metáfora do conhecimento) para dar aos homens aquilo que
até esse momento era só patrimônio dos deuses nos faz recordar a E v a
e a m a ç ã do conhecimento, cuja mordida desatou os males do mun-
do, sem necessidade da caixa de Pandora. E para que negar que esse
gigante que carrega, n ã o sobre seus ombros, mas sobre seu fígado, a
culpa por seus atos de amor tem algo a ver com o Cristo?
Para além desses jogos metafóricos, a verdade é que o amor tam-
b é m n ã o é gerado no fígado, por mais que isso contrarie os deuses do
38 ENCONTROS

Olimpo, visto que, repito, os sentimentos n ã o são mais que pensamen-


tos silenciosos.
Por isso a coisa se dificulta tanto quando falamos de amor, por-
que estamos falando de algo ao qual é muito difícil p ô r palavras. Por
isso muitas pessoas, se pudessem, inventariam algum aparelho que lhes
permitisse medir com exatidão o grau do amor, para saber com certe-
za quanto o sentem. Mas, diante da falta de tão precioso instrumento,
nós nos conformamos com metáforas geográficas, e assim o m o ç o diz
a sua namorada que a ama até o céu. Mas ela, que quer mostrar que
seu amor é maior, responde que ela t a m b é m o ama até o céu, mas ida
e volta.

Sempre h av e rá algo que n ão poderemos saber


(ou A un i ão afetiva é um chamado da espécie?)

Como manter um relacionamento afetivo é uma experiência que


acontece para a maioria das pessoas em algum momento da vida, in-
clusive de um modo recorrente, poderíamos perguntar, então, se n ã o
existiria um chamado da espécie que nos impulsiona a nos relacionar-
mos desse modo com outra pessoa.
E m uma das cenas do filme 0 lado escuro do coração, a atriz que
interpreta o papel da morte diz ao protagonista: " N ã o percebeu ain-
da que o amor é só uma armadilha da natureza para perpetuar a
espécie?".
Se isso fosse verdade, diríamos que o amor é uma invenção cultu-
ral para viabilizar u m condicionamento natural. Mas isso seria como
dizer que o amor é uma necessidade instintiva, e me apresso a dizer
que o ser humano tem uma diferença crucial em relação aos animais, e
essa diferença é justamente que carece de instinto.
Certa vez, eu disse isso em uma palestra e uma mulher me per-
guntou o que era, então, o instinto materno. E u lhe respondi que
t a m b é m n ã o existia, e ela disse que n ã o concordava; que n ã o podia
explicar porque era uma sensação intransferível e que, como sou ho-
mem, eu provavelmente n ã o poderia entender. Mas que ela era m ã e , e
me garantia que o instinto materno é algo que se sente.
RELAÇÕES AFETIVAS 39

Parado nessa encruzilhada, eu me permito dar uma rápida defi-


nição de instinto: é uma força que traz em si um saber natural e que
impulsiona todos os membros de uma mesma espécie a ter as mesmas
atitudes diante de circunstâncias iguais, sem possibilidade de se afastar
delas.
Vejam os elefantes, por exemplo, que, quando chega o momento
de sua morte, caminham para um determinado lugar porque é ali que
seus ossos devem ficar para sempre. N ã o decidem isso, n ã o hesitam
a respeito, n ã o se questionam, simplesmente sabem que devem fazer
isso e n ã o podem evitar. Pois bem, eu nunca v i uma fila de homens e
mulheres agonizantes caminhando por uma avenida rumo a uma ma-
ternidade, e vocês?
Mas n ã o quero me esquivar da questão do instinto materno.
Pensem nas notícias. Nunca leram ou escutaram sobre uma m ã e que
abandonou seu b e b é recém-nascido em uma lixeira? Bem, essa ati-
tude que qualificamos como desumana é justamente o contrário, vis-
to que nos mostra que nessa fêmea pertencente a nossa espécie n ã o
houve nenhuma informação instintiva que lhe dissesse que n ã o devia
fazer o que fez. Todos sabemos disso, e h á quem diga que "as crianças
n ã o v ê m ao mundo com u m manual de instruções para os pais". Esse
manual seria o instinto, mas, como carecemos dele, temos que admitir
que mesmo algo t ã o importante como a maternidade deve ser cons-
truída, e que as origens dessa construção se encontram geralmente,
lá longe e h á tempos, no momento em que essa m ã e , ainda criança,
brincava de boneca e ia desenvolvendo u m ideal cultural do que é
ser m ã e .
E evidente que, em oposição a isso, muitas mulheres lutam pela
vida de seus filhos de um modo incrível. Incrível principalmente para
o instinto. E digo isso porque sabemos que a maioria dos animais,
quando t ê m um filhote doente e com poucas possibilidades de vida,
afastam-no para cuidar dos outros. Porque isso é o que o instinto lhes
diz que devem fazer, cuidar das crias mais fortes, que t ê m mais possi-
bilidades de subsistência e, portanto, de perpetuar a espécie. Porém,
nós elaboramos medicamentos, métodos cirúrgicos intrauterinos, res-
piradores artificiais e um sem-fim de alternativas para contrariar essa
ordem da natureza em nome de uma atitude cultural e humana.
40 ENCONTROS

A maternidade é mais uma forma de se relacionar com alguém,


nesse caso, um filho. A relação afetiva ou conjugal e a amizade são ou-
tras formas, mas nenhuma delas é natural, porque no homem todos os
relacionamentos são construídos sem um saber instintivo. E talvez a se-
xualidade seja o terreno no qual é mais fácil demonstrar que o instinto
n ã o existe para nós como para os animais.

Uma sexualidade muito peculiar


(ou Nada natural)

A primeira e principal diferença entre a sexualidade animal e a


humana é justamente que, enquanto a primeira se encontra sob o do-
mínio do instinto, este n ã o existe em absoluto no homem. Temos, sim,
algo parecido, uma força, uma energia que nos empurra permanen-
temente à realização de certos atos em busca da satisfação, mas cujas
características são substancialmente diferentes das do instinto. C h a m a -
mos essa energia de pulsão.
E esclareço que n ã o se trata só de uma questão terminológica,
e sim de uma diferenciação muito mais profunda. Porque o instinto,
como j á dissemos, implica a existência de um saber prefixado para
os membros de uma espécie que os leva a certos comportamentos dos
quais n ã o podem se afastar. No caso preciso da sexualidade, o instinto
indica ao animal que deve se unir a outro da mesma espécie e género
diferente para possibilitar entre eles uma união genital com um fim
reprodutivo. O u seja, o instinto impulsiona, por exemplo, o cão a ir em
busca de uma cadela (não qualquer uma, mas uma que esteja no cio)
para poder ter u m encontro genital com a finalidade de procriar.
Lembro a cena de um romance que l i h á muito tempo, cujo nome
tive a precaução de esquecer. Nele, a protagonista era uma condessa
que se sentia profundamente atraída por um jovem que cuidava de
seus cavalos. Certo dia, quando seu esposo havia se ausentado, da j a -
nela de seu quarto a condessa viu o jovem e sentiu o impulso de ir a
seu encontro. Saiu então de seu castelo, dirigiu-se à cavalariça e entrou
no exato instante em que o rapaz estava soltando o g a r a n h ã o para que
servisse as éguas. U m a vez livre, o animal se dirigiu diretamente a uma
RELAÇÕES AFETIVAS 41

delas e a cobriu de imediato. A condessa olhou com estranheza para o


jovem e disse:
- Que cavalo mais estúpido, escolheu a mais feia de todas as
éguas.
O rapaz sorriu e passou a lhe explicar:
- O que acontece, senhora, é que é a única que está no cio. E o
animal tem a capacidade de perceber imediatamente quando uma fê-
mea espera ser coberta.
A condessa o olhou diretamente nos olhos e replicou:
- B e m que achei que algo faltava a vocês, homens.
E a condessa tinha razão. Obviamente, o que falta a nós, homens
e mulheres, é o instinto.
Mas vamos prosseguir. N a descrição que fizemos anteriormente
acerca do comportamento sexual instintivo do animal, entram em jogo
três elementos: o objeto sexual, a zona e r ó g e n a de contato e a finali-
dade. Vamos analisar cada uma delas e notaremos as diferenças exis-
tentes entre o instinto animal e a pulsão humana. E vamos começar
pela mais fácil de diferenciar, a finalidade.
Dissemos que o fim do encontro sexual instintivo é a reprodução.
E u proponho que, em um pequeno exercício de n ã o mais de cinco se-
gundos, o leitor feche os olhos e tente relembrar quantas das vezes que
teve relações sexuais foram para procriar.
Certamente, a resposta será nunca, ou duas ou três ocasiões, ou
vinte, se quiserem. Mas n ã o h á dúvida de que, na maioria das vezes, a
finalidade foi outra. Qual? O prazer.
E essa é uma diferença enorme. O ser humano, geralmente, tem
relações sexuais porque gosta, porque curte, porque é prazeroso. Fica
claro, então, que a finalidade n ã o tem a ver com a indicada pelo ins-
tinto, e sim com essa força que nos empurra n ã o à procriação, mas à
satisfação de um desejo e à busca do prazer. O que justifica a enor-
me quantidade de métodos contraceptivos desenvolvidos ao longo da
história e das medicações que vão aparecendo para prolongar a vida
erótica, mesmo quando a natureza j á n ã o nos necessita como reprodu-
tores da espécie.
Vamos tomar agora outro elemento: o objeto.
Dizíamos que o objeto sexual de um animal é outro da mesma es-
pécie, mas de género diferente. Pois bem, isso t a m b é m n ã o é igual nas
42 ENCONTROS

pessoas, visto que nem sempre o objeto erótico de um homem é uma


mulher. Muitas vezes, um homem encontra o motor de sua paixão em
outro homem e uma mulher em outra mulher. Mas vamos além disso.
As vezes, a pulsão nem sequer exige a presença de outro ser humano e
se contenta com uma parte dele. O exibicionista é um claro exemplo dis-
so. Ele n ã o busca sequer tocar o outro, contenta-se e se erotiza somente
com seu olhar. Por isso se exibe, para atrair para si o olhar do outro, que
é o real objeto de sua excitação. E vamos avançar ainda mais um passo,
e digamos que, em muitas ocasiões, o objeto gerador da excitação nem
sequer precisa ter "forma humana", como acontece no caso do fetichis-
mo, em que aquilo que erotiza pode ser a presença de um lenço no pes-
coço ou um par de botas, e sem isso a mulher carece de todo poder de
atração e perde seu interesse erótico para o fetichista.
E m capítulos posteriores desenvolveremos melhor esse assunto,
mas queria pelo menos instalar a ideia de que o objeto do erotismo hu-
mano pode ser qualquer um e variar segundo cada membro de nossa
espécie.

Por último, vamos abordar o tema das zonas erógenas compro-


metidas no jogo sexual. Veremos que, na união de duas pessoas, os
genitais t ê m um papel importante, mas de maneira alguma único e
determinante. Prova disso é a mais comum das trocas físicas entre duas
pessoas: o beijo, no qual os lábios é que se instalam como a zona eró-
gena capaz de dar prazer e despertar a excitação. Outras vezes, nem
sequer é necessário que os corpos se toquem, basta o olhar ou a pala-
vra para erotizar. Pensem nessas ligações noturnas que os apaixonados
fazem, que avançam em intensidade e ficam cada vez mais fortes, até
que u m dos dois diz: "Chega, ou vou para aí". Mas t a m b é m poderiam
encontrar a satisfação nesse jogo mesmo, sem necessidade de mais.
Claro, imagino que a esta altura muitos estarão se perguntando
se esses exemplos n ã o pertencem ao território das perversões e n ã o ao
da normalidade. E a verdade é que n ã o é uma pergunta ruim, e o que
sugere n ã o está totalmente equivocado. Mas acontece que, em sua rup-
tura com o natural, toda sexualidade humana é pervertida por defi-
nição. E me vejo na obrigação de esclarecer rapidamente que, como
psicanalista, quando utilizo o termo "perversão" n ã o estou pensando
RELAÇÕES AFETIVAS 43

em algo ruim ou imoral, como costuma acontecer no uso corrente des-


sa palavra, e sim em uma maneira peculiar de se relacionar, que tem
suas próprias características e que n ã o tem que necessariamente se unir
ao conceito de algo nocivo. Mas falaremos disso t a m b é m mais adiante.

A ideia de sexualidade mudou com a psi c an ál i se

A psicanálise teve muito a ver nessa ruptura com o modelo da


sexualidade natural. Outra grande revolução gerada pela teoria freu-
diana tem sua origem em u m escrito fundamental que se chama Três
ensaios sobre sexualidade. Nele, Freud expõe que o erotismo foi entendido
de diversas maneiras segundo os tempos. Mas, até sua chegada, pensa-
va-se ainda que a sexualidade era algo que n ã o existia na infância, que
começava a aparecer com a puberdade e que durava, segundo cada
pessoa, até os sessenta ou setenta anos mais ou menos.
Os psicanalistas sabem que isso é falso. A sexualidade nasce co-
nosco e nos acompanha até o último momento de nossa vida.
Basta olhar u m bebé para perceber. Esse instante tão lindo para a
m ã e no qual seu filho adormece depois de ser amamentado e que, no
entanto, continua sugando seu peito, j á n ã o para se alimentar, e sim
simplesmente porque isso o acalma e lhe d á prazer, é um momento
de contato erótico entre a criança e a m ã e . Obviamente que é, para
o adulto, despojado de conteúdo sexual e sublimado sob a forma da
ternura, mas nada além da busca do prazer erótico move o bebé a
continuar preso ao mamilo materno quando sua fome j á foi saciada.
E o que acontece quando um menino de três ou quatro anos diz
com total naturalidade: "Quando eu crescer vou me casar com a ma-
m ã e " ? Os adultos sorriem e acham que é um comentário cheio de ter-
nura, mas o que o filho está manifestando é que sua m ã e é o objeto de
seu amor e seu desejo. E n ã o poderia manifestá-lo mais claramente que
dizendo o que diz, que quando crescer quer ser o homem dessa mu-
lher. B e m , quem quiser ouvir, que ouça.
Como vemos, a sexualidade humana é complexa, e n ã o é de es-
tranhar, então, que seja tão problemática e causa habitual de muitos
dos transtornos afetivos que sofremos quando adultos.
44 ENCONTROS

Mas, longe de nos assustar com essa maneira tão única que temos
de nos relacionar com o erotismo, podemos entendê-la como uma ca-
racterística maravilhosa que nos oferece a potencialidade de crescer,
melhorar, curtir e até encaminhar esses impulsos a causas nobres e
criativas. Esse processo é chamado de sublimação.
U m a paciente que tinha muita dificuldade de se relacionar se-
xualmente me disse que havia visto um programa no Animal Planet
e chegara à conclusão de que, para nós, a sexualidade era muito mais
difícil que para os animais.
Isso é evidente, pensei eu. A o passo que o animal n ã o hesita,
porque o instinto lhe confere um conhecimento natural sobre o que,
quando, como e com quem fazer, para nós n ã o h á saber possível acer-
ca da sexualidade.
Sabemos, isso sim, que ali está a pulsão com sua força impulsora,
e que cada sujeito tem a oportunidade de aproveitar esse impulso, essa
energia, para levar adiante o difícil, mas maravilhoso, desafio de cons-
truir com ela um entorno de prazer e respeito, para si e para os outros.
Claro que a sexualidade animal é muito mais natural, mas isso
n ã o quer dizer que seja melhor, porque a carência do instinto d á ao
sujeito humano a possibilidade de escolher. E entre essas escolhas,
manter um relacionamento afetivo é mais uma opção - embora du-
rante muito tempo tenha sido uma regra tão forte que estávamos todos
quase condenados a manter um relacionamento a qualquer custo.
Porque se assim n ã o fosse, se alguém chegasse à idade adulta e conti-
nuasse sozinho, ouvia-se aquilo: " O que h á de errado com ele? Deve
ser meio estranho". O u "Coitadinha da Marta, ficou para titia".
Desconfio que, à luz do que estamos tratando, e tendo em conta
os conflitos que os relacionamentos afetivos costumam gerar, algumas
pessoas poderiam pensar, inclusive, se n ã o é mais inteligente o compor-
tamento instintivo que leva os animais a se unir somente para procriar e
perpetuar a espécie, sem envolver sentimentos que possam machucar.
E a verdade é que n ã o h á inteligência no saber dado pelo instinto. Por-
que inteligência é a capacidade de diferenciar e discriminar para depois
fazer uma escolha. O animal n ã o escolhe, só responde; por isso, devo di-
zer que, embora às vezes - principalmente com algumas pessoas - n ã o
se note muito, desfrutamos e padecemos a inteligência mais que eles.
RELAÇÕES AFETIVAS 45

O desejo nunca se de t é m
(ou N i n gu é m pode garantir amor eterno)

H á pouco dissemos que o relacionamento afetivo é uma escolha.


Mas dizer que é uma escolha quer dizer que é uma decisão voluntária?
E possível escolher amar uma mesma pessoa por toda a vida? E , assim
sendo, o que acontece, então, com o que chamamos de metonímia do
desejo?
De u m modo simples, falar de metonímia do desejo é uma ma-
neira de dizer que o desejo sempre se desloca de um objeto a outro,
que nunca se detém e que n ã o h á maneira de satisfazê-lo de uma vez
e para sempre. Por mais que estejamos muito bem em uma situação,
o desejo sempre se deslocará para outra coisa, porque todo desejo é,
basicamente, um desejo insatisfeito.
Sei que essa formulação n ã o é agradável, que soa mal, que quan-
do alguém se apaixona quer que seu amado n ã o deseje n i n g u é m além
dele, e, de fato, uma das fantasias que o amor gera é essa, de interrom-
per a m e t o n í m i a do desejo.
Para quem se apaixona, a fantasia é que o outro n ã o deseje mais
ninguém. Mas se esse alguém for sincero e se conhecer, vai perceber
que isso n ã o é possível; que n ã o deixamos de desejar só porque esta-
mos apaixonados.
Essa constatação de que o desejo de seu amado continua circulan-
do deixa as pessoas inseguras muito nervosas, desesperadas. Mas n ã o
h á nada que possam fazer, visto que o desejo vai seguir seu caminho,
gostem ou n ã o .
U m paciente me disse que essa era uma desculpa excelente para
dar a sua mulher se o encontrasse com outra: " M e u amor, n ã o é mi-
nha culpa, é a metonímia do desejo".
Independentemente de o comentário ser engraçado, eu n ã o gos-
taria que minhas palavras fossem mal entendidas. N ã o estou dizendo
que é impossível ser fiel. Porque, dentro dessa capacidade de escolha que
dissemos que o ser humano tem, cada um terá que se responsabilizar
pelo que faz com seu desejo. E essa é outra vantagem de nossa espécie;
porque, ao passo que o cão n ã o se pergunta o que fazer na presença de
uma cadela no cio, um homem pode dizer: "Que mulher linda! Mas
prefiro ir para minha casa ficar com minha família". E isso é só u m
46 ENCONTROS

exemplo, n ã o um conselho de como se comportar. N ã o cabe a m i m


ocupar esse lugar, e cada u m t o m a r á suas próprias decisões.
C o m isso, só quero dizer que o fato de o desejo ser algo impossível
de imobilizar n ã o nos poupa a responsabilidade sobre nossos atos.
Agora, voltando à pergunta sobre ser possível escolher alguém
para a vida toda, talvez isso só possa ser respondido no minuto final,
olhando para trás e percebendo que passamos todos os nossos anos ao
lado da mesma pessoa. Mas n ã o no começo. E pedir demais a um re-
lacionamento que dure a vida toda. E , com relação a isso, vou contar
um pequeno caso.
Tenho um paciente que é um pouco obsessivo, especialmente com
a lei. Por exemplo, se um policial o para e lhe pede os documentos, ele
pergunta:
"Por q u ê ? "
" O r a " diz o policial, "porque quero ver se está tudo em ordem."
"Está bem" responde ele - , "mas primeiro me diga seu nome, seu
cargo e me mostre sua identificação."
"Está no escritório, lá dentro."
" E n t ã o , vá buscá-la; eu espero."
E um homem simpático e muito inteligente, mas, como todos,
quando o sintoma aparece ele perde o bom senso. E no dia de seu
casamento, essa obsessão com a lei o levou a protagonizar uma cena
bastante peculiar. Imaginemos a situação: casamento civil, os noivos,
as testemunhas, os convidados e o juiz, representante da lei.
Vocês sabem que os juízes de paz costumam ser gentis, simpáticos,
geralmente presidem situações gratificantes, escolhidas. Mas a questão
é que o juiz lhe perguntou: "Senhor, aceita como esposa esta mulher,
para amá-la, respeitá-la, ser-lhe fiel, cuidar dela pelo resto de sua vida
até que a morte os separe?".
Meu paciente olhou para o juiz e disse:
" N ã o posso j u r a r isso de jeito nenhum."
Imaginem vocês a cara da noiva e de todos os presentes.
O juiz, então, olha espantado para ele, que, muito tranquilo, qua-
se alheio à situação que acabava de se gerar na sala, diz que está diante
de u m juiz da nação, que está lhe tomando uma declaração juramen-
tada, e que n ã o pretende mentir.
RELAÇÕES AFETIVAS 47

" O senhor pretende que eu jure que vou amá-la a vida toda e
nunca vou traí-la. E a verdade é que n ã o posso lhe prometer isso.
Como vou saber se vou amá-la a vida toda?"
A noiva, que o conhecia muito bem, dava-lhe cotoveladas e dizia:
"Chega! Responda ao juiz o que ele quer ouvir."
Por fim, meu paciente disse que a única coisa que podia dizer
com certeza era que nesse dia em particular queria se casar com ela. E
o juiz, para regozijo geral, respondeu:
"Vou tomar isso como um sim."
Sei que a atitude desse paciente é extrema e que, nesse caso, to-
mou a palavra como se fosse literal, sem metáforas românticas; mas o
que ele denuncia com sua postura é que n ã o existem garantias com
relação ao amor; que dizer a alguém que vamos amá-lo a vida toda é
só um mimo, mais uma parte do jogo erótico.
O relacionamento afetivo é um âmbito complexo, e, com sorte,
a pessoa que diz que vai amar o outro a vida toda diz porque sente
isso aqui e agora, mesmo que tudo possa mudar no futuro. Mas isso
n ã o quer dizer que quem diz isso está mentindo. Certamente sente
isso, porque o impacto que o amor ou o desejo geram é tão forte e o
momento presente tem tanta força que o apaixonado sente que n ã o
existiu passado nem existirá futuro. Por isso, quando alguém nos con-
fessa que jamais sentiu com n i n g u é m o mesmo que sente conosco, é
possível que n ã o esteja mentindo, embora o que diga n ã o seja verdade.
Sei que isso parece uma contradição, mas n ã o é. Porque uma coi-
sa é a realidade, digamos objetiva (se é que isso é possível), e outra mui-
to diferente é a realidade psíquica. O u , se preferirem, em termos mais
fortes, uma coisa é a realidade e outra muito diferente é a verdade.
E de que lado fica cada uma? A verdade sempre está do lado do
sujeito; pelo menos a que nos interessa encontrar em uma terapia.
U m a verdade única para esse paciente em particular. Por isso, para
nós, psicanalistas, n ã o importam as opiniões dos outros, só como elas
impactam quem está deitado no divã.

Lembro que uma vez liguei para a casa de uma paciente jovem
porque precisava mudar um horário. A m ã e me atendeu. E u me apre-
sentei e pedi para falar com sua filha. A mulher, muito entusiasmada,
48 ENCONTROS

disse: "Ah, que sorte ter ligado, queria falar com o senhor, porque as
coisas n ã o são como ela conta".
A mulher n ã o tinha a menor ideia do que a filha havia me con-
tado, mas certamente achava que ela tinha uma ideia diferente acer-
ca da realidade do que acontecia em sua família. Obviamente, eu fui
muito gentil, mas n ã o lhe dei espaço. Porque n ã o era o certo e, além
de tudo, n ã o me importava nem um pouco o que ela tivesse para me
dizer, porque eu, como psicanalista, trabalho com a realidade psíquica
de meus pacientes, mesmo que as coisas n ã o sejam como eles as con-
tam. E só assim que alguém pode ter acesso a seus desejos. Desejos
que, certamente em muitos casos, podem acarretar problemas.
Por exemplo: voltando ao tema do relacionamento afetivo, mais
de uma vez alguém me disse que, no momento em que estava se casan-
do, j á sabia que estava cometendo um erro, que n ã o era o que queria.
"Mas que ia fazer", costumam dizer: "Jogar tudo para o alto, a festa, o
vestido, os convidados?".
N ã o tiveram coragem e, por n ã o pagar o custo nesse momento,
pagaram depois. E h á quem pague um preço elevado demais por n ã o
ter coragem de escutar o que deseja.
E , para acabar com esse negócio de amor para sempre, digamos
que pode ser que haja muitos amores para sempre na vida de uma
pessoa. D e fato, a n ã o ser que se trate de um cínico, quase todo amor
é vivido, no presente, como se fosse para a vida toda, e é muito triste
quando isso n ã o se realiza — coisa que costumava acontecer quando a
motivação para manter um relacionamento afetivo era aquela norma
social de que falamos anteriormente, e n ã o um verdadeiro desejo.

Nem todos escolhem manter um relacionamento


afetivo pelas mesmas causas

O motivo pelo qual um indivíduo decide estar com alguém n ã o é


um tema menor. Conheci algumas mulheres que queriam desespera-
damente amar uma pessoa só porque haviam passado dos quarenta e
tinham um desejo de maternidade que as forçava a encontrar alguém
com quem inventar um amor onde talvez n ã o existisse nada.
RELAÇÕES AFETIVAS 49

Lembro que, certa vez, uma paciente me disse que tinha neces-
sidade de ser m ã e . Mas acontece que, no ser humano, com exceção
de uma ou duas funções orgânicas mínimas e necessárias para manter
o organismo vivo, a necessidade é algo que j á se perdeu. Por isso é
tão interessante para o andamento de uma terapia quando a paciente
consegue questionar essa suposta necessidade, por exemplo, de ter um
companheiro; e, depois de um tempo, chega à conclusão de que na
realidade n ã o se tratava de uma necessidade de um relacionamento
afetivo, e sim do desejo de ter um filho, e que o companheiro apareceu
como algo imprescindível só para poder realizar esse desejo.
Mas a verdade é que as motivações para manter um relaciona-
mento afetivo podem ser muitas e diversas. H á quem busque, inclu-
sive, uma relação para se sentir completo, ou porque tem medo da
possibilidade de ficar sozinho.
C o m relação à primeira motivação, como dissemos no capítulo
anterior, é verdade que existe um sonho de completude que o amor
parece poder realizar. Mas, por pouco tempo, porque essa sensação é
fruto da etapa da paixão, que n ã o é mais que uma loucura passageira.
E por que digo que é uma loucura? Porque gera a ideia, quase o
delírio, eu diria, de que a pessoa j á n ã o precisa de mais nada. Nesse
sentido, a sensação que desperta se parece u m pouco com a criada
pela gravidez em algumas mulheres: essa vivência de estar completas.
Tocam a barriga, estão contidas em si mesmas e é como se nada lhes
faltasse. Por isso, nesses casos, depois costuma vir a depressão pós-parto.
Porque, quando estão sozinhas e incompletas outra vez, ficam angustiadas.
Mas muitas pessoas, principalmente se n ã o fazem terapia, bus-
cam no amor a possibilidade de se sentir completas e, assim, negar
a falta. Mas lembre o que dissemos no capítulo anterior quando fa-
lamos do mito dos a n d r ó g i n o s e da poesia de Borges acerca da inútil
ilusão do apaixonado "de se fundir u m no outro e de fazer de dois
um mesmo ser".
Terceiro encontro
O AMOR É U M PONTO D E CHEGADA

O amor é uma arte? Nesse caso, re-


quer conhecimento e esforço. O u o amor
é uma sensação prazerosa cuja experiência é
uma questão de acaso, algo com o que "tro-
p e ç a m o s " se tivermos sorte?

E R I C H FROMM
52 ENCONTROS

Dorian Gray, uma l e m bran ç a infantil

Lembro que no dia do nosso terceiro encontro reconheci muitos


rostos que j á me eram familiares, e outros novos se somavam, como a
cada sábado; e peço p e r d ã o pela utilização da sinédoque. Como sa-
bem, a sinédoque é uma figura retórica que implica tomar a parte
para se referir ao todo. Assim, Borges diz: "Bateram à porta uma voz
e um nome". B e m , de um modo muito menos poético e eficaz, escrevi
que reconheci rostos, em vez de dizer pessoas; mas acontece que, mes-
mo estando em u m âmbito tão pouco formal como u m café, os jogos
de linguagem fazem parte da psicanálise, portanto, de meu modo de
falar e pensar como psicanalista.
Como sabem, havíamos combinado dedicar esses encontros a
questões relacionadas com o amor, que é simplesmente um dos temas
fundamentais na história da humanidade. Por amor foram realizadas
façanhas, traições, sacrifícios pessoais e guerras.
Mas, longe dessas epopeias, para abrir este capítulo vou me per-
mitir lhes contar uma experiência pessoal.
H á alguns anos, por questões de trabalho, fiz uma viagem a Paris,
que, como todos sabem, é uma das cidades mais bonitas do mundo.
A l i podemos caminhar pelas pontes do Sena, ver a Torre Eiffel, per-
correr a Catedral de Notre Dame, o bairro de Montmartre, o museu
do Louvre e muitas outras maravilhas. Mas meu desejo era outro: que-
ria visitar o cemitério de Père Lachaise.
Para quem n ã o o conhece, digo que é um lugar muito movimen-
tado, aonde gente de todos os lugares vai para prestar homenagem a
alguns "mortos ilustres", como Chopin, Edith Piaf ou J i m Morrison,
só para citar alguns. E m meu caso, eu queria deixar uma flor no túmulo
de Oscar Wilde.
Alguém poderia perguntar o motivo desse desejo. B e m , eu devia
ter treze ou catorze anos quando l i 0 retrato de Dorian Gray, e depois des-
sa leitura nunca mais v i o amor como antes.
Vocês sabem que Oscar Wilde foi um homem que sofreu muito
por amor. Foi homossexual em uma época em que a homossexualida-
de era considerada n ã o só um pecado pela religião e uma degeneração
pela medicina, mas t a m b é m um delito. Além de tudo, apaixonou-se
O AMOR É U M PONTO D E CHEGADA 53

por u m homem que n ã o lhe poupou nenhuma crueldade; no entanto,


Wilde escreveu coisas maravilhosas sobre o amor; parágrafos cheios de
ironia e inteligência.
Como disse, eu era apenas um adolescente quando l i 0 retrato de
Dorian Gray, e eis que, com o tempo, percebi que recordava u m ro-
mance diferente do que é. Por isso, quando conversando sobre ele com
alguns amigos percebi que estávamos falando de obras diferentes, eu
soube que tinha que o ler novamente. E assim fiz, j á adulto, e havia
muitas coisas que no primeiro momento eu n ã o havia registrado e que
eram fundamentais na trama.
Por exemplo, todo o forte conteúdo de erotismo homossexual que
h á nos primeiros capítulos eu n ã o havia sequer percebido. Isso é o que se
chama repressão; é um mecanismo de defesa do qual j á falamos em
encontros anteriores. E essa repressão teve a ver, sem dúvida, com a
idade na qual eu o havia lido.
A adolescência é uma etapa na qual a personalidade está se de-
finindo, mas, acima de tudo, o que está em processo de definição é a
identidade sexual de um sujeito. Por isso, n ã o me pareceu estranho
que em um momento evolutivo tão crítico eu tenha preferido n ã o ver
certas coisas. Talvez porque tenham me assustado, n ã o sei. Nesse tem-
po, eu ainda n ã o fazia terapia.
Poderia dizer, parafraseando Heráclito, que n i n g u é m lê duas ve-
zes o mesmo livro; seja porque a pessoa n ã o é a mesma ou porque os
livros, como os rios, mudam com o tempo.
Dolina diz que se olharmos as fotos velhas depois de muitos anos,
vamos notar que mudaram. Que o sorriso daquela mulher talvez n ã o
seja tão belo como era antes, ou que o abraço daquele amigo j á mostra
o germe da futura traição, que n ã o estava ali quando batemos a foto.
E u gosto dessa ideia poética.
Mas, voltando ao livro de Wilde, no começo h á uma conversa en-
tre Dorian e lorde H e n r y Watton — um ser irónico, inteligente, mui-
to sedutor, mas u m pouco malvado, que, obviamente, é o alter ego do
autor. Ambos estão falando do impacto que lhes causou terem se co-
nhecido, e Dorian diz: "Isso que acontece comigo certamente deve ser
o verdadeiro amor", e lorde H e n r y olha para ele e responde: "Bem,
t a m b é m poderia se tratar simplesmente de um capricho". Dorian per-
54 ENCONTROS

gunta qual é a diferença entre o amor e o capricho. "Bem", responde


lorde Henry, "o capricho costuma durar um pouco mais"; e Dorian
acrescenta: "Tomara, então, que o nosso seja um capricho".
Maravilhoso, n ã o acham?
Mas a questão é que, com vontade de visitar o túmulo de Wilde,
pedi u m mapa e caminhei até ele. E um túmulo enorme, com uma es-
cultura que parece um m a s c a r ã o de proa; mas algo mais chamou mi-
nha atenção. Estava todo pintado com pequenas manchas de diversas
cores: rosa, vermelho, azul, e n ã o entendi o que era aquilo até que me
aproximei e olhei com atenção. Então, compreendi que eram beijos.
As pessoas que o visitam, em vez de flores, passam batom e deixam um
beijo no túmulo. Nada mal para alguém que viveu o amor com tanta
intensidade.
E u me sentei em frente a seu túmulo alguns segundos, depois me
levantei, deixei minha flor, pousei minha m ã o e lhe agradeci em silên-
cio por tantos momentos de prazer.
Disseram-me que a família de Wilde, para evitar isso, cercou seu
túmulo, a fim de que as pessoas n ã o o possam tocar. Se for verdade,
n ã o duvido que o amigo Oscar tenha se incomodado bastante com
essa decisão.

A pai x ão n ão é mais que um transtorno da


pe rc e pç ão (ou Pai xão n ão é o mesmo que amor)

Mas, deixando de lado minhas lembranças, gostaria de retomar


algo que foi abordado superficialmente no capítulo anterior, que apa-
receu só como uma visita fugaz: o conceito de "paixão", ideia que vai
nos servir como início deste percurso. E a primeira coisa a dizer é que
paixão n ã o é a mesma coisa que amor.
Certa vez, uma paciente me disse que queria me fazer uma per-
gunta, mas que tinha certa vergonha. E u perguntei por que, e ela res-
pondeu que era porque se tratava de uma pergunta estúpida. E u disse,
então, que se para ela era importante, independentemente de qual fos-
se o conteúdo dessa pergunta, seria bom que a formulasse. E l a fez uma
O AMOR É U M PONTO D E CHEGADA 55

pausa, como se tomasse ar ou coragem, e disse: "Você acredita em


amor à primeira vista?".
N ã o respondi, evidentemente, porque pouco importa minha opi-
nião a respeito, e indaguei por que o tema lhe interessava tanto. E l a
me contou que fazia alguns dias haviam lhe apresentado alguém, que
o havia visto três vezes e que, embora sua inteligência lhe dissesse
que n ã o podia ser, ela sentia que estava apaixonada.
M i n h a paciente andara fazendo uma espécie de sondagem sobre
esse assunto de amor à primeira vista entre seus amigos, e me disse
que, ao que parecia, as opiniões estavam divididas.
E u n ã o disse a ela, mas minha impressão é que amor à primeira
vista existe... mas cinco anos depois. Como pode ser?
Vou ilustrar com um exemplo.
Suponhamos que um homem está tomando algo em um bar e
em dado momento entra uma mulher que o abala por sua beleza. Ele
a olha enquanto ela se senta a uma mesa, começa a pensar em como
se aproximar, fica nervoso, até que por fim se levanta e fala com ela.
Apresenta-se, ela está sozinha, c o m e ç a m a conversar, depois de um
tempo trocam telefones, m a n t ê m contato, c o m e ç a m a sair e surge
um relacionamento. Pois bem, se esse relacionamento perdurar, den-
tro de cinco anos ele vai dizer que se apaixonou por ela no mesmo
instante em que a viu entrar pela primeira vez. E é verdade.
Mas suponhamos que essa mulher que tanto o impressionou,
quando ele se aproxima, diga que está esperando seu marido, que é
faixa preta de tae kwon do e que, se o vir falando com ela, n ã o vai hesitar
em lhe dar uma surra terrível.
E óbvio que, se esse homem der algum valor a sua integridade
física, vai se afastar dessa mesa o mais rápido que puder, e o mais pro-
vável é que dentro de cinco anos nem se lembre dessa mulher que,
ao entrar naquele bar, lhe causou exatamente a mesma coisa que no
exemplo anterior.
C o m isso quero dizer que o amor é um sentimento cujo início
se reconhece olhando para trás e iluminando o passado com a luz do
presente. E o que chamamos de ressignificação. De onde poderíamos con-
cluir que o amor n ã o é um ponto de partida, e sim um ponto de chegada;
um sentimento que se constrói com o tempo.
56 ENCONTROS

Todo amor tem um c o me ç o


(ou Cada coisa em seu lugar)

E em que ponto desse trajeto se situa a paixão? No início. Isso


quer dizer que podemos pensar em paixão como o primeiro degrau na
construção de u m amor. E quais são suas características?
E m primeiro lugar, a paixão é u m gerador de ilusões. Muito bem,
o que é uma ilusão?
U m a ilusão é u m transtorno da percepção. Mais exatamente, é
a captação deformada de um objeto. Quando, por exemplo, na escu-
ridão da noite, um mancebo no qual deixamos um casaco nos gera
a ideia de que h á uma pessoa ali, ocorre uma ilusão. H á u m objeto,
nesse caso o mancebo, mas nossa percepção capta algo diferente: um
homem. E isso n ã o deve ser confundido com alucinação, visto que a
alucinação é uma percepção sem objeto. Nesse caso, veríamos um ho-
mem onde n ã o houvesse nada. N a ilusão é necessário que haja um
objeto: nosso mancebo, um abajur, qualquer coisa. N a alucinação, po-
rém, n ã o h á nenhum. Os dois geram transtornos na percepção, mas
são fenómenos diferentes.
Certamente, muitos estarão se perguntando o que isso tem a ver
com a paixão.
Bem, é pouco provável que um apaixonado confunda um mance-
bo com uma pessoa, mas pode ser que perceba o objeto de seu amor
de modo diferente do que é, que encontre nele virtudes que na reali-
dade n ã o tem.
Pensem nos amores de verão. U m a amiga volta das férias e lhes
conta que conheceu alguém. U m a pessoa incrível, um homem mara-
vilhoso, gentil, com estilo, delicado e com todas as virtudes que quei-
ram acrescentar. Pois bem, pode acontecer que, umas semanas depois,
quando ela o apresentar, vocês se olhem em silêncio e se perguntem:
"Esse aí era o príncipe encantado?".
Sim, era esse, e embora para vocês nem sequer chegue a ser inte-
ressante, para ela é perfeito. Por enquanto.
E por que se d á essa magnificação do outro?
Para explicar isso, temos que pensar no amor como em uma
quantidade, algo mensurável. Tecnicamente, n ã o o chamamos de amor,
e sim de libido. Mas pensemos assim e imaginemos o seguinte exemplo:
O AMOR É UM PONTO D E CHEGADA 57

temos uma jarra, u m copo e a água. A j a r r a é o amante, o copo é o


amado e a água é o amor.
E evidente que, quanto mais água pusermos no copo, menos ha-
verá na jarra. O u seja, quanto mais amor se coloca sobre a figura do
amado, menos afeto resta para o amante, e isso gera duas coisas. A
primeira, u m engrandecimento do ser amado, que tem todo o afeto
posto nele, e a segunda, uma diminuição do apaixonado, que vai se es-
vaziando de libido. Por isso vê o amado brilhante, lindo, sente-o indis-
pensável para sua vida, ao passo que ele se sente pequeno e vulnerável.
E m u m de seus escritos mais famosos, Freud compara a paixão
com a hipnose e diz que o apaixonado está diante do amado como o
hipnotizado diante do hipnotizador. O u seja, assim como o hipnotiza-
do, quem ama perdeu sua vontade e acata a do outro; e nem sequer
tem consciência do que deseja, porque o único desejo que lhe importa
realizar é o do hipnotizador.
Nesse sentido - diz Freud - , a paixão se parece à hipnose; tanto uma
como a outra deixam o sujeito em um estado de indefensabilidade. Como
diz um amigo poeta: "Sempre está em perigo o passageiro do amor".
Felizmente, no tempo que demanda a construção de u m relacio-
namento, a paixão é algo que passa, porque, senão, o sujeito ficaria
eternamente com u m déficit de amor por si mesmo; poderíamos dizer,
sem amor-próprio.
Pensem quantas vezes j á disseram a alguém que "deveria" se amar
um pouco mais. Muitas, n ã o é mesmo? E o que na realidade estão lhe
dizendo é que n ã o se esvazie de libido, que n ã o ponha todo o afeto no
outro, porque, se fizer isso, vai dar problema.
A verdade é que, apesar do que digo, quem está apaixonado vive
esse momento como se fosse algo maravilhoso. E n t ã o , por que tratá-
-lo como se fosse u m problema? Simplesmente porque estamos denun-
ciando a falácia do encontro amoroso, a impossibilidade de que exista
outro alguém tão maravilhoso que nos complete, alguém que detenha
nosso desejo para sempre e que possa saciar nossos anseios de eterni-
dade. Porque essa é a ilusão gerada pela paixão, mas como essa pessoa
n ã o existe e n i n g u é m pode se manter sempre nesse lugar, em u m tem-
po mais ou menos longo essa etapa acaba e d á lugar ao segundo mo-
58 ENCONTROS

mento na construção do amor; um momento que eu gosto de chamar


de: "desilusão".

De prí n c i pe a mendigo
(ou O perigo de beijar um sapo)

Certamente, o termo desilusão pode gerar certa impressão negati-


va, mas n ã o é essa a intenção deste livro. Só o utilizo seguindo a mes-
ma lógica de raciocínio que vimos compartilhando, e o chamo assim
porque é o momento no qual acaba esse processo ilusório de ver o
outro como alguém maravilhoso capaz de nos completar; mas, na rea-
lidade, o que acontece é que surge uma ilusão nova, mas de sinal con-
trário: deixamos de vê-lo melhor do que era para vê-lo pior do que é.
E como se d á a passagem entre uma etapa e outra?
O tempo passa e o apaixonado vê que a pessoa que ama tem coi-
sas que n ã o lhe agradam, que n ã o é o ser perfeito que pensou em um
primeiro momento, que n ã o pode atender a todos os seus anseios e se
desilude. E , nessa desilusão, zangado porque o outro mostrou ser nada
mais que u m ser humano, julga-o com crueldade, e, assim como an-
tes multiplicava suas virtudes, agora multiplica seus defeitos; se bem
que melhor seria dizer: aquilo que ele acredita serem seus defeitos.
D o ponto de vista emocional, a primeira coisa que costuma apa-
recer é um sentimento de raiva, o desejo de terminar a relação que
acabou n ã o sendo o que se esperava, e reaparece a sensação de vazio
e incompletude.
Isto posto, daria a impressão de que o momento de paixão é me-
lhor que o de desilusão. E pode ser que assim seja, mas ambos são
igualmente ilusórios. E a verdade é que as duas etapas implicam um
perigo latente.

Pai xão e de si l usão


(ou Dois momentos de cuidado)

O risco da paixão é que o casal resolva viver junto nessa fase da


relação, e isso n ã o é um perigo pequeno.
O AMOR É U M PONTO D E CHEGADA 59

H á algum tempo, uma paciente comentou comigo que estava


pensando em ir morar com o namorado, e como me dei conta de que
fazia muito pouco que me falava dele, perguntei quanto tempo fazia
que estavam juntos. "Dois meses e doze dias", respondeu ela, e acen-
tuou os doze dias. E era de se esperar que o fizesse, visto que as relações
novas n ã o podem ofertar momentos compartilhados, porque ainda ca-
recem de história. Então, cada segundo conta. D e modo que dois me-
ses e doze dias n ã o era o mesmo que apenas dois meses. E , depois de
me dizer isso, soltou a frase esperada e fatal, embora inevitável: "Mas
parece que nos conhecemos a vida toda".
Mas, se essa paciente está entusiasmada, desejosa de concretizar
essa convivência, por que pensar que essa decisão é potencialmente
perigosa?
Porque a desilusão vai chegar cedo ou tarde, e vai encontrá-los
morando juntos. E n t ã o , nas primeiras discussões, v ã o se ver diante da
ridícula circunstância de ter que dizer a alguém que conhecem h á se-
tenta e dois dias: "Você n ã o é mais como antes". Como antes quando?
Se h á três meses nem sequer se conheciam!
Contudo, dissemos que a etapa de desilusão t a m b é m pode acarre-
tar um perigo latente. E qual é esse perigo? Terminar a relação só por-
que o outro acabou n ã o sendo perfeito. Consideremos que, se alguém
fosse brigar cada vez que descobrisse que seu parceiro tem alguma coi-
sa que n ã o lhe agrada, todo mundo estaria sozinho. E n ã o é que a
solidão seja ruim; ao contrário, às vezes é escolhida, desejada e, então,
é o melhor para esse sujeito nesse momento. Mas, quando é o efeito da
intolerância às diferenças, o negócio se torna patológico.

Nos casos em que a relação resiste aos embates da desilusão, abre-


-se a possibilidade de passar para uma terceira etapa que agora sim
poderíamos chamar de amor; uma etapa na qual vemos no outro mui-
to do que nos apaixonava, mas n ã o tudo, e t a m b é m algumas das coisas
que n ã o nos agradavam, mas n ã o todas. E se nessa captação do outro
com virtudes e defeitos surgir a sensação de que estamos melhor com
essa pessoa que sem ela, começa a ser gerada uma relação de outra or-
dem de maturidade e sustentabilidade. Porque surge o desejo de estar
juntos, j á n ã o com base em u m ideal impossível, e sim no reconheci-
60 ENCONTROS

mento das diferenças subjetivas. Porque isso é o amor saudável. N ã o


precisar do outro, e sim desejá-lo. Saber que sem essa pessoa pode-
ríamos viver do mesmo jeito, mas que, ainda assim, escolhemos viver
com ela.
Estávamos falando da capacidade de escolha; pois bem, estar ou
n ã o com alguém tem sentido desde que seja uma escolha movida pelo
desejo, e n ã o uma imposição da necessidade.

O amor incondicional
(ou O início de uma t ragé di a)

Digamos, então, que para chegar ao amor sempre se deve lutar


contra a desilusão, mesmo que seja difícil. Mas isso n ã o implica que
seja a qualquer preço.
Para esclarecer melhor por que digo isso, vamos voltar a essa se-
gunda etapa. Dissemos que, para superá-la, uma pessoa tem que acei-
tar que o outro tem algumas coisas que n ã o lhe agradam e que n ã o a
fazem feliz. B e m , é aí que aparece o negócio do custo.
Existe uma palavra que costuma acompanhar a ideia do amor e
que tem status de nobre e desinteressada, mas n ã o é. E a palavra incon-
dicional.
A maioria das pessoas costuma ver nisso algo maravilhoso. E
diz assim: " E u te amo incondicionalmente", ou "preciso que você
seja incondicional comigo". E a verdade é que a incondicionalidade
é uma das coisas que costumamos encontrar no núcleo de uma rela-
ção doentia.
Porque a palavra incondicional quer dizer, nem mais nem menos,
"sem condições". Então, amar alguém incondicionalmente implica
amá-lo sem impor nenhuma condição. O u seja: amá-lo mesmo que
nos bata, mesmo que nos traia, mesmo que por estar com essa pessoa
n ã o possamos ver nossos filhos. E eu me pergunto quem medianamen-
te saudável pode achar isso maravilhoso.
Então, é verdade que a possibilidade de estar com alguém depende
de aceitar algumas dessas coisas que o outro tem e que n ã o nos agra-
O AMOR É U M PONTO D E CHEGADA 61

dam; mas a condição para aceitá-las deveria ser que pelo menos n ã o
nos machuquem.
Vou dar um exemplo extremo. Se aquilo de que uma mulher n ã o
gosta em seu companheiro é que de vez em quando ele bebe demais, e
quando chega em casa faz uma cena de ciúmes e depois bate nela, acham
que ela deveria se esforçar para aceitar isso que a incomoda? Que de-
veria ficar ao lado dele incondicionalmente?
Certamente c o n c o r d a r ã o comigo que n ã o . O que implica que
nem todas as relações superam a etapa da desilusão. Isso é uma obvie-
dade, claro; do contrário, todo o mundo se casaria com seu primeiro
amor. E n ã o costuma acontecer dessa maneira.
Mas vou me antecipar a uma objeção que poderia surgir a modo
de dissensão: muita gente poderia dizer que, se alguém trata mal assim
uma pessoa e a engana, bate ou lhe falta com o respeito, é porque na
realidade n ã o a ama, de modo que j á n ã o estaríamos falando de amor.
Esse argumento se baseia em uma idealização desmesurada do
amor; na crença de que o amor é sempre algo bom e maravilhoso. Mas
o amor, dissemos no capítulo anterior, n ã o é mais que um sentimento,
e, como tal, é experimentado e vivido por uma pessoa que pode ser
mais ou menos saudável psiquicamente. E isso é fundamental, porque
as pessoas saudáveis a m a r ã o de u m modo saudável, e as pessoas doen-
tes a m a r ã o de um modo doentio.
E m meu livro Palavras cruzadas, relato o caso de Luciana, uma pa-
ciente jovem que chegou à terapia com um grande padecimento. Seu
namorado batia nela e ela dizia que merecia porque era m á .
Trabalhamos muito sobre esse tema, questionamos de onde vinha
essa crença acerca de sua maldade, falamos dos maus-tratos que havia
sofrido ao longo de sua história, e, em um momento da terapia, che-
gou à conclusão de que o melhor para ela era deixá-lo. Mas ficava an-
gustiada com a simples ideia, e me dizia chorando: "Mas eu o amo". E
eu dizia: " E o que isso tem a ver?".
As vezes, para poder chegar a uma relação saudável na qual se
sinta bem, uma pessoa tem que deixar no caminho a tentação de fi-
car em outras que machucam. Coisa que nem sempre é fácil. Porque
n ã o existem escolhas casuais, e então, essa pessoa que me agride e me
humilha está em minha vida por alguma razão. H á um p o r q u ê nessa
62 ENCONTROS

escolha, e esse motivo oculto, que leva alguém a escolher aquele que a
machuca, é o que tentamos desvelar na terapia com psicanálise. E aqui
a frase de Nasio que citamos no fim do primeiro capítulo ganha um
real sentido: "Nos assuntos do coração [...] n ã o escolhemos mais que
o imposto e n ã o queremos mais que o inevitável".
Quando falamos do inconsciente estrutural, adiantamos algo so-
bre isso, mas para aprofundar mais teríamos que introduzir o conceito
de pulsão de morte, coisa que faremos mais adiante. Peço a vocês que
conservem essa ideia até então.
Além de tudo, é a maneira na qual convém ler este livro, que, por
ter sua origem nas ideias da psicanálise, n ã o escapa — ou melhor, gosta
- de ir fechando as ideias com leituras sucessivas fornecidas pelos ele-
mentos dados por novos conceitos; sabendo que tudo que julgávamos
j á compreender pode mudar à luz do que veremos mais adiante.
Ressignificar. N ã o esqueçam essa palavra, porque alude a uma
das ferramentas mais importantes da psicanálise.
Ressignificar.
Interlúdio I

A HISTERIA

A quem amo, a ele ou a ela? O que


quer dizer que eu seja mulher? Tais as per-
guntas básicas da histeria.

OSCAR MASOTTA

E m u m daqueles encontros, antes de começar com o tema pro-


posto, uma mulher que havia participado todos os sábados comentou
que notara que sempre havia muito mais mulheres presentes que ho-
mens, e me perguntou se isso tinha a ver com o fato de os homens n ã o
se preocuparem de tratar a problemática emocional em geral, e de re-
lacionamento em particular.
Seu comentário era veraz, eu j á havia reparado na maior presen-
ça feminina; concordei com ela que a possibilidade de se perguntar
sobre os vínculos emocionais e mostrar-se sensível aos temas afetivos
requeria certo grau de feminilização. Mas esclareci que, felizmente, os
homens j á a vinham adquirindo nestes últimos tempos.
E é verdade.
Quando comecei minha prática clínica, das pessoas que me pro-
curavam 80% eram mulheres. Hoje, p o r é m , eu diria que a porcenta-
gem de homens que fazem terapia n ã o é menor que a de mulheres.
O tempo faz seu trabalho na cultura, e hoje isso de que homem
n ã o chora ficou como um mito do passado. Choram, e como! E isso
é muito bom. Por que n ã o haveriam de chorar se t a m b é m sofrem, se
64 ENCONTROS

t a m b é m se apaixonam, se t a m b é m são abandonados? E , felizmente,


essa maior sensibilização do homem o aproximou desses temas.
E provável que uma maior porcentagem de mulheres fosse à q u e -
les encontros; de fato, isso acontece quando dou palestras em qual-
quer parte do país, mas n ã o creio que seja porque os homens n ã o se
importam com os temas afetivos em geral e muito menos com o tema
relacionamento. Para ser sincero, quase n ã o falam de outra coisa. E
a maioria das vezes que v i um homem chorar, tanto no consultório
como fora dele, foi por questões de amor.
E possível, sim, que muitos sintam pudor de se mostrar vulnerá-
veis, mas eu garanto que os homens se interessam pelo tema, e muito;
embora às vezes tenham uma atitude mais calada, menos armada ou
até mais resignada com relação aos problemas de relacionamento. As
mulheres, p o r é m , costumam se fazer escutar mais, reclamam quando
n ã o t ê m o que querem e insistem naquilo que acham que desejam,
porque, como j á dissemos, o desejo é sempre desejo de outra coisa. Mas,
a bem da verdade, para ser exato, mais que de homens e mulheres, de-
víamos falar de estruturas psíquicas, da diferença que existe entre a
histeria e a neurose obsessiva.

Todas as mulheres s ão h i st é ri c as
e os homens obsessivos?

N ã o . H á homens histéricos e mulheres obsessivas, embora clinica-


mente costumemos falar " a histérica" e "o obsessivo".
Esclareço desde j á que n ã o foi a intenção daqueles encontros,
nem é a deste livro, transmitir conceitos de psicopatologia, mas, como
foram muitas as perguntas sobre esse tema, deduzo que gere algum
interesse e, apesar do esclarecimento feito, podemos falar u m pouco
sobre isso. E a primeira coisa que eu diria é que ambas as estruturas se
posicionam de modo diferente diante do desejo.
A histeria o busca, quase diria que o persegue. Por isso, e porque
o desejo aparece onde falta algo, a histérica p õ e o foco nisso que falta e
vê sempre o que falta satisfazer.
Como funciona isso?
A HISTERIA 65

U m paciente me contou que, no dia em que chegou contente a


sua casa e disse a sua esposa que j á havia comprado as passagens para
a viagem à Europa que ela tanto desejava, a mulher respondeu: " B o m ,
legal... mas n ã o tenho casaco para levar".
E n t ã o , ele, com raiva e u m pouco angustiado, se perguntava se ela
sempre ia querer algo mais.
E a resposta é que sim, que sempre vai querer algo mais. Mas por
quê? J á dissemos; porque o desejo se desloca o tempo todo de um obje-
to a outro, de uma situação a outra, portanto, nunca vai se satisfazer. E
isso é o que a histeria denuncia: a impossibilidade de anular o desejo.
O obsessivo, p o r é m , tenta encobrir a falta para que o desejo n ã o
apareça. Falta-lhe alguma coisa? Bem, o que se h á de fazer? Talvez
seja porque n ã o merece, é seu destino.
Mas isso n ã o implica que o desejo n ã o lhe importe. Claro que
importa. Por isso o tema relacionamento é conflituoso para todos, in-
dependentemente de géneros ou de escolhas. Homens, mulheres, he-
terossexuais, homossexuais, histéricas ou obsessivos, todos temos que
lidar com nossa vivência com o relacionamento e o desejo.
Mas o obsessivo se posiciona de uma maneira diferente à da his-
térica. Joga para a frente, posterga. E isso o que tanto incomoda as
mulheres, n ã o é? Que o homem diga: " B o m , é melhor esperarmos até
acabar de pagar a casa". E quando o financiamento estiver pago,
t e r ã o que esperar que o filho termine a faculdade, embora na atuali-
dade o garoto tenha apenas três anos.

Repito que n ã o é minha intenção neste livro fazer uma aborda-


gem da doença psíquica, mas apenas vivenciar o prazer de pensar so-
bre algumas questões que dizem respeito ao amor e ao desejo. Mas,
como esse caminho nos leva inevitavelmente ao surgimento da histeria,
mesmo que n ã o seja esse o foro mais indicado para abordar questões
clínicas, digamos pelo menos alguma coisa, aproximando-nos apenas
das bordas dessas problemáticas. E para nos aproximarmos, vamos
nos fazer uma pergunta que parece óbvia, mas n ã o é: o que é histeria?
Porque a popularização dos termos técnicos e clínicos da psicaná-
lise deu origem a muitos enganos.
Digamos, pois, que se trata de uma doença muito antiga. Pode
ser reconhecida j á no conteúdo de papiros de milhares de anos. E eu
66 ENCONTROS

acrescentaria, para os colegas que t ê m a generosidade de ler este livro,


que se trata t a m b é m da tentativa de responder a uma pergunta.
A histeria foi uma doença muito maltratada e seu estudo está
cheio de erros.
Tomando como ponto de partida a noção grega (que permaneceu
inalterada até o século X V I I ) , a histeria era considerada uma doença
caracterizada pela presença de fortes ataques acompanhados de alguns
sintomas físicos.
Qual era a origem dessa doença?
Naquele momento, pensava-se em uma desordem uterina, daí
seu nome, visto que hystera, em grego, significa matriz, útero. Portan-
to, sendo uma doença causada pelo útero, tratava-se de um mal ex-
clusivamente feminino. Mulheres cujo útero influenciava de um modo
negativo seu sistema nervoso. U m útero hiperexcitado que transmitia
uma condição m ó r b i d a à doente. Por isso, muitas vezes, a gravidez era
considerada como u m tratamento possível da histeria. A gravidez aco-
modaria o útero e a poderia curar.
U m médico francês chamado Charles Lepois foi o primeiro a
considerá-la uma doença direta do sistema nervoso. Algo muito pare-
cido à epilepsia, e com essa concepção ampliou muito a maneira de
considerá-la, porque, se a separarmos do útero, a doença j á pode ser
t a m b é m masculina.
Sem dúvida, a histeria criava muitos problemas aos médicos da
época, por isso surgiam tantas tentativas de explicá-la.
Thomas Willis, um importante médico inglês que foi professor na
Universidade de Oxford, compara-a e a relaciona com a hipocondria
e diz que se trata de uma desordem cerebral, uma doença mental com
sintomas físicos. Thomas Sydenham, conhecido como o Hipócrates
inglês, endossa essa postura e diz que se trata da mesma doença, que
quando ocorre em mulheres se chama histeria, e quando se d á nos ho-
mens é chamada hipocondria.
Essa c o m p a r a ç ã o pode ser feita porque o foco está n ã o nas crises
(desmaios ou convulsões), e sim nos sintomas físicos (dores de cabeça,
taquicardia, perturbações digestivas, sensações de frio ou calor). O u
seja, a ênfase está em sintomas menores, mas mais permanentes, que a
Grande Crise.
A HISTERIA 67

Mas essa nova maneira de pensar a histeria, ao mesmo tempo que


representa u m passo à frente, causa um retrocesso à velha noção de
considerá-la como uma doença feminina caracterizada por três coisas:

a) crise;
b) sintomas físicos;
c) perturbações do caráter.

Além de tudo, esse médico d á uma definição que será funesta


para as doentes, porque diz que a histeria imita qualquer doença e que a
histeria engana. U m importante médico de sobrenome Morel toma isso
para dizer que a histérica é uma mentirosa que engana intencional-
mente o médico, e praticamente diz que n ã o se deve dar atenção a ela.
Mas dizer que a histeria engana n ã o é a mesma coisa que dizer
que a histérica engana. E a doença que engana, n ã o a doente. E en-
gana a quem? A o médico. O que Sydenham quis dizer é que é um
quadro que, por sua complexidade, confunde o profissional, n ã o que a
histérica é uma mentirosa.
Contudo, essa ideia fez escola e, ainda hoje, muitas pessoas, dian-
te de um quadro de sintomatologia histérica, dizem: "Deixe-a, ela n ã o
tem nada... está fingindo".
Os psicanalistas foram os primeiros a resistir a essa conduta, e de-
pois somaram-se os psicólogos em geral. E hoje, felizmente, t a m b é m
os médicos, visto que compreendemos a necessidade de trabalhar j u n -
tos em prol do bem-estar dos pacientes. Mas, até pouco tempo, n ã o
era assim.
Lembro que estava fazendo um estágio para uma matéria da fa-
culdade em um serviço de psicopatologia de um hospital muito impor-
tante e, certa m a n h ã , um neurologista apareceu com a ficha de uma
paciente; entregou-me a ficha e disse: "Vou encaminhá-la a vocês por-
que ela n ã o tem nada".
O u seja, para esse médico, se o que afetava a paciente n ã o apa-
recia em uma tomografia, isso implicava que ela n ã o tinha nada. Que
estava mentindo, poderíamos dizer, seguindo o raciocínio de Morel.
Contudo, essa mulher que para esse médico n ã o tinha nada sofria de
um quadro de angústia extrema e n ã o conseguia trabalhar nem cuidar
de seus filhos.
68 ENCONTROS

Sei que tudo isso que estamos falando vai além da proposta deste
livro, mas eu gostaria de acrescentar algo mais, assumindo que é uma
temática apaixonante para mim. De fato, a psicanálise nasceu do estudo
da histeria. Por isso, permitam-me prosseguir só mais alguns passos.
Jean-Pierre Falret, outro importante psiquiatra marselhês, afirmava
que as mulheres histéricas eram fantásticas e caprichosas: que "passam
facilmente do entusiasmo à depressão, t ê m uma grande disposição à
contradição, à resistência, u m espírito de duplicidade e de mentira que
as leva a exagerar tudo de forma teatral".
Isso, como podem imaginar, fez que os médicos n ã o mais se ocu-
passem com as histéricas e as tomassem como simples simuladoras e
mentirosas. Mas, felizmente para elas, chegariam Charcot, Breuer e
Freud para lhes dar um estatuto diferente. Principalmente Freud, cla-
ro, que postulou que a histeria n ã o era uma doença neurológica, e sim
psíquica, que introduziu a noção de que as histéricas sofriam de remi-
niscências, que a doença tinha um mecanismo psíquico que a justifi-
cava, e estabeleceu como condição de seu surgimento a existência de
um trauma de origem infantil primeiro e de uma fantasia de conteúdo
sexual depois.
Mas como isso funciona?

An gústi a e sexualidade

Vamos aproveitar os conceitos de inconsciente e repressão que


rascunhamos em capítulos anteriores. Para responder a essa pergunta,
vou me apoiar em uma cena de um filme que certamente a maioria
deve recordar. E a quem n ã o o viu, recomendo fortemente: 0 príncipe
das marés, protagonizado por Nick Noite (Tom Wingo) e Barbra Streisand
(Susan Lowenstein), que t a m b é m o dirigiu.
Nesse filme, ela interpreta o papel de uma terapeuta que tem uma
paciente que está internada em estado muito grave por uma tentativa
de suicídio. E a fim de ajudá-la preenchendo as lacunas de sua m e m ó -
ria, decide manter algumas conversas com o i r m ã o gémeo dela para
que lhe fale da infância de sua paciente e, portanto, dele mesmo.
A HISTERIA 69

Como vemos, n ã o estamos falando de uma psicanalista, visto que


dissemos que a realidade que interessa ao psicanalista é a psíquica de
seu paciente; ele n ã o tem interesse nas lembranças ou associações que
outros possam trazer de fora. Mas, independentemente do fato de Susan
Lowenstein trabalhar de um modo tecnicamente diferente, o complica-
do é que fará tudo errado, visto que, em suas conversas com T o m , irá
aos poucos habilitando um lugar terapêutico t a m b é m para ele naquele
que era o de sua irmã, e acabarão tendo um relacionamento amoroso.
Isso que estou dizendo é apenas um comentário, dado que esta-
mos falando de uma ficção que pode, portanto, permitir-se certas l i -
cenças artísticas. D e fato, o filme é digno de ser visto pelas atuações e
pela força de sua história.
Mas a cena que nos interessa é a seguinte:
Lowenstein havia perguntado a T o m sobre uma palavra que sua
i r m ã pronunciava em seu delírio e que para ela n ã o tem nenhum sen-
tido: Callenwolde. Ele responde que n ã o sabe do que ela está falando.
Mas, umas sessões depois, diz que quer lhe contar uma coisa. Faz um
momento de silêncio enquanto recorda. Sua expressão vai mudando do
humor quase m a n í a c o que o caracteriza a uma profunda tristeza, e ele
conta à terapeuta algo que aconteceu com eles quando eram crianças.
U m a noite, quando estava com sua i r m ã e sua m ã e , chegaram
três desconhecidos a sua casa. Irromperam de um modo violento e um
deles levou sua i r m ã para u m quarto enquanto o outro fazia o mesmo
com sua mãe. E l e escutou e soube que as estavam violentando.
A terapeuta lhe pergunta se ele n ã o fez nada, se n ã o correu para
buscar ajuda, se n ã o interferiu de alguma forma, e ele responde que
não. "Por quê?", pergunta ela. E l e responde que n ã o sabe.
E l a nota que a tristeza se transforma em angústia e lhe pergunta
onde estava ele no momento em que violentavam sua i r m ã e sua m ã e ,
e T o m responde que n ã o consegue lembrar. Então, Lowenstein diz que
ele contou que três homens haviam invadido sua casa; um estava com
sua irmã, outro com sua m ã e . Onde estava o terceiro?
Faz-se um profundo silêncio. A l e m b r a n ç a luta para abrir cami-
nho e a repressão para mantê-la inconsciente. Nesse instante, uma in-
tervenção da terapeuta gira a chave: "Pode falar... você n ã o fez nada
de errado".
70 ENCONTROS

Depois de alguns instantes, T o m confessa que naquele momento


o terceiro homem o estava violentando. Que ainda recorda suas pa-
lavras: "Gosto de carne fresca". Depois, T o m olha para ela e diz, es-
pantado: " E u n ã o imaginava que algo assim podia acontecer com um
menino".
Nesse momento ouviram-se alguns tiros. E r a o i r m ã o mais velho
de T o m que havia voltado e matara dois dos intrusos com seu rifle. O
terceiro foi apunhalado nas costas pela m ã e de T o m , com uma faca.
Depois disso, todos juntos limparam o sangue do chão e das paredes,
e, enquanto faziam isso, a m ã e dizia todo o tempo: "Isso nunca acon-
teceu... isso nunca aconteceu". Depois, fez que todos prometessem j a -
mais falar do assunto, com ninguém, nem mesmo com o pai, porque
senão ela nunca mais seria a m ã e deles.
De modo que, quando o pai voltou do trabalho, o jantar estava
pronto e todos comeram como se nada houvesse acontecido. Esses ho-
mens haviam fugido de uma prisão chamada Callenwolde.
Depois de narrar essa cena impressionante, T o m faz uma prolon-
gada pausa e diz: "Acho que o silêncio doeu mais que o estupro".
Essa é a cena que me interessa resgatar. Primeiro, para mostrar o
papel da repressão, como esse mecanismo de defesa faz que um fato
traumático, imenso, difícil de suportar para a psique, fique esquecido]
mas seria mais preciso dizer: passe a fazer parte dos conteúdos incons-
cientes. A diretora do filme p õ e na voz da m ã e o que costuma provir
de uma voz interior e inconsciente: "Isso nunca aconteceu".
Segundo, para exemplificar como isso que foi reprimido insiste
em ganhar um acesso à consciência de alguma forma. Mesmo que
seja, como neste caso, de uma forma tão dramática que leva a pessoa a
uma tentativa de suicídio.
Terceiro, para retomar aquilo que dizíamos acerca de que as
lembranças reprimidas voltam disfarçadas. No filme, o disfarce é C a l -
lenwolde, essa palavra que a i r m ã de T o m repete sem saber o que
significa, e que depois ele recordara como o nome da prisão da qual
aqueles homens haviam fugido.
Quarto e principal, para mostrar como isso^ no inconsciente, tem
consequências e gera sintomas e dor no sujeito; e, por último, resgatar
a frase final de Tom: " . . . o silêncio doeu mais que o estupro", ou seja, a
falta de palavras é o que causa o dano maior. Porque a impossibilidade
A HISTERIA 71

de simbolizar, de dar um sentido ao que aconteceu é o que faz o sujeito


adoecer.
Mas o que tem isso a ver com a histeria e as obsessões?
Poderíamos tentar uma explicação que tem a ver com as primei-
ras formulações da psicanálise, mas que servirá para esclarecer um
pouco esse tema e será mais que suficiente para os limites fixados neste
livro.
Para isso, temos que saber que tudo que nos acontece na vida
gera na psique uma representação, e que esta tem uma quantidade
de energia que é a que lhe permite avançar para a consciência. Essa
energia é como a gasolina de um automóvel. E , assim como um carro
sem gasolina n ã o pode andar, da mesma maneira uma l e m b r a n ç a sem
energia fica esquecida.
Isso é o que a repressão faz: separa da l e m b r a n ç a essa energia
para impedir que recordemos os fatos dolorosos, e assim essas repre-
sentações vão parar no inconsciente. Pois bem, o que acontece com
essa energia que ficou livre?
H á várias possibilidades, cada uma das quais determina uma es-
trutura diferente.
Vamos voltar ao filme. Suponhamos que nesse momento em
que o garoto está sendo violentado, quando sua mente diz que isso
n ã o pode estar acontecendo ("Nunca imaginei que algo assim podia
acontecer com um menino"; "Isso nunca aconteceu"), a energia, sob
a forma da angústia gerada pela situação, seja projetada e posta, por
exemplo, no fato de que o quarto está escuro e as portas e janelas es-
tão fechadas. Essa projeção da angústia em algo externo é o que daria
lugar a uma fobia. Esse sujeito, depois, terá um inexplicável medo de
espaços fechados e terá que dormir com a porta aberta ou com algu-
ma luz acesa.
Se, p o r é m , a angústia fosse dirigida a alguma dor física, ou a um
desmaio, estaríamos no território da histeria, que por isso mesmo se
caracteriza pela forte manifestação do sintoma no corpo (dores de ca-
beça, contraturas etc.).
Se aquilo que recebesse essa energia n ã o fosse algo externo nem o
próprio corpo, e sim uma ideia substituta ("Isso aconteceu porque n ã o
trancamos a porta", por exemplo), estaríamos diante de uma estrutura
obsessiva, e esse sujeito talvez tivesse que checar dez vezes por dia se
72 ENCONTROS

a porta está bem fechada, e voltar para casa depois de ter caminhado
duas quadras para corroborar o que j á sabe: que efetivamente a porta
está trancada.
Enfim, de acordo com o modo como essa energia, essa angústia é
reutilizada — Freud diria "inicialmente" —, serão diferenciadas a histe-
ria, as fobias e as obsessões. E digo "inicialmente" porque a teoria vai
se modificando com o passar do tempo.
Mas, para concluir este interlúdio, n ã o podemos deixar de lado as
contribuições de Lacan, que as relacionará fortemente com o tema da
identificação e como cada uma delas se posiciona diante de seu p r ó -
prio desejo.
No entanto, como diz o ditado, luz demais n ã o ilumina, ofusca.
Só quis deixar claro que, para a psicanálise, histérica n ã o é essa mulher
que nos leva até seu quarto e, quando chega ali, diz: "Espere, n ã o sei
o que estou fazendo aqui", e sim algo muito mais difícil e doloroso.
Quarto encontro
o CIÚME

Se o ciúme é sinal de amor, é


como a febre no homem doente,
que é sinal de ter vida; mas vida
doente e maldisposta.

MIGUEL D E CERVANTES
74 ENCONTROS

A favor do amor?

Nos capítulos anteriores, falamos sobre essa espécie de "campa-


nha" extraordinária a favor do amor. E dizíamos que n ã o necessaria-
mente o amor é algo bom; dissemos que é um sentimento, um afeto, e
que, como tal, é algo que as pessoas sentem; que as pessoas saudáveis
amam de um modo saudável e as pessoas doentes de um modo doen-
tio. De modo que, quando alguém é amado por uma pessoa saudá-
vel, o amor pode ser algo maravilhoso, mas, quando é amado por um
doente, o amor pode chegar a limites realmente perigosos.
Todos j á ouvimos falar de gente que mata a namorada, ou o ma-
rido, porque eles deixaram de amar o assassino, ou porque ele com-
provou ou fantasiou alguma traição; e depois diz: "Sim, é verdade, eu
a matei, mas eu a amava".
Então, eu me pergunto, j á entrando na temática do amor e do
ciúme: qual é a relação entre ambos? Você acha que são duas coisas
indissociáveis e que necessariamente quem ama é ciumento?
H á n ã o muito tempo, em uma palestra, uma mulher me perguntou:
"Amamos porque temos ciúmes ou temos ciúmes porque amamos?".
E notem como a pergunta que ela faz j á supõe que h á algo in-
dissociável entre o amor e o ciúme. Seja que amamos porque temos
ciúmes ou que temos ciúmes porque amamos, n ã o importa qual é o
ovo e qual é a galinha, mas aparecem como afetos inseparáveis. Mas
a pergunta que se impõe é: o ciúme é inevitável quando alguém está
apaixonado?

Ci ú m e s, inveja e posse

Parece que a opinião geral se volta à resposta afirmativa diante


dessa pergunta e assegura que sempre existe um pouco de ciúme em
um relacionamento afetivo, que é uma demonstração de que o outro
se importa e que n ã o é possível n ã o desejar possuir a quem amamos.
Mas, para pensar com clareza sobre essa problemática, seria indispen-
sável começar discriminando algumas coisas que costumam se confun-
dir e colocar cada uma em seu lugar.
O CIÚME 75

É u m fato que o ciúme costuma ser confundido com a posse, e


t a m b é m com a inveja. Alguém nos fala de uma pessoa e nos diz que
é muito ciumenta, muito possessiva, porque tem muita inveja, e nes-
se enunciado j á cruzou três conceitos diferentes e os expressou como
se todos fossem o mesmo. E n ã o é verdade. E n t ã o , acho interessante
diferenciar cada u m deles, porque, se c o m e ç a r m o s a pensar apoia-
dos em conceitos erróneos, necessariamente chegaremos a conclusões
pouco confiáveis.
Vamos começar diferenciando a inveja do ciúme, e digamos que
a inveja é uma relação que faz referência ao vínculo que se estabelece
entre duas pessoas, no qual uma delas deseja ter o que a outra tem.
Mas qual é a característica primordial desse modo de vínculo? O fato
de que isso que o outro tem, para o invejoso, n ã o tem nenhum valor.
N ã o se trata de querê-lo pelo valor do objeto. N ã o , isso é o de menos.
Ele o quer só porque lhe incomoda que o outro o tenha, e podemos
observar o melhor exemplo disso no comportamento das crianças.
Levem duas guloseimas exatamente iguais a duas crianças; d ê e m
uma a cada uma e v ã o ver como é quase certeza de que uma das duas
vai reclamar e dizer que quer a da outra. "Mas são iguais!", você ten-
tará explicar, em vão. A criança responderá que n ã o importa, que quer
a da outra.
Essa é, então, uma relação entre duas pessoas na qual uma delas
n ã o quer que a outra tenha algo e a inveja por possuí-lo. Mas o detalhe
diferencial, repito, é que esse algo pode n ã o valer nada para ela, como
acontece no exemplo das guloseimas; significa que o invejoso quer se
apoderar desse objeto e tirá-lo do outro n ã o porque o considere algo
importante, mas simplesmente porque n ã o quer que o outro o tenha.
Como veem, trata-se de uma relação altamente destrutiva e doen-
tia, porque o único prazer que dá é a dor do outro, o incomodo do
outro.
Vocês sabem que a inveja é considerada um dos pecados capitais,
e eu acrescentaria que é o mais doentio de todos: n ã o d á outro prazer
senão o de ser testemunha da frustração do outro.
Pensem nos outros pecados. A gula, por exemplo, tem seu lado
aproveitável; a preguiça t a m b é m ; e melhor nem falar dos outros, como
76 ENCONTROS

a luxúria, que pede aos gritos ser tirada dessa lista e ganhar um lugar
entre os prazeres capitais.
Existe uma relação entre esses pecados e o desejo. Pensem no que
os mandamentos proíbem, por exemplo, e, analisando à luz dos dese-
jos inconscientes mais fortes que temos, v ã o encontrar uma importante
relação entre uns e outros.
Mas a inveja... que prazer dá? Nenhum, exceto a prejudicial sa-
tisfação de destruir o outro, de que o outro sofra. Quem j á n ã o ouviu
dizer: " N ã o quero que tenha isso... porque n ã o " ; ou "Prefiro jogar
fora a lhe dar isto"?
E nesse "prefiro jogar fora" aparece a prova mais clara de que na
inveja o objeto n ã o tem nenhuma importância, n ã o vale nada, pode
ser jogado no lixo; mas que o outro o tenha, isso n ã o !
O ciúme, p o r é m , está definido por uma relação triangular na qual
o medo que o ciumento sente é que uma pessoa, a quem ama muito,
dê a outro o que deveria dar somente a ele. Aqui n ã o acontece o mes-
mo que no caso da inveja, quando o outro guardava a guloseima para
si; vai dá-la a outra pessoa em vez de ao ciumento; e se a d á a outro
é porque o ama mais, e porque certamente o outro é melhor, porque
vale mais.
Como vemos, nesse caso o objeto é algo valioso que pode ser dado
a um ou a outro, e o ciumento teme que d ê e m a outro algo que ele va-
loriza muito e quer para si. N a inveja, o objeto (a guloseima) n ã o valia
nada; p o r é m , no ciúme, o objeto, seja o que for (o amor, a sexualidade,
o emprego) é muito importante para o sujeito. Por isso o ciumento vive
temendo que seu companheiro, por exemplo, se apaixone por outro ou
vá para a cama com outro, porque esse amor e essa fidelidade sexual
são muito valiosos para ele.
Vamos acentuar, então, as diferenças entre a estrutura do ciúme e
da inveja.
Dizíamos que no ciúme h á uma relação triangular; h á t a m b é m
algo muito valorizado e um medo enorme de que isso possa ser dado a
outro. Geralmente, a pessoa ciumenta sofre muito; vive em um eterno
desassossego, está o tempo todo atenta e com medo da possibilidade de
perder aquilo que ama.
O CIÚME 77

Em qual das etapas que conduzem à c o n st ruç ão


do amor se situa a pessoa ciumenta?

Dissemos anteriormente que na construção de u m amor h á três


momentos:

L Paixão.
2. Desilusão.
3. Aceitação das diferenças e desenvolvimento do amor.

No primeiro momento, o amado é alguém maravilhoso, n ã o tem


defeitos, n i n g u é m é melhor porque está terrivelmente idealizado, qua-
se endeusado. O amado é engrandecido, ao passo que o apaixonado
vai diminuindo, a tal ponto que n ã o consegue entender como alguém
tão perfeito o notou.
Por isso depende tanto de seu objeto de amor, porque sente que
este o completa, preenche-o; nessa etapa, o apaixonado diz frases do
tipo: " E u j á havia perdido a esperança de encontrar alguém como
você".
Dissemos t a m b é m que era o tempo das ilusões, no sentido psi-
cológico do termo; ou seja, pensada a ilusão como u m transtorno da
percepção. E vamos resgatar esse conceito, porque vai nos servir muito
para explicar alguns fenómenos que ocorrem no sujeito ciumento.
Sob a influência dessas ilusões, o objeto de amor é percebido de
um modo deformado; parece mais alto, seus olhos são mais bonitos,
suas voz é mais doce. Até suas atitudes são interpretadas de outra ma-
neira.
"Você n ã o sabe como Roberto é u m doce", dizia uma paciente ao
falar de u m homem com quem havia começado a sair. " E l e me ligou
às quatro da m a n h ã para ver como estava e me perguntar se eu havia
chegado bem."
Mas, como esclarecemos t a m b é m , isso passa, e vem a desilusão;
por isso, sete meses depois, a mesma paciente reclamava: " E l e tem que
me ligar às quatro da m a n h ã ? N ã o sabe que a m a n h ã eu trabalho? O u
n ã o confia em m i m e está me vigiando?".
Nada dura para sempre.
78 ENCONTROS

Esse tipo de coisa acontece nesse segundo momento, no qual co-


m e ç a m o s a perceber algumas imperfeições no ser amado; imperfeições
que j á existiam, mas que a paixão nos impedia de perceber. Surge algo
da ordem do defeito, que n ã o nos agrada tanto.
E por que isso surge? Porque todo esse amor que dissemos que
havia sido vertido no outro a ponto de a pessoa n ã o querer fazer nada
sem ele, de n ã o poder pensar em outra coisa que n ã o seja ele, é recu-
perado e volta ao eu do apaixonado.
Tecnicamente, diríamos que o eu recupera sua investidura libidi-
nal, e que, agora sim, pode pensar em outras coisas e agir de modo
diferente.
No início, o outro ligava e o apaixonado saía correndo a seu en-
contro. Porém, tempos depois, p o d e r á dizer "Agora n ã o " , "Estou fa-
zendo outra coisa, passo depois". Por que agora pode esperar para vê-lo
e antes não? Porque recuperou esse afeto que estava totalmente vertido
no outro e o valor próprio começa a aparecer, a pessoa volta a sentir que
é alguém independentemente de estar ou n ã o com o outro.
Pois bem, superando essas duas etapas, dissemos, chegamos a u m
terceiro momento da relação, que pode, com sorte, se transformar em
um amor maduro, ou pelo menos em um relacionamento viável.

Eternamente apaixonados...
(ou N ão é t ão bom quanto parece)

Efetivamente, algumas pessoas ficam presas na paixão, mas isso que


parece ser uma notícia muito boa costuma n ã o ser. Porque, embora pos-
sa parecer algo maravilhoso ser amado dessa maneira tão idealizada e
saber que a outra pessoa está sempre atenta a nossos desejos, é necessá-
rio destacar como pode ser difícil para alguém suportar o lugar daquele
que sempre completa o outro, que tem tudo que o outro necessita.
U m a paciente me dizia que era sufocante se sentir t ã o neces-
sária para seu namorado. Queixava-se de que ele n ã o fazia nada se
ela n ã o aprovasse, que a consultava para tudo, e acabou essa sessão
dizendo: "Faça-me o favor, d á um tempo... sou simplesmente uma
mulher".
O CIÚME 79

Notem que o que ela estava dizendo, na realidade, é que a idea-


lização extrema, mantida o tempo todo, era muito sufocante; e o que
isso mostra é que, quando esse deslumbramento inicial se prolonga
mais que o devido, j á n ã o é gratificante para nenhum dos dois.
O que acontece é que algumas pessoas n ã o estão em condições
psicológicas de empreender uma relação saudável, e então, quando
acaba esse romance cor-de-rosa, acaba o amor. Porque, definitivamen-
te, a relação de amor tem a ver com esse negócio de poder discriminar
o que o outro tem para dar e o que n ã o tem; e às vezes tem, mas n ã o
quer dar, e é seu direito.
Por isso é necessária uma cota de maturidade para ter esse respei-
to pela vontade do outro e tentar ser feliz apesar daquilo que ele n ã o
pode ou n ã o quer dar.
Quando alguém n ã o respeita essa dinâmica, a relação se torna
patológica. Por quê? Porque vai buscar de qualquer modo o que n ã o
obtém, e vai atormentar o outro, vai pressioná-lo, e isso vai fazer que
seu companheiro se sinta mal, questionado e exigido o tempo todo.

Agora, vamos utilizar tudo isso que vimos e aplicá-lo ao ciúme.


Lembro alguns versos de um poema de Eliseo J i m é n e z , que se chama
justamente "Celos" [Ciúmes], e acho que podem servir para ilustrar
o que o sujeito ciumento sente. Diz o poema em uma parte: " T ú sabes
que en los ojos de los hombres/ hay miradas impuras". 2
Pois bem, o ciumento é, antes de mais nada, um sujeito que vive
com a sensação de estar constantemente em perigo; torturado pelo
medo de que surja outro e lhe roube o que ama. Então, notem: em
"nos olhos dos homens h á olhares impuros",, poderíamos perguntar,
de que homens? E a resposta é: de todos os homens. Por isso, cada vez
que sua namorada sai à rua, ou vai fazer alguma compra, o ciumento
teme que os outros (homens, neste caso) lhe dirijam olhares impuros, e
isso vira um tormento.
Outro verso diz: "Cuando te envuelve una mirada de esas,/ y
sientes que resbala por tu cuerpo/ q u é es lo que piensas? di, que es lo

Você sabe que nos olhos dos homens/ há olhares impuros" (tradução livre).
80 ENCONTROS

que piensas?". 3 E a repetição da pergunta cai bem, porque é assim que


acontece na realidade, visto que é o que passa na cabeça do ciumento
o dia todo: " O que está pensando? Lembrou-se de quem?".
O ciumento vive angustiado por esses questionamentos que di-
rige, às vezes em silêncio, a seu companheiro: o que está pensando, o
que está olhando, o que está sentindo? T e m necessidade de controlar
todos os aspectos da pessoa a quem ama, por conta do medo de que
ela vá embora com alguém melhor. Como dizíamos no começo do en-
contro, medo de que dê a outro o que ele quer para si.
Se lessem todo o poema, notariam que para esse homem, na rea-
lidade, nada é suficiente. N e m o sorriso, nem o corpo, nem o olhar que
lhe entregam. E como se quisesse ter até a exclusividade do pensa-
mento da companheira e ainda mais. Desejaria ter tudo.
Mas, recordando algo que dissemos no primeiro encontro: n ã o d á
para ter tudo.
E essa é a tortura do ciumento, ou da ciumenta. Que nada é su-
ficiente, porque o que busca é outra coisa; aquilo que busca a pessoa
a quem ama n ã o pode lhe dar, porque sempre vai querer mais. L e m -
bram o desejo que se desloca constantemente?
Muito bem, assim age a dinâmica do ciúme: se lhe d á seu cor-
po, quer seu amor; se lhe d á seu amor, quer seus pensamentos; se lhe
dá seus pensamentos, vai querer t a m b é m suas lembranças e assim por
diante, até que, em algum momento, o companheiro n ã o vai poder
lhe dar tudo, porque o que está pedindo é outra coisa. Algo que nem
o ciumento mesmo sabe o que é. Para encontrar uma resposta a essas
questões, dentre outras coisas, existe a psicanálise.
Mas eu gostaria de compartilhar com vocês outro poema, que desta
vez vou apresentar integralmente, porque é um presente que quero
lhes dar. E um de meus preferidos. Chama-se " O ameaçado", de Jorge
Luis Borges, e está em seu livro O ouro dos tigres. Diz assim:

3
"Quando te envolve um olhar desses/ E sentes que desliza por teu corpo/
o que é que pensas?/ Diz, o que é que pensas?" (tradução livre).
O CIÚME 81

É o amor. Terei de me esconder ou fugir.


Crescem as paredes de seu cárcere, como em um sonho atroz.
A bela máscara mudou,
mas como sempre é a única.
De que me servirão meus talismãs:
o exercício das letras,
a vaga erudição, o aprendizado das palavras
que usou o vago norte para
cantar seus mares e suas espadas,
a serena amizade, as galerias da biblioteca,
as coisas comuns,
os hábitos, ojovem amor de minha mãe,
a sombra militar de meus mortos,
a noite intemporal, o gosto dos sonhos?
Estar contigo ou não é
a medida do meu tempo.
O cântaro já se quebra sobre a fonte, já se levanta o homem
à voz da ave, já escureceram
os que olham pelas janelas, mas a sombra
não trouxe a paz.
E, eu sei, é o amor: a ansiedade e o alívio
de ouvir tua voz, CL espera e a memória,
o horror de viver no sucessivo.
É o amor com suas mitologias,
com suas pequenas magias inúteis.
Há uma esquina pela qual não me atrevo a passar.
Agora os exércitos me cercam, as hordas.
(Este quarto é irreal; ela não o viu.)
O nome de uma mulher me delata.
Dói-me uma mulher por todo o corpo.

Como podem ver, esse poema tem uma linguagem muito mais lu-
nar que a anterior, mas, de qualquer maneira, aparecem t a m b é m essas
questões que vimos trabalhando. Por exemplo, quando fala do "horror
de viver no sucessivo", o que está dizendo é que o tempo vai continuar
82 ENCONTROS

passando, e provavelmente ele gostaria de pará-lo agora, porque está


com ela e n ã o quer que nada mude isso.
Lembro um verso de uma canção francesa que diz: "Devíamos
morrer enquanto estamos sendo felizes", e Borges diz deste jeito: "o
horror de viver no sucessivo". Como se alguém pudesse dizer: "Para
mim chega, quero ficar aqui", que é o que acontece nos momentos de
felicidade; o desejo de eternizar esse momento, mas, como a esta altura
j á sabemos, n ã o d á para ter tudo.
Vejamos mais duas coisas que aparecem no poema de Borges.
U m a delas é esta frase: "Estar contigo ou n ã o é a medida do meu tem-
po". O u seja, a presença ou ausência do amado marca o tempo, o
ritmo do desejo do apaixonado. Como se o pulso da própria vida de-
pendesse dessa presença ou ausência.
E mais uma linha que acho maravilhosa é esta: " O nome de uma
mulher me delata, dói-me uma mulher por todo o corpo".
Porque aqui surge a ideia da dor; que é algo inseparável do amor.
E é uma genialidade de Borges o modo como diz que no amor só se
pode sofrer. Essa é a armadilha na qual às vezes o amor nos faz cair.
Por isso o poema se chama " O a m e a ç a d o " .
Freud diz que nunca estamos menos protegidos contra a dor do
que quando amamos. Porque é impossível n ã o ser um apaixonado em
perigo, visto que quem ama corre um risco.
O ciumento, e chegamos por fim a uma primeira definição, é
aquele a quem esse risco se torna uma tortura.

O c i úme é uma forma de demonstrar


amor? (ou Quem n ão tem c i úme n ão ama...
mas quem tem c i úme é incauto)

U m a canção popular diz: " E l que zela incomoda, pero el que no,
irrita". 4 O u seja, definitivamente, um pouco de ciúme se deve ter, por-

4
"Quem tem ciúmes incomoda, mas quem não, irrita" (tradução livre).
O CIÚME 83

que é uma maneira de demonstrar que se ama; porque se n ã o se tem


nem um pouco de ciúme, é como se n ã o se amasse.
Imagino que essa ideia ronda pela cabeça de n ã o poucas pes-
soas, mas acho que a frase é enganosa porque parte de u m pressu-
posto e r r ó n e o .
Vejamos: diz que quem tem ciúme incomoda, mas quem n ã o tem
ciúme, irrita. Assim formulada, a frase é um axioma; ou seja, uma verdade
que devemos aceitar e dar por verdadeira sem questioná-la. Mas vamos
resistir a essa armadilha e analisá-la um pouco para ver o que acontece.
E m primeiro lugar, esse negócio de que quem tem ciúme incomoda
é, no mínimo, duvidoso, pois vai depender de quem estamos falando.
Porque algumas pessoas adoram ser objetos de ciúme, que fiquem em
cima delas. Caso contrário, é como se n ã o recebessem o reconhecimen-
to do outro.
Lembro uma paciente muito irritada que, falando de seu mari-
do, reclamava: "Claro... saio toda arrumada e ele n ã o é capaz de me
perguntar aonde vou. V i u como n ã o me ama mais? Como j á n ã o se
importa se eu ficar com outro? 55 .
E o marido, que talvez tenha pensado que ela estava muito arru-
mada, mas que n ã o disse nada para que ela n ã o achasse ruim, para
que n ã o se sentisse perseguida, acaba tendo que dar explicações.
E verdade que certas pessoas, como essa paciente, se irritam
quando n ã o são alvos de ciúme; mas isso é porque confundem ciúme
com amor, porque n ã o incorporaram a importância da confiança e
da liberdade em um relacionamento. Mas temos que ter cuidado para
n ã o levar isso t a m b é m a uma m á x i m a equivocada.
Outra canção diz em uma de suas estrofes: " S i amas a um pájaro
déjalo libre; si vuelve a ti es tuyo, sino nunca lo fue 55 . 5
E evidente que n ã o é totalmente lícito analisar uma frase de as-
piração poética com um olhar científico ou psicológico. Mas vamos
utilizá-la apenas como um detonador de ideias e veremos que, como a
anterior, essa frase t a m b é m é equivocada. E o autor tem direito a isso,

5
"Se você ama um pássaro, deixe-o livre; se voltar, é seu; senão, nunca foi"
(tradução livre).
84 ENCONTROS

porque é uma canção, e n ã o um postulado científico. Mas dizer: "Dei-


xe que ela vá embora que se for sua vai voltar, e se n ã o voltar é porque
nunca foi sua" é acreditar que as coisas são eternas e n ã o podem se
perder; e n ã o é assim que funciona o mundo.
Muitas vezes acontece de pessoas que nos amaram de verdade, que
metaforicamente poderíamos dizer que foram nossas, saírem de nossa vida
para sempre; e isso n ã o quer dizer que em seu momento n ã o foi um
amor verdadeiro. O que quero dizer é que as situações podem mudar,
e especialmente que podemos perder as coisas. E enfatizo isso porque é
algo que se costuma esquecer em uma relação, principalmente quando
é duradoura. Mais de um paciente j á me disse: "Pensei que estava tudo
seguro, tudo tranquilo. E não. Claro, agora percebo que devia ter conti-
nuado a seduzi-la, que devia ter cuidado mais dela...".
E é muito interessante essa ideia de que podemos perder o que
temos. Porque postula a inexistência da certeza no amor.
Mas, enfim, o ciúme é ou n ã o é uma manifestação do amor?
Para responder a isso, vamos retomar a ideia das três etapas na
construção do amor, para ver se conseguimos estabelecer em que pon-
to desse trajeto que propusemos está o ciumento.
Vejamos: dizemos que o outro é a razão de sua vida, que só tem
pensamentos para ele e que o vê idealizado. Evidentemente, estamos
falando do lugar que alguém ocupa durante a etapa da paixão.
Mas, digamos que, nas pessoas ciumentas, o amor se comporta
como se nunca passasse pela etapa de desilusão, e, portanto, elas j a -
mais chegam a construir um amor maduro, visto que ficam cristali-
zadas no plano da paixão. O outro sempre permanece idealizado, é o
que vale, o objeto adorado que se teme perder.
O ciúme é, antes de mais nada, um modo doente de se relacionar.
U m indicador de insegurança e algo com que se deve ter cuidado, por-
que de jeito nenhum indica a presença de u m grande amor pelo outro,
e sim uma falta de amor por si mesmo.
A pessoa ciumenta nunca sai desse lugar onde o outro é o impor-
tante e, com seu amor desmesurado, condena seu parceiro à angústia
permanente, porque n ã o importa quanto ele lhe dê, o ciumento nunca
vai estar tranquilo, porque o problema n ã o é com o outro, e sim com
ele mesmo.
O CIÚME 85

A suposta desconfiança em seu parceiro n ã o é mais que uma pro-


jeção da falta de confiança que tem em si mesmo. Para usar um termo
frequente, digamos que se trata de um problema de autoestima, mas seria
mais preciso dizer que algo aconteceu durante o desenvolvimento da psi-
que dessa pessoa que a deixou com uma forte sensação de desproteção.
Mas por que isso acontece? T e m a ver com quê?
Para explicar isso, digamos que n ã o nascemos com uma persona-
lidade; ela é construída ao longo do tempo e com base na inter-relação
da criança com seu entorno, especialmente com seus pais. E a par-
tir desse contato que ela vai desenvolvendo um caráter e encontrando
uma identidade própria.
Se perguntassem a uma criança de dois ou três anos de quem é
esse brinquedo, ele responderia: do nenê. N ã o diria: é meu. Porque ela
ainda n ã o é ela. N ã o tem algo no qual se reconheça e fala de si mesma
na terceira pessoa. Só mais adiante essa identidade, essa personalidade
irá se construindo, até que ela possa dizer: meu.
Pois bem, esse momento do desenvolvimento, no qual ocorre essa
mudança psíquica que permite a alguém reconhecer um eu próprio e di-
ferenciado do resto, os psicanalistas denominam narcisismo, e, geralmente,
é quando podemos encontrar a origem desse tipo de insegurança pessoal.

Mas, enfim, o que o ciumento espera de seu


companheiro? (Nem ele mesmo sabe)

O que o ciumento vai tentar é que o outro supra uma falta que é
dele. Mas nunca vai conseguir. Por isso, a pior coisa que se pode fazer
por uma pessoa ciumenta é satisfazê-la. Se quiserem fazer algo para
ajudá-la, n ã o façam o que ela quer. E permitam-me dar um exemplo.
Imaginem que uma mulher se levanta de m a n h ã para ir trabalhar
e seu marido olha para ela e diz:
"Você vai vestida assim ao trabalho?"
" S i m " responde ela, "por q u ê ? "
" N ã o , nada... é que parece vulgar... provocante demais, mas, sei
lá, se você gosta..."
86 ENCONTROS

Pois bem, eu garanto que se essa pessoa se trocar, se vestir uma


calça larga ou um abrigo, ele depois vai dizer:
"Mas como... você n ã o chegava às seis?"
"Sim."
" E o que aconteceu? J á são seis e quinze."
E depois vai ser:
"Por que vai estudar na casa dos seus amigos? E melhor virem
estudar aqui."
O u senão:
" N ã o precisa dormir aí, eu vou buscar você; eu levo, eu trago..."
N ã o é preciso exemplificar muito mais para compreender que
essa situação, mais cedo ou mais tarde, vai se tornar asfixiante. E n ã o
vai acabar nunca, porque ele sempre vai querer algo mais, porque, na
realidade, o que está pedindo é outra coisa, algo que nem ele mesmo
sabe o que é.
Contudo, se quando essa mulher puser uma minissaia e ele per-
guntar: "Vai sair assim?", ela responder: "Sim, vou sair assim", talvez
o esteja ajudando. Por quê?
Porque é provável que, por n ã o obter o que está pedindo, fique
angustiado, e talvez essa angústia o leve a buscar algo para resolvê-la.
U m a terapia, por exemplo.
Porque uma coisa é que sua calma venha de fora, que dependa
de que outro faça o que ele quer; e outra é procurar um profissional
porque sente que a mulher se veste de u m modo provocativo e isso
o afeta. Aí sim se abre um espaço para um questionamento pessoal:
qual o problema de sua mulher n ã o fazer o que ele espera? Por que se
angustia tanto? E m outras palavras, se o outro n ã o vem de fora aliviar
sua dor, abre-se a possibilidade de buscar uma solução de dentro, o
que pode conduzir à busca da origem real do conflito, que terá a ver
com o próprio sujeito, e n ã o com seu companheiro.

Ci ú m e doentio (ou Existe outro?)

N ã o podemos ignorar que t a m b é m existem pessoas que gostam


de alimentar ciúmes, que agem sempre como se fossem transgredir
O CIÚME 87

para afligir seu companheiro, e t ê m atitudes suspeitas quando, na rea-


lidade, n ã o estão pensando em fazer nada com ninguém. B e m , esses
sujeitos t a m b é m geram relações sofredoras.
T a m b é m podemos diferenciar esse ciúme patológico do qual esta-
mos falando daquele que surge de situações que podem ser geradoras
de ciúmes. Então, se a m o ç a diz a seu namorado que precisa falar com
seu ex para acertar umas coisas que ficaram pendentes, e para isso deci-
diu passar uma semana com ele em uma cabana na serra, obviamente
o mal-estar do namorado seria compreensível. Porém, se o que o deixa
mal é que sua namorada tem que se encontrar com o pai de seus filhos
porque precisam acertar algumas coisas que envolvem as crianças, essa
j á é outra história.
Por isso, é preciso saber bem quando o estímulo vem de fora e é
tão forte que pode abalar até mesmo uma pessoa que confia em si, e
quando a insegurança é interna e o que o sujeito faz é arranjar descul-
pas fora para dar vazão a sua frustração.

E po ssí v e l que a atitude demandante


tenha a ver com o fato de o outro n ão
estar atento às nossas necessidades?

Esse é um argumento que devemos considerar com muito cuida-


do, porque nisso de que o outro n ã o está atento ao que necessitamos
t a m b é m pode haver uma falácia. Convenhamos que ninguém tem que
adivinhar o que seu companheiro deseja.
Lembro que, h á algumas sessões, um paciente chegou muito irri-
tado e me disse que se sentia mal porque fazia dois dias que n ã o falava
com sua mulher. E u perguntei o que havia acontecido e ele disse que
passou o fim de semana e ela n ã o havia dito nada sobre u m assunto
que para ele era muito importante. Fazia dois anos que se formara em
medicina - algo que lhe havia custado muito esforço, porque provém
de uma família muito humilde - , e ele esperava algum gesto, u m j a n -
tar, o que fosse: e ela nem sequer se lembrou.
Depois de um silêncio, eu lhe perguntei em que data sua esposa,
que é pianista, havia ganhado seu primeiro piano. Ele disse que n ã o
88 ENCONTROS

sabia. Perguntei, então, se em todos esses anos que estavam juntos, ele
jamais a havia cumprimentado no aniversário de um fato tão impor-
tante para ela. O paciente ficou em silêncio. Mas entendeu aonde eu
queria chegar com minha intervenção.
Achar que quem está ao nosso lado tem a obrigação de saber a
i m p o r t â n c i a que cada coisa tem para nós, de adivinhar o que passa
por nossa cabeça, é se colocar um pouco no centro do universo. E
muito mais verdadeiro expor o desejo. Convidar alguém para jantar,
se essa for nossa vontade, em vez de ficar esperando que o outro in-
tua esse desejo. N e m sempre isso é mais simples. Para algumas pes-
soas, essa atitude pode até ser mais difícil; mas vale o esforço, porque
sempre é muito mais saudável reconhecer e expor o que se deseja a
esperar que, de uma forma mágica, chegue de fora a atitude que o
satisfaça.

As ac u saç õ e s do ciumento
(ou U m t raç o de imaturidade)

U m a das características mais comuns nas pessoas ciumentas é a


facilidade com que geram situações de recriminações e brigas.
U m a paciente me contou que seu marido fez uma cena ao voltar
de um passeio porque um homem n ã o parava de olhá-la. E a paciente
se perguntava que culpa tinha de alguém ficar olhando para ela.
Muitas vezes, em situações como essas, costuma haver uma acu-
sação velada. Provavelmente seu marido pensou que o homem a olhou
porque ela estava com roupa provocante, ou porque ela olhou primei-
ro. Q u e m sabe. Mas a imputação silenciosa é que ela havia provocado
esse olhar que tanto o incomodou.
Mas h á outras situações que são ainda mais ilógicas, embora bas-
tante habituais. Por exemplo, um homem vai ao supermercado e en-
contra alguém com quem saiu h á quinze anos, e a esposa fica brava.
"Mas eu n ã o fiz nada. Só v i m fazer compras - alega o acusado
em sua defesa."
Mas n ã o adianta nada.
"Deixe para lá" responde a outra com raiva.
O CIÚME 89

"Mas o que eu fiz? Que culpa tenho eu de que minha ex-namora-


da tenha ido fazer compras no mesmo supermercado?"
Ele n ã o fez nada de errado, mas, de qualquer maneira, sua esposa
fica com raiva dele. Bem, isso é u m traço de imaturidade. O que n ã o
tira a responsabilidade nem de um nem do outro. D o ciumento, por
n ã o fazer nada para encontrar o motivo de sua atitude; e do alvo do
ciúme porque deve assumir o ónus de ter escolhido uma pessoa com
esse comportamento, e, mais ainda, de continuar em um relaciona-
mento que lhe faz mal tolerando esse tipo de atitude.

O c i úme sempre tem a ver com o parceiro?


(ou O terceiro em di sc ó rdi a)

O ciúme, como dissemos, ativa uma maneira peculiar de se rela-


cionar com o outro, e n ã o se reduz só ao âmbito do relacionamento
afetivo. D e modo que podemos falar de ciúmes entre irmãos, por ques-
tões trabalhistas ou entre amigos, algo muito comum, principalmente
na época da adolescência. Mas seria mais preciso dizer que toda rela-
ção é suscetível a ser afetada pelo ciúme.
Suponho que a maioria j á assistiu a Amadeus, o maravilhoso filme
de Milos Forman. Amadeus trata da relação particular entre Salieri e
Mozart. Devo esclarecer que é só uma ficção e que n ã o devemos lhe
dar um valor documental, visto que Salieri foi um músico extraordiná-
rio cuja obra recomendo que o u ç a m , e de jeito nenhum esse homem
ignorante desprovido de talento que o filme apresenta. T a m b é m n ã o é
verdade que odiava Mozart desse jeito. Mas vamos ao filme.
Salieri foi um homem que dedicou sua vida a fazer uma música
que glorificasse a Deus, uma música que fosse digna do celestial, e,
um dia, descobriu a música de Mozart e compreendeu que esse ho-
mem tinha uma genialidade da qual ele p r ó p r i o carecia. Mas, ao
conhecê-lo, viu que se tratava, além de tudo, de um sujeito muito pe-
culiar; alguém imaturo e quase grotesco. U m compositor sutil e su-
blime no corpo de u m homem totalmente ordinário. E para Salieri
isso parecia t ã o injusto que renegou a Deus e dedicou sua vida a
prejudicar Mozart.
90 ENCONTROS

Agora, tendo em conta o que acabamos de esboçar, de que afeto


se trata? Inveja ou ciúme?
Acho que poderíamos pensá-lo como ciúme se, em vez de nos
concentrarmos no vínculo entre Salieri e Mozart, analisarmos a rela-
ção de Salieri com Deus. E onde se d á a situação de ciúmes. Porque
Salieri ama a Deus e Deus tem algo que ele deseja para si: a possibi-
lidade de escolher a quem dar o talento; e Deus decide dá-lo a outro
que n ã o é ele, ou seja, a Mozart.
A i , o esquema é tal como o descrevemos para o ciúme: Salieri
teme que Deus dê a outro o que deveria ter dado a ele. E , nesse caso,
ainda, depois comprova que seu medo era fundado.
Mas a relação é entre Salieri e Deus; Mozart é o terceiro em ques-
tão, nada mais. E nada menos. Porque Salieri é capaz de destruí-lo
para que n ã o desfrute o que ele considerava que devia pertencer a ele
próprio. E isso é muito comum de acontecer. Pensem nas vezes que
alguém enfrenta irado o terceiro, projetando nele a frustração causada
pelo fato de seu objeto de amor o ter escolhido em seu lugar.

Basta se conhecer para evitar o c i úme ?


(Não é t ão fácil assim...)

E muito comum que nem todo mundo saiba onde lhe aperta o
calo, mas, mesmo que soubesse, é provável que isso n ã o bastasse para
lidar de um modo saudável com algumas coisas que acontecem.
No exemplo que acabamos de dar, Salieri tem esse conhecimen-
to; sabe o que acontece com ele: quer ser o compositor escolhido por
Deus, deseja o talento, estudou e se comprometeu com seu sonho, ten-
tou ser cada vez melhor, até abraçou a castidade, e agora está com
raiva, sentido. E vê tudo isso com uma clareza impressionante; como
se houvesse feito vinte anos de terapia. Mas é de se esperar que, se
houvesse feito vinte anos de terapia, fizesse algo diferente com sua an-
gústia. O que quero dizer é que, às vezes, a pessoa sabe o que aconte-
ce, p o r é m n ã o sabe o que fazer com isso, nem como se comportar para
que o que acontece n ã o a invada de uma maneira destrutiva.
O CIÚME 91

Por isso, uma terapia n ã o se trata só de conhecimento, no sentido


de informação, e sim de um saber de outra ordem que se obtém depois de
percorrer u m caminho cuja i n t e n ç ã o é a revelação de uma verdade,
e cujo preço, às vezes, é a dor.

U m sentimento trági c o
(ou A inveja pela vida da vaca)

Muitos pacientes, em algum momento difícil da vida, diante de


um abandono ou uma perda, disseram-me que se sentiam vazios, que
se angustiavam por saber que alguém a quem amavam podia precisar
mais deles e que, apesar de todo o esforço, n ã o tinham mais para dar.
Essa n ã o é uma mera queixa; é um dizer que alude a um aspecto
profundo e importante; a isso que Miguel de Unamuno chamou de
"sentimento trágico da vida", ou seja, essa sensação de que n ã o vamos
poder tudo, partindo do fato de que vamos morrer.
Nietzsche dizia algo como se sentisse inveja da vaca, que andava
por aí pastando tranquilamente sem ter culpa pelo que havia feito no
passado nem medo da morte que a esperava no futuro. Os homens
n ã o t ê m essa sorte.
Nesse sentido, o sentimento trágico da vida parte de que somos
uma espécie, a única, que tem consciência de sua própria finitude. To-
dos sabemos que vamos morrer, que o que amamos vai morrer e que
aqueles a quem amamos t a m b é m vão morrer, e, nesse sentido, surge
essa demanda de amor infinita que tem a ver com buscar algo que apla-
que essa angústia e que nos garanta que n ã o vamos sentir falta de amor.
Da í vem - digo isso com muito respeito e tentando n ã o ferir a
suscetibilidade de ninguém - a ilusão vendida pelas religiões. O que
diz a religião? "Calma, existe alguém superior à vida e à morte que vai
amar a todos por igual e por toda a eternidade."

E u n ã o sei se Deus existe ou n ã o , e n ã o cabe a m i m entrar nesse


assunto; cada um com sua crença. N ã o é algo sobre o que um psicana-
lista tenha que falar. Mas me permito pensar no assunto de um ponto
de vista psicológico, e n ã o teológico.
92 ENCONTROS

Sempre fui muito respeitoso com relação a isso, e, talvez por isso,
naqueles encontros matutinos era comum ver uma " i r m ã " da comu-
nidade católica que nos acompanhava quase todos os sábados. A i r m ã
Luján.
Lembro que uma m a n h ã chuvosa e fria, dessas que fizeram um
amigo dizer que Paris havia surgido para ser apenas uma profecia de
Buenos Aires, estávamos falando desse tema, e ela, com muito respei-
to, perguntou-me se era possível que quem tinha fé sofria u m pouco
menos.
E u respondi que tinha certeza disso. Porque essa fé, de alguma
maneira, resguarda-o, garante que, apesar das injustiças e das perdas,
todos nos reencontraremos um dia, e que h á alguém, um Pai, que,
como dizia o Cristo, "ama a todos igualmente".
Esse é o sonho que a religião propõe. Nesse sentido, Cristo encon-
trou uma chave que poderia acabar com a angústia do ser humano;
o que n ã o p ô d e encontrar foi a outra chave, aquela que converteria
todos em cristãos, que permitiria que todos aceitássemos o que disse.
Mas essa necessidade de amor e de segurança tem a ver com a
sensação de que h á algo, um vazio, uma falta que precisamos preen-
cher de alguma forma, e é aí que aparece esse desejo de ser amado
para sempre, de sentir que o que amamos n ã o vai morrer e que o amor
n ã o vai acabar jamais.
Mas essa n ã o é a realidade de nossa vida. Pelo menos n ã o aqui.
Talvez os que possuem fé tenham razão e depois seja diferente,
mas a parte que aqui nos toca, enquanto transcorre nossa vida terrena,
é assumir que sempre vamos ter que conviver com uma falta estru-
tural, com um q u ê de angústia, uma inconformidade existencial que,
quando alguém adoece psicologicamente, verte-a de um modo nocivo
e se torna agressivo, possessivo, ciumento ou destrutivo. No fundo, to-
das essas reações n ã o são mais que uma maneira equivocada de tentar
o impossível: preencher esses vazios, essa falta.
Felizmente, t a m b é m h á os outros, os que reconhecem essa dor
com a qual v ã o ter que conviver pelo simples fato de serem humanos,
e a carregam com dignidade. Borges, j á citado muitas vezes neste livro,
diante da pergunta de um jornalista sobre se era feliz, disse algo assim:
se em todos os idiomas haviam se dado ao trabalho de inventar a pala-
O CIÚME 93

vra, isso queria dizer que certamente algo parecido à felicidade existia,
mas que ele era apenas um homem. Como podia, então, ser feliz?
Compartilho esse pensamento borgiano fazendo a ressalva de
que, evidentemente, estou referindo-me a uma felicidade plena e total,
à completude absoluta, visto que, apesar de tudo que foi dito, feliz-
mente, sempre daremos um jeito de ter algumas alegrias.

As m u d an ç as podem ser a origem do c i úme ?


(ou Apostar na re inve nção)

H á n ã o muito tempo, durante uma sessão, uma paciente falava


que o ciúme era u m problema em seu relacionamento e me disse que
achava que era porque tinham dificuldade de aceitar as m u d a n ç a s , e
que isso acabava confundindo-os e fazia que se sentissem inseguros um
em relação ao outro.
"Mas, na realidade", disse ela literalmente, " n ã o é que meu ma-
rido j á n ã o me ame, mas é que mudou. Estamos juntos h á vinte anos,
passamos por muitas etapas, e tenho que aceitar que é inevitável que
tenhamos mudado, n ã o é ? "
Mudar é algo inevitável e n ã o é possível viver sem se modificar
em algum ponto. Mas h á pessoas que, como minha paciente até então,
se apegam ao estabelecido e t ê m dificuldade de se mover ao ritmo de
sua própria vida. Por isso é e n g r a ç a d o quando alguém, depois de vinte
anos, diz: "Você n ã o é mais como antes". Mas o que essas pessoas pre-
tendem? Que alguém conserve a ingenuidade, os gostos ou as travessu-
ras de quando tinha treze anos?
Discépolo escreveu: " S i yo pudiera como ayer querer sem
presentir". 6 Esse é u m amor típico da adolescência ou da primeira j u -
ventude; isso de amar sem pressentimentos. U m adulto j á n ã o pode
fazer isso. Viveu muitas desilusões, talvez tenha sido enganado e,
provavelmente, enganou t a m b é m . A vida o marcou, e por conta das
perdas e dificuldades aprendemos que, mesmo que nos esforcemos e

6
"Se eu pudesse, como ontem, amar sem pressentir" (tradução livre).
94 ENCONTROS

façamos todo o possível, muitas vezes as coisas n ã o saem como deseja-


mos. Nesse contexto, como n ã o ter pressentimentos?
Claro que o apaixonado digno aposta alto, mas essa aposta n ã o
assume a face do otimismo, que, a meu entender, é uma atitude de mo-
desta inteligência. Tanto como o pessimismo, visto que acreditar que
as coisas sempre v ã o dar certo é tão obtuso quanto pensar que sempre
vão dar errado.
Notei que muitas pessoas gostam dessa frase que diz algo assim:
temos que ver o copo meio cheio, em vez de meio vazio. N a realidade,
o copo está cheio até a metade. C o m uma parte que tem e outra que
falta, e assim o olha o homem que, parafraseando Hermann Hesse, n ã o
tem mais vontade de mentir a si mesmo.
Então, quando nesse devir constante da vida um dos membros do
casal vai mudando e o outro n ã o acompanha essa m u d a n ç a , o relacio-
namento entra em crise, porque justamente a "sociedade de dois" que
se sustenta no tempo é aquela que vai se reinventando, que pode selar
novos pactos consensuais, que gera a c o m o d a ç ã o a essas m u d a n ç a s su-
cessivas que vão ocorrendo tanto em um como no outro.
Toda relação humana se constrói com base em acordos, explícitos
ou tácitos, e às vezes a diferença entre algo funcionar ou n ã o está na
inteligência que se tenha para perceber em que momento é imprescin-
dível trocar um acordo preexistente que j á n ã o serve por outro que se
acomode à realidade presente do vínculo.

Ci ú m e entre pais
(ou Kramer vs. Kramer)

Dissemos que nem sempre o ciúme tem a ver com o casal. L e m -


bro o caso de um casal que competia, sem perceber, para ver qual dos
dois amava mais o filho e a qual deles o filho amava mais.
Essa competição surgia em atitudes mínimas, em piadinhas, mas
estava o tempo todo latente e era origem de muitas discussões e brigas,
para as quais, é evidente, conscientemente encontravam outros moti-
vos aparentes.
O CIÚME

Acontece que a relação dos pais com os filhos apresenta dificulda-


des diferentes das de u m casal, mas nem por isso descarta a possibi-
lidade do surgimento de ciúmes.
Para aprofundar um pouco mais sobre isso, eu gostaria de dar
como exemplo a cena de um filme que talvez você tenha visto: Kramer
vs. Kramer.
Se n ã o viu, o filme conta a história de um casal que se separa.
U m dia, o marido, que estava indo muito bem no trabalho, seria pro-
movido e ganharia muito dinheiro, chega em casa e vê sua mulher na
porta do elevador, de mala na m ã o , decidida a ir embora. E l e n ã o en-
tende o que está acontecendo e tenta convencê-la a n ã o ir, mas n ã o
tem jeito, ela j á decidiu e vai embora.
O casal tem um filho pequeno, e no início o pai n ã o sabe muito
bem o que lhe dizer. Além de tudo, no fundo, ele espera que ela volte.
Mas, depois de alguns dias, a mulher manda uma carta. O pai a abre
contente porque acredita que ela vai comunicar seu retorno, e se senta
junto a seu filho para compartilhar com ele o que sua mulher escreveu;
mas, quando começa a ler, vê que está dirigida ao garoto, e que é uma
tentativa de explicar o motivo de seu abandono.
E l a diz que, quando um casal se separa, na maioria das vezes os
pais é que vão embora e os filhos ficam com as mães. Contudo, às
vezes, as mães é que vão embora, porque elas t a m b é m t ê m direito de
buscar algo importante para sua vida além dos filhos. E que ela quer
encontrar algo importante além dele.
O menino, imaginem a situação, n ã o quer continuar escutando e
começa a viver essa nova realidade de um modo muito angustiante. A
primeira coisa que faz é ficar com raiva do pai, porque, segundo lhe
parece, faz tudo errado. Prepara o café da m a n h ã e deixa queimar as
torradas, derruba o leite, e o filho diz: " M a m ã e fazia melhor, m a m ã e
fazia melhor". E o homem n ã o sabe o que fazer: sente-se impotente
diante dessa situação, irrita-se, desespera-se.
O tempo avança e acontece algo maravilhoso: c o m e ç a m a se
adaptar a essa nova realidade, a rir, a dividir as tarefas. O pai limpa a
casa enquanto o filho o ajuda a cozinhar; as torradas cada vez se quei-
mam menos e tudo parece se encaminhar, até que, em dado momento,
o garoto entra em uma etapa depressiva e diz ao pai que se sente cul-
pado por a m ã e ter ido embora, que deve ter feito algo errado.
96 ENCONTROS

Isso é bastante comum de acontecer com filhos de pais que se sepa-


ram. Pensam que foi por culpa deles que o casamento fracassou. Mas
esse pai o acalma, abraça-o, acolhe-o e o faz entender que n ã o foi por
causa dele que a m ã e foi embora. E um período difícil e doloroso, mas
do qual saem juntos, e depois as coisas c o m e ç a m a funcionar bem.
E evidente, tudo tem u m custo na vida, e, neste caso, o custo foi
que o pai, que estava prestes a ser promovido, a ganhar muito dinheiro,
começa a empobrecer. N ã o pode mais dedicar tanto tempo ao traba-
lho porque tem que cuidar de seu filho, dar-lhe banho, vesti-lo, levá-lo
ao colégio, ajudá-lo a estudar, estar presente na hora de colocá-lo na
cama, e então é despedido porque n ã o é mais o funcionário modelo de
antes, o homem empreendedor com destino de grandeza. Ele procura
emprego em outra área, de meio p e r í o d o , para poder cuidar de seu
filho, e consegue. E quando por fim parece que as coisas se acomo-
dam, a m ã e reaparece.
E l a se casou com um homem rico, instalou-se em uma linda casa,
construiu um projeto e, agora que está bem consigo mesma, quer recu-
perar seu filho, por isso volta para buscá-lo.
Contudo, o pai n ã o está disposto a entregá-lo. Quer que seu filho
fique com ele, e ela d á início a um processo; por isso o filme se chama
Kramer vs. Kramer, que é a capa do processo pela guarda do filho.
No decorrer do processo judicial, h á u m momento no qual fica
claro que ela tem tudo para ganhar. Deu-se bem, tem uma nova famí-
lia, u m lar luxuoso, ao passo que o pai, por ficar com o filho, perdeu
renda, sua condição é muito austera e, como se n ã o bastasse, ela é
m ã e ; e todos sabemos que a lei costuma acreditar que os filhos estão
sempre melhor com suas mães; algo que poderíamos discutir longa-
mente, visto que n ã o se pode emitir u m ditame universal sobre isso, e
sempre d e p e n d e r á de cada caso.
A questão é que o advogado diz ao pai que n ã o h á jeito de ele ga-
nhar esse processo, a n ã o ser que tome uma decisão drástica.
"Se quisermos ganhar" diz, "temos que fazer o garoto depor para
que conte como sofreu quando a m ã e o deixou, como se sentiu aban-
donado e tudo que você fez por ele."
E o homem imagina a situação que seu filho teria que enfrentar
nesse lugar, cercado de testemunhas, advogados, imprensa, o juiz, o
júri, e diz:
" N ã o posso permitir que meu filho passe por isso."
"Mas, se n ã o fizermos isso, vamos perder."
E o pai responde:
"Pois bem, vamos perder, então, mas n ã o vou expor meu filho a
tudo isso."
O processo segue adiante, e, como era de se esperar, o pai perde.
Assim chegamos à cena final, que é a do dia em que a m ã e tem que ir
buscar o filho para levá-lo consigo.
N a casa do pai tudo está pronto: o garoto vestido, sua mala feita
em um canto e ambos esperando. Pai e filho se olham, estão arrasados,
e o garoto tenta conter o pranto, sem conseguir. Então, o pai o acari-
cia, sorri, olha o relógio, e a campainha toca.
E a m ã e ; mas pede ao ex-marido que desça um instante sem o
filho. Ele desce e, quando chega embaixo, encontra-a arrasada, em
uma crise de choro. E l a olha sem entender, e ela diz que lutou todo
esse tempo para recuperar seu filho porque o ama, porque queria o
melhor para ele. E que hoje, antes de sair, foi ao quarto que havia pre-
parado, pintado e decorado especialmente para ele, porque queria lhe
dar u m lar, e e n t ã o compreendeu que n ã o podia levá-lo porque seu
filho j á tinha um lar. E se joga nos braços de seu ex-marido, e choram
juntos, fortemente abraçados.
E uma imagem muito forte e comovente.
Estávamos nos referindo ao ciúme que pode surgir entre os pais
pelo carinho de seus filhos, mas t a m b é m ao sentimento de posse que
em algum momento pode nos fazer acreditar que alguém, neste caso
o filho, é u m objeto cuja posse pode ser disputada sem levar em conta
seus desejos. Mas quando os dois pais o olham e o veem como é, uma
pessoa com desejos próprios, com direito a escolher, a atitude dos dois
muda. O que essa história mostra é como o amor, quando é saudável,
funciona de outra maneira e gera outras atitudes. Porque esse pai era
capaz de perder o que amava para protegê-lo, e disse: "Que fique com
a m ã e " . Mas ela, por sua vez, t a m b é m renunciou ao que mais amava
para n ã o o machucar, e disse: "Este é o lar dele, esta é sua casa e, em-
bora eu o ame tanto, é aqui que deve ficar". E se a b r a ç a m e se reen-
contram, j á n ã o como um casal, mas como dois pais que amam um
filho com u m amor saudável e maduro.
98 ENCONTROS

A posse está em contradição com o amor. Possuímos objetos, n ã o


pessoas, e n i n g u é m que trate o outro como se fosse uma coisa pode
amá-lo verdadeiramente.
E n t ã o , é verdade que as relações humanas são complexas e mui-
tas vezes a posse, os ciúmes, a inveja se misturam, mas, se h á um ponto
no qual o amor se transforma em algo desejável na vida dos homens é
esse no qual alguém, antes de mais nada, respeita e vela pelo que ama.
Aí n ã o h á lugar para a posse. Possuímos objetos, n ã o pessoas. As pes-
soas desejam e escolhem por si mesmas.
H á quem n ã o entenda isso, e me vem à mente uma linda metáfora
de alguns povos africanos, que diz que, quando fechamos o punho, é
verdade que n i n g u é m pode nos tirar nada, mas n ã o é menos verdade
que t a m b é m n i n g u é m pode colocar nada novo em nossa m ã o .
Por isso compartilhei com vocês o relato desse filme. Porque acho
que essa história mostra, de maneira precisa, como no início h á uma
disputa entre duas pessoas que amam sinceramente, mas que esse
amor é expresso de um modo ciumento e n ã o leva em conta o ob-
jeto amado. No entanto, quando tudo começa a ser visto com mais
clareza, compreendem que, às vezes, para fazer as coisas direito, talvez
seja necessário sofrer: para ganhar, às vezes é preciso perder. Quando
alguém é capaz de enfrentar uma situação dessa maneira, fica a sensa-
ção de que, de vez em quando, o amor tem sentido.
Interlúdio II

N A RCISISMO

El e am a e não sabe que am a,


não sabe sequer q u al é seu sentimento
[...] El e não se d á c o nta de que o lha
a si m esm o no am ante c o mo e m u m
esp elho .

PLATÃO, FÉDON

Já que to camo s no tem a d o narcisismo , p arec e- me o p o rtuno faz er


u m brev e traje to p o r esse co nceito de v ital imp o rtânc ia p ara a estru-
tu ra teó rica d a p sicanálise. U m term o que Si g m u n d Fre u d c u nho u e m
1914 ap ó s sua ru p tu ra c o m Ju ng .
C a r l G u stav Ju n g estud o u m e d ic ina n a Univ ersid ad e d a Basileia
e fo i u m c o labo rad o r p ró xim o de Fre u d no início d a p sicanálise. M as
ao s p o uco s fo i se d istanciand o até que se d eu a ru p tu ra d efinitiv a entre
eles.
A íntim a c o nv ic ç ão que Fre u d ti n h a no p ap e l f u nd am e ntal d a
sexualid ad e n a o rig em d as d o enças p síquicas fo i o mo tiv o p rinc ip al
d essa b rig a. N ão p o d emo s esquecer que o c riad o r d a p sicanálise teve
que enfrentar to d a u m a c u ltu ra p ara d efend er suas teo rias, e Ju n g não
fo i exc eç ão .
E m g eral, Fre u d c o stumav a d ar u m temp o entre a elab o raç ão de
u m co nceito e sua p u b lic aç ão . C o n tu d o , essa d isp uta c o m Ju n g fez
que u m artigo f u nd am ental d a teo ria p sicanalítica, "Intro d u ç ão ao
narc isism o ", fosse p ub lic ad o quase de imed iato .
100 EN CO N TRO S

M as , antes, v am o s rep assar o mito que d á o rig em ao term o " n ar-


c isismo ".
E pro v áv el que a histó ria de am o r entre N arc iso e Ec o não seja
d as m ais co nhecid as, e talv ez isso se d ev a ao fato de se tratar de u m
ep isó d io meno r, mas n e m p o r isso carente d a belez a p o ética d a m ito -
lo g ia g reg a.
N a r r a O v íd io e m Metamorfoses que a b ela ninf a Lirío p e ficou g rá-
v i d a ao ser v io lentad a p elo rio Cef iso . O filho que d eu à luz era tão
lind o que a p artir d o m o m ento de seu nascimento to rno u-se o bjeto de
am o r e ad o raç ão d as o utras ninfas.
Preo c u p ad a c o m o d estino d a c rianç a, sua m ãe co nsulto u o cego
Tirésias, que era u m reco nhecid o v id ente, p ara que lhe dissesse o que
ag uard av a seu filho, e a resp o sta d o ad iv inho fo i a seguinte: "V iv erá
feliz enq uanto não v i r a si m e sm o " .
O temp o p asso u e N arc iso fo i crescend o , am ad o e ad o rad o pelo s
o utro s. M as, d entre to d as as p aixõ es que g ero u, d estaca-se a d e u m a
lind a ninf a: Ec o .
E sabid o que Z eu s, d eus d o O l i m p o , d av a asas a seus imp ulso s
eró tico s, fosse c o m ho mens o u mulheres. Su a espo sa e irm ã, H e r a , ten-
tav a e m v ão mantê- lo sob co ntro le, m as o d eus semp re d av a u m jeito
de b u rlar sua v igilância.
E assim fo i que, e m certa o casião , Z eu s p ed iu a Ec o que o aju -
dasse. A ninf a era f amo sa p o r sua hab ilid ad e e m relatar histó rias, u m a
esp écie de Sheraz ad e helénica, e Z eu s lhe atrib u iu a tarefa de entreter
c o m suas histó rias sua espo sa enq uanto ele i a atrás de suas co nquistas
amo ro sas. E assim fez Ec o d urante u m temp o , até que alg uém alerto u
H e r a ac erc a d essa arm ad i l h a.
H e r a , c o nhec id a p o r seu c aráter irascível, castig o u-a tirand o -lhe
esse d o m m arav ilho so que ela tinha c o m as p alav ras e c o nd enand o - a a
ap enas rep etir as últimas sílabas que escutasse d a b o c a dos o utro s.
C e rta v ez , a ninf a v i u N arc iso e ficou imed iatamente ap aix o nad a
p o r ele. C o m e ç o u a segui-lo sem que ele percebesse, até que p o r fim
d ec id iu se ap ro x im ar e lhe co nfessar seu amo r. M as , d ev id o a seu cas-
tigo , fo i-lhe impo ssível utiliz ar as p alav ras p ara sed uz ir N arc iso , que a
rejeito u de m an e i ra so berba e c ruel. Ec o , f erid a p ela o fensa, e x c lam o u
p ara si m esm a, quase c o m o u m a mald iç ão : " T o m a r a que, q u and o ele
N A RCISISM O 101

am ar c o m o eu o am o , se d esespere c o m o eu m e d esesp ero ". C o m o


b e m sabemo s, n a mito lo g ia clássica as mald içõ es semp re se re aliz am .
E u m a sina fatal ag iria a fav o r d essa.
N arc iso hav ia v isto seu ro sto refletid o nas águas d o rio , e a p artir
desse m o m ento ficou sentenciad o a am ar só a si m esm o . E esse e ra seu
p io r castigo , que o c o nd enav a à so lid ão eterna: " Inf eliz d e m i m que
não po sso m e sep arar de m i m m esm o . O u tro s p o d e m m e amar, m as
eu não po sso am ar" .
Essa p aixão fo i c o nsumind o - o até que, no d esespero de q uerer ter
a si m esm o , jo g o u-se no rio tentand o ab raç ar sua p ró p ria im ag em , e
se afo g o u. Lo g o c o m eç o u u m a estranha metamo rfo se. N a m arg e m d a-
quele rio , c o m eç o u a bro tar u m a lind a flor, a m e sm a que ho je lev a seu
no m e: N arc iso .
Ec o , p o r sua v ez , d esintegro u-se e se esp alho u p elo m u nd o . E ain-
d a ho je p o d emo s escutar, q u and o g ritamo s no to p o de u m a m o ntanha,
e m u m bo sque so litário , o u no c o rred o r d e u m ed ifício , ela no s res-
p o nd er rep ro d uz ind o no ssas últimas sílabas e g erand o esse f enó m eno
so no ro que justam ente c ham am o s de " e c o " .
A té aq u i v ai a histó ria que os mito s no s p e rm i ti ram co nhecer so -
bre N arc iso . M a s a que no s referimo s e m p sico lo g ia q u and o falamo s
de narcisismo ?
A p sicanálise utiliz a o term o " narc i si sm o " p ara exp lic itar u m m o -
mento p artic u lar n a v i d a d as pesso as no q u al se co nstitui u m a p arte
f u nd am ental de sua estrutura p síquica. V ejam o s u m p o uc o c o m o f u n-
c io na isso .
Q u an d o o b eb é nasce ai nd a não é u m a unid ad e, e sim u m a so m a
de z o nas eró g enas, e p o r m eio d elas c o m e ç a a co nhecer o m u n d o e a
se relac io nar c o m ele. A p ri m e i ra z o na eró g ena que entra e m f unc io -
nam ento é a bo c a. E a c h am ad a "fase o ral " , p erío d o que faz referência
ao m o m ento no q u al a c rianç a faz co ntato c o m o m u nd o p ela bo c a. E
ela, af inal, que o relac io na p e la p ri m e i ra v ez c o m o exterio r, q u and o
a m ãe lhe d á o p eito e lhe ensina que p o r ali entra o alimento , e tam -
b é m o amo r.
Po rq ue o p eito d a m ãe sig nifica p ara o b eb é m u ito m ais que c o m i -
d a, v isto que ele d esco bre nesse co ntato o am o r d ela, que p ara o b eb é
rep resenta o m u nd o to d o .
102 EN CO N TRO S

Ei s a imp o rtânc ia f u nd am ental que essa etap a tem no d esenv o l-


v im ento d a p sique de u m sujeito . Po r isso, q uand o os p ais no s traz e m
u m a c rianç a sup o stamente c o m p ro blemas, nó s, p sicó lo go s, c o stuma-
mo s p erg untar se fo i am am entad a, até que id ad e, c o m o a m ãe v iv eu
esse m o m ento , se go stav a de d ar o p eito o u se, ao co ntrário , isso a
inc o m o d av a. O que estamo s tentand o d esco brir, n a realid ad e, é c o m o
fo i a entrad a d essa c rianç a no m u nd o e no amo r.
A m ãe lhe manifesta o c arinho q u and o lhe d á o p eito , e a neg ativ a
disso é v i v i d a c o m o u m a rejeição . " Se m e d á o p eito é p o rq ue m e am a,
se não , é p o rq ue não m e a m a . " O u seja, há u m o bjeto v alio so , o p eito
m aterno , que o o utro d á o u não ao b eb é segund o sua v o ntad e.
Po sterio rmente c heg ará a fase anal. E o m o m ento d a aquisição
d o co ntro le dos esfíncteres, e nessa etap a o c o rrerão d uas mud anç as
imp o rtantes e m relação ao p erío d o anterio r.
A p ri m e i ra m u d anç a é o o bjeto : o p eito d a m ãe d á lug ar às fezes
d a c rianç a; e a o u tra é que ag o ra j á não é a m ãe que d á o u não o o b-
jeto v alio so , e sim a c rianç a. N a fase o ral, era ela q u e m p ed ia o seio ,
e ag o ra são os p ais que lhe p ed em : " V am o s, faça ag o ra... faça aq u i . . .
espere que j á estamo s cheg and o , segure u m p o u q u i n h o . . . p e ç a. . . av i-
se". O u seja, a c rianç a é q u e m está e m co nd içõ es de d ar o u não o que
os o utro s q u erem . E c o m e ç a a m ani p u l ar isso de tal m o d o que entreg a
o u não esse o bjeto q uand o e a q u e m lhe d á n a telha.
Po r isso são c o m u ns frases c o m o : " Q u e r o que m am ãe m e d ê
b an h o " o u " H o je q uero que p ap ai m e l i m p e " . El e s esc o lhem a q u e m
d ão esse o bjeto que os o utro s p are c e m tanto v al o ri z ar e que ele v iv e
c o m o se fosse u m p resente p recio so . A f i n al de co ntas, é u m a p arte de
seu c o rp o .
Essa atitud e d esp ó tica e c ap ric ho sa é que d á o rig em a essa fase
d eno m inad a sád ico -anal.
A terceira etap a é a que se co nhece c o m o fase fálica, e a p rep o n-
d erância é d ad a no m enino p elo pênis e n a m e n i n a p elo clitó ris. E o
m o m ento no q u al as crianças se to c am , e os p ais no s d iz em nas c o nsul-
tas: " N ão sei o que fazer, fica se to cand o o temp o to d o ".
Po is b e m , isso que tanto p reo c u p a os p ais é u m pro cesso n o rm al e
necessário p ara a co nfig uração p síquica de to d o ser hu m ano .
N A RCISISM O 103

M as , até aq u i, a c rianç a é aind a u m a so ma de z o nas eró g enas,


não se reco nhece c o m o u m a unid ad e e ai nd a não p o d e d iz er " e u " ao
se referir a si m esm o . Po r isso é c o m u m , c o m o d issemo s, escutar as
crianças f alarem d elas mesmas n a terceira p esso a. " D e q u e m é isso ?",
p erg untamo s. E ela não resp o nd e: " m e u " , e sim "d o Pe d ro " o u "d o
ne né " , segund o a id ad e.
Essas etapas d o d esenv o lv imento p síquico e sexual de u m a p esso a
o c o rrem no p erío d o que d eno m inam o s auto ero tismo , p o rque a rela-
ç ão d a c rianç a é c o m suas p ró p rias z o nas eró g enas. O m u nd o e seu
p ró p rio interesse g i ram semp re e m v o lta d elas, e ela aind a não está
c ap ac itad a p ara d ar seu am o r ao s o utro s p o rq ue n e m ela é u m a inte-
g rid ad e, n e m os o utro s o são p ara ela. A m ãe, só p ara citar u m exem -
p lo claro , aind a não é m am ãe , e sim seu p eito . E p ara p o d er c o m e ç ar a
d ar e receber am o r no sentid o p leno d a p alav ra, a c rianç a d eve f o rm ar
pesso as to taliz ad as, e não o bjeto s p arciais.
M a s a p sicanálise d esco briu que cheg ar a isso , que p arec eria tão
simp les, algo quase natu ral, é, muito p elo co ntrário , u m pro cesso cheio
de d ificuld ad es que imp õ e à c rianç a u m árd uo trabalho ; e sabemo s
tam b é m que muitas d as d ificuld ad es que enfrentamo s e m no ssa v i d a
n a fase ad ulta p ro v êm de alg u m a f alha no m o m ento de atrav essar al -
g u m a dessas fases.
Ciúmes, sentimento s po ssessivo s o u agressivo s, d ificuld ad es de re-
lac io namento o u imp o ssibilid ad e de no s d arm o s licença p ara ser feli-
zes resultam, muitas v ezes, de p ro blemas n a reso lução d o trabalho que
esse p ro cesso no s imp ô s q u and o crianças.
Diz íamo s que, p ara p o d er amar, p rim eiro a c rianç a tem que co ns-
truir u m a p esso a to tal, v er a m ãe, e não só seu p eito ; e o p rim eiro
o bjeto to tal, a p ri m e i ra p esso a c o mp leta que a c rianç a d esenv o lv e é
ela m e sm a. E esse m o m ento a p artir d o q u al a c rianç a d eixa de d iz er
" Pe d ro " o u "o n e n é " p ara se referir a si m e sm a e p assa a d iz er " e u "
é d eno m inad o narcisismo , e só d epo is desse p ro cesso , desse "no v o ato
p síq uic o " - c o m o o c h am o u Fre u d - , alg uém ad q uire a p o ssibilid ad e
de am ar a si m esm o e aos o utro s.
O am o r se to rnará u m elemento v alio so e limitad o , de m o d o tal
que o sujeito tem que ad m inistrar q uanto g u ard a p ara si e q uanto d á
aos o utro s. Po rque, quanto m ais am ar a si mesmo , meno s am o r terá
104 EN CO N TRO S

p ara o resto , e q u anto m ais o v erter p ar a o exterio r, m eno s lhe resta-


rá p ara c u id ar de seu v alo r e de sua auto estima.
Trata- se de m anter u m equilíbrio saud ável p ara ev itar c air e m si-
tuaçõ es extremas e d o entias. C o m o d iz a p o ética e v erd ad eira sentença
de irm ã Ju a n a Inés de l a C r u z : " O am o r é c o m o sal. Tan to sua falta
quanto seu excesso f az em m a l " .
São as p sico terap ias, e não a p sicanálise, que o uto rg am u m a en-
tid ad e clínica d eterm inad a ao s p ro blemas p sico ló gico s d eco rrentes de
u m m a u transcurso d essa etap a. Fo i c u nhad o o term o "transto rno s d o
narc isism o " p ara se referir às características p eculiares desse q uad ro
clínico . Tam b é m fo i inc o rp o rad o o term o "au to estim a" (que utiliz o
e m v árias o casiõ es neste liv ro , m ais p o r ser de uso hab itu al do s leito res
que p o r ser exato ).
Te n d o e m c o nta que o narcisismo faz referência à aquisição e es-
truturação do eu, os assim c ham ad o s transto rno s d o narcisismo d ev em
ter a ver, então , c o m d ificuld ad es n a co nstituição d a p erso nalid ad e, e
c o m as sequelas que p o d e riam d ar lug ar a d iv ersas d o enças.
Diz íamo s que o mito f az ia referência ao am o r p ela p ró p ria i m a-
g em. Então , temo s d o is temas: o d a p ró p ria im ag em , que ac abamo s de
tratar, e o d o amo r. E dissemo s tam b ém que o am o r deve ser ad ministra-
d o c o m o se fosse algo m aterial.
M a s q u al é a q uantid ad e de estima p o r si m esm o que alg uém d eve
ter p ara não so frer o que se c o stuma d eno m inar b ai x a auto estima; o u ,
ao co ntrário , atitud es eg o cêntricas?
O b v iam ente, existe a p o ssibilid ad e de que esses pro cesso s o co r-
r a m sem d eixar co nsequências grav es, m as, p ara entend er m elho r a
imp o rtânc ia que essa etap a tem n a v i d a ad ulta d as pesso as, v am o s às
co nsequências d o narcisismo p ato ló g ico , o u seja, d aqueles caso s no s
quais não há estabilid ad e suficiente no eu e a auto estima está p ertur-
b ad a.
E m g eral, nesses caso s trata-se de pesso as m u ito instáveis, que
m u d am c o m m u i ta facilid ad e seu estad o em o c io nal e m relação às si-
tuaçõ es. C o s tu m am ser v iv as, d iv ertid as e até alegres q u and o as co isas
saem c o m o elas q u erem . Po rém, se têm que enc arar u m a frustração ,
c ae m e m estado s de d ep ressão o u de aum ento d a ansied ad e. A tal p o n-
to que no s p erg untamo s c o m o é po ssível que essa p esso a que até p o u -
N A RCISISM O 105

co s minuto s estav a tão b e m co no sco , assim, de rep ente, e talv ez p o r


u m mo tiv o que n e m sequer é muito imp o rtante, co mece a cho rar, não
rac io c ine m ais e seja c ap az de u m g rau tão alto de ag ressiv id ad e.
Essas pesso as, d iante de c ad a c o mp lic aç ão , sentem que a situa-
ç ão lhes foge ao co ntro le e c o stu m am to m ar q ualq uer c o mentário que
entre e m c o ntrad iç ão c o m elas c o m o se fosse u m a agressão p esso al.
Deseq uilib ram- se, e c o m o não p o d e m reso lv er de u m m o d o satisfató -
rio esse d esequilíbrio , ap elam p ara respo stas d o entias, p o r exemp lo , a
c o nd u ta d e v ício o u p sico p ática.
M a s não d ev emo s d ed uz ir, disso , que são pesso as que semp re
ap resentam b ai x a auto estima, v isto que c o m o m ec anism o de d efesa
tam b é m c o stuma ap arecer u m a sup erestimação d o eu, o que p ro d u z
u m a sup erv alo riz ação de si mesmo s. Q u an d o assu m em essa p o stura
m an í ac a to rnam - se intratáv eis, não ad m i te m ser c o ntrariad o s, p o r-
que eles n u n c a e rram e jam ai s rec o nhec erão ter co metid o u m erro .
Po d emo s im ag inar c o m o é difícil v iv er c o m alg uém assim. C o m
u m a p esso a que acred ita ter semp re raz ão , que d esv alo riz a o temp o
to d o os que p ensam d iferente e que tenta d eg rad ar os que co nsid era
v alio so s p ara que ning uém jam ai s a sup ere.
O b v iam ente, no tamo s o eno rm e g rau de inseg urança que essas
pessoas ap resentam, mas, e m v ez de manifestá-lo c o m a atitud e de pinti-
nho molhado, ao co ntrário , são so berbas, altiv as e c o stu m am h u m i l h ar os
d emais c o m seus co mentário s. A p are n tam ser muito seguras e auto ssu-
ficientes, mas u m a co isa as d elata: essa imp o ssibilid ad e de reco nhecer
seus erro s, v isto que, p ara p o d er aceitar os erro s, é necessário u m g rau
m ínim o d e equilíbrio em o c io nal. Q u e m se questio na é semp re mais
fo rte que q u e m p ro jeta a resp o nsabilid ad e e m alg uém de f o ra.
Esses sujeito s se v e e m n a o brig aç ão de v enc er a q ualq uer custo e
não su p o rtam a frustração q u and o não co nseg uem. C o n f u n d e m a p ar-
te c o m o to d o . O u seja, o m e no r sucesso faz que se sintam geniais, e a
m eno r frustração lhes d eixa a sensação de que não serv em p ara nad a.
M as, feliz mente, existe a p o ssibilid ad e terap êutica de trab alhar
p ara reso lv er esses p ro blemas.
Co stum a- se questio nar n a p sicanálise a tend ência de buscar co ns-
tantemente n a infância a raiz do s p ro blemas atuais, e há q u e m af irm e
que é u m a b o b ag em ir tão lo nge e m v ez de enc arar o aq u i e ag o ra d o
106 EN CO N TRO S

co nflito . M as, c o m o v emo s, a infância é u m a etap a de v ulnerab ilid ad e


e ind ef ensabilid ad e, e sua p o ssibilid ad e d e ser o u não feliz n a v i d a
d ep end erá de c o m o a c rianç a co nseg uirá reso lv er os desafio s que sur-
girão nessa fase.
Quinto encontro

O EN IGM A DA SEXUA LID A D E

O realismo no am o r não v ale m ais que


n a arte. N o aspecto eró tico , a imitaç ão d a
natu rez a se transf o rm a n a imitação d o ani-
m al .

JOSÉPHIN PÉLADAN
108 EN CO N TRO S

Instintos básicos

V am o s ad entrar u m a temátic a c o m p lexa e co nflituo sa, a d a se-


xu alid ad e; e, p ara isso , eu g o staria de rec o rd ar o c o m e ç o de o utro f il-
me, Instinto selvagem, c u ja trad ução literal d o o rig inal seria "instinto s
b ásic o s". Talv e z tenha sid o u m a d ecisão de marketing , o u u m a esco lha
d o trad uto r, não sei, m as a v erd ad e é que não sig nifica a m e sm a co isa.
D i z e r que u m instinto sexual é básico é m u ito d iferente de d iz er
que é selv ag em; p o rq ue selv ag em p o d e sug erir algo rud e, ao passo que
básico im p lic a que está n a base, n a o rig em d a sexualid ad e h u m an a.
Então , isso j á abre o utra d imensão p ara p ensar o tem a.
M a s v am o s ao filme.
N a p ri m e i ra c ena, d e não mais de d o is minuto s, v emo s u m a m u -
lher muito bo nita m antend o relaçõ es sexuais c o m u m h o m e m . V em o s
ela se m o v er so bre ele, o uv imo s seus g emid o s, e a c ena é certamente
muito eró tica; até que, no m o m ento d o clímax, ela saca u m o bjeto
p o ntud o que estav a esco nd id o d ebaixo d o c o lc hão e o m ata, ap u nha-
land o -o d iv ersas v ezes, enquanto , c o m esse ato de agressão final, atin-
ge a m áx i m a excitação e cheg a ao o rg asmo .
C i to essa c ena p ara d izer, desde o início , que a sexualid ad e n e m
semp re está lig ad a ao amo r, que não é algo natu ral n e m simp les de
l i d ar n e m d e co nstituir, e q ue no ser h u m a n o - e p o r isso a esc o lha
d e u m exemp lo tão extremo - , muitas v ezes p ara que o p raz er seja
to tal, p ara que se to rne go zo , é necessário algo d a o rd em d a d o r o u ,
inclusiv e, d a d estruição .
Pensem nas am eaç as que se f az em os amantes anu nc iand o o que
farão u m ao o utro , o u no c o m entário de u m a m u lhe r a suas amig as
d epo is de u m a relação muito intensa: " E aí, c o m o f o i? ", p erg u ntam -
-lhe; e ela, p ara transm itir a p o tênc ia eró tica de seu c o m p anheiro e a
m ed id a de seu p raz er, resp o nd e: " D e m atar! El e é u m ani m al , ac ab o u
c o m ig o ".
E m g eral, temo s a id eia de que a sexualid ad e busca c o m o resul-
tad o o o rg asmo , e que esse m o m ento é u m a c o m u nhão de d o is co rp o s
que se entrelaç am intim am ente co nectad o s. Po is b e m , não é assim.
E m m e u ro m anc e 0 lamento do violino há u m a c ena eró tica entre o
p ro tag o nista, Pablo , e u m a jo v e m de no m e Lu c i an a, e nela d escrev o o
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 109

ato sexual até suas últimas co nsequências, físicas e p sico ló gicas, entran-
d o n a mente desse h o m e m , no que ele está sentind o .
O que quis transmitir nessa d escrição , e espero ter co nseg uid o ,
é que, no instante d o o rg asmo , o sujeito semp re está so z inho . Q u e o
o rg asmo é d o um, não é d o casal, que, nesse m o m ento final, o que
se esp era d o o utro é que não atrap alhe. O o rg asmo é u m ato que se
d esfruta n a mais p ro f u nd a so lid ão . A l g u m as pesso as p o d e m até d iz er:
" Fi q u e q u ietinho ... não se m e x a . . . não d ig a n ad a" , o u o utras frases
d o tip o . Q u e r d izer, o que o amante p ed e nesse m o m ento é que o d ei-
x e m so z inho c o m seu co rp o , c o m suas sensaçõ es, n a p o sição que m ais
lhe ag rad a e c o m o m o v im ento rítmico que d eseja, c o m suas fantasias
inclusiv e; p o rq ue ali ap arece to d a u m a questão que não é de d o is, e
sim de u m . E co nhecer e resp eitar esse m o m ento é p arte d a co nstrução
de u m relac io namento .
Sabemo s isso e co stumamo s exp ressá-lo de muitas m aneiras d ife-
rentes. U m a p aciente, faland o d a b o a sexualid ad e que tinha c o m seu
c o m p anheiro , disse assim: " E d emais. Po rque nó s no s co nhecemo s, j á
inc o rp o ram o s o ritm o u m d o o utro , e ele sabe exatamente c o m o eu
go sto ".
O u seja, às v ezes se d esenv o lv e certo c o nhec imento so bre c o m o
não inc o m o d ar o o utro e m u m m o m ento tão intenso e tão íntimo ; e m
que p o siç ão lhe é m ais fácil c heg ar ao o rg asmo , o que o inc e ntiv a o u
o que o inc o m o d a.
M as, ap esar d o que essa p aciente d iz ia, a v erd ad e é que não exis-
te u m saber univ ersal so bre a sexualid ad e, p o rq ue c ad a u m enc o ntra
seu m áxim o p raz er n a m ane ira única e p articular que sua mente e seu
c o rp o d e m an d am . E o m elho r am ante é aquele que aceita que, nesse
instante, não é o p ro tag o nista d a histó ria.
O b o m p arc eiro sexual não é o que v e m c o m tud o p rep arad o ,
tud o so b co ntro le, e utiliz a a m e sm a técnica c o m to d as as pesso as, p o r-
que a sexualid ad e h u m an a é u m territó rio de incertez as, e não de cer-
tezas.
Esc lareç o isso p o rq ue ho je ab u n d am os g urus que se p o stulam
c o m o os p o ssuid o res d as respo stas p ara to d as as p erg untas po ssíveis.
Inc lusiv e há q u e m fale c o m o se co nhecesse o segred o d o am o r e p u -
desse ensinar c o m o se g o z a e c o m o se faz o o utro g o z ar; send o que a
110 EN CO N TRO S

única questão é, c o m o d issemo s, inc o m o d ar o m ínim o po ssível e ter a


sensibilid ad e p ara ir d esco brind o o que o o utro ac ha p raz ero so .
Le m b ro que u m a p aciente m e disse e m u m a sessão que se, no
mo mento e m que estava tend o u m o rgasmo , seu p arceiro não estivesse,
seria melho r. C l aro que era u m a b rinc ad eira, m as j á falamo s so bre a
b rinc ad eira e sua relação c o m o inco nsciente. A lém de tud o , não hav ia
p ro b lem a no que d iz ia. A sua m ane i ra, o que exig ia era o d ireito de se
p e rm i ti r e x p e ri m e n tar seu m o d o p esso al d e d esf ru tar o o rg asm o .
Se nesse m o m ento o c o m p anheiro sexual faz alg u m m o v im ento i n -
co nv eniente, seja v erb al o u físico, a m ag ia se interro mp e e u m p o uco
do p raz er se p erd e. E o famo so : " Estav a quase lá" . O u , c o m o d iz ia a
m e sm a p aciente: " Fo i u m o rg asminho , não fo i desses fo rtes, desses que
d e i x am a gente trem end o ".
E p o r que isso? Po rque não p ô d e ficar so z inha nesse m o m ento e m
que o físico se fund e c o m o p síquico , o p raz er c o m a dor. Po r isso não
no s d eve surp reend er que p ara muitas pesso as seja mais fácil ating ir o
o rg asmo q uand o se m astu rb am que q u and o m antê m relaçõ es sexuais.

O orgasmo feminino e a mentira

Em b o r a o o rg asmo seja u m tem a difícil de abo rd ar, co stumamo s


no s referir a ele c o m o o m o m ento de d escarg a de u m a g rand e tensão
que fo i se ac u m u land o no s jo g o s p reliminares e d ep o is d urante o ato
sexual p ro p riam ente d ito .
M as, p ara p o d ermo s p ensar so bre essa questão , é necessário antes
intro d uz ir u m co nceito , p sicanalítico , o p rincíp io d o p raz er. Peço que
m e ac o m p an h e m no d esenv o lv imento d essa id eia p ara entend er m e-
lho r o que estamo s faland o .

N ó s, p sicanalistas, q uand o falamo s de p raz er/ d esp raz er, não no s


referimo s àquilo de que u m a p esso a go sta o u d esgo sta, e sim a u m a
questão de tensão p síquica, p o rq ue a p sique f u nc io na c o m base e m
d iferentes g raus de tensão que p o d e m au m entar o u d iminuir.
Po is b e m , há u m limite ac i m a d o q u al essa tensão c o m e ç a a ser v i -
v id a co mo desprazer, e precisamo s, então , d iminuir esse excesso de tensão
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 111

p o rq ue ela g era u m aumento d a ansied ad e. C o m o ? D e muitas m ane i -


ras.
Penso nas v ezes e m que alg uém d iz a u m amig o : " C h o r e que v ai
lhe faz er b e m , d escarreg ue". Nesse co nv ite à catarse, a p esso a está p ro -
p o nd o u m m o d o po ssível de d escarg a d a tensão p síquica excessiv a.
Esse f unc io nam ento que faz que a p sique tend a a m anter co ns-
tante u m nível de tensão , que n u n c a será z ero , p o rq ue não teríamo s
desejo de nad a, e a d im inuir qualquer excesso p o r registrá-lo c o mo des-
p raz er, é c ham ad o p rincíp io d o p raz er.
C o ntu d o , n a sexualid ad e aco ntece algo que p arece c o ntrariar
isso, p o rque, d ad o esse esq uema, p o d emo s entend er que o p raz er esta-
ri a n a d escarg a d a tensão ac u m u lad a e que o fim d a relação sexual é,
então , o o rg asmo . M as , assim send o , p o r que, então , muito s o ad i am ,
o afastam no temp o o m áx im o que p o d em . Po r que, se o p raz er está
n a d iminuição d a tensão , temo s tanto p raz er c o m u m a tensão extrem a
que p siq uic amente d ev eria ser v i v i d a c o m o d esprazível?
Po d eríamo s d iz er que isso o co rre, talv ez , p o rq ue n a sexualid ad e
entra e m jo g o u m " m ai s al é m " d o p rincíp io d o p raz er, o que exp lic aria
p o r que o o rg asmo tem algo de d o lo ro so . Basta v er o d esco ntro le, o
p ulso que se acelera, os g emid o s, as exp ressõ es d o ro sto , p ara entend er
isso. D e fato , as crianças, e m suas fantasias, i m ag i n am que o ato sexual
é algo agressivo . E não d ev emo s estranhar, p rincip almente se p ensarmo s
nas manifestaçõ es físicas e v erbais que o ac o m p an h am .
Po is b e m , se f alar d o o rg asmo é f alar tam b é m de algo enig mático ,
no s ho m ens isso p arece se simp lif ic ar u m p o uco , p o rq ue se c o nf u n-
de o rg asmo c o m ejaculação . M as é a m e sm a co isa? E u m e p erg unto
quantas v ezes alg uém ejac ula e, no entanto , o p raz er o btid o não é tão
g rand e, trata-se ap enas de u m a d escarg a sem inal p ro v o c ad a p o r certo s
estímulo s co rp o rais, m as sem o surg imento d a sensação fo rte, quase
d esco ntro lad a p ro d u z id a p elo o rg asmo , ao passo que, o utras v ezes, es-
sas sensaçõ es surg em m esm o e m ausência de ejaculação .
Isso n e m semp re é entend id o , p o r isso, alg umas v ezes, q uand o d e-
p o is de u m a relação m arav ilho sa n a q u al o h o m e m não ejaculo u, a
p arc eira c o stuma p erg untar: " N ão v ai te rm inar ho je? ".
E em b o ra ele ju re que está nas nuv ens e que p asso u u m m o m ento
incrível, p o d e ser que ela não se c o nf o rme c o m isso e insista: " Si m ,
claro , m as não te rm i n o u . . . não estav a b o m ? " .
112 EN CO N TRO S

Nesses caso s, o que se exige é u m a p ro v a, eu quase d iria u m a g a-


rantia de que o h o m e m c u rtiu .
D o m esm o mo d o , tam b é m alguns ho mens - ev id entemente, esto u
faland o d aqueles c u ja o rientação é a hetero ssexualid ad e - p rec isam
co nstatar que sua c o m p anhe ira c u rtiu o enco ntro sexual, m as, c o m o
n e m sequer têm essa p ro v a eng ano sa d a ejaculação , c o stu m am ser
mais inseguro s, e d ificilmente co nseg uem ev itar a p erg unta: " V o c ê go -
z o u? M a s não m i nta, d ig a a v e rd ad e " .
E , muitas v ezes, m esm o que ela d ig a a v erd ad e, não basta p ara
co nv encê-lo . Po r isso, essa id eia estereo tip ad a que c irc u la so bre o fingi-
mento d o o rg asmo f em inino tem , n a realid ad e, d o is possíveis mo tiv o s:
o p rim eiro deles é tranq u iliz ar o o utro , que q uer escutar que esteve à
altura d as circunstâncias. C o m o se c o m os grito s exag erad o s ela es-
tivesse lhe d izend o : ' A ssim está bo m? Está tranquilo ? D ig a- m e quantas
vezes p rec isa disto que eu f aç o " .
O o utro mo tiv o possível d a mentira co stuma ser que muitas mulhe-
res se env erg o nham de não chegar ao o rgasmo . C o m o se ho uvesse algo
de errad o nisso , co mo se fo ssem meno s mulheres. Então , o fingimento
v e m co brir o que elas v iv em co mo u m fracasso pesso al. M as, e m ambo s
os casos, a p ro blemática em jo g o é a insegurança, seja de u m o u do o utro .
A resp o sta d iante d a d e m and a de c o mp ro v aç ão d o o rg asmo d o
p arc eiro sexual ap arece, então , c o m o u m jeito de enc o ntrar tranq u i-
lid ad e d iante d a ausência de u m saber po ssível so bre a sexualid ad e. E
isso se lig a ao que j á exp usemo s so bre a falta d o instinto no h o m e m .
Vo cês i m ag i n am u m c ão p reo c up ad o e m saber c o m o fo i p ara a
cad ela? C ertam ente, não ; p o rq ue ali, sim , há u m saber so bre o c o mo ,
o q uand o e o p o rq uê d o enco ntro sexual. Po rém, c o m o n a natu rez a d a
sexualid ad e h u m an a não há u m saber natu ral, o p arceiro tenta d esco -
b rir até o nd e co nseg uiu satisfazer o o utro , c o m o se saiu, que tip o de
amante é; e m o utras p alav ras, q u al é, sexualmente faland o , seu lug ar
de imp o rtânc ia p ara o o utro .

A satisfação

Já fizemos referência, e m u m cap ítulo anterio r, à d iferença exis-


tente entre o instinto e a p ulsão , e d issemo s que o instinto sexual p er-
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 113

mite cheg ar à satisfação to tal. Po r isso , q u and o d o is cães c u l m i n am o


ato sexual, n e n h u m dos do is p ensa e m se p erg untar p o r que fizeram isso,
se v aleu a p e na o u se estão arrep end id o s, c o m o muitas v ezes aco ntece
c o m alg umas pesso as.
A o co ntrário , d ão m eia- v o lta e ficam alguns minuto s g rud ad o s
o lhand o p ara lad o s o po sto s. E u m c o m p o rtam ento natu ral p ara d ar
p o r co ncluíd o o ato sexual e g arantir que até a última go ta d a semente
entre no co rp o d a f êm ea e m busc a d a p ro c riaç ão . Po rq ue o fim d o
instinto sexual, reco rd emo s, é a rep ro d ução . A l g o que nó s, hu m ano s,
co stumamo s evitar, exceto nas p o ucas o casiõ es e m que estejamo s bus-
c and o u m a g rav id ez .
N o entanto , e ntram e m jo g o o utro s mec anismo s que p assam p ela
p alav ra, p elas carícias. O c ão não se p reo c u p a e m ac o m p anhar a c a-
d ela até sua c asinha d ep o is d o ato sexual, n e m fica lhe faz end o c ari-
nho . Eles não p rec isam d isso , nó s sim , p o rq ue no h o m e m as co isas são
d iferentes, p o rq ue a p ulsão não é instinto . N ão há u m saber po ssível,
muito meno s u m a satisfação to tal a resp eito .
Te n tar c o m u nic ar algo d a o rd e m d a p ulsão e m u m liv ro que não
p retend e ser utiliz ad o c o m o m aterial de estud o é m u ito c o mp lic ad o ,
p o rq ue se trata de u m co nceito teó rico que, c o m o to d o co nceito p ro v e-
niente d a p sicanálise, se refere a co isas que ac o ntec em n a clínica. Po r
isso é algo tão difícil de transmitir.
M as, p elo meno s, fiquemos c o m as d iferenças e m relação ao ins-
tinto que enfatiz amo s e m cap ítulo s anterio res e saibamo s que a p ulsão
tem quatro elemento s: a fo nte o u o rig em, que é alg u m a p arte d o co r-
p o , o que c ham am o s de z o nas eró g enas; o o bjeto , que c o m o v im o s não
é fixo c o m o o d o instinto , v ari a de sujeito p ara sujeito ; a finalidade,
que é a satisfação , que jam ai s se alc anç a to talmente e que e m sua insa-
tisfação m anté m a existência d o d esejo ; e, p o r último , que rep resenta
u m trabalho co nstante p ara no ssa p sique, u m esfo rço p ara que faça
algo c o m ela.
E não no s ap ro f und aremo s m ais nisso p o rq ue seria algo que exce-
de a intenç ão deste liv ro . Par a q u e m quiser se ap ro fund ar, rec o mend o
o texto freud iano "A s pulsõ es e seus d estino s".
V am o s reto m ar u m a d as co isas que têm a v er c o m a finalidade
d a sexualid ad e h u m an a, que, c o m o d issemo s, não é a p ro c riaç ão , e
114 EN CO N TRO S

sim o p raz er. Q u e ro d iz er c o m isso que o sujeito h u m an o tem relaçõ es


sexuais não p o rque sua natu rez a o lev a a p ro criar, e sim p o rq ue go sta.
E , além de tud o , os p ais se enc arreg am de ac ab ar c o m q ualq uer v is-
lu m b re natu ral de seus filho s n e m b e m se d esenv o lv em.
Q u an d o o ad o lescente tem suas p rim eiras p o luçõ es no turnas, no
caso dos ho mens, o u a p ri m e i ra menstruaç ão (menarca), no caso d as
mulheres, o que ind ic a que j á p o d eria p ro criar, v e m o m o m ento - se
é que não o fizeram antes - de exp lic ar- lhe c o m o v iv er a sexualid ad e
sem inco nv enientes, c o m o se c u id ar p ara não c o ntrair d o enças sexual-
mente transmissíveis, mas tam b é m p ara não c o rrer o risco de u m a g ra-
v id ez ind esejad a.
N ão há n ad a m ais antinatu ral que a sexualid ad e resp o nsáv el. A í
se vê c laramente c o m o o ser h u m an o é, antes de m ais nad a, u m p ro -
d uto d a c u ltu ra.
Po r quê? Po rque, se seguir o c am inho natu ral, o jo v e m v ai and ar
p o r aí eng rav id and o as mo ç as, o u as m o ç as ficando gráv id as o temp o
to d o . Então , o que faz emo s? Jo g am o s a c u ltu ra e m c i m a deles e d iz e-
mo s: " V e n h a p ara c á. E muito leg al m anter relaçõ es sexuais, mas c o m
resp o nsabilid ad e". En si n am o s o que é u m p reserv ativ o , p o r exemp lo ,
o u lev amo s a jo v e m ao gineco lo gista p ara que lhe exp lique c o m o d eve
se c u id ar p ara v iv er u m a sexualid ad e resp o nsáv el. E o que estamo s
d iz end o q uand o exp lic amo s isso tud o ?
Q u e sua m eta não é a m eta instintiv a, que ele não é u m ani m al ,
que tem que faz er p o r p raz er e p ara ap ro v eitar, que d eve ev itar os
p ro blemas que ac arreta, vivê-lo segund o as leis d a natu rez a. O u seja,
c o m eç am o s a d elimitar o tem a so bre q u al é a m eta d a sexualid ad e h u -
m an a e transmitimo s que o fim é ter p raz er sem p ô r a saúd e e m risco ,
d esfrutar sem co meter d escuid o s.
Dep o is, c o m o temp o , talv ez chegue o mo mento e m que essa pes-
so a deseje e d ecid a ter u m filho, mas é preferível que não seja aos cato rze
ano s. To d o s sabemo s que a g rav id ez ado lescente é estud ad a e reco nheci-
d a c o mo u m p ro b lema so cial. E isso aco ntece p o rque n a espécie h u m a-
na há u m p arad o xo , que é o fato de que, p ara d esemp enhar a função de
pais, n e m semp re a p ro ntid ão física c o m b ina c o m a psíquica.
Po r exemp lo , e m b o ra a natu rez a d ig a o co ntrário , u m a m u lher
de 45 ano s está muito mais cap acitad a p ara ser m ãe que u m a garo ta de
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 115

quinz e. E p o r isso d esenv o lv emo s as técnicas p ara ev itar a g rav id ez n a


ad o lescência e p ara p ro p iciá-la, inclusiv e p o r méto d o s assistido s, q u an-
d o se é ad ulto .
V em o s que não é p o uc o o trabalho que se imp õ e p ara lid arm o s
c o m essa falta de sinc ro nia entre o natu ral e o h u m an o c o m relação ao
sexo . O fato de u m jo v e m estar fisicamente ap to p ara p ro c riar q uinz e
o u v inte ano s antes de ating ir a m atu rid ad e p síquica não é u m d etalhe
sem imp o rtânc ia. E temo s que lid ar c o m isso tam b é m n a h o ra de v iv er
a sexualid ad e.

Sexo, moral e religião

A o lo ngo d as p alestras que d ei p o r to d o o p aís, muitas v ezes recebi


co mentário s o u p erg untas referentes ao p ap el que os c o nd ic io nam en-
tos so ciais e religio so s p o d e riam ter no tem a d a sexualid ad e. Le m b r o
que alg uém m e p erg unto u d iretamente: " E quanto à p ro ibição de fo r-
nic ar? C o m o faz emo s p ara não v iv er c o m c u lp a o p raz er sexual, c o m
u m m and am e nto d esses?".
A v erd ad e é que a c u ltu ra semp re tento u m anter o h o m e m sob
co ntro le, e essa p ro ibição d o ato sexual se baseia e m d uas p remissas. A
p ri m e i ra, que no sexo existe algo que não é leg al, algo ru i m ; e a segun-
d a, que é necessário restring ir a sexualid ad e ao bio ló g ico , ao natural,
esquecend o o fato de que o ser h u m an o não é u m ser natu ral, e sim
u m ser c ultural.
A lg u m as religiõ es até p resc rev em c o m o os cô njug es d ev em m an -
ter relaçõ es sexuais p ara ev itar que os co rp o s se to q uem, p ara que não
haja beijo s n e m carícias, p ara que não se o lhem n e m se f alem , e que só
o p ênis e a v ag ina f aç am co ntato , tend o c o m o único fim a p ro c riaç ão .
Justam ente o co ntrário d o que falamo s e m u m a p assag em anterio r
deste liv ro , de não red u z ir a sexualid ad e ao g enital.
C o m essas p ro ibiçõ es e m and am ento s gerad o res de c u lp a, o que
se tenta é ap ag ar o m ais imp o rtante d a sexualid ad e h u m an a: o p raz er.
Po rque a id eia básica é que há algo d e errad o no p raz er, u m a esp écie
de m ed o d o hed o nismo . M a s d ev o d iz er que entre alg uém que se p er-
mite exp erim entar o p raz er d a sexualid ad e e u m hed o nista, o u seja,
aquele que faz d o p raz er sua m áx i m a de v i d a, há u m abismo .
116 EN CO N TRO S

N ão esto u d iz end o que a busca d a g rav id ez não p o ssa ser, e m al -


guns caso s, o que inc ita o enco ntro sexual. E ó bv io que o d esejo de ter
u m filho p o d e ser tam b é m u m d esejo v erd ad eiro e fo rte. M a s o bserv e-
mo s que esse d esejo é de u m a o rd e m d iferente ao d a busca d o p raz er,
tanto que, q u and o u m casal d ecid e ter u m filho , p o d e to rnar p úbli-
c a essa d ecisão . C o m o se não estivessem faland o de sua sexualid ad e.
Po d em dizer, p o r exemp lo , que c o m e ç aram a tentar. E os o utro s lhes
d esejarão b o a so rte, falarão de no mes, p ad rinho s o u presentes. Po rém,
q uand o o que se está buscand o é u m p raz er m ai o r o u a realiz ação de
alg u m a fantasia, isso fica no fo ro íntimo e p riv ad o d o casal.
Então , q u and o o d esejo de p aternid ad e o u de m aternid ad e ap a-
rece c o m o u m d esejo g enuíno d o sujeito , transfo rma-se e m u m p ro jeto
de v i d a m arav ilho so , m as q u and o a g rav id ez não é o fruto desse dese-
jo , ap arece a ang ústia.
O p aciente v e m abalad o , d eso rientad o e d iz que não sabe o que
fazer, se ter o filho o u não , se usar a pílula d o d ia seguinte o u esp erar
u m as semanas, e essa situação p o d e afetar o casal de u m m o d o tal
que aqueles que até p o uco s d ias p l an e jav am m o rar ju nto s às v ez es
c he g am a se p erg untar p o r que se env o lv eram c o m essa p esso a. E p o r
que tanta angústia, tanto nerv o sismo , se o que aco nteceu é u m fato
to talmente natural?
Justam ente p o r isso, p o rq ue as questõ es d o ser h u m an o e d a natu -
rez a n e m semp re - o u melho r, quase n u n c a - an d am ju ntas.

Casamento igualitário

A b o rd ad a essa temática, é v álid o rec o rd ar que, há p o uc o temp o ,


a so cied ad e arg entina fo i ab alad a p o r u m fo rte d ebate de id eias que
teve c o m o d esenlace a p ro mulg aç ão , p o r p arte d o Senad o d a naç ão ,
d a lei de casamento igualitário , que p erm ite que d uas pesso as d o mes-
m o g énero se c asem, e lhes o uto rg a, inclusiv e, o d ireito de ad o ç ão .
C o m p ro f u nd a em o ç ão , recebi o co nv ite d o Senad o p ara ser u m
do s exp o sito res d iante d a co missão resp o nsáv el p o r tratar esse tem a. E
fo i assim que, e m u m a f ria m an h ã p o rtenha, eu m e enco ntrei f az en-
d o p arte d a histó ria arg entina e m m ais u m a d as lutas pelo s d ireito s
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 117

de ig uald ad e p erante a lei, de u m m o d o m ínim o e mo d esto , tentand o


simp lesmente o ferecer alg u m p ensamento que pud esse ajud ar a refletir
àqueles que d ev iam d ecid ir so bre u m tem a tão sensível à c o munid ad e.
A p ri m e i ra co isa a d iz er é que essa d iscussão p ô s n a m esa d o is
eixo s so bre os quais é necessário refletir: a sexualid ad e e o amo r. E ,
c o m o naqueles teo remas matemático s c uja d emo nstração se faz pelo
"ab su rd o ", o u seja, p ela neg ativ a, p areceu-me imp o rtante d eter-me no s
mo tiv o s d aqueles que sustentav am u m a o p o sição à aceitação dessa lei.
A ssi m , enco ntrei que as o bjeçõ es se sustentav am basicamente e m
quatro p ilares: a sexualid ad e natu ral, alg umas questõ es so ciais, u m a
id eia de saúd e e, ev id entemente, mo tiv o s religio so s.
A c e rc a d a o p o sição à id eia d a naturalid ad e d a sexualid ad e h u m a-
n a r á ac abamo s de faz er u m extenso d esenv o lv imento .
Q u anto às o bjeçõ es so ciais, é v erd ad e que a ho mo ssexualid ad e i m -
p lic a u m a co nd ição d iferente d a hetero ssexualid ad e, mas ser d iferente
n a o rientação sexual não im p lic a que d ev am ser d iferentes p erante a lei.
U m a p esso a alta tam b é m é d iferente de u m a b ai x a, u m h o m e m
de u m a mulher, e u m b ranc o de u m neg ro ; e a so cied ad e, ap o iad a nes-
sas d iferenças, d urante muito temp o as p ro jeto u no territó rio do s d i -
reito s civ is. A ssi m , até há p o uc o , as mulheres, p o r serem d iferentes do s
ho mens, não e ram co nsid erad as cap acitad as p ara v o tar, e no s Estad o s
Unid o s, p o r exemp lo , era p ro ibid o o casamento inter- rac ial. H o je , u m
filho fruto d a p o ssibilid ad e d essa união é o p resid ente d essa naç ão .
Restring ir os d ireito s de u m a p esso a baseand o -se n a d iferença só
é co ncebív el q u and o essa d iferença tem a v er c o m u m a c o nd iç ão de
id ad e, de d o enç a o u d e c o nd u ta p erante a lei. Po rq ue, nesses caso s, a
lei p ro tege o sujeito de si m esm o (seja p o rq ue se trata de u m a c rianç a,
o u d e alg uém que, p o r c o nta de al g u m a d o enç a, não está e m c o nd i-
çõ es d e se resp o nsabiliz ar p o r suas d ecisõ es) o u p ro tege a so cied ad e,
no caso d e pesso as que sejam p erigo sas p ara os o utro s, restring ind o
seus d ireito s.

Objeções baseadas na saúde

A ho mo ssexualid ad e teve que enfrentar d iferentes e eno rmes p ro -


cessos p o r p arte d a c u ltu ra segund o os mo mento s d a histó ria. A ssi m ,
118 EN CO N TRO S

fo i c o nsid erad a p rim eiro u m d elito , d ep o is u m p ecad o o u u m a d o enç a


c ausad a p o r alg u m a d eg eneraç ão co ng énita.
M as, feliz mente, n a m ai o ri a do s países a lei j á não c o nd ena a ho -
mo ssexualid ad e, e a O rg aniz aç ão M u n d i a l d a Saúd e ( O M S) , p o r sua
v ez , d eixo u de co nsid erá-la u m a d o enç a p ara v ê-la c o m o u m a esco lha
de am o r d iferente.
A p e sar disso , no entanto , no d ec o rrer desse ap aixo nante d ebate
p ud e escutar muitas co isas, alg umas muito inteligentes e o utras basea-
das no p u ro p reco nceito .
A lg u ns legislad o res, e inclusiv e méd ico s e p sicó lo go s, af i rm aram ,
fracassand o n a iro nia e mo strand o u m d esco nhecimento que assusta,
que se a d ecisão é d ar ig uald ad e p erante a lei às d iferenças sexuais, p o r
que não p e rm itir tam b é m a z o o filia (sexo c o m animais), a necro filia
(sexo c o m mo rto s) o u a p ed o filia (sexo c o m crianças), v isto que tam -
b é m são esco lhas d iferentes que u m a p esso a p o d e faz er?
Po is b em , há algo que q u e m d efend e esse arg umento p arece não
p o d er co mp reend er, e é o fato irrefutável de que u m an i m al e u m m o r-
to não p o d e m esco lher m anter essa relação sexual, e que u m a c rianç a
não tem a m atu rid ad e p ara fazê-lo , ao passo que m anter u m relacio -
nam ento afetiv o c o m alg uém d o m esm o g énero é u m a esco lha de d o is
ad ulto s que v o luntariam ente d ec id em c o m p artilhar sua v i d a c o m base
no d esejo e no amo r.
A ho mo ssexualid ad e não é o ato p erv ertid o de alg uém que sub-
mete o o utro a p ad ecer algo aberrante, e sim a esco lha co nsciente de
d uas pesso as n a q u al u m a não é o o bjeto de p raz er d o o utro , m as am -
bo s se co nstituem e m sujeito s d o amo r.

Objeções religiosas

Estas são , sem d úv id a n e n h u m a, as m ais difíceis de rebater, p o r-


que a fé é algo inquestio náv el e to d a p esso a tem d ireito a v iv er n a
c renç a que esco lhe e sob as no rm as religio sas que quiser; desde que
isso não se o p o nha à lei d a naç ão e m que v iv e.
M a s é necessário ressaltar a d iferença entre a religião e a lei, o
que não é tão fácil c o m o p arece, v isto que e m alg u m m o m ento d a
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 119

histó ria a religião fo i resp o nsáv el tam b é m p o r faz er a lei. A ssi m , o f a-


raó d o Eg ito era o d eus enc arnad o , e c o nd u z ia a v i d a p o lítica de sua
naç ão . A l g o p arecid o aco nteceu c o m a Eu r o p a e o av anço d as religiõ es
jud aico -cristãs. M as , p o uc o a p o uco , fo i se d iferenciand o entre u m a
instituição e o utra.
T o d a religião te m seu d o g m a, e c o m base nele p reg a o que é p e-
cad o e o que é bem-v isto ao s o lho s de D e u s, e é seu d ireito . Po rq ue
p ertencer o u não a u m a religião é, d efinitiv amente, m ais u m a esco lha
de u m sujeito que, caso se d ec id a p o r ela, d ev erá aceitar certas no rm as.
Po r isso a Ig reja p o d e, c o m base e m suas crenças, d ecid ir casar só
casais hetero ssexuais. E o d ireito d essa instituição .
M as u m a naç ão não legisla só p ara os que p ertencem a tal o u q u al
religião , e sim p ara to do s os habitantes de u m país, p ara os que acred i-
tam e m D eu s e tam b ém p ara os que não acred itam. E o que se esclare-
c ia nesse debate era a iguald ad e p erante a lei dos cid ad ão s, não dos fiéis.
Fi q u e i surp reso , no entanto , c o m o fato de que alg uns te n h am
se ap o iad o e m citaçõ es bíblicas textuais p ar a se o p o r à sanç ão d essa
lei, p o rq u e a esta al tu ra j á quase ning u ém d efend e a literalid ad e d as
escrituras.
V ejam o s, c o m o simp les exemp lo , esta citação , que, ev id entemen-
te, fo i selecio nad a p o r m i m : " A m u lhe r não tem p o d er so bre seu p ró -
p rio c o rp o , mas tem-no o m ar i d o " (1 C o r 7,4).
O u esta o utra: "A s vo ssas mulheres estejam calad as nas igrejas;
p o rq ue não lhes é p erm itid o falar; mas estejam sujeitas, c o m o tam b é m
o rd ena a lei. E , se q u erem ap rend er alg u m a co isa, interro g uem e m
casa a seus p ró p rio s m arid o s; p o rq ue é v erg o nho so que as mulheres
f alem n a ig reja" (1 C o r 14,34-35).
E isso p ara não falar d e ap ed rejamento s o u o utro s co mentário s
ac erc a de influências d emo níac as que só mentes fund amentalistas se-
ri am cap az es de to m ar literalmente.

As perversões

N a realid ad e, o que era difícil de aceitar p ara q u e m se o p u nha a


essa lei era que a ho mo ssexualid ad e não é u m a p erv ersão , que não é
120 EN CO N TRO S

u m a d o enç a, e si m u m m o d o p artic u lar de esco lha amo ro sa. Perv ersão


é o u tra co isa; é u m tipo de relação n a q u al não há d o is sujeito s, n a q u al
u m do s d o is é d eg rad ad o à c o nd iç ão de o bjeto p ara o p raz er d o o utro .
H á u m a frase que circula co mumente e que d iz que u m sádico sem-
p re busca u m maso quista, o u u m maso quista busca u m sád ico c o m o
c o mp lemento . N a d a mais falso . Po rque o que exc ita o sád ico não é a
dor, e si m a angústia d o o utro , e o maso q uista o b tém p raz er c o m sua
p ró p ria do r. Então , p ara que u m sád ico v ai q uerer u m maso q uista se
este não v ai lhe d ar o que ele quer? Po rque o que ele q uer não é lhe
bater, é que o o utro se angustie q uand o lhe bate.
V e m a m i n h a m em ó ria u m a p i ad a que escutei no s co rred o res d a
faculd ad e n a ép o c a que c u rsav a p sico p ato lo g ia. O maso q uista se ajo e-
lhav a e d iz ia ao sád ico : " Po r favo r, bata e m m i m " , e o sád ico resp o n-
d ia: " N ão , não , de jeito n e n h u m " .
A í, sim , hav eria p raz er p ara o sád ico . C o m o i a lhe bater se era o
que o o utro d esejav a, se era o que lhe d av a p raz er? D e jeito n e n h u m ,
p o rq ue o que ele necessita p ara se exc itar é a angústia d o o utro .
M as a c ultura, que, c o m o d issemo s, se ap ro p ria dos termo s clínico s,
fez d a p alav ra p erv ersão u m sino nimo de mald ad e. Então , no s no ticiá-
rio s se fala, c o mo se fosse a m e sm a co isa, de u m sád ico , u m p sico p ata,
u m p erv ertid o o u u m p sicó tico . To d as são co isas b e m d iferentes.
E a v erd ad e é que a perversão é u m q uad ro clínico c o m caracterís-
ticas p ró p rias que p o d e m não ter n ad a a v er c o m a m ald ad e n e m c o m
inflig ir d o r ao o utro . E esto u p ensand o n a que talv ez seja a m ais c lara
de to d as, u m a à q u al - p o r alg u m a raz ão - Fre u d d ed ic a u m artigo
esp ecial: o fetichismo .
Vo cês sabem, o fetichista é alg uém que estabelece u m a relação
c o m u m o bjeto que atua c o m o c ausa e sustentação de seu desejo . M as,
antes d e av ançar, p erm ito - m e u m a p eq u ena d igressão : quase to do s os
ho mens têm algo de fetichistas, m esm o que não o sejam. A s mulheres,
p o rém , não . O fetichismo é u m a p erv ersão exclusiv amente m asc u lina,
p o rque o fetiche substitui u m o bjeto que a m u lher não tem , algo que
lhe falta.
É ev id ente que falo de u m a falta imag inária, não real, p o rque, n a
realid ad e, não falta nad a à mulher, ela simp lesmente tem o u tra co isa.
M as, no inco nsciente de alg uns ho mens, a ausência de p ênis n a m u -
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 121

lher age c o m o algo que ang ustia e inibe a excitação ; então , o fetiche
co bre essa falta e lhe p erm ite cheg ar ao p raz er sexual sem p ro blemas.
Po r isso é u m a p erv ersão m asc u lina, p o rq ue o h o m e m tenta su -
p ri r c o m o fetiche isso que o fetichista acred ita, inco nscientemente, re-
p ito , que falta à mulher.
Q u an d o L a c a n disse que " a m u lher não existe", o u Fre u d que
" n ão existe u m rep resentante p síquico d o ó rg ão sexual f e m i ni no " , o
que d i z i am , n a realid ad e, é que o que está no inco nsciente é p resença
o u ausência d o p ênis. C h am am o s isso de premissa universal do falo. E to -
do s sabemo s disso . D e fato , q u and o as crianças c o m e ç am a p erg untar
e a se interessar p ela d iferença anató m ic a entre ho m ens e mulheres,
exp lic amo s a elas que "o s m enino s têm p intinho e as m eninas n ão " .
O u seja, j á surge isso de q u e m tem e q u e m não tem .
A s v ezes, alguns p ais tentam ser explícito s e esclarecem c o m to d as
as letras que os menino s têm p into e as m eninas v ag ina, mas, aind a
assim, a filha p erg unta: " Po r que eu não tenho p into ? ". El a não escuta
que tem v ag ina, escuta que não tem p into . Po rque no inco nsciente isso
f u nc io na assim.
O s p arágrafo s anterio res só tentam elucid ar o caráter enig mático
d a sexualid ad e, e não só p ara as crianças, c o mo tam b ém p ara os ad ulto s.
Re to m and o , o fetiche é u m o bjeto que ap arece c o m o c o nd iç ão
p ara o d esejo e exc itaç ão d o fetichista. Q u ase to d o s os ho mens, d izía-
mo s, são u m p o uc o fetichistas. Basta v er os famo so s calend ário s d as
o ficinas mec ânic as.
O que v emo s ali?
U m a m u lhe r que p arec eria estar to talmente n u a, mas que n a v er-
d ad e não está. Po rq ue p o d e ser que esteja sem ro u p a, m as sentad a
so bre u m a mo to , o u c o m u m p ar de bo tas, o u de ó culo s, não im p o rta o
d etalhe, m as certamente hav erá alg u m . Po rque u m a m u lher to talmen-
te n u a serve mais p ara u m a au la de bio lo g ia que p ara d esp ertar o ero -
tismo . Prec isa ter alg u m a co isa, n e m que seja só u m a c aneta n a bo ca.
Po r quê? Po rque surge o fetiche c o brind o certa falta e p ro d u z ind o u m
estímulo eró tico no h o m e m que o lha sem saber m u ito b e m o que v ê.
C o m o disse M ar c o Valério M arc i al : " P a r a m i m , n e n h u m a m u -
lher se d eita suficientemente n u a " .
122 EN CO N TRO S

E isso as mulheres sab em muito b e m . Po r isso, q uand o d ec id em ir


p ara a c am a c o m alg uém, p rep aram- se, esco lhem cuid ad o samente a
ro u p a íntima e realiz am u m a série de ato s que v i sam c ausar o imp ac to
eró tico .
O s ho mens, p o rém , c arec em dessas co nd utas fetichiz antes p o rq ue
sabem, c o m esse saber não sabid o , que as mulheres não p rec isam d ele.
Perg untem-se quanto s ho m ens c o nhec em que, antes de sair c o m u m a
mulher, v ão c o m p rar ro u p a íntima.
M as, então , se to do s os ho m ens g o stam de certa fetichiz ação d a
mulher, q u al é a d iferença entre o fetichista enq uanto p erv ertid o e esse
d eleite que a m u l he r " p re p arad a" p ara o enco ntro sexual c ausa de
q ualq uer m aneira?
A d iferença é o v alo r de c o nd iç ão eró tica d o fetiche. O u seja, u m
h o m e m p o d e go star de v er sua amante usand o , p o r exemp lo , u m a c i n -
ta-lig a. M as, se o o bjeto não estiver ali, tanto faz . Po rém, o fetichista,
n a ausência d a cinta-lig a, não co nseg uiria c o nc retiz ar a relação sexual.
E m u m caso é u m elemento a m ais no jo g o eró tico , e no o utro u m a
necessid ad e que d á sustentação ao d esejo e ev ita a angústia.
E o fetichista p recisa desse objeto a tal po nto que, p ara evitar que fal-
te, co stuma levá-lo consigo. Então , pede a sua amante que vista a tal p eça.
Le m b ro - m e de Casanova, o filme de Fellini, que tinha u m pássaro
metálico mo ntad o so bre u m pênis ereto , a co rd a, que subia e d escia c o m
u m a música ho rro ro sa, e que G i ac o m o ac io nav a no início de seu en-
co ntro sexual, que acabav a justamente q uand o a c o rd a term inav a e o
mo v imento do pássaro p arav a. Ei s aí u m b o m exemp lo de fetichismo .
M as, c o m o v emo s, sep arand o o co nceito clínico de p erv ersão d a
id eia de m ald ad e, o fetichista não m ac h u c a seu p arceiro . Se ela quiser,
usa a cinta-lig a; senão , ele não p o d erá c o nc retiz ar o ato , m as isso só a
m ac h u c a e m sua auto estima. E essa inseg urança j á não é m ais c u lp a
d o fetichista.

Algo falta a todos nós

E v erd ad e que as mulheres tam b é m exig em certas co isas de u m


h o m e m p ara se excitar, m as essas co isas não são d a m e sm a o rd em d o
O EN IG M A DA SEXUA LID A D E 123

fetiche. São elemento s que d ão a seu am ante u m b rilho que o to rna


atraente. Nesse sentid o , isso tem a v er c o m o que os p sicanalistas c ha-
m a m de valor fálico, e elas tam b é m p rec isam enco ntrá-lo e m alg uém
p ara se excitar, v isto que ning uém está co mp leto , e não d ev emo s acre-
d itar que o h o m e m não está e m falta. Pelo co ntrário , está tanto q u an-
to a mulher, p o r isso tam b é m requer certo s elemento s que o to rne m
atraente. M a s esses elemento s não têm, c o m o o fetiche, o p ap el d a g a-
rantia d a p o ssibilid ad e eró tica.
Nesse sentid o , p o d e ser que o p o d er o u a inteligência sejam algo
que sed uz a u m a mulher, m as certamente sua falta não v ai lhe c ausar
angústia e não v ai im o b iliz ar seu desejo .
A g o ra, se d ermo s p o r v álid a essa id eia de que a to do s nó s falta
alg u m a co isa, teremo s que no s p erg untar o que no s falta.
Po is b e m , j á resp o nd emo s a essa p erg unta: falta-no s o instinto .
So mo s seres so ciais, sujeito s fruto s não d o natu ral, e sim d a p al av ra e
d o desejo . E isso que no s falta no s co lo ca e m u m a p o sição de d esco -
nhec imento .
Po r isso , d iante de u m a d esg raça, p o r exemp lo , nó s no s p erg unta-
mo s: " E ag o ra, o que v o u faz er? So ube que m e u p ai está c o m câncer,
o que v o u faz er? C o n to a ele o u não ? C o m o d ev o m e c o m p o rtar p ara
que ele não p erceba? C o m o faço p ara sup erar isso? El e v ai m o rre r? " .
N ó s no s p erg untamo s c o m o e p o r que, p elo fato de não termo s u m
instinto que no s dê respo stas.
Então , v o ltand o à p ri m az i a univ ersal d o falo , ter o u não ter é sem-
p re u m " c o m o se". D aí que as pesso as p o d e m p ro jetar esse v alo r fálico ,
esse ter o u não ter, e m co isas d iferentes; e alg umas pesso as se sentirão
atraíd as p o r atletas, o u p o r intelectuais; o utras p ela belez a, p ela inteli-
g ência, p o r alg uém c o m u m a atitud e m ais d o ce, o u m ais eró tica.
M a s esse d eslo camento p ara u m o u o utro lug ar é v o luntário ? N ão .
E casual? Tam b é m não . O que quero d iz er é que muitas co isas estão
p o r trás d o que p arece u m a liv re esco lha. Co isas que têm a v er c o m a
histó ria, os med o s e a estrutura de c ad a p esso a e m p articular.
Po r isso é imp o rtante faz er terap ia, p ara p o d er assumir os p ró -
p rio s desejo s e respeitá-lo s, p ara p o d er d iferenciar inclusiv e q u and o se
trata de u m desejo v erd ad eiro o u q u and o se m istu ra u m p o uc o d es-
se imp ulso d estrutiv o que to d o s temo s d entro de nó s (go zo ). Tam b é m
124 EN CO N TRO S

p ara isso serve a terap ia: p ara p o d ermo s reco nhecer se nessa esco lha
que u m sujeito faz não está imp lícito o surg imento d a do r, p ara que
não entre e m jo g o a sed ução d o so frimento , p o rque, nesse caso , essa
esco lha é d o entia.

A sexualid ad e é, então , u m enig m a que questio na co nstantemen-


te e cujo s co mp o rtamento s presentes têm o rig em no início d a histó ria
em o c io nal de c ad a sujeito ; esse neg ó cio de que to d o s nó s j á o uv imo s
falar e que c ham am o s de c o mp lexo d e Éd ip o . Q u e não sig nifica, c o m o
ac red itam alg umas rev istas semanais, que a m ãe tem p referência p elo
m enino e o p ai p ela m e n i n a. N ão . Então , o que é o Éd ip o ?
Po is b em , cito no v amente Ju a n D a v i d N asio e d igo que:
O c o mp lexo de Éd ip o não é u m a histó ria de am o r e ó d io entre
p ais e filhos; é u m a histó ria de sexo , não env o lv e sentimento s terno s
o u ho stis; é u m assunto de co rp o s, de desejo s, de fantasias e de p raz er.
O Éd ip o é u m a im ensa d esmesura, é u m d esejo sexual p ró p rio de u m
ad ulto v iv id o n a c ab ec inha e c o rp o de u m m enino o u u m a m e n i n a
de quatro ano s que não tem a m atu rid ad e p síquica n e m física p ara
assumi-lo e cujo o bjeto são os p ais.
O u seja, o Éd ip o é u m a histó ria de sexo entre p ais e filhos, n a
q u al tanto uns c o m o o utro s se v e e m env o lv id o s de u m jeito fo rte, e essa
histó ria c o nd ic io nará no ssas esco lhas futuras e no sso m o d o de desejar.
E esse é u m do s g rand es inco nv enientes d a sexualid ad e: que c o m eç a,
justamente, c o m as pesso as c o m q u e m d epo is não se p o d erá faz er sexo .
Po rq ue os p rimeiro s a to car e exc itar o c o rp o de u m a c rianç a
são seus p ais. Faz e m isso q u and o lhe d ão b anho , q uand o a ac aric iam ,
q uand o c u i d am d ela. E o g rand e d esafio é, então , co nseg uirmo s no s
co nstituir c o m o sujeito s d esejantes, ap esar de não hav er u m saber p o s-
sível so bre esse tem a e o p o nto de p artid a ter estad o cheio de desejo s
p ro ibid o s..
Sexto encontro

SO BRE O A M O R E O D ESEJO

O estilo d o d esejo é a eternid ad e.

J. L . BORGES
126 EN CO N TRO S

O desafio de amar e desejar a mesma pessoa

E inevitável, e m u m liv ro que c entra seu trajeto no amo r, intro d u-


z ir a temática d o desejo . E acho que j á estamo s e m co nd içõ es de tentar
faz er isso, d ad o que fo mo s d esenv o lv end o certo s co nceito s no s quais
p o d eremo s no s ap o iar sem que so em a p remissas cap richo sas.
Então , v am o s emp reend er esse c am inho rec o rd and o que j á quase
nad a resta no h o m e m de sua c o nd iç ão de " an i m al bio ló g ic o ", e que
não existe e m nó s o que se c h am a instinto , essa fo rça que im p u lsio na
to do s os m em b ro s de u m a esp écie a ter a m e sm a reaç ão d iante de si-
tuaçõ es id ênticas.
To d o s j á d ev emo s ter lid o alg u m a p ublicação o u v isto alg u m p ro -
g ram a de televisão que no s m o strav a anim ais que v i ajam centenas o u
milhares de quiló metro s e m u m a ép o c a d eterm inad a d o ano o u etap a
d a v i d a, seja p ara p ro criar, hib ernar o u mo rrer. E d issemo s que esse
c o mp o rtamento de massa não é — n e m m i ni m am e nte — fruto de u m a
reflexão o u u m aco rd o entre os m em b ro s d o g rup o , e que c ad a u m
sente de rep ente o imp ulso de p ro ced er desse m o d o , c o m o u m a o rd em
que co rre p o r seu sangue.
Po is b em , nad a disso aco ntece no ser hu m ano , p o rque c ad a sujei-
to é único e suas reaçõ es têm a v er não c o m sua p ertinência à esp écie,
e sim c o m a c o m b inaç ão de três fato res d iferentes c u ja inter-relação
irá f o rm and o a base de sua p erso nalid ad e: a heranç a, a histó ria pes-
so al e a so cied ad e e m que v iv e.
A heranç a, que não é só g enética, m as tam b é m d iscursiv a, traz
muito s dos fato res que f az em p arte de u m a p esso a: sua estatura, a co r
de seus o lho s o u , p o r que não , a tend ência a so frer certas d o enças.
Su a histó ria será f u nd am ental n a co nstrução de sua id entid ad e.
E estamo s no s referind o ao s p ais que teve, suas v iv ências infantis, sua
p assag em p ela esco la, a existência o u não de mo mento s traumático s
v iv id o s, p rinc ip alm ente no s p rim eiro s ano s, a p assag em p ela ad o les-
c ênc ia e o c o m e ç o de sua v i d a sexual.
C o m o fo i tud o isso? Re c e b e u estímulo e ac o lhimento p o r p arte de
sua família, o u , ao co ntrário , fo i atrav essad o p o r d iscurso s frustrantes
que p o d e riam tê-lo d eixad o p reso a u m a sensação de so lid ão e ind e-
fensabilid ad e d iante d o m u nd o ?
SO BRE O A M O R E O DESEJO 127

É nesse p o nto que se d efinirá a subjetiv id ad e característica de


c ad a h o m e m , sua id entid ad e sexual e seu jeito p artic u lar de curtir, so -
frer o u enc arar os aco ntecimento s de sua v i d a.

Existimos muito antes de nascer

E m seu liv ro Elpsicoanálisis ilustrado, Jo rg e Be k e r m an escreve:

Você mesmo foi, muitos anos antes de existir como realidade ob-
jetiv a no mund o , muito antes de berrar e sujar fraldas (e, eviden-
temente, muito antes de comprar e ler livros), um sonho na cabeça da
menina que foi sua mãe. E pode dar po r certo que a maneira como
você existiu como ente abstraio na imaginação d a menina que foi
sua mãe é muito mais decisiva p ara seu destino que o que você se
esforça diariamente po r construir p ara sua v id a.

O que Be k e rm an está d iz end o c o m isso? Q u e , q uand o u m a pes-


so a nasce, j á está send o esp erad a p o r u m m u nd o feito de p alav ras e
desejos de o utro s, que não lhe p ertenc em. Existe u m a p alav ra, p o r
exemp lo , que a anteced e e que os p ais esc o lheram p ara ela: o no m e;
que é simp lesmente a p al av ra p ela q u al será id entificad a d urante to d a
sua v id a.
E a esco lha desse no m e não é algo c asual; nela estão os desejos e
anseio s que os p ais, co nsciente e inco nscientemente, v ertem nesse filho
que cheg a ao m u nd o .
T e r o m esm o no m e de seu p ai o u seu avô não é a m e sm a co isa
que ter u m que tenha sid o esco lhid o p o rq ue tem u m significad o d eter-
m inad o . Po rque no sso no m e no s o brig a a assumir algo que se esp era
de nó s d esd e antes de nascer.
V a n G o g h , p o r exemp lo , tinha o no m e de u m irm ão m o rto : V i n -
cent. E é fácil p erceber c o mo so freu isso, c o m o fo i atrav essad o p elo
fato de ter cheg ad o ao m u nd o p ara o c up ar o lug ar de u m mo rto , p ara
tap ar essa ausência, e c o mo isso o lig o u, desde semp re, à mo rte de u m
m o d o fatal.
To d o s sabemo s que fo i u m g rand e artista, m as que, infeliz mente,
isso não lhe basto u p ara c o ntrab alanç ar o peso desse no m e e o lug ar
128 EN CO N TRO S

ao q u al o c o nv o c av a. Jam ai s foi u m h o m e m feliz, mutilo u-se e ac ab o u


co metend o suicíd io .
M a s não é só o no m e que está no s esp erand o q uand o nascemo s. É
pro vável que muito s ano s atrás, p o r exemp lo , e m u m p acto de ad o les-
c ênc ia feito no p átio d a esco la, no ssa m ãe tenha c o m b inad o c o m sua
m elho r am ig a que ela seria a m ad ri n h a d e seu p rim eiro filho. Q u e r
d iz er que, v inte ano s antes d e nascer, j á tínhamo s u m a m ad ri n h a.
Tu d o isso e muito m ais o filhote humano tem que enfrentar no c am i -
nho que o co nd uz irá a ser u m sujeito (enquanto sujeito ao d esejo e à
p alav ra) . M a s c o m o cheg a a este m u nd o ?

O primeiro choro

Po uco d ep o is de nascer, esse b eb é, que enq uanto estav a n a bar-


rig a de sua m ãe n u n c a sentiu necessid ad e de c o m er o u beber, c o me-
ç a a exp erim entar u m a sensação que d esco nhece e que lhe g era u m a
tensão que cresce n a m e d i d a e m que não sabe o que é n e m c o m o se
reso lv e isso que está aco ntecend o c o m ele.
Q u an d o a tensão é tanta que c o m e ç a a ser d esag rad áv el, o b eb é
tem necessid ad e de d escarreg á-la (p rincíp io d o p raz er) , e o faz d a úni-
c a m an e i ra que p o d e: c ho rand o .
Esse p rim eiro cho ro não sig nifica n ad a aind a, não se d irig e a n i n -
g uém e não é m ais que u m m ec anism o de d escarg a d a ansied ad e ac u -
m u l ad a.
M a s aco ntece que esse c ho ro é escutad o p o r alg uém, g eralmente
a m ãe , que o c o d if ic a e d iz : " Está c o m f o m e " . En tão o p eg a no co lo ,
g uia-o p ar a que p o ssa se alim e ntar e m seu p eito , e desse m o d o o
ac al m a.
Nesse p rim eiro ato a m ãe j á ensino u a seu b eb é m u i ta co isa: que
o mal-estar que sentia p o d e ser ap lacad o , que p ara isso aco ntecer ele
p recisa d a aju d a de alg uém de f o ra, que p ara esse alg uém v i r ele p re-
cisa c hamá- lo , e que seja lá o que q u eira, a p artir de ag o ra e p ara
semp re, v ai ter que p ed ir. E é a p artir de então que esse cho ro que d is-
semo s que não sig nificav a n ad a ad q uire u m sentid o .
SO BRE O A M O R E O D ESEJO 129

M as p o d e ser que ho ras d ep o is o bebe v o lte a cho rar, e que d essa


v ez a m ãe co d ifique esse c ho ro de u m m o d o d iferente e d ig a: " A g o ra
não está c o m f o m e . . . ag o ra está c o m so no ". Então , v ai p eg á-lo e niná-
-lo até fazê-lo d o rmir.
Desse mo d o , aos po uco s, a m ãe v ai intro d uz ind o seu filho no m u n -
d o d a p alav ra, ad estrand o -o n a arte d a c o m u nic aç ão , instruind o -o
c o mo c ho rar q uand o estiver c o m fo me o u quand o estiver c o m so no . V a i
lhe ensinand o , c o m b rinc ad eiras e carícias, que esse é seu c o rp o , que
lhe p ertence e que tem que ir ap rend end o a se reco nhecer nele. Po r
isso o to ca e no m e ia c ad a p arte d ele p ara que d epo is o filho p o ssa faz er
o mesmo . E assim, q u and o a c rianç a c o m e ç a a ap rend er, exp erim en-
tamo s u m a sensação d e o rg ulho e aleg ria. A m ãe esp era ansio sa a che-
g ad a d o p ai e p erg unta à c rianç a: " C ad ê a b o c a? ". E o filho lev a seu
d ed o a ela, ind ic and o que lig o u a p alav ra ao co rp o . C o m essa simp les
co nquista, o filho d eu mais u m passo no árd uo c am inho que o lev ará a
ser ele m esm o .
V i v e r e m u m m u nd o d e p alav ras é c o mp reend er que tud o que
quisermo s teremo s que p ed ir; que não há o utro jeito de o bter o que se
d eseja que não seja c o m a m e d iaç ão d a p al av ra. Po r isso , q u and o
alg uém não c o mp reend e isso e to m a o que q uer sem p ed ir, a so cied ad e
o castig a.
V am o s d ar u m exemp lo .
Q u an d o u m a p esso a d esp erta no sso desejo , c o m e ç a o m arav ilho -
so c am i nho d a sed ução , que não é m ais que o utro jeito de p ed ir. N ó s
no s enc o ntramo s p ara to m ar u m café, saímo s p ara jan tar o u ir ao c i -
ne m a, v am o s no s co nhecend o e tentamo s faz er que nesse c o nhec im en-
to m útuo se gere no o utro o m esm o interesse e m estar co no sco . Se
isso aco ntecer, p o d eremo s ficar junto s, d o co ntrário , a p o ssibilid ad e d o
enco ntro se v erá f rustrad a.
Essa é a m an e i ra c o m o buscamo s alc anç ar a satisfação desse dese-
jo , p o rque, c o m o d iz ia A nd ré Breto n, "as p alav ras f az em am o r" . M as
não se trata de que as p alav ras têm a v er c o m o amo r, e sim que o fa-
zem, o rig inam - no e o co nstituem.
M a s sup o nhamo s que u m a p esso a não expresse seus desejo s p o r
meio d o p ed id o e d iretamente to me o que d eseja. Nesse caso , o que
p o d eria ter sid o u m enco ntro amo ro so se transf o rm a e m u m a trag éd ia.
130 EN CO N TRO S

Essa p esso a d esco briu que go sta de u m a mulher, que a d eseja,


mas, e m v ez de sed uz i-la, esp era-a e m u m a esq uina e a to m a à fo rça,
sem lev ar e m c o nta o lad o d ela, sem se im p o rtar c o m o fato de ela
querer o u não ; não reco nhece o d esejo d ela, p o rtanto , d eg rad a- a à
c o nd iç ão de o bjeto , e a trata c o m o tal. Simp lesmente a to m a p o rq ue
esse é seu imp ulso .
U m ato c o m o esse no s ho rro ri z a tanto que d iz emo s que q u e m o
co mete é u m ani m al . O u seja, que, p o r co nta de seu c o mp o rtamento ,
a so cied ad e tam b é m d eixa de rec o nhec ê- lo até c o m o u m m e m b ro p er-
tencente à esp écie h u m an a. Po r quê? Po rque ele não entend eu que a
p alav ra, e não o u tra co isa, é o meio p ara co nseg uir o que se quer.
A ling uag em é, então , aquilo que no s faz seres d iferentes d o resto
das espécies. Po rq ue sua existência jo g a p o r terra os apelo s d o instinto ,
que no s im p u lsio nariam c o m sua fo rça a ir e to mar simp lesmente o que
satisfizesse no ssa necessid ad e, e no s o brig a a falar, co nv encer, p ed ir,
p ac tu ar e ced er p ara no s relac io nar c o m os o utro s.
M as a p alav ra tam b é m tem u m limite, e ning uém p o d e d iz er c o m
p alav ras tud o que quer. Sem p re existe algo impo ssível de ser d ito , algo
que se p erd e n a c o m u nic aç ão e que, p o rtanto , é intangív el. E isso que
não p o d emo s artic ular p o r meio d as p alav ras, isso que não sabemo s
c o m o p ed ir, d eixará semp re u m resto de insatisfação . O fruto d essa
insatisfação é, n e m mais n e m meno s, o que p erm ite o surg imento d o
desejo . U m desejo que, e m p arte, tem a v er c o m o que d iz emo s, m as
tam b é m c o m o que não p o d emo s d izer.

V am o s v o ltar p o r u m segund o àquele instante mítico d o p rim eiro


cho ro d o b eb ê. Dissemo s que, sem saber n e m esp erar nad a, a c rianç a
vê que sua ansied ad e fo i ap lac ad a e sua necessid ad e satisfeita p o r algo
externo (a mãe) . Isso o surp reend e e lhe d á u m a satisfação p l e n a. . . p o r
u m a únic a v ez .
D esd e que sabe d a existência de sua m ãe, de seu p eito que o ali-
m enta e de seus b raç o s que o ac al m am , a c rianç a j á entro u no m u nd o
d o desejo , e c ad a v ez que sentir fo me, so no o u med o , não p o d erá ev i-
tar que su rja esse desejo de que a m ãe v e nha, atend a a suas d emand as
e o ac alme. Essa é a exp eriência que d á o rig em ao amo r.
SO BRE O A M O R E O D ESEJO 131

Po rque, c o m base nessa exp eriência, c ad a v ez que tiver u m a ne-


cessid ad e, j á estará esp erand o que v e n h a aquilo que o ac alm a, e irá
fantasiand o o m o m ento d a satisfação . E esse d etalhe é f u nd am ental,
p o rq ue a esp era o intro d uz no m u nd o d o desejo . M a s semp re hav erá
u m a d iferença entre a satisfação d esejad a e a satisfação enc o ntrad a.
Sem p re hav erá algo que falta, u m resto de insatisfação , e esse será o
m o to r p erm anente d o d esejo h u m an o , v isto que esse mo d elo infantil
irá se transferind o , c o m o p assar dos ano s, a c ad a u m a de no ssas v i -
v ências.

O desejo de reconhecimento

C h e g ar a ser nó s mesmo s não é fácil. A o co ntrário , é a co nse-


q uênc ia de u m c o mp lexo c am inho . N ão p o d end o saciar p o r si m e sm a
suas necessid ad es, e tend o c o mp reend id o que a satisfação de seus dese-
jo s d ep end e dos o utro s, a c rianç a c o m e ç a a querer ag rad ar àqueles de
q u e m p rec isa p ara que c u id e m d ela, que a alim entem , v istam o u d êem
b anho . Funç õ es que, e m g eral, são d esemp enhad as pelo s p ais.
E c o m o faz p ara tentar satisfazer essa necessid ad e de ser reco nhe-
c id a e q u erid a p o r eles? Simp les. Te n ta se transf o rm ar no que acred ita
que esp eram d ela. M a s aq u i se imp õ e o u tra p erg unta: c o m o ela sabe o
que os o utro s p retend em que ela seja? A resp o sta é que, n a realid ad e,
a c rianç a não sabe, m as v ai d ed uz ind o c o m base no d iscurso e nas ati-
tud es que v ai d eco d ificand o e m sua c o m u nic aç ão d iária c o m os o utro s.
A s v ezes de u m m o d o co nsciente e muitas o utras de m an e i ra i n -
co nsciente, os p ais i n d i c am u m c am inho a seguir. C o m o simp les fato
de lhe d ar, ao nascer, a c am isetinha d o time de futebo l p elo q u al to r-
ce, o p ai está lhe ind ic and o que d eve to rcer tam b é m p o r esse time. E
muitas v ezes não há o u tra exp licação p ara isso. " To rç o p ara esse time
p o rq ue m e u p ai to rc ia." N ó s no s id entificamo s c o m u m d esejo d o p ai e
tentamo s atend er-lhe.
C a d a ato , c ad a p alav ra p o d e funcio nar, então , c o m o u m m an d a-
mento a o bed ecer ao ser to mad o p o r u m a p sique e m f o rm aç ão , c o mo
é a de u m a c rianç a. E este é o p o nto no q u al eu g o staria de m e deter.
132 EN CO N TRO S

O u tro d ia, enq uanto esp erav a m i n h a v ez d e ser atend id o e m u m a


lo ja, escutei u m a m ãe d iz er a seu filho , que hav ia d erru b ad o u m p ac o -
te que ela hav ia lhe d ad o : " V o c ê não serve p ara n ad a" .
U m a frase c o m o essa, se to m ad a ao p é d a letra c o m o u m a sen-
tenç a, p o d e se to rnar u m c am i nho a seguir e lev ar u m sujeito à busc a
inco nsciente d e u m d estino so fredo r.
Para exemp lificar, reto mo u m a frase d ita p o r u m a p aciente que j á
analisamo s d e o utro p o nto d e v ista e m cap ítulo s anterio res: " N ão sei
p o r que semp re m e env o lv o c o m ho m ens casad o s, se sei que m ais ced o
o u m ais tard e v o u ac ab ar so frend o ".
Essa frase, d ita c o m o q u e m não q uer nad a, transfo rmo u-se no fio
de A ri ad n e que lhe p e rm i ti u sair d o labirinto em o c io nal no q u al ficava
inexo rav elmente p resa. D e d ic am o s muitas sessões a interp retar o que
ela q u eria realmente d iz er c o m isso e ao nd e no s lev av a.
A té que, u m d i a, ela tro uxe a lem b ranç a d e que sua m ãe , c o m o
aq uela m u lher d a lo ja, q u and o ela e ra m e n i n a c o stumav a d iz er: "V o c ê
v ai ficar so z inha p o rque não serve p ara n ad a" .
Esse c o m entário hav ia to mad o , p ara ela, a fo rça d e u m m an d a-
mento , e assim cheg o u à co nclusão d e que isso e ra o que a m ãe esp era-
v a d ela: que não servisse p ara n ad a e que ficasse so z inha p ara semp re.
Po r isso , tentand o atend er a esse m and am ento m aterno , o temp o to d o
buscav a esse tipo d e relação , v isto que não se sentia m erec ed o ra d e
ser am ad a e resp eitad a. Po r quê? Po rque ela tinha o d ev er d e não servir
para nada, e co nstruir u m a relação n a q u al fosse feliz a teria lev ad o a
d esc um p rir esse m and am ento . Sentia, aind a, que não tinha n ad a p ara
dar, e que, p o r isso, não era mereced o ra de o cup ar u m lug ar p riv ileg iad o
na v id a de u m ho mem.
A lg uém p o d eria p ensar que esse exemp lo é muito extremo , m as
eu g aranto que há muitas m aneiras d e transmitir a u m a c rianç a " q u e
ela não serve p ara n ad a" . Pensemo s, p o r exemp lo , no que estamo s lhe
d iz end o c ad a v ez que, ao v er que alg u m a co isa não and a, d iz emo s:
" D e i x e q ue eu f aç o " . C ertam ente a m ãe d e m e u p aciente tam b é m n ão
era tão m á c o m o p o d emo s supo r, m as ela a reg istro u d essa m an e i ra.
M as não p o d emo s esquecer q ue u m a co isa é a realid ad e, e o u tra m u ito
d iferente é a realid ad e p síquica.
SO BRE O A M O R E O D ESEJO 133

Os mandamentos

N a ép o c a e m que estud av a a técnica d a hip no se c o m o d o uto r


Breuer, Si g m u n d Fre u d teve u m a rev elação mag istral. O b se rv o u que,
e m u m a dessas exp eriências, d av am ao hip no tiz ad o ind icaçõ es que d e-
v eria c u m p ri r q u and o saísse d o estad o hip nó tico , c o m a o rd em de não
as reco rd ar. A ssi m , p o r exemp lo , o rd enav am a alg uém que, ao aco r-
dar, ped isse u m co p o de ág ua, sem rec o rd ar essa o rd em . Para esp anto
do s presentes, a p esso a, ao sair d o transe, p ed ia u m co p o de ág ua e,
q u and o lhe p erg u ntav am p o r que o hav ia feito , d iz ia que simp lesmen-
te hav ia tid o a necessid ad e de fazê-lo . O u seja, estav a o bed ecend o a
u m a o rd e m que não rec o rd av a, que hav ia sid o exp ulsa de sua co ns-
ciência, m as que, ai nd a assim, não p erd ia sua eficácia.
Fre u d se p erg unto u, então , se essas o rd ens inco nscientes não p o -
d e riam ser p ro d uz id as e m situaçõ es d iferentes às d o exp erimento de
labo rató rio , e m circunstâncias co tid ianas. Se não seria po ssível que
muitas co isas que u m a p esso a faz fo ssem só a c o nseq uênc ia de o rd ens
que ho uv esse recebid o e m alg u m m o m ento d a v i d a, e que, ap esar de
não as reco rd ar, não p o d ia d eixar de c u m p ri- las.
A p rática c o m p acientes e a análise do s co nteúd o s inco nscientes
fo i lhe mo strand o que sua hip ó tese estav a certa. C o m p ro v o u , c o m o os
p sicanalistas c o ntinu am c o m p ro v and o ho je e m d ia c o m os p acientes,
que, sem saber, to d o s nó s c arreg amo s m and am ento s que, inc o nsc ien-
temente, g u i am no sso s passo s, muitas v ezes p o r c am inho s de do r.
U m m and am e nto é u m a p alav ra, u m gesto o u u m ato de o utro
que inc o rp o ram o s e ao q u al, inco nscientemente, d amo s o p o d er de
g uiar no ssa v id a.
Ei s a característica do s m and am ento s: co nstituem-no s p o rq ue no s
id entificamo s c o m eles e os inc o rp o ram o s até to rná-lo s algo p ró p rio ,
e então no s i n d i c am c o m o d ev emo s ser p ara satisfazer o d esejo de o u -
tro s. D essa m ane i ra, ind ic am - no s o c am i nho a seguir.

M as , ap esar d isso , que é inevitável, cabe d iz er que n e m to d o s os


m and am ento s são negativ o s. A o co ntrário , muitas v ezes esses m a n -
d amento s no s estim u lam e são p ro p iciad o res de futuras co nquistas.
Q u an d o no sso s p ais no s transm item que temo s d ireito de b rig ar p elo
134 EN CO N TRO S

que d esejamo s, que p o d emo s fracassar nessa tentativ a sem p o r isso ser-
mo s imp restáv eis; que d ev emo s lutar p ara seguir nossos desejo s, m as
sem exig ir de nó s mesmo s o sucesso c o m o única fo nte de p raz er, inco r-
p o ram o s m and am ento s que são p ro p iciad o res, e não frustrantes.

Le m b ro que, há muito s ano s, v i u m filme c ham ad o ... Ymariana serán


hombres. [... E am anhã serão ho mens] C o n ta a histó ria de uns menino s
que estão trancad o s e m u m refo rmató rio e que f o ram alo jad o s ali "p o r-
que não serv iam p ara n ad a" . E lhes d iz iam que eles f ic ariam ali até que
fo ssem maio res de id ad e, mas que, ao sair, certamente seriam d elinquen-
tes e ac ab ariam seus d ias n a cad eia, p o rque esse era seu destino .
E m d ad o m o m ento , cheg a à instituição u m no v o d ireto r, que não
ac red ita que isso tenha que ser assim, que não é v erd ad e que esses
menino s não serv em p ara nad a, e c o m e ç a a estimulá-lo s, a estabelecer
c o m eles u m v ínculo d iferente, c arac teriz ad o p elo respeito e estímulo .
E m co ntrap o sição ao que lhes d iz iam anterio rmente, d iz a eles que
têm que se p rep arar p ara q u and o saírem; p erg unta o que q u erem ser,
q ual é seu desejo , e os inc entiv a a p erc o rrer o c am inho p ara realizá-lo .
E , ac i m a de tud o , transmite a id eia de que co nfia neles.
C e rto d ia, v ai até seu g abinete u m m e nino ap elid ad o de " E l G al l o " .
Esse rap az era reco nhecid o p o r ser o mais rebeld e, o de p io r caráter, o
líd er v io lento d o g rup o , e até hav ia tentad o fug ir d o refo rmató rio e m
v árias o casiõ es.
N essa c ena, E l G al l o o lha p ara o d ireto r e o d iálo go é m ais o u
meno s o seguinte:
"Senho r, semp re no s d iz que co nfia e m nó s. M a s c o nf ia e m m i m
de v erd ad e? "
O h o m e m o o lha sem entend er b e m o que q uer d izer, e resp o nd e
que sim .
" Então , quero lhe p ed ir u m f av o r" d iz o jo v e m . "Prec iso que m e
d eixe sair u m d ia d aq u i . "
O d ireto r lhe exp lic a que isso é impo ssível, que é p ro ibid o , e que,
além d o mais, ele hav ia tentad o fug ir v árias v ezes, o que to rnav a seu
p ed id o aind a mais difícil de atender. M as lhe p erg unta p o r que está p e-
d ind o algo que sabe que não é lícito , e E l G al l o resp o nd e que sua m ãe
SO BRE O A M O R E O DESEJO 135

está m o rrend o , e que ele g o staria de ac o m p anhá- la e de que ela o visse


antes de p artir.
O h o m e m se vê e m u m a enc ru z ilhad a, d a q u al sai ap o stand o n a
co nfiança. A c e i ta o p ed id o que o garo to lhe faz c o m u m a c o nd iç ão : no
d ia seguinte, no p rim eiro tre m que cheg ar à cid ad e ele d eve estar de
v o lta, e lhe p ed e que c u m p r a o trato , que não o d ecep cio ne, p o rq ue,
se o fizer, isso sig nificaria que os o utro s ti n h am raz ão q uand o d i z i am
que não se p o d ia co nfiar nele.
E l G al l o p arte. N a m an h ã seguinte, n a h o ra m arc ad a, o jo v e m
não cheg a ao refo rmató rio e o d ireto r m an d a seu assistente à estação
de trem p ara v er o que aco nteceu. E m p o uco s minuto s, o h o m e m v o lta
c o m a inf o rm aç ão de que nesse d ia, no p rim eiro trem d a m anhã, não
cheg o u ning uém.
Pesaro so , o d ireto r se d irig e a seu quarto , p re p ara sua m al a e sua
d emissão . A o saber disso , os garo to s v ão lhe p ed ir que não v á:
- Senho r — su p lic am - , p o r favo r, não v á. Po rque, se for, v ão m a n -
d ar o utro c o m o os anterio res... esses que p ensam que nó s não serv i-
mo s p ara nad a. Po r favo r, não no s d eixe.
M a s o d ireto r d iz que jam ai s m e ntiu p ara eles e que semp re c o n-
fiou neles, e que ag o ra não sabe se p o d erá co nfiar de no v o .
En q u an to f al am so bre isso , d a p o rta o assistente o c h am a ao s g ri-
tos. El e v a i rap id amente e, ao chegar, vê E l G al l o que v e m co rrend o ,
c o m o d iabo fug ind o d a c ru z , p elo c am inho de terra que lev av a à c id a-
de. Q u an d o está d iante d ele, o jo v e m c ai de jo elho s, extenuad o , e c o m
lág rimas no s o lho s, d iz :
"Senho r, d esculp e. E u q u eria c u m p ri r o ho rário , mas m i n h a m ãe
d em o ro u u m p o uc o mais e m m o rre r e não p ud e d eixá-la so z inha.
Q u an d o cheg uei à estação , o trem j á hav ia p artid o . V i m c o rrend o des-
de lá, mas, aind a assim, não cheg uei a temp o . Sei que falhei, mas, p o r
favo r, não v á, não no s d eixe."
O h o m e m o p eg a pelo s o mbro s, c o mo v id o , ajud a-o a se lev antar e
o ab raç a. E o garo to d uro e rebeld e c ho ra. C h o r a p ela m ãe que m o r-
reu , m as tam b é m c ho ra p o r g ratid ão a esse h o m e m que c o m sua c o n-
fiança abriu- lhe a p o rta de u m d estino d iferente, e p o r ter co nseg uid o
tro car u m m and am e nto sinistro que o c o nd enav a à m arg inalid ad e e ao
136 EN CO N TRO S

d elito p o r o utro que lhe hab ilita u m c am i nho ao lo ng o d o q u al p o ssa


cheg ar a ser alg uém que d ê o rg ulho a si m esm o .
A p al av ra p o ssibilita a ed uc aç ão , a transmissão d o afeto e a c o m u -
nic aç ão , e isso é algo m arav ilho so . M as , e m d eterminad as situaçõ es,
p o d e se to rnar u m a a r m a fatal. Po r isso , temo s que ter c uid ad o c o m
o que d iz emo s e não esquecer que, p ara a mente de u m a criança, frases
que n a v i d a ad ulta não têm n e n h u m v alo r p o d e m ad q u irir u m signifi-
cad o que m arc ará sua v i d a p ara semp re.

A influência da cultura

Dissemo s que e ram três os fato res que inf lu enc iav am a p sique de
u m a p esso a. Já falamo s d a heranç a e d a histó ria.
Q u an to ao so cial, v am o s esbo ç ar ap enas a id eia de que a realid a-
de e m que v iv emo s no s im p ac ta e que d ev emo s no s v i rar c o m ela. Q u e
v iv er e m d eterm inad a ép o c a histó rica não é o m esm o que v iv er e m
o utra; e m u m a c ultura que e m o utra; o u, inclusiv e, e m u m a classe so cial
que e m o utra. Q u e são d iferentes as d ificuld ad es e os estímulo s que a
p esso a recebe, a fav o r o u c o ntra, e que a l e v am a d esenv o lv er suas ap -
tid õ es e seus mec anismo s d e d efesa.
D esc o nhec er isso é c air e m u m p sico lo g ismo que só faz d ificultar
a c o m p reensão d o que aco ntece co no sco .

A importância da insatisfação
(ou Um caminho seguro para a depressão)

Já d issemo s que o ser hu m ano , p o r carecer de instinto , carece


tam b é m d a p o ssibilid ad e de enc o ntrar a satisfação p lena. M as , lo nge
d o que se p o ssa p ensar, isso não é u m a d esv antag em. A o co ntrário ,
essa falta instintiv a é que no s m o stra que, p ara nó s, são necessárias
p rep araç ão e co nstrução p ermanentes e labo rio sas p ara que p o ssamo s
ir assumind o os d iferentes p ap éis que no s esp eram: filho, amig o , c o m -
p anheiro , funcio nário , chefe, mãe... To d o s os lug ares ao s quais p o s-
SO BRE O A M O R E O DESEJO 137

samo s no s v er co nv o cad o s a o c up ar n a v i d a têm que ser co nstruíd o s,


p o rq ue o ser h u m an o não é u m ser natu ral, e sim u m ser so cial.
M as , então , ap arece u m a p erg unta inquietante: essa c arênc ia de
instinto s não no s d e i x a sem u m a a r m a f u nd am ental, essa que i m p u l -
sio na os anim ais a caçar, hibernar, faz er lo ngo s trajeto s p ara d eso v ar
o u co nstruir ninho s?
E a resp o sta é que, d iante d a falta de instinto , nó s, seres hu m ano s,
d esenv o lv emo s u m a fo rça tanto o u m ais m o b iliz ad o ra aind a: o desejo .
Essa energ ia que co nstantemente no s im p u lsio na a faz er co isas, c riar
p ro jeto s p ro fissio nais o u afetivo s, estud ar o u faz er u m a v iag em . O d e-
sejo que, p o r exemp lo , assume a f o rm a d a busca d o amo r, d o c o nhec i-
mento o u d a realiz ação do s p ro jeto s pesso ais.

A "d ep ressão ", p o r exemp lo , term o tão usad o nestes temp o s, é


u m a d o enç a que se c arac teriz a p elo d esap arecimento d o desejo , o que
p ro v o c a u m a ausência de p ro jeto s tão ac entuad a que no s d e ix a c ara a
c ara c o m a mo rte, d estino final e co nhecid o de to d o sujeito hu m ano . E
é d iante d essa situação que surge a angústia que no s inv ad e, d eixand o -
-no s p aralisad o s e imp o tentes.
M a s não é p reciso cheg ar a esse extremo p ara sentir, muitas v ezes,
u m p esar que asso mb ra no ssa v id a. Situaçõ es de p erd a de emp reg o , de
c o m p anheiro , o u de d ificuld ad es co tid ianas c o stu m am no s ang ustiar e
no s ro ubar, g rand e p arte d o interesse nas co isas que faz emo s. A q u i l o
que no s entusiasmav a p erd e seu atrativ o e no s sentimo s " se m energ ia
p ara n ad a" . Po is b e m , essa energ ia que p arece ter no s ab and o nad o é
o que c ham am o s de desejo . E é nessas situaçõ es que entra e m jo g o a
cap acid ad e de u m a p esso a de c o ntinuar d esejand o , o que está i nti m a-
mente lig ad o à sanid ad e.
Po rq ue o desejo , esse algo semp re insatisfeito , é o que no s i m p u l -
sio na a v enc er essas d ificuld ad es, o que no s insta a buscar no v o s ho ri-
zo ntes, a rec o m eç ar ap esar do s tro p eço s e tentar semp re u m a v ez mais.
E , chegado s a este po nto , faço u m esclarecimento que m e parece fun-
d amental. D iz er que o desejo é sempre insatisfeito não é a m esm a co isa
que d izer que a pesso a deve se sentir sempre insatisfeita e que não po d e
curtir as co nquistas alcançad as. Simp lesmente significa que ning uém
po d e ter tud o , que semp re p o d emo s querer atingir mais u m o bjetivo .
138 EN CO N TRO S

E esse é o d esafio d a v i d a. Desejar, lutar p ara realiz ar esses dese-


jo s, c u rtir o o btid o e c o mp reend er que, aind a assim, temo s a p o ssibi-
lid ad e de inv entar u m no v o so nho p elo q u al v al h a a p ena c o ntinuar
v iv end o .
Re m e to o leito r ao filme Náufrago, p ro tag o niz ad o p o r T o m H an ks.
Nesse filme, e m c o nseq uênc ia de u m acid ente aéreo , u m executiv o de
u m a f am o sa emp resa de transp o rte exp resso que n ad a sabia d o c o n-
tato c o m a natu rez a e que não estav a cap acitad o p ara so brev iv er e m
co nd içõ es-limite, ac ab a so z inho e m u m a ilha d eserta. E ali tem que
enfrentar desafio s que p arec em eno rmes, quase impo ssíveis.
En c o n trar alimento , ág ua p o táv el, c o m id a, refúgio , faz er fo go e,
ac i m a de tud o , não se transf o rm ar e m u m anim al, o u seja, c o ntinuar
send o u m h o m e m .
Para isso, ap ela, inco nscientemente, a d uas estratégias. A p ri m e i ra
d elas é c o lo c ar a fo to d a m u l h e r que a m a semp re p erto de sua v ista.
O d esejo de to rnar a v ê-la será o incentiv o que o imp ulsio nará a n u n c a
se d ar p o r v enc id o , p o r m ais difícil que p areç a realiz ar a tarefa. A se-
g u nd a é h u m an i z ar u m o bjeto , neste caso , u m a b o la de vô lei, que b a-
tiz a c o m o no m e de sua m arc a. D e se nha nela o lho s, nariz e b o c a e f ala
c o m ela o temp o to d o p ara não esquecer que é, antes de m ais nad a,
u m sujeito d a ling uag em.
Desse m o d o , c o mo d iz íamo s no início , o d esejo e a p alav ra o
ac o m p an h am o temp o to d o e o m o b i l i z am a tentar v o ltar a seu m u n -
d o , ap esar dos risco s e d as d ificuld ad es que p arec em intransp o nív eis.
Re c o m e nd o u m a v isita a essa histó ria. A lg u ns v i r am nela só u m
blockbuster, a histó ria b o b a de u m h o m e m que f ala c o m u m a bo la; mas,
se o lharm o s b em , v am o s p erceber que ap o nta ao fato de que semp re
existe a p o ssibilid ad e de enfrentar m ais u m d esafio enq uanto aind a
fo rmo s sujeito s atravessad o s p ela p alav ra e, ac i m a de tud o , p elo desejo .

Amor e erotismo

H á q u e m pense que am o r e ero tismo são insep aráv eis, m as não


são a m e sm a co isa. A c o ntec e que u m e o utro trilham c am inho s d ife-
rentes que, muitas v ezes, têm até d ireçõ es co ntrárias.
SO BRE O A M O R E O DESEJO 139

Dissemo s que p ara que o am o r su rja é inevitável a p resença de


certa id ealiz ação d a p esso a am ad a. C o m o d iz ia m e u p aciente M a r i a -
no , aquele a q u e m citamo s q u and o falamo s do s ato s falho s, sua m u lher
e sua am ante e ram "d u as co isas d iferentes".
D é b o ra, sua espo sa, era o ser mais m arav ilho so que hav ia so bre a
face d a Te rra, u m a p esso a extrao rd inária, u m a m ãe incrível, a m elho r
c o m p anhe ira que u m h o m e m p o d eria ter enco ntrad o .
O b serv em o s c o m o o pro cesso de id ealiz ação ap arece c laramente
n a o p inião que faz d ela. D é b o ra não ap arece e m seu d iscurso c o m o
u m a mulher, e sim c o m o algo superio r. E p o r isso a am a.
O b v iam ente, eu lhe p erg untei so bre sua amante, V alentina. E aí
sua exp ressão , sua v o z , sua p o stura m u d aram . El e disse que n a c am a
p o d ia p ed ir a ela q ualq uer co isa, que era u m a m áq u ina, que seus seios,
seus q uad ris, seus lábio s e ram irresistíveis e d elatav am quanto ela gos-
tav a de sexo .
Rep arem o s n a m an e i ra d iferente c o m o d escrev e as d uas m u lhe-
res. Su a espo sa era u m a mulher m arav ilho sa, u m a mãe incrível, a m elho r
pessoa d o m u nd o . Po rém, sua amante era u m a máquina, e seus lábios,
seus seios, seus quadris a d elatav am c o m o u m p u ro o bjeto sexual.
E q u al é a d iferença entre u m a d escrição e o utra?
E que, q uand o f ala de sua espo sa, ele se refere a u m a m u lhe r to ta-
liz ad a, a u m a m ãe, a u m a p esso a, p o rém , q uand o f ala de sua amante,
ele a d eg rad a, d iv id e- a e m p artes. El a não é u m a mulher, é q uad ris e
seios, não é u m a m ãe o u u m a c o m p anheira, é u m a m áq u ina.
M as isso que M ari an o faz não é mais que d eixar e m ev id ência a
d iferença entre os mecanismo s pelo s quais o am o r e o desejo f u nc io nam .
Dissemo s que o am o r req uer certa id ealiz ação d o o utro . Po is b em ,
o desejo , p o rém , p recisa d eg rad ar o o bjeto p ara p o d er se excitar. Q u e
não seja u m a mulher, e sim seio s; que não seja u m a b o a c o m p anheira,
e sim u m a m áq u ina sexual. Q u antas v ezes u m amig o , faland o de u m a
m u lher que o exc ita, d iz que é um animal, o u uma cadela?
O b se rv e m c o m o até no d iscurso co tid iano há u m a aceitação de
que a co isa f u nc io na assim.
E q u al é a m ai o r d ificuld ad e p ara u m casal? M an te r o am o r e o
desejo e m u m a m e sm a relação , o u seja, id ealiz ar e d egrad ar, c o nf o rme
o m o m ento , a m e sm a pesso a, o que rep resenta u m d esafio p ara ambo s.
140 EN CO N TRO S

Le m b r o - m e d e u m p ac iente que d ep o is de trinta ano s cie casad o


c o ntinu av a m u ito ap aix o nad o p o r su a esp o sa e ao m e sm o temp o a
d esejav a eno rm em ente. Se ntia que e ra a m u l h e r d e su a v i d a, m as
tam b é m , q u and o o lhav a p ar a ela, v i a seus seio s, seus q u ad ris e se
exc itav a.
M a s q u al era sua d ificuld ad e? El a não se d eixav a d eg rad ar, não
queria ser tratad a c o mo u m a co isa, co mo u m o bjeto sexual. Então , q u an-
d o ele se ap ro x i m av a p o r trás e a abraç av a e c o m eç av a a to cá-la, ela
ficava b rav a e d iz ia que não era u m a qualquer, que e ra sua espo sa, que
antes de faz er am o r p rec isav a que ele a acariciasse suav emente, que a
o lhasse, que lhe dissesse que a a m a v a . . . e ele m e d iz ia que enq uanto
f az ia tud o isso que ela p ed ia, p erd ia o tesão .
Po r quê? Po rque ela to rnav a terna u m a situação que d ev ia ser se-
x u al, e nessa ternu ra seu desejo se diluía.

É possível desejar outra pessoa mesmo


estando apaixonado? (Sim)

A resp o sta a essa p erg unta, e m b o ra fira a id eia ro m ântic a d o


amo r, é que sim . C o m o v im o s, os mec anismo s d o am o r e d o d esejo
transitam p o r c am inho s tão d iferentes que não é estranho que p o ssam
se d irig ir a pesso as d iferentes. Essa c o mp ro v aç ão é imensamente d o lo -
ro sa p o rq ue d estró i u m a d as ilusõ es g erad as p elo am o r: c o mp letar u m
ao o utro .
O b v iam ente, se o o utro no s co mp letasse, não hav eria desejo , e,
p o rtanto , não hav eria necessid ad e de ir buscar n ad a e m n e n h u m o utro
lugar. M as , d ad o que as co isas não são assim, o tem a d a fidelidade se
imp õ e c o m o algo que não está d eterm inad o p elo simp les fato de se
estar e m u m relac io namento afetiv o ; req uer u m a d ecisão e u m esfo rço
p esso al. V am o s f alar disso no cap ítulo seguinte.
Para co ncluir, d ig amo s que o d esejo é, enf im , a única a r m a que
temo s p ara enfrentar a mo rte. Po rque se não tivéssemo s desejo s, ao
o lhar p ara frente, sem p ro jeto s que no s m o b iliz em , só v eríamo s no
final d o c am inho o d estino que no s esp era, e não p o d eríamo s ev itar
p ensar o temp o to d o que v am o s mo rrer.
SO BRE O A M O R E O DESEJO 141

M o v id o s p ela fo rça d o d esejo emp reend emo s ep o p eias, escrev e-


mo s liv ro s, no s ap aixo nam o s, estud amo s o u simp lesmente transitamo s
a v i d a c o m aqueles que, c o m seu reco nhecimento , no s f az em reno v ar
co nstantemente a v o ntad e de crescer e no s c o nv id am a inv entar, sem-
p re, m ais u m p ro jeto .
Sétimo encontro

A IN FID ELID A D E

H o je e m d ia, só se vê a fidelidade no s
ap arelho s de so m.

W OODY A LLEN
144 EN CO N TRO S

Do lado do infiel

As pontes de Madison, u m a d as histó rias de am o r que m ais c o m o -


v e ram leito res e espectad o res, é tam b é m u m a histó ria de infid elid ad e.
Esse ro m anc e de Ro b ert Jam e s W alle r fo i lev ad o ao c i ne m a p o r C l i n t
Eastw o o d , que o p ro tag o niz o u c o m M e r y l Streep .
O relato d o filme transco rre e m d uas ép o cas, v ai o temp o to d o d o
p resente ao p assad o , e c o nta a histó ria de am o r de Franc esc a e Ro b ert.
D e u m m o d o resumid o , esta é a histó ria.
Franc esc a m o rre u , e seus filhos d esco brem que ela d eixo u p o r es-
crito sua v o ntad e de ser c re m ad a e que suas cinz as fo ssem esp alhad as
so bre a p o nte Ro se m an , u m a d as p o ntes de M ad i so n .
O s filhos não entend em o mo tiv o desse p ed id o , v isto que seu p ai,
falecid o há alguns ano s, hav ia enc o mend ad o d o is túmulo s co ntíg uo s
p ara que ambo s d escansassem ju nto s p o r to d a a eternid ad e.
Q u an d o o ad v o g ad o os reúne p ara lhes entreg ar as co isas de sua
m ãe, entre seus p ertences enc o ntram u m a chav e que abre u m a c ai x a
d entro d a q u al há três d iário s d irig id o s a eles, no s quais Franc esc a lhes
c o nta o mo tiv o d essa d ecisão .
A c o ntec e que ela é u m a m u lhe r que v iv e no c am p o e lev a u m a
v i d a c hata e m o nó to na ao lad o de seu m arid o e seus d o is filhos. A té
que, e m certa o casião , os três le v am u m to uro p ara c o mp etir e m u m a
feira p ecuária, e m u m a cid ad e p ró xim a, e Franc esc a fica so z inha p o r
quatro d ias.
N essa circunstância, enc o ntra u m d esco nhecid o , u m fo tó g rafo d a
National Geographic que p erc o rreu o m u nd o e cheg o u até a reg ião c o m a
intenção de fo to g rafar as p o ntes co bertas de M ad i so n . Perg unta a ela
p ela p o nte Ro se m an , e c o m o ela não co nsegue exp lic ar c o m c larez a
c o m o cheg ar lá, o ferece-se p ara ac o m p anhá- lo . E aí c o m e ç a essa his-
tó ria de amo r.
Franc esc a é italiana, nasc id a n a cid ad e de Bar i . Ro b ert lhe d iz
que co nhece Bari , p o rque certa v ez o trem e m que v iajav a p aro u nes-
sa estação , e, c o m o lhe p arec eu muito bo nita, sentiu curio sid ad e p o r
co nhecer c o m o era essa cid ad e, de m o d o que m u d o u seus p lano s e
d esceu ali p ara p o d er p erco rrê-la.
A IN FID ELID A D E 145

El a p ensa que esse neg ó c io de d escer de u m tre m e m u m lug ar


q ualq uer só p o rq ue p arece atraente é algo que jam ai s se atrev eria a f a-
zer, e a c ad a no v o relato v ai ficando d eslu m b rad a c o m a p erso nalid ad e
de Ro b ert.
N o d ia seguinte, m u ito ab alad a p elo enco ntro , v ai c o m seu c arro
até a p o nte o nd e sabia que ele i a fo to grafar, e d eixa- lhe u m bilhete
c o nv id and o - o a jantar. N essa no ite se to rn am amantes e ambo s sentem
que jam ai s p o d erão am ar d essa m an e i ra de no v o .
N ão p o d eria ser de o utro m o d o , estand o no m o m ento inic ial d a
p aixão . M a s é m elho r d eixarm o s os co mentário s p ara d epo is e pro sse-
g uirmo s c o m a histó ria.
Ro b e rt fica esses d ias c o m ela e, q u and o se ap ro x i m a o m o m ento
d o reto rno de sua família, p ed e a Franc esc a que larg ue tud o e v á c o m
ele. El a aceita, ar r u m a as m alas, e tud o p arece estar p ro nto p ara fug i-
re m junto s. M as, essa no ite, enq uanto jan tam , Ro b e rt a o lha e c o m -
p reend e que ela não v a i ab and o nar a família. Te n ta co nv encê-la, m as
ela d iz que não p o d e faz er isso c o m seu m arid o e seus filhos.
A ntes de se d esped ir, eles f az em amo r, Franc esc a lhe d á u m a l e m -
b ranç a familiar, u m a c o rrentinha que é muito imp o rtante p ara ela, e
se d esp ed em. M a s ele, que não se resig na, fica m ais alg uns d ias n a c i -
d ad e, esp erand o que ela m u d e d e id eia.
O m ari d o e os filhos v o l tam e a v i d a p arece reto m ar seu ru m o h a-
bitual p ara to d o s... meno s p ara ela. N o m eio d essa histó ria, nas v o ltas
ao temp o p resente, o d ireto r no s m o stra c o m o os filhos, que v ão sa-
b e nd o d e tu d o à m e d i d a q u e l ê e m o d iário , p as s am d a i n d i g n aç ão
à i nc re d u l i d ad e , d a d e c e p ç ão à c o m p re e nsão e d a rai v a à f asc i na-
ç ão . Po rq ue essa m ãe que hav ia lev ad o u m a v i d a o bsc ura e ro tineira,
no f und o esco nd ia u m a p aixão sublime.
C ertam ente, a c ena m ais rec o rd ad a d o filme é a f amo sa " c e na d a
c am inho nete".
Francesca v ai c o m seu m arid o à cid ad e c o m p rar alg umas provisões.
Está cho v end o , e é u m d ia escuro e triste. E m d ad o mo mento , ela vê
a caminho nete de Ro b ert e co mp reend e que ele está p artind o . O se-
máfo ro os d etém, e seu veículo fica b e m à frente d o de Franc esc a e seu
marid o . El a o lha p ara ele, ap aixo nad a, ang ustiad a, e, nesse mo mento ,
ele p end u ra algo no espelho retro viso r. E a c o rrentinha que ela lhe d eu.
146 EN CO N TRO S

O semáfo ro fica v erd e, os segund o s p assam, m as ele não arranc a.


Está esp erand o p o r ela. Está ro g and o que se d ec id a. Po r u m instante,
Franc esc a sente u m imp ulso e p eg a a m aç aneta d a p o rta p ara ab ri-
- la e c o rrer p ara ele. M as hesita. E q uand o está quase d ec id id a, seu
m arid o to ca a b u z i na exig ind o a Ro b e rt que arranq u e, e Franc esc a
v o lta à realid ad e. Seus o lho s se enc o ntram p ela última v ez no espelho
retro v iso r de Ro b ert, e ele arranc a, d á a v o lta e v a i e m b o ra de sua v i d a
p ara semp re.
El a não co nsegue se co nter e c ho ra d esesp erad amente, d iante d o
o lhar ató nito de seu m arid o , que não entend e n ad a d o que está ac o n-
tecend o .
Pelo relato de seus d iário s íntimo s, os filhos sabem que ap ó s a
mo rte de seu m arid o , m ais de v inte ano s d ep o is, Franc esc a tento u lo -
c aliz ar Ro b ert, m as não teve sucesso . A té que, u m d ia, recebeu u m a
enc o m end a. C o m essa c ai x a hav ia u m a c arta que lhe c o m u nic av a que
Ro b ert hav ia m o rri d o e que lhe d eixav a to do s os seus p ertences. A lém
de tud o , p ed ia que seu c o rp o fosse c rem ad o e suas cinz as jo g ad as so -
bre a p o nte Ro se m an .
O d iário de Franc esc a ac ab a c o m a seguinte frase: " D e d i q u e i m i -
n h a v i d a a m i n h a família, quero d ed icar a ele o que restar de m i m " .
A o ac ab ar de ler, os irmão s se o l ham emo cio nad o s p o r co nhecer a
histó ria de am o r de sua m ãe. So rri e m e b ri n d am e m h o n ra a essa m ãe
que d esc o nhec eram d urante to d a a v i d a e reso lv em realiz ar seu desejo .
O filme é certamente emo tiv o , m as, d o p o nto de v ista p sico ló g ico ,
eu d iria que é u m a histó ria quase sinistra. Po rque não é m ais que a
v i d a de u m a m u l he r que teve só quatro d ias de p aixão e que d epo is es-
p ero u a mo rte d urante q u arenta ano s p ara que suas cinz as se unissem
às d o h o m e m que am o u e que n u n c a m ais v i u .
Isso que aco nteceu c o m Franc esc a é u m a d o enç a que se c h am a
m elanc o lia, mas não v o u m e estend er nela p o rq ue tam b é m foge à i n -
tenç ão deste liv ro . M a s quero d iz er que o afeto melancó lico af u nd a o
sujeito e m u m estad o d o entio e so fredo r.
Se alg uém, d urante q u arenta ano s, só esp ero u m o rre r p ara ser
c rem ad o e suas cinz as d esp ejad as ju nto às de u m a p esso a que só v i u
p o r quatro d ias há quase meio século , não p o d emo s d iz er que tenha
tid o u m a v i d a b o a.
A IN FID ELID A D E 147

M a s o f ilm e ap resenta, ai n d a, o te m a d a inf id elid ad e c o m o


alg o que não é, e m si m esm o , n e m b o m n e m r u i m . Po rq ue aco ntece
que, q u and o os esp ectad o res v e e m a c e na d a c am inho nete que ac a-
b am o s d e d escrev er, to d o s estão to rcend o p ara que ela saia d o c arro
e v á c o m o o utro , p ar a que ab and o ne seu m ari d o e seus filho s e ap o s-
te tud o e m sua histó ria de amo r.
C o ntu d o , não creio que essa atitud e seja fruto de u m a to m ad a de
p artid o a fav o r d a infid elid ad e, e sim o resultad o de p resenciar u m a
v erd ad eira p aixão , o desejo , isso que a p ro tag o nista, Franc esc a, hav ia
d esco berto e m seu co ntato c o m Ro b e rt e que era a única co isa i m -
p o rtante que, c o m o mulher, hav ia lhe aco ntecid o n a v id a. E q u and o
d igo c o m o mulher, f aç o - o p ar a d e m arc ar u m a sep araç ão de p ap éis,
p o rq u e c o m o m ãe tam b é m h av i am lhe aco ntecid o co isas m u ito fo rtes.
Esses d o is filhos e ram f und amentais p ara ela, assim c o m o seu m arid o .
U m b o m h o m e m a q u e m am av a e resp eitav a e de q u e m c u id o u até seu
último d ia no leito de mo rte.
Franc esc a é u m a b o a mulher, seu m arid o e Ro b e rt d o is bo ns ho -
mens, e talv ez p o r isso o filme mo stre que o tem a d a infid elid ad e é
mais c o mp lexo d o que c o mumente se p ensa, e que n e m semp re p o d e-
mo s p ô r os bo ns de u m lad o e os m au s d o o utro .

Amor e infidelidade

D e tud o que exp usemo s até ag o ra, surge c o m c larez a que a infid e-
lid ad e p õ e a ênfase no am o r e no desejo c o m o d o is afeto s que, em b o ra
c o m um ente p ensemo s que an d am junto s, têm p ro fund as d iferenças.
Trata- se de emo ç õ es c o mp lexas, e, c o m o tais, têm sua o rig em n a i n -
fância.
N ão há amo res m ais sério s que os que sentimo s q uand o crianças.
O s ad ulto s têm o co stume de m i n i m i z ar os afeto s infantis sem p erceber
que são talv ez m ais fo rtes, m ais imp o rtantes, têm meno s filtro que os
de u m ad ulto .
Re to m o a frase de Discép o lo : " Si y o p u d iera c o m o ay er q uerer sin
p resentir". O s ad ulto s p ressentem. Q u an d o se ap ai x o nam , j á sabem
que p o d e acabar, que p o d e m ser traíd o s, que tam b é m p o d e m trair,
148 EN CO N TRO S

que o d esejo p o d e d esap arecer, e, ac i m a de tud o , sab em u m a co isa que


é fatal p ara a id eia ro m ântic a d o am o r: é o fato de ter c o m p ro v ad o
que de amo r, se não estiver lo uco , ning uém m o rre. Situaç ão refletid a
n a frase que, d o is o u três ano s d epo is, disse alg uém que ac hav a que i a
m o rre r de am o r: " N ão entend o c o m o p ud e so frer tanto p o r u m a p es-
so a assim " .

Infidelidade e infância

V end o a imp o rtânc ia que as v iv ências infantis terão so bre esses


temas, reco rd o u m p aciente que tinha m u i ta d ificuld ad e d e acred itar
nas mulheres. C a d a relação era u m so frimento , p o rq ue o temp o to d o
tinha a sensação d e que seria eng anad o . E não se tratav a de u m a pes-
so a c iu m enta. A o co ntrário , era u m h o m e m m u ito seguro de si, b e m -
-suced id o , atraente, no entanto não p o d ia ev itar isso que ele c h am av a
de p ressentimento .
Então , eu lhe disse que talv ez o que ele tinha não era u m p ressen-
timento d e algo que p o d ia aco ntecer no futuro , m as u m a lem b ranç a
esquecid a de algo que hav ia aco ntecid o no p assad o .
Estáv amo s trab alhand o esse te m a q u and o ele cheg o u à sessão
abalad o , assustad o e muito env erg o nhad o . Perg untei o que hav ia ac o n-
tecid o , e ele disse que hav ia id o a u m enco ntro no co lég io o nd e fizera
o ensino f u nd am ental. E r a aniv ersário d o estabelecimento e, em b o ra
não fosse u m h o m e m que f az ia culto à no stalg ia, teve v o ntad e de ir e
ficar u m p o uc o lá.
Po is b e m , aco ntece que, enq uanto f alav a c o m alg umas pesso as
que h av i am id o à festa, p erg unto u a u m a mulher, que não hav ia sido
sua co leg a de classe, se era d o b airro . E ela disse que sim , que m o rav a
e m tal lugar, e m frente a u m a o f ic ina m ec ânic a, e que seu p ai tinha
u m a lo ja de mó v eis.
M e u p aciente ficou b ranc o e p erg unto u: " Então , v o cê é C l au d i a? " .
El a resp o nd eu que sim , e ele, sem p o d er co nter u m a angústia inexp li-
cáv el e rep entina, disse que ela hav ia sid o a resp o nsáv el p o r ele n u n c a
n a v i d a ter co nseg uid o co nfiar e m m u lhe r n e n h u m a.
A IN FID ELID A D E 149

A m u l he r não entend eu nad a, e ele lhe rec o rd o u q u e m era, co isa


que ela relem b ro u não sem c erta d ificuld ad e. E ele disse que q u and o
ti n h am c inc o ano s e ram nam o rad o s, até que, u m d ia, q u and o ele saiu
p ara ir ao m erc ad inho , enc o ntro u- a d e m ão s d ad as c o m o utro m enino
d o b airro .
Nesse m o m ento , m e u p aciente rec o rd o u que não co nseg uiu che-
g ar ao m erc ad inho , que v o lto u c o rrend o p ara casa e se tranc o u no
q uarto c ho rand o , e que d ep o is desse fato não rec o rd av a m ais n ad a de
sua infância, até os cato rz e ano s.
A o m e co ntar isso , ele estav a env erg o nhad o p elo co nstrang imento
que hav ia feito u m a m u lhe r de 45 ano s p assar p o r u m a co isa que h a-
v i a feito ao s cinco e d a q u al ela n e m se le m b rav a m ais. M as , p ara ele,
hav ia sid o u m m o m ento traumático , algo muito fo rte, e justam ente n a
id ad e m ais imp o rtante p o r ser a que co rresp o nd e ao m o m ento c u l m i -
nante d o que c ham am o s c o m p lexo d e Éd ip o .
Desse aco ntecimento e m d iante, a id eia que hav ia ficado e m seu
inco nsciente era que o am o r semp re c o nd u z iria à traição e à do r, e,
p o r isso , suas relaçõ es e ram p o uc o c o mp ro metid as o u so frid as. Q u ase
p o d eríamo s d iz er que sua v i d a em o c io nal hav ia ficado m arc ad a p elo
registro d a infid elid ad e.
Intu o que m u ita gente deve co ntinuar p ensand o que se trata de u m
fato meno r, mas d eixem- me d iz er que e m p o ucas etapas d a v id a o amo r,
o aband o no , a so lidão e a traição são v iv id o s c o m tanta fo rça e c o m tão
p o u c a po ssibilid ad e de se d efend er d a angústia c o mo n a infância.
H á p o uc o temp o , u m a m u l he r m e f alav a de seu filho, u m m enino
que, inv ad id o p o r to d a a questão d a sexualid ad e infantil, que é tão
fo rte, p assav a o d ia to d o esp iand o p ela jan e l a a v i z i n h a de q u e m tanto
go stav a, e que q u and o cheg av a a h o ra de ir à esco la, ficava nerv o so
p o rq ue a v eria. El a disse, tam b ém , que o garo to , d urante quase seis
meses, lev av a no bo lso u m alfajo r, que n u n c a teve c o rag em de lhe dar.
O filho so fria, e ela, so rrid ente, c o m o se fosse u m a b o b ag em, d iz ia- m e:
"V o c ê não sabe, ele lev a o alfajo r e o traz de v o lta, se tranc a no quarto
e c ho ra. C o i tad i n h o " . El a não c o m p reend ia a p o tênc ia afetiv a d o que
estav a aco ntecend o c o m seu filho.
O garo to so fria muito . E isso é co mpreensível, p o rque estava ap aixo -
nad o , e o amo r, c o m o d issemo s, co lo ca a p esso a e m u m a situação de
150 EN CO N TRO S

p erig o . Po is b e m , o m esm o p o d emo s d iz er d o desejo . Po rq ue aquele


que d eseja se enc o ntra m o b iliz ad o a ir, imp erio samente, e m busca d o
o bjeto que o rig ina esse desejo , e, m o v id o p o r essa fo rça que o atrav es-
sa, é c ap az de c o rrer risco s.
H á q u e m busque a tranq uilid ad e tentand o se co nv encer de que
esse am o r o u o d esejo d urará a v i d a to d a. M a s j á d issemo s que nesses
assunto s não há certezas po ssíveis.
N o início deste liv ro falamo s de O sc ar W ild e, de seu liv ro O retrato
de Dorian Gray, e reco rd o m ais u m p arág rafo que g o staria de citar.
D ep o is de u m a co nv ersa so bre o am o r que tem c o m lo rd e H enry ,
D o r i an está inquieto , sente que o que esse h o m e m d iz é v erd ad e, m as
que lhe abre as p o rtas de u m m u nd o escuro e cheio de d úvid as. Nesse
estad o u m tanto ang ustiante, o lha p ara ele, e lo rd e H enry , que p are-
ce p erceber os p ensamento s de seu no v o amig o , p erg unta: "A leg ra-se
p o r ter m e co nhecid o , senho r G r a y ? " , e D o r i a n resp o nd e: " Si m , ag o ra
sim, m as m e p erg unto se m e aleg rarei sem p re".
" Se m p re . "

U m a p alav ra terrível que ev id enc ia a inútil busca de u m a certez a


impo ssível, o u a rep etição d o lo ro sa de u m a esco lha d o entia. C o ntu d o ,
muitas pesso as p õ e m a p erd er to d as as suas histó rias de am o r tentand o
faz er que d u re m p ara semp re.
C o m p re e n d o que é quase inevitável que esse desejo su rja no co -
m e ç o de u m a relação . C o nhec em o s alg uém e c o m eç am o s o jo g o d a
sed ução , usamo s no ssas melho res jó ias, tentamo s ser mais inteligentes
d o que so mo s e m ais co mp reensiv o s d o que p o d eremo s ser d ali a al -
g u m temp o .
Nesse jo g o mo stramo s o m elho r que temo s p ara tentar co nv encer
o o utro de que n ad a m elho r p o d e lhe aco ntecer n a v i d a que estar co -
no sco . E às v ezes co nseg uimo s, em b o ra o eng ano d ure p o uco . Po rque,
co nsciente o u inco nscientemente, p ro metemo s d ar o que não temo s, e
d epo is, m ais ced o o u mais tard e, a im p o stu ra se rev elará.
H á q u e m se co nfesse p o uc o interessad o nessa id eia de ter u m
c o m p anheiro p ara semp re, há q u e m af irm e que v iv e o m o m ento p o r-
que " a v iv ência f ic a p ara sem p re". D i z isso n a p ri m e i ra v ez , d iz n a se-
g u nd a v ez , d iz n a terceira v ez , mas n a q u arta rec lam a: " V o c ê não m e
lig o u a sem ana to d a" .
A IN FID ELID A D E 151

E m que m o m ento seus có d igo s c o m e ç aram a m u d ar? Q u an d o


p assaram desse estad o d esco ntraíd o de q u e m não esp era muito a essa
angústia ansio sa que só se ac al m a c o m o ap arec imento d o o utro ?
N o m o m ento e m que e ntraram e m jo g o o utras questõ es que v ão
além d a sed ução e d a ansied ad e de co ncretiz ar o desejo . N o m o m ento
e m que surge a necessid ad e de ser am ad o e reco nhecid o c o mo alg uém
esp ecial.
Po rque, ao passo que o d esejo surge de u m m o d o intermitente
e busca a satisfação im ed iata, a red ução d a tensão que g era, o am o r
d eseja a p erm anênc ia no temp o . Então j á não aco ntece c o m o c o m
o p u ro d esejo eró tico , que, u m a v ez satisfeito , p erm ite a ausência d o
o utro até que to rne a surg ir a ânsia de reenco ntro . A o co ntrário , aq u i
é necessária a p resença do am ad o , ag o ra, d epo is e, se po ssível, a v i d a
to d a.
E c o m o se entrec ruz a, então , o tem a d a infid elid ad e c o m o d o
am o r e d o d esejo ?

A infidelidade surpreende

A infid elid ad e é u m fato inesp erad o , v iv id o g eralmente c o m o algo


estranho , c o m o se o infiel ho uv esse v io lad o u m m o d o natu ral de se re-
lacio nar, e a p esso a que fo i traíd a não co mp reend e os mo tiv o s d a trai-
ção , e b usc a u m a exp licação que, de q ualq uer m an e i ra, não v a i serv ir
p ara que entend a, n e m p ara aliv iar sua do r. M as aco ntece que o que
às vezes é difícil de entend er é que a fidelidade não é u m ato natu ral,
e sim resultad o de u m a d ecisão . D ec isão que, g eralmente, é m anti d a
c o m g rand e esfo rço .
Penso no que aco ntece q uand o ab rimo s u m a to rneira. E m que
m o m ento no s surp reend emo s e p erg untamo s o que aco nteceu? N atu -
ralmente, q uand o a ág ua não sai. Po rque no s aco stumamo s tanto que
semp re bro te ág ua q uand o ab rirm o s a to rneira que no s p arece natu ral
que assim seja, m esm o send o muito m ais difícil a ág ua ap arecer que
não ap arecer, v isto que basta que algo o bstrua o enc anam ento p ara
que a p assag em seja interro m p id a. Po rém, p ara que tud o funcio ne d i -
reito , é p reciso traz er a ág ua dos d epó sito s, que ficam m u ito lo nge,
152 EN CO N TRO S

a quiló metro s d e d istância às v ez es; co nseg uir que v enç a a fo rça d a


g rav id ad e c o m a aju d a de mo to res; d ep o sitá-la e m tanques, de o nd e
o utras tubulaçõ es a farão d escer; mantê- la p arad a à esp era de que d e-
c id amo s g irar a to rneira e só então ap areç a e m no ssa c o z inha. C o n tu -
d o , rep ito , ficamos m ais esp antad o s q u and o isso não aco ntece.
A l g o p arec id o aco ntece c o m a infid elid ad e. N ó s a p erc ebemo s
c o m o algo estranho , u m fato que no s surp reend e, sem p ensar que é
m u ito m ais difícil ser fiel que não ser. Po rq ue a fidelidade te m que
enfrentar a f o rç a d o d esejo , que, c o m o d issemo s, não se d etém p o r
m ais que estejamo s ap aixo nad o s, e o am ante fiel trav a u m a b atalha
c o tid iana c o m suas tentaçõ es e m no m e de algo que c o nsid era m elho r
p ara ele.

Um momento doloroso

A p ri m e i ra sensação d a p esso a que so freu u m a infid elid ad e é, en-


tão , a surp resa. M a s imed iatamente se sente arrasad a, v ítima de u m a
g rand e do r. Ev id entem ente, u m p o uc o d o p ró p rio narc isismo fo i feri-
d o , u m p o uc o de sua auto estima m ac hu c ad a, p o rq ue essa p esso a que
ansiav a ser tud o p ara o o utro p ercebe que não é assim; que essa ilusão ,
g erad a p elo amo r, de transf o rm ar d o is e m u m mo stro u sua frag ilid ad e.
Dissemo s que a ilusão d o am o r é enc o ntrar alg uém que de alg u m
m o d o no s co mp lete, que no s faça sentir que estamo s send o cuid ad o s,
p ro tegid o s, que so mo s d esejad o s, e isso não é ru i m . M a s o que a infid e-
lid ad e v e m mo strar é que isso era só u m a ilusão , e o ap aixo nad o não
só se sente ferid o , m as tam b é m d esco ncertad o . N ão enc o ntra o mo tiv o
p elo q u al isso aco nteceu, p o rq ue não é fácil entend er que, muitas v e-
zes, o único mo tiv o é a existência de u m d esejo que n u n c a se satisfaz.
M u itas pesso as sustentam a teo ria de que, q u and o alg uém é infiel,
isso ind ic a que alguma coisa faltava em casa, raz ão p ela q u al fo i buscar
f o ra o que não enc o ntrav a e m seu c o m p anheiro .
Ju lg o entend er nessa exp licação u m racio cínio que age c o m o m e -
c anism o de d efesa d iante d a angústia g erad a p elo fato de que ning uém
p o d e g arantir a fidelidade d o o utro . A c re d itar que alg uém traiu p o r-
que não estav a b e m abre a p o rta p ara a esp erança. " Be m " , p ensam ,
A IN FID ELID A D E 153

"isso não v a i aco ntecer co mig o p o rq ue e m m e u relac io namento está


tud o b e m , co mig o não lhe falta n ad a" ; q u and o a v erd ad e é que p ara
to do s, semp re, falta alg u m a co isa.

É possível amar e ser infiel?

Essa é u m a p erg unta que ap arec ia de u m m o d o reco rrente c ad a


v ez que e m alg u m d aqueles enco ntro s to camo s no tem a. E eu p ud e
c o m p ro v ar que a m ai o ri a d as pesso as tend e a ac red itar que q uand o
alg uém eng ana é p o rq ue d eixo u d e am ar; e m e p erm ito p ensar que
isso não é necessariamente v erd ad e. E ev id ente que p o d e d ar-se o fato
d e que alg uém te nha p erd id o o interesse p o r seu c o m p anhe iro , que
j á não q u eira estar a seu lad o e busque o u tra relação que lhe d ê satis-
f aç ão o u o em p urrão , a fo rça que necessita p ara se sep arar e que não
sente estand o so z inho . M as, muitas v ezes, não é isso que aco ntece.
E m muito s caso s, ao co ntrário , a p esso a não d eseja te rm i nar a
relação que j á tem c o m seu c o m p anheiro , am a- o , teme que d esc ubra
p o rq ue q uer a v i d a que tem c o m ele e não o tro c aria p o r seu amante.
E , ap esar disso , é infiel. D i g o isso m esm o sabend o que não ag rad ará
aquelas pesso as que se ap eg am a esp eranças vãs.
Re c o rd o u m a p aciente c u ja v i d a e ra u m a co nstante esp era. V i v i a
exp ectante, c o m o q u e m o lha u m fruto que p end e d o alto de u m a árv o -
re e não q uer sair d ali p o rq ue ac red ita que, q u and o cair, será seu.
" El e v a i se sep arar", d iz ia ela. " Faz m ais de u m ano que está co -
mig o ; ele m e m i m a , m e lig a to d o s os d ias, ó bv io que v ai se sep arar,
senão não m e lig aria, não i a q uerer m e ver. Se estivesse tão b e m e m
casa, não estaria c o m ig o ."
M a s seu am ante n u n c a se sep aro u, e p ara ela fo i muito difícil
aceitar essa id eia, e que o que tinha que d ecid ir era se p o d ia ser feliz
desse jeito o u se ac ab av a o relac io namento . U m relac io namento que
lhe d av a muito , m as não o que ela esp erav a.

O amor não garante a fidelidade

Utiliz o esse exem p lo p o rq ue acho que essa id eia d e que alg uém é
infiel p o rq ue d eixo u de am ar d ev e ser analisad a seriamente. E u g aran-
154 EN CO N TRO S

to que muitas pesso as, m esm o estand o muito ap aixo nad as p o r seu p ar-
ceiro , f o ram infiéis. Po rque o am o r não traz a fidelidade ag reg ad a. Isso
faz p arte d a ind iv id ualid ad e de c ad a u m , de sua subjetiv id ad e, de seu
m o d o de v iv er a v i d a. E isso é u m p o nto no d al n a h o ra de v er c o m o se
segue d ep o is, p rinc ip alm ente se essa p esso a q uer tentar de no v o d epo is
de u m a infid elid ad e; mas j á cheg aremo s a esse p o nto .

A ntes, eu g o staria de d estacar o que v im o s faland o ac erc a de que


o am o r c o stum a g erar a falsa id eia de que o ap aixo nad o ac o rrenta seu
desejo ao ser am ad o de u m a m an e i ra p erm anente, q uand o a v erd ad e
é que o desejo não se d e ix a p rend er e segue seu p ercurso , p o r m ais
ap aixo nad o que alg uém esteja. M a s essa id eia está tão enraiz ad a que
se faz necessário , então , enc o ntrar semp re u m p ro b lem a c o m o causa
d esencad eante d a infid elid ad e, ig no rand o que o p ro blemático é a p ró -
p ri a natu rez a d o desejo .
Já falamo s d o ciúme e d a posse e de c o m o esses afeto s interag em
e m alg uém q u and o se ap aixo na. Po r isso é hab itu al no tar o caráter
po ssessivo o u c iumento que às v ezes o am o r assume; que alg uém d e-
seja que seu p arc eiro lhe p ertenç a, que não o lhe p ara m ais ning u ém ,
que n e n h u m o utro o to que, e que isso faz que essa p esso a v eja n a p o s-
sibilid ad e de u m a infid elid ad e u m a am e aç a que a d eixa ang ustiad a.
Então , p ara se pro teger, d esenv o lv e essa id eia de que o am o r exc lui a
traição e acred ita que, se é am ad a, então p o d e ficar tranq u ila. Po rque
acred ita nesse m and am e nto natu ral: q u e m am a não trai.
M a s j á d issemo s que não há n ad a de natu ral no am o r e que as
relaçõ es hu m anas são co nstruçõ es. E , nessas co nstruçõ es, a c u ltu ra e m
que se v iv e tam b é m tem influência no m o d o c o m o essas co isas são v i -
v id as e interp retad as.

Perm ito - m e u m a p eq u ena d igressão .


H á p o uc o temp o saiu no s jo rnai s a no tícia de u m h o m e m que
v i v i a c o m quatro o u cinco irmãs, e era m ari d o de to d as elas. V i v i a m
ju nto s n a m e sm a casa e o h o m e m d ec id ia c o m q u al d elas ficava, d e-
p end end o d o d i a e de seus d esejo s. E os jo rnalistas, esp antad o s, ten-
tav am se meter nessa " m i n i c u l tu ra" que hav ia sid o c riad a. Fal av am
c o m eles e tentav am mo strar, de u m a p ersp ectiv a externa, essa relação
A IN FID ELID A D E 155

que lhes p are c i a tão estranha, m as que, p ar a essa família, e ra sup er-
natu ral.
Perg u ntav am às irmãs c o m o se d av am , e elas resp o nd iam que
muito b em , que ele d o rm i a u m d ia c o m u m a, o utro c o m o utra, que u m a
lav av a, a o u tra c o z i n h av a, a terc eira c u i d av a d as c rianç as e que se
sentiam m u ito b e m .
N e n h u m a dessas mulheres v i a u m ato de infid elid ad e q u and o esse
h o m e m p assav a de u m a c am a à o utra, co isa que p ro v av elmente teriam
sentid o se ele fosse atrás de u m a amante f o ra desse p acto tão p eculiar.
A p resso - m e a d iz er que não esto u ju lg and o a situação , simp les-
mente d and o u m exemp lo d e u m f o rmato d iferente de relação .
A l g u m as religiõ es, p o r exemp lo , p e rm i te m que u m h o m e m tenha
d uas mulheres, o utras, u m harém c o m c inq uenta o u c em . M as , p o r
que c em , e não to d as? Po rque m esm o nesses fo rmato s culturais não
se p o d e ter tud o , e semp re hav erá u m a n o r m a que im p o rá u m limite
e d irá que o h o m e m p o d e ter u m a mulher, d uas, c e m , m as não to d as.
N o áp ice desse limite ap arece a p ro ibição d o incesto , que estabelece
que alg umas pesso as são to talmente p ro ibid as.
E m no ssa c u ltu ra essa p ro ibição ab arc a os p ais, irmão s, filhos e
avó s, p o r exemp lo . C o m o d iz ia u m p aciente, c o m m u i ta g raç a, n a v i d a
de to d o h o m e m semp re ho uv e u m a p ri m a.
M as, v o ltand o a no sso tem a, d iz íamo s que c o stum a hav er u m d e-
sejo de po sse que é bastante c o m u m surg ir e m u m relac io namento .
D u as pesso as se c o nhec em , se g o stam, isso as estimula e alim enta seu
desejo até que se d á a co ncretiz ação , e então ap arece esse d esespero de
d eter o m o m ento .
Isso aco ntece e m no ssa c u ltu ra, mas, c o m o v im o s, existem p o ssi-
bilid ad es de que u m relac io namento se guie p o r có d igo s d iferentes dos
habituais.

A infidelidade sempre implica uma mentira?

C a d a casal p ac tu a, exp lícita o u tacitamente, as reg ras p elas quais


quer se reger. A lg u ns aco rd o s são saud áveis e o utro s são d o entio s, ge-
156 EN CO N TRO S

r a m so frimento e m u m do s d o is, o u e m ambo s, c o m o v eremo s no p ró -


x i m o cap ítulo . E , muitas v ezes, e m u m relac io namento se p ac tu a que
c ad a u m tem d ireito de lid ar c o m seu d esejo c o m liberd ad e.
Sei que isso p o d e p arec er u m p o uc o fo rte, m as se fo r u m p acto
entre ad ulto s, se n e n h u m dos d o is so frer p o r isso , p ara esse casal e m
p artic u lar esse aco rd o f u nc io na b e m . A lg u ns q u erem saber, o utro s, p o -
rém, p ref erem ig no rar.
Le m b ro o caso de u m a mulher, espo sa de u m v iajante, que m e
co nto u que no início so fria m u ito c ad a v ez que seu m ari d o p artia, que
se to rturav a p ensand o que ele p o d eria estar c o m o u tra mulher, m as
que j á f az ia u m temp o que co nseg uira se tranq uiliz ar.
" Só quero que ele cuid e d e m i m , que não ri a de m i m e m e resp ei-
te; que se fizer alg u m a co isa, faça c o m inteligência, p ara que n e m eu
n e m ning uém m ais fique sabend o e saia m ac h u c ad o . " A ssi m d iz ia ela.
O u tr a p aciente, faland o d o tem a d a infid elid ad e, d isse-me e m u m
to m p arecid o , e m b o ra m ais aud az , o seguinte: " N ão po sso lhe p ed ir
que não deseje m ais ning uém, p o rq ue eu tam b é m d esejo o utras p es-
soas. M a s m e encarreg o de que ele n u n c a saiba. E u jam ai s lhe falta-
ria c o m o respeito , n u n c a ficaria c o m u m amig o , n e m c o m o v iz inho ,
n e m c o m alg uém d o trabalho que ele d epo is pud esse enc o ntrar se m e
aco mp anhasse a alg u m a festa. N e m lo u c a eu o exp o ria a estar d iante
de u m h o m e m c o m q u e m j á d o rm i ; isso seria u m a falta de resp eito .
Po sso d esejar o utro s ho mens, m as isso não . N ing u ém c o m q u e m ele v á
c ru z ar o u so bre q u e m p o ssa saber. N u n c a . Po rque o que faço tem a v er
c o m m e u desejo , não é algo c o ntra ele. Po rque eu o am o , então , tenho
que p reserv á-lo ".
O b serv em o s c o m o é interessante seu racio cínio , e respeitável d o
m e u p o nto de v ista, que o lho c o m o p sicanalista e não emito u m ju íz o
de c aráter m o ral so bre o tem a. El a não q uer p reju d ic ar ning uém, m as
esse é u m risco que co rre, e tem que ad mitir. Simp lesmente se p erm ite
alg umas co isas c o m seu desejo . Isso está certo , está errad o ? N ão m e
cabe resp o nd er a essa p erg unta. Ex c e to e m caso s extremo s, c o m o o
abuso o u a v io lência, p o r exemp lo , não é função de u m p sicanalista
faz er juíz o s de v alo r.
M as, então , q u al é a p o sição que o p sicanalista d eve to m ar nesses
caso s?
A IN FID ELID A D E 157

Su p o nham o s que u m a p aciente c o nta e m u m a sessão que traiu


seu m ari d o e d iz que se sente m al , que seu m arid o não merece o que
ela fez , que p ô s e m risco sua família e que está to m ad a de angústia e
sentimento de c u lp a.
A í se abre u m esp aço p ara o trabalho analítico , u m a p o rta p ara
interro g ar o mo tiv o de sua atitud e, d o risco que d ec id iu co rrer, d e sua
angústia atual e d essa sensação d e c u lp a.
N o entanto , se essa p aciente dissesse que se sente muito b e m , que
fo i ó timo , que seu m arid o n u n c a v ai saber p o rq ue ela fo i m u ito d iscre-
ta e que não sente c u lp a alg u m a, nesse caso , a infid elid ad e não seria
tem a de análise. Q u e co ntinue faland o disso o u d e o utras co isas, até
que ap areç a alg u m tem a que a co nv o que a u m p o nto ang ustiante.
Essa é a característica d a p sicanálise e o que faz que seja, c o m o
disse L a c a n , " u m a terap êutica que não é c o m o as o u tras". Po rq ue não
o lha e ju l g a os sinto mas de f o ra; escuta quais de suas atitud es m ac h u -
c am esse p aciente e m p articular.
É nesse sentid o que eu d iz ia que os p acto s entre ad ulto s, enq uanto
não m ac h u q u e m ning uém e sejam d ecid id o s c o m liberd ad e, são res-
peitáveis.
A lg uém p o d erá não c o nc o rd ar c o m isso , d iz er que não go sta, que
isso não o co nv ence. Perfeito , está e m seu d ireito . Isso q uer d iz er que é
u m aco rd o que ele não f aria, o que não i m p l i c a que o u tra p esso a não
o p o ssa fazer.

Dissemo s no cap ítulo anterio r que o am o r e o d esejo não são a


m e sm a co isa. Po rq ue o am o r se reg o z ija no v ínculo , n a p erm anênc ia,
ao passo que o d esejo se c o m p o rta seguind o u m im p ulso que, u m a v ez
satisfeito , d esap arece p ara reap arecer d ep o is c o m a m e sm a p esso a o u
c o m o u tra.
H á u m filme c ham ad o A liberdade é azul, que p ertence à trilo g ia
d as co res, d o d ireto r p o lo nês Krz y s z to f Kie slo w ski, que m o stra u m a
situação m u ito interessante.
A p ro tag o nista é u m a m u l he r que env iu v o u , e há u m h o m e m que
semp re a am o u e que está ao seu lad o nesse m o m ento difícil, q uand o
se d esco bre, além de tud o , que o m arid o m o rto a eng anav a c o m u m a
m u lhe r que está g ráv id a d ele.
158 EN CO N TRO S

T o d a a estética d o filme está ting id a de az u l, d aí seu no m e. M as o


que quero d estacar é u m a c ena e m p articular, n a q u al ela, que, c o m o
to d a mulher, é u m v erd ad eiro enig m a p ara o h o m e m que a am a, lig a
p ara ele. E se d á o seguinte d iálo go :
"V o c ê m e q u e r? " p erg unta ela.
" Si m . "
" D esd e q u and o ? "
" H á muito tem p o ."
" Be m , se quiser m e ter, v e n h a ag o ra."
" Es to u i n d o . "
Isso é o desejo . V e n h a ag o ra. Po rque o d esejo é urg ência, e p o r
isso ela p ed e que v á imed iatamente. E esse h o m e m ap aixo nad o o bed e-
ce e v ai . Está cho v end o , e ele cheg a to d o m o lhad o . Então , ela d iz :
" T i r e isso " e ele o bed ece.
"Isso tam b é m " exige ela.
E c o m o o h o m e m está nerv o so , assustad o e d em o ra muito , ela se
despe p rim eiro .
Diz íamo s que o am o r p arece a hip no se, e isso se vê c laramente
nessa o bed iência im p ensad a que ele tem p ara c o m essa mulher.
Be m , a no ite p assa, e n a m an h ã seguinte, q u and o tud o te rm i na,
ela se veste e d iz :
" Sab e de u m a co isa? E u so u u m a m u lhe r c o m o to d as. Te n h o cá-
ries, tusso , v o cê v ai m e esquecer, fique tranq u i l o . . . A h , não se esq ueça
de fechar a p o rta q uand o sair."
E v ai em b o ra.
Ei s a d iferença entre q u e m se relac io na c o m base no am o r e q u e m
o faz p elo desejo . E , c o m o suas regras são d iferentes, aco ntece então
que o jo g o p o d e ficar p erigo so , p o rq ue e m alg u m m o m ento u m dos
do is v ai sofrer.
H á q u e m se relacio ne c o m alg uém c o mp ro metid o , p o r exemp lo ,
e d iz que o p ro b lem a não é seu, v isto que está so z inho e que não está
traind o ning uém, que o p ro b lem a é d o o utro e ele que se resp o nsabili-
ze, então .
M a s p o d e aco ntecer de essa p esso a se ap aixo nar p o r q u e m só p ro -
p u n h a bo ns m o m ento s so b as reg ras d o d esejo , e então su rg em os
p ro blemas, p o rq ue v a i ter que se d esap egar de u m a relação que co -
A IN FID ELID A D E 159

m e ç a a m ac huc ar, o u surg em os co nflito s, as exig ências, o u a p esso a


que está c o m p ro m etid a teme que tud o v e n h a à to na e não sabe c o m o
co rtar esse v ínculo .
M ar i an o , o p ac iente de Histórias de divã, d iz ia- m e que ele h av i a
av isad o su a am ante so bre sua situação , que ela o h av i a aceitad o , e
que então não entend ia p o r que ag o ra ela v i n h a c o m to d as essas e x i-
g ências.
O que ele não entend ia é que, muitas v ezes, alg uém aceita u m a
situação p ensand o que v ai p o d er lid ar c o m ela, até que lhe foge d as
mão s e co mp reend e, então , u m a v erd ad e d o lo ro sa: que não so mo s
u m a unid ad e ínteg ra e imutáv el e que o que no s fez feliz no p assad o
p o d e se transf o rm ar no inf erno de no sso p resente.
" E l a ac eito u ", d iz ia M ari an o . E u m e p erg unto se isso era v erd ad e.
Se essa p esso a que aceito u q u and o tinha cinco ano s a meno s, q uand o
não estav a ap aixo nad a, q uand o só q u eria p assar bo ns mo mento s, é a
m e sm a que ho je so fre e re c lam a p o rque j á não lhe basta ser a amante
esco lhid a p o r u m h o m e m infiel.

Então, ser infiel é algo que se escolhe?

Dissemo s que a fidelidade é u m a esco lha p esso al, e c o m essa id eia


intro d uz imo s algo d a o rd em d a liberd ad e de c ad a sujeito p ara ser fiel
o u p ara não ser. M a s eu g o staria de d iz er que a liberd ad e to tal de esco -
l ha é algo que não existe e m ning uém, que to d a esco lha está co nd icio -
nad a de alg u m a m ane i ra.
C o m o q uand o u m a p aciente, p o r exemp lo , f ala que seu p arceiro
faz tal o u q u al co isa e tem tal o u q u al atitud e, e nó s, ao escutá-la, d iz e-
mo s: " A h , c o m o seu p ai , não é ? " . E q uand o ela se d á c o nta de algo que
talv ez não ho uv esse p ercebid o , e to m a co nsciência d o p o rq uê de u m a
esco lha que p arec ia ter feito liv remente, mas que esteve c o nd ic io nad a
p o r sua histó ria, p o r seus mo d elo s de relac io namento , de h o m e m , de
família.
Entretanto , n a realid ad e, q uand o ap o ntamo s essas co isas, é p ara
que o p aciente entend a u m p o uc o so bre seu jeito p artic u lar de se rela-
cio nar, de d esejar e até m esm o so bre a f o rm a c o m o so fre. N ão p ara d e-
160 EN CO N TRO S

sabilitar esse m o d o , a não ser que esteja ad erid o ao so frimento . Po rque


to d o s esco lhemo s d e aco rd o c o m al g u m mo d elo que tem a v er c o m o
que fo i no ssa p ri m e i ra infância e c o m o no ssas relaçõ es se co nstituíram,
não im p o rta que sejamo s a fav o r o u c o ntra esses mo d elo s.
Q u e r d iz er que alg uém p o d e d iz er que go sta de ter u m c o m p a-
nheiro que seja de tal o u q u al jeito , p o rq ue isso é o que v iv e u ; o u , ao
co ntrário , esco lhe u m relac io namento to talmente d iferente d o de seus
p ais. M a s semp re, m ais o u meno s, p ara u m lad o o u p ara o o utro , to do s
temo s, inco nscientemente, algo que c o nd ic io na no ssas esco lhas. E o
tem a d a infid elid ad e não fo ge disso .
" O que v o cê q u e r? " , d iz ia- m e u m p aciente. " E u ap rend i a m e
relac io nar assim. M e u p ai a v i d a to d a h u m i l h o u m i n h a m ãe, m al tra-
tav a-a, p o r isso eu não sup o rto grito s e so u inc ap az de o fend er m i n h a
m u lher."
M a s aco ntece que ele era infiel a ela de u m m o d o sistemático ,
c o m mulheres de q u e m go stav a muito meno s que d ela, mas não p o d ia
evitar, era algo quase c o mp ulsiv o . E , n a terap ia, cheg o u à co nclusão
de que a infid elid ad e era u m a m an e i ra de rep etir essa humilhaç ão d o
h o m e m c o ntra a mulher.
N ão d igo que semp re que alg uém eng ana seu p arc eiro o está h u -
m ilhand o , m as esse h o m e m v i v i a isso assim.
El e esco lhia a infid elid ad e? Si m e não . Po rque, c o m o d issemo s,
não há u m a m an e i ra de esco lher que seja to talmente p u ra, p o rq ue
to d a p esso a d eco rre de u m a co nstrução n a q u al interv êm fato res his-
tó rico s, so ciais e culturais. N ing u ém surge d o nad a. To d o h o m e m fo i
c riad o e m alg u m lugar, e a p artir d aí d esenv o lv eu u m a m an e i ra de
sentir, u m a c o nd u ta e u m a f o rm a de lid ar c o m seu desejo .
Isso tira d ele a resp o nsabilid ad e p o r seus ato s?
D e jeito n e n h u m . U m h o m e m , d iz ia Fre u d , é resp o nsáv el até p elo
que so nha.

É possível voltar de uma infidelidade?

G eralm ente, so frer u m a infid elid ad e g era u m a d o r eno rm e. A


sensação d e que algo se p artiu é inevitável e o v alo r e a c o nf ianç a e m
A IN FID ELID A D E 161

si m esm o se v e e m d iminuíd o s. A traição p ro d u z u m a f erid a narcisista,


e isso d e ix a sequelas, p o rq ue essas ferid as jam ai s se c u ram to talmente.
C o m isso , quero d iz er que essa p esso a terá que ap rend er a c o nv iv er
c o m o fato d e não ter p o d id o ser tud o p ara o o utro .
M as , nessas co nd içõ es, é po ssível tentar de no v o o relac io namento
d ep o is de u m a infid elid ad e?
D e v o d iz er que, c o m o c ad a sujeito é único , alg uns casais co nse-
g u e m se rec o nstru ir d ep o is d e u m árd uo trab alho , e o utro s não c o n-
seg uem n e m sequer tentar, e se sep aram . M as há u m terceiro g rup o ,
que é o p io r de to d o s, que são aqueles que não co nseg uem reso lv er o
que aco nteceu e, no entanto , p e rm an e c e m junto s. Fi c a m e m u m a re-
laç ão cujo nível de tensão é eno rm e, rec riminand o - se p elo aco ntecid o
m esm o muito s ano s d ep o is, c o m a angústia e a rai v a que surge d iante
d a m e n o r d iscussão .
Essa é a p io r de to d as as o p çõ es. Te n tar de no v o u m a relação d e-
po is de u m a infid elid ad e é algo possível, m as requer u m a p ro f und a sin-
cerid ad e p esso al p ara p o d er reco nhecer se a p esso a p o d e o u não v o ltar
a co nfiar. A l g u m as v ezes se p o d e tentar. E , se ap esar de d arm o s o m e-
lho r de nó s, no tarm o s que a d o r não p assa, temo s simp lesmente que
d iz er: não co nsigo .
Nesse caso , é semp re m elho r se sep arar que m anter a q ualq uer
custo u m a família que j á não é o que era e que não tem p o ssibilid ad e
alg u m a d e rec up erar a felicid ad e.
Oitavo encontro

A M O RES Q UE M A TA M

O imp ulso d o amo r, lev ad o ao extre-


m o , é u m imp ulso de mo rte.

G EO RG E BA TA ILLE
164 EN CO N TRO S

Relações perigosas

A lg u ns cap ítulo s atrás, p ara refletir so bre alg umas questõ es refe-
rentes à rep ressão , ap o iamo -no s e m u m a c ena d o filme 0 príncipe das
marés, e eu g o staria, p ara entrar n a temátic a d as relaçõ es p erigo sas, de
v o ltar a esse filme, m as d esta v ez à p ri m e i ra c ena.
U m a c âm ara aérea so brev o a u m a lind a p aisag em de rio s e estuá-
rio s ilustrand o o relato e m qff d o p ro tago nista, que no s co nta que nasceu
e m u m a cid ad e de pescad o res, que v iv eu e m u m a casinha b ranc a que
seu tatarav ô g anho u e m u m jo g o de lanç amento de ferrad uras e que fi-
co u de heranç a p ara seu p ai, que era p escad o r e tinha u m camaro neiro ;
e que seu p ai lhe p erm itia pilo tá-lo às vezes. V emo s imagens dele e seus
dois irmão s co rrend o e brincand o , e tud o p arece ser u m p araíso .
A té que a v o z no s d iz que esse p ai que o lev av a ao rio e o d eixav a
p ilo tar o barc o p o d eria ter sid o u m b o m p ai , se não ho uv esse sid o tão
v io lento .
Nesse m o m ento , a d ireto ra no s m o stra, de f o ra d a casa, enso m-
brad as p elas co rtinas, as imag ens de u m a d iscussão n a q u al o m arid o
acusa a m u lhe r de não o respeitar, e ambo s tro c am grito s, até que se vê
as crianças, que ab re m a p o rta e saem c o rrend o .
O p erso nag em reflete e d iz que a m ai o ri a d as crianças não p assa
p elo que eles p assaram , que têm u m a v i d a n o rm al e ro tineira, e c o n-
c lu i d iz end o : " Se m p re inv ejei essas c rianç as".
Po r último , seu relato p assa à d escrição d a m ãe, e no s c o nta que
era u m a m u lhe r muito bo nita, que c o stumav a lev ar seus filhos a exp e-
d içõ es pelo s bo sques e reuni-lo s p ara co ntar e inv entar histó rias fantás-
ticas, que eles ac o m p an h av am c o m atenç ão e entusiasmo .
" Q u a n d o eu era c rianç a", d iz T o m , o p ro tag o nista, " ac h av a que
m i n h a m ãe era a m u lhe r m ais m arav ilho sa d o m u n d o . . . não so u a p ri -
m e i ra c rianç a que se eng ana ao ju l g ar seus p ais."
Já instalad o s e m u m c l i m a p esad o e u m p o uc o ang ustiante, sabe-
mo s que esses três irmão s h av i am inv entad o u m ritu al muito p artic u -
lar: tirav am a ro u p a e c o rri am p elo p íer até m erg u lhar n a ág ua. U m a
v ez merg ulhad o s, f o rm av am u m círculo d e mão s d ad as e ficavam ali o
m áx im o que p o d i am aguentar, até que não lhes restav a m ais ar e e ram
o brig ad o s a subir à superfície p ara resp irar. Essa era a b rinc ad eira de
A M O RES Q UE M A TA M 165

que m ais g o stav am, p o rq ue em b aixo cTágua existia u m m u n d o silen-


cio so e cheio de p az . U m m u n d o o nd e não existiam p ais.
Peço -lhes que i nc o rp o re m a p o d ero sa sensação de d esp ro teção e
angústia que essas crianças ti n h am . Se u med o , sua v ulnerab ilid ad e e
sua necessid ad e d e fugir, n e m que fosse só p o r alg uns instantes, de u m a
realid ad e c ru el e am eaç ad o ra. U m a realid ad e feita de relaçõ es v io len-
tas que eles não p o d i am evitar.
E esco lho essa c ena p o rq ue, e m g eral, q u and o falamo s de relaçõ es
p erigo sas, a tend ência inic ial é p ensá-las d entro d o âmb ito d o relacio -
nam ento afetiv o , v isto que, p o r se tratar de u m v ínculo tão fo rte e p ar-
ticular, ele se ap o ssa de no sso s p rim eiro s p ensamento s q uand o faz emo s
referência ao ciúme, à d ep end ência o u à agressão .
O relac io namento de casal ap arece c o m o o núcleo p rinc ip al de
no ssas relaçõ es, e isso não d eve no s p arec er estranho , v isto que o m u n -
d o p arece estar m o ntad o p ara ser v iv id o a d o is. A so cied ad e p ro p õ e
u m mo d elo de v i d a tão so b m e d i d a p ara d o is que se co nfund e o fato
de não estar e m u m relac io namento de casal c o m o fato de estar so zi-
nho , e essa sup o sta so lid ão resulta inexp licáv el e inquietante.
Sem p re que alg uém no s c o nv id a p ara alg u m a festa, p erg unta c o m
q u e m v am o s. C o m o se u m a p esso a não pud esse estar so z inha, seja
p o rq u e esco lheu o u p o rq ue a esco lha d e o utro o d e ix o u , c o m o d iz
Serrat, " c hu p and o u n p aio sentad o so bre alg u na c alab az a 5 5 . 7
M a s p ref eri esco lher c o m o d isp arad o r u m a c ena que m o stra as
relaçõ es p erigo sas no âmb ito desse p rim eiro laço que u m a p esso a es-
tabelece e m sua infância, que é c o m os p ais. Po rq ue a influência que
esse v ínculo f u nd am ental tem no que será o futuro em o c io nal d e u m a
p esso a é de u m a imp o rtânc ia c ru c ial.

Uma criança que teve uma infância violenta


será, inexoravelmente, uma pessoa violenta?

N a realid ad e, o que essa p erg unta ab rig a e m si é u m a v e lha d is-


cussão entre o liv re-arbítrio e o d eterminismo . E isso rep resenta p ara

7 Jo an M anu el Serrat é u m canto r de destaque, músico , compositor e po eta espa-


nho l. A frase de sua canção De vez en cuando la vida, significaria, em português, algo
co mo "chup and o o d ed o ". (N . d a T.)
166 EN CO N TRO S

m i m , c o m o p sicanalista, u m a imp o ssibilid ad e d e to m ar p artid o d e m a -


neira d rástica p o r u m a o u o u tra o p ç ão .
Vo cês j á sab em que o liv re-arbítrio supõ e que o h o m e m te m a
liberd ad e d e esco lher as co isas d e sua v i d a, ao passo que o d eterminis-
m o af i rm a que o d estino j á está escrito e é imutáv el.
Ev id entem ente, a p sicanálise não é u m a teo ria d eterminista, v isto
que u m a p esso a não p o d eria ser p sicanalista se não acred itasse que
tem a p o ssibilid ad e d e ajud ar alg uém a m u d ar seu d estino . M a s tam -
b é m não p o d emo s ratificar categ o ricamente a p o stura e m fav o r d o
liv re-arbítrio , se c o m o tal entend ermo s a liberd ad e to tal.
Po rq ue a p esso a, c o m o j á d issemo s, está sujeita a sua histó ria, a
seu d esejo , a seu inco nsciente e às p alav ras que o utro s lhe d isseram.
D e ntro d essa sujeição , tem u m limite no q u al p o d e se m o v er e esco lher
que tip o d e v i d a o u d e relaçõ es q uer p ara si. M a s essa liberd ad e jam ai s
será co mp leta.
N ão é tão fácil a p o nto d e sup o r que alg uém p o d eria d iz er: " E s -
tive p ensand o , e acabo d e d ecid ir que v o u m e ap aixo nar p o r u m ho -
m e m que m e b ata" . N ão .
A o co ntrário , p erp assad a p ela d o r e p ela inc o mp reensão , essa pes-
so a v e m à terap ia e d iz que não p o d e exp lic ar p o r que fez esse tip o d e
esco lha e d e o nd e v e m essa tend ência auto d estrutiv a. E o que aco ntece
é que u m a esco lha d e am o r é, muitas v ezes, m ais u m a m an e i ra p ela
q u al o inco nsciente p o d e ap arecer, u m m o d o p ec uliar d e rec o rd ar; não
mais c o m id eias o u p alav ras, e sim c o m ato s, algo que não se p ô d e re-
so lv er e que tem o rig em nessas relaçõ es p rimárias.
Po r isso d iz emo s que a p sicanálise não se p ro p õ e a i r e m busca
d o bem-estar de u m a p esso a, que o p aciente se sinta m elho r o u que
recup ere u m equilíbrio p erd id o . D e u m a p sicanálise esp eramo s m u i -
to mais. Esp eram o s que m u d e a v i d a e o d estino d e u m p aciente. D e
m o d o que não p o d emo s p ensar que esse d estino j á está escrito e é i m u -
tável, m as tam b é m não p o d emo s ig no rar que ninguém pode saltar por cima
de seus próprios joelhos, e que, p o rtanto , a liberd ad e to tal é u m a uto p ia.
Po is b e m , nó s no s p erg untáv amo s se alg uém que so freu v io lência
física necessariamente será u m agressor, e d ev emo s d iz er que esse tip o
de exp eriência v i v i d a n a infância d eixa m arc as p ro fund as d as quais
não é fácil se liv rar. Po rque a v io lência é m ais u m a m an e i ra d e se co -
A M O RES Q UE M A TA M 167

munic ar, que tem , o bv iamente, regras p ró p rias e co nsequências i m e n-


sas, m as que não d e ix a de ser, p o r isso, u m m o d o de c o m u nic aç ão .
Tan to q u e m g rita q uanto q u e m bate, o u q u e m é am eaç ad o , está
estabelecend o u m a d inâmic a que sustenta o v ínculo a u m custo altíssi-
m o , u m custo que não v ale a p e na p ag ar (esclareço , p ara desgo sto dos
que d ef end em as m arav ilhas d o am o r inc o nd ic io nal) ; e há d uas m ane i -
ras d iferentes de rep etir esse mo d elo n a fase ad ulta.
U m a é ficar no m esm o lug ar d o maltratad o e esco lher c o m o c o m -
p anheiro , p o r exemp lo , u m a p esso a que lhe bata o u que grite c o m o
seus p ais o u avó s f az i am e m sua infância. O u seja, nesse caso , o que
se rep ete de u m m o d o exato é o lug ar subjetiv o no q u al essa p esso a
ap rend eu a se relacio nar.
A o u tra m an e i ra de m anter o mo d elo é m u d ar de lugar, m as não
de regras. E o caso d aqueles que, tend o sido agred id o s fisicamente, ago -
r a são agresso res. Re p e te m a f o rm a de se v inc u lar p o r meio d a v io lên-
c ia, m as m u d a m seu lug ar de agred id o s p ara agresso res.
M a s p o d e alg uém que v iv e u essas situaçõ es traumáticas tro car seu
d estino d e v io lência p o r o utro c o m reg ras m ais saud áveis e meno s d o -
lo ro sas?
C o m o d issemo s, é o b rig aç ão de u m p sicanalista av aliar e m c ad a
caso se isso é o u não po ssível, e trab alhar c o m seu p aciente p ara m u -
d ar o que p arece inevitável. Para isso, é p reciso p erc o rrer u m c am inho
árd uo , que muitas v ezes lev a a questio nar os p ais, o que c o stuma g erar
m u ita angústia no s p acientes.
N ão é n ad a simp les reco nhecer que tiv emo s p ais d o entes. E m ge-
ral, a tend ência é justificá-lo s, seja alud ind o a sua ig no rância o u ao fato
de que trab alhav am muito e c heg av am cansad o s, e p o r isso ti n h am
p o u c a p aciência. O u que eles, p o r sua v ez , h av i am p assad o p o r u m a
infância difícil.
M a s o p rim eiro passo que alg uém que q uer fug ir desse mo d elo
d eve d ar é reco nhecer que nessa d inâmic a v inc u lar c o m que fo i c riad o
algo estav a errad o , e se p e rm itir a sensação de rai v a o u até de v erg o -
n h a que a ac eitaç ão disso p o ssa gerar.
C e rta v ez , eu estav a trab alhand o c o m u m p aciente que hav ia tid o
u m a infância difícil e m u m lar c o m m u i ta v io lência p sico ló g ica. Nesse
p o nto d a terap ia, ele hav ia c o mp reend id o que rep etia, e m b o ra a sua
168 EN CO N TRO S

m an e i ra e de u m m o d o m u ito m ais sutil, aqueles mec anismo s agres-


sivo s. E lem b ro que, e m u m a sessão n a q u al estav a muito ang ustiad o
faland o d o tema, ele m e p erg unto u: " O que eu d ev eria fazer, então ?
Esq u ec er meus p ais e co rtar relaçõ es c o m eles p ara sem p re? ".
D i z i a Bo rg es que só u m a co isa não existe: o esquecimento . C o m -
p actuo c o m essa sentença e d igo , c o m o Fre u d , que rec o rd ar é a m elho r
m an e i ra de esquecer. D e m o d o que co nsid erei que sua p erg unta alu d ia
a algo impo ssível de co nseguir, v isto que ning uém p o d e ig no rar v o lu n-
tariamente sua histó ria. N ão é po ssível esquecer os p ais, m as o que se
p o d e faz er é assumir que teve p ais d o entes, que se relac io naram p ela
agressão e os maus-trato s, e d ecid ir que esse tip o de relação não é o
que d eseja e esco lhe p ara sua v i d a atual.
Esse m esm o p aciente m e d iz ia que não co nseg uia se afastar, não
os v er m ais e d iz er: "Pro nto , não tenho m ais p ais" . E m i n h a interv en-
ç ão fo i esclarecer que não se tratav a d isso , p o rq ue fazê-lo seria u m a
neg aç ão , u m m ec anism o d e d efesa p ara não assumir o que lhe hav ia
aco ntecid o . C l aro que ele tinha p ais, m as d ev ia aceitar que tinha esses
p ais, e que não os esqueceria n e m d eixaria de tê-lo s, p o r m ais que d e-
cid isse não os v er mais.
C o m o p o d e m imag inar, esse h o m e m estav a enfrentand o u m a d e-
cisão d ificílima, m as necessária e m seu caso .
E p asso u quase três ano s sem vê-lo s. A té que, u m d ia, d epo is de ter
trabalhad o muito isso e m terap ia, e de ter se liv rad o de alg umas am ar-
ras que o lig av am a esses mand amento s, j á c o m u m a c o m p anheira c o m
q u em se sentia feliz e lo nge d o mo d elo v io lento familiar, o p aciente rec u-
p ero u sua v o ntad e de v er os p ai s. . . um pouquinho, c o m o m e d iz ia.
C o m p re e n d e u que não se tratav a de se to rnar agresso r e d ev o lv er
o lho p o r o lho , d ente p o r d ente; n e m de d ar a o u tra face e c o ntinuar
p erm itind o que o m ac hu c assem , e sim que a m elho r m an e i ra e ra ev i-
tar o go lpe e, p ara isso , o único jeito era não estar ali q u and o esse
go lpe chegasse. O u seja, não ficar n e m p artic ip ar de v ínculo s que se
sustentassem e m u m a mo d alid ad e ag ressiv a de c o m u nic aç ão .
M u ito s p ais, ao v er as co isas de que seus filho s são cap az es, se p er-
g u ntam : " O que será que fiz de errad o p ara que tenha saíd o assim ? ".
Essa é, e m g eral, u m a p erg unta retó rica que esp era u m a resp o sta
seg ura: nad a.
A M O RES Q UE M A TA M 169

C o ntu d o , acho que não seria n ad a m a l to má- la c o m o u m a p er-


g unta aberta e se questio nar, seriamente, se algo no m o d o c o m o fo i
v i v i d a a infância desse filho não inf luenc io u, de alg u m a m an e i ra, suas
co nd utas presentes. E , nesse caso , q uanto esses p ais têm o u não a v er
c o m a realid ad e d a q u al ho je se q u e i x am .

Em alguns momentos, a cultura deu aval à violência

M a s a infância desse p aciente não fo i u m a exc eç ão . A o co ntrário ,


a histó ria d a v io lência do s p ais p ara c o m os filho s teve u m co nsenso
imp erd o áv el ao lo ng o d a histó ria.
Pensemo s u m segund o n a p al av ra " tap i n h a" . O b se rv e m c o m o so a
quase c arinho sa o u b rinc alho na. E isso não é u m m ero acaso so no ro ,
tem a v er c o m a v o ntad e de suav iz ar u m fato agressiv o . M a s q u e m
n u n c a o u v iu d iz er que u m tap inha n a ho ra certa c ai b em ? Q u e u m
tap inha não faz m a l a ning uém?
A i n d a ho je, ap esar d o av anço d a p sico lo g ia e d a p ed ag o g ia no
m u nd o , é difícil d esand ar esse v elho c am inho que aceitav a c o m o no r-
m al o uso d a v io lência dos p ais p ara c o m os filhos.
Rec o rd o u m p aciente que m e disse c o m o rg ulho que seu p ai lhe
bateu até os v inte ano s. E que p o r isso ele hav ia saíd o tão d ireito ...
o u seja, sem p o ssibilid ad e de esco lher n e n h u m a c u r v a. . . O p aciente
era ho mo ssexual, e em b o ra tenhamo s d ito que é u m a esco lha de am o r
p erfeitamente saud ável, esse d esd ém p elas c urv as não hav ia sid o u m
m and am ento insig nificante e m sua v i d a.
E m u m filme no q u al a atriz N iní M ars h al l interp retav a seu p er-
so nag em C ati ta c arac teriz ad o c o mo u m a m u lhe r u m p o uc o breg a,
de classe hu m ild e e p o u c a instrução , m as c o m m u i ta c o rag em e u m a
eno rm e d ig nid ad e - , há u m a c ena n a q u al u m h o m e m a afasta de lad o
c o m u m p equeno em p urrão , e ela, irritad a, o lha p ara ele e d iz : " E i ,
tenha c uid ad o , que eu j á tenho m arid o p ara m e bater".
N o te m que a c ena é eng raç ad a, m as c o m o é significativ o , ao mes-
m o temp o , isso de que, no imag inário so cial, o m ari d o teria d ireito de
bater e m sua mulher. E essa id eia sustentad a p o r muito s ano s, infeliz -
mente, não fo i to talmente sup erad a e, aind a ho je se u m a m u lhe r v ai
170 EN CO N TRO S

co ntar a alg uém que seu m ari d o lhe bateu, não é estranho que receba
o seguinte c o mentário : " Po r que ele se irrito u tanto ? O que v o cê f ez ? ".
Essas p erg untas, que às v ezes são f o rm ulad as sem n e n h u m a m á-
-fé, não f az em m ais que esc anc arar u m a id eia inco nsciente que aind a
p erc o rre muito s seto res d a so cied ad e: a id eia de que a p esso a que ap a-
n h a é, de alg u m m o d o , resp o nsáv el p elo que lhe aco ntece; m ais u m
v ariante fatíd ico d o " al g u m a co isa d eve ter feito p ara isso ".
Feliz mente, as so cied ad es av anç am e nesse c am i nho c o m e ç aram
a d ar u m lug ar a reiv ind icaçõ es. Desse m o d o , a questão d a v io lência
de g énero p asso u a ser v ista c o m o algo imp o rtante, e isso não é p o u c a
co isa.
C o ntu d o , se q uisermo s ser justo s, d ev emo s estabelecer que a v io -
lência é algo que, e m g eral, o mais fo rte exerce so bre o m ais fraco , e
p o r isso as pesso as que mais so frem v io lência são as crianças e as m u -
lheres, p o rq ue é m ais fácil bater e m u m a c rianç a que e m u m ad ulto ,
e m u m a m u lher que e m u m h o m e m .
M as isso não q uer d iz er que não haja mulheres agressiv as, e m u i -
to meno s neg a a existência d a v io lência p sico ló g ica, algo e m que as
mulheres p o d e m ser tão fo rtes e cruéis q uanto os ho mens.
N ão são p o ucas as vezes que os maus-trato s ap arec em so b a fo r-
m a d a p alav ra, e j á ressaltamo s neste liv ro que a p al av ra tem o p o d er
de m ac h u c ar u m a p esso a e de c o nd ic io nar seu d estino .

U m p aciente jo v e m , p ro fissio nal c o m u m b o m carg o executiv o


e m u m a emp resa m u ltinac io nal, relato u-me que sua espo sa, a q u e m
d escrev ia c o m o u m a m u lhe r afetuo sa e muito c o m p anheira, às v ezes
se irritav a e lhe d iz ia que era semp re o m esm o ac o mo d ad o , que não
sabia se d efend er, e que p o r isso seu chefe f az ia c o m ele o que q u eria.
A í, p o d emo s o bserv ar u m ato de extrem a v io lência d issimulad a, v isto
que, o cultas atrás de u m to m tranq uilo e u m a atitud e de crítica reflexi-
v a, essas p alav ras são d ard o s que h u m i l h am e m ac h u c am o narcisismo
de alg uém.
N ão são p o ucas as pesso as que estabelecem esse tip o de v ínculo
que não fere o co rp o , mas c u ja p ericulo sid ad e é tal que g eram insatis-
fação e d o r p síquica p ermanentes.
A M O RES Q UE M A TA M 171

Po r isso, d ev emo s ter cuid ad o e não estig matiz ar a v io lência só


c o m o u m a questão de g énero , e p restar atenç ão a to d as as suas m an i -
festaçõ es, ind ep end entemente de v i r de u m p ai p ara u m filho, de u m
jo v e m p ara u m id o so o u de u m h o m e m p ara u m a mulher. A v io lência
é v io lência p elo m o d o de relação que estabelece e o d ano que causa, e
não p elas características d as pesso as env o lv id as.

A dor de Luciana

E m m e u liv ro Palavras cruzadas, está relatad o o caso de u m a jo v e m


p aciente de no m e Lu c i an a.
L u c i a n a cheg o u à p ri m e i ra entrev ista quase sem co nseg uir falar.
Disse que era u m lixo e que m erec ia tud o que ac o ntec ia c o m ela. E m
d ad o m o m ento , m u ito fo rte p ara m i m , ela ab ri u u m p o uc o a c am isa
e m e m o stro u u m h e m ato m a que e ra a p ro v a inegáv el de que estav a
send o ag red id a.
N ão é fácil v er isso e se m anter eq uilib rad o . L e m b r o que m e i n -
v ad i u u m a sensação de rai v a e de imp o tênc ia. M ai s ai nd a q u and o ela
disse que m e re c ia p o rq ue e ra m á.
E u so ube, d ep o is, que sua família a ac usav a de ter ab and o nad o
a m ãe q u and o estav a d o ente, e seu nam o rad o , lo nge de ap o iá-la, e ra
q u e m b atia nela. E não só isso ; inclusiv e a o b rig av a a realiz ar f anta-
sias sexuais d ele que ela não d esejav a n e m de lo ng e, m as c o m as quais
inic ialmente c o nc o rd ara d e u m m o d o so frid o p ara não o co ntrad iz er.
Fo i u m lo ng o c am i n h o que no s p e rm i ti u traz er à lu z a o rig em
d essa sensação de ser m erec ed o ra de castigo e sua falta de auto estima;
o rig em que se enc o ntrav a e m u m segred o de família jam ai s co ntad o .
C o m o p sicanalista, semp re m e aco ntece de sentir esse im p ac to
q u and o esto u d iante de alg uém m altratad o , sejam maus-trato s físicos
o u p sico ló g ico s. M as , imed iatamente, sei que não po sso ficar p reso
nessa ang ústia, e que tenho que trab alhar c o m to d as as m i nhas fer-
ram entas p ara v e r se, c o m o p aciente, co nseg uimo s que ele saia desse
lug ar so fred o r.
M u i tas v ez es, a sensação que essas pesso as ti n h am de m erec er
esse castigo e ra tão g rand e que não estav am d ispo stas a ab and o nar
seu p ap el de maltratad as.
172 EN CO N TRO S

Nesses caso s, semp re o p tei p o r inte rro m p e r o tratam ento . Po r-


que n a p sicanálise não se trata de o ferecer u m lu g ar p ara a q u e i x a
o u a p u r a catarse d o p aciente, e si m de m u d ar o lu g ar subjetiv o e m
que está p o sic io nad o . E se ele não q u er o u não co nseg ue, p ro sseg uir
c o m o tratam ento d e i x a o p sic analista p reso no lu g ar de testem u nha
m u d a e p assiv a d e u m ato d e v io lência. E isso g era entre p ac iente e
p sic analista u m v ínculo p erv erso que de m an e i ra al g u m a d ev emo s
p erm itir.

V o ltand o a Lu c i an a, lev o u m u ito temp o p ara que d ecid isse que


ning uém p o d ia tratá-la desse m o d o e que, d efinitiv amente, o lu g ar
p ara assu m ir suas culp as, se é que existiam mo tiv o s p ara isso , era o
d iv ã, e não sua casa, e o m eio e ra a p alav ra, e não os insulto s o u sur-
ras que lev av a.
Q u an d o p o r fim ela co nseg uiu to m ar c o rag em e c o m u ni c o u a
seu namo rad o que se to rnasse a agred i-la ela o d enunciaria, ele ri u e disse
que p o d i a d enunc iá- lo q uantas v ez es quisesse, p o is, d e q u alq u er m a -
neira, não i a aco ntecer nad a.
E eu m e p erg unto : q u e m d e nó s j á não escuto u isso ? Par a que d e-
nu nc i ar u m ato d e v io lência f am iliar se d ep o is n ad a aco ntece? O que
v am o s co nseg uir é que o agresso r fique c o m m ais rai v a aind a, e então ,
q u and o v o ltar d a d eleg acia, tud o se to rne ai nd a p io r.
D ad as essas crenças, não é raro que a m ai o ri a d as agressõ es não
seja d enu nc iad a. M as , além d e tud o , a esse m o tiv o j á p o r si sinistro ,
p o rq ue d e i x a a p esso a p reju d ic ad a c o m u m a sensação d e d esp ro teção ,
so ma-se o utro não meno s grav e. E que, nesse tipo de delito e m que al -
g uém é abusad o , c o stu m a aco ntecer de a v ítima, e não o p erp etrad o r,
se sentir env erg o nhad a.
N i ng u é m se env erg o nha d e ter so frid o u m ro u b o , o u d e ter sid o
ag red id o p o r u m a g ang ue. Po rém , q u and o alg uém so fre u m estu-
p ro o u é ag red id o sistematic amente p o r alg uém b e m íntim o sente-se
h u m i l h ad o , p o rtanto , tend e a esc o nd er o ultraje d e que está send o
v ítima.
Para to do s nó s isso é ultrajante. M a s aco ntece que os temp o s d as
so cied ad es têm u m a escala d iferente d a do s ho mens.
A M O RES Q UE M A TA M 173

Q u an d o d iz emo s que a A rg e n ti n a é u m país muito jo v e m , de ap e-


nas d uz ento s ano s, temo s raz ão . U m h o m e m , p o rém , j á é u m anc ião
ao s no v enta. Po rq ue as so cied ad es têm o utro s temp o s, e, p o rtanto , as
mud anç as v ão se d and o ao s p o uco s.
A té p o uco s ano s atrás, as m u lheres não v o tav am ; se alg uém es-
c o lhia errad o o u d e i x av a de am ar a p esso a c o m q u e m h av i a se c asa-
d o , não p o d i a se d iv o rc iar e ti n h a que m ante r p o r to d a a v i d a u m a
d ecisão to m ad a, q u e m sabe, ao s v inte ano s. N ão faz m u ito temp o
que o p átrio p o d er é c o m p artilhad o p o r am b o s os p ais, e o c asam e n-
to ig ualitário , c o m o d issemo s antes, ai n d a está eng atinhand o . E isso
aco ntece p o rq ue a lei quase semp re an d a atrás d a realid ad e, p o is é
m u ito d ifícil leg islar so bre o que ai n d a não ac o ntec eu.
A té que aco ntecesse o p rim eiro ro ubo , ning uém teria p ensad o e m
p ro m u lg ar u m a lei que o p ro ibisse. Fo i p reciso esp erar que isso ac o n-
tecesse p ara que os legislad o res d iscutissem q u al e ra a m elho r m an e i ra
de evitá-lo e c o m o se castig aria q u e m inco rresse nesse d elito .
A s co isas f u nc i o nam assim. M as , feliz mente, a instalação d a tem á-
tica d a v io lência de g énero im p u lsio no u muitas mud anç as que v i e ram
p ara assumir u m a realid ad e que d e m and av a alg u m a resp o sta p ara u m
grav e p ro b lem a. N a d eleg acia j á não d ec ep c io nam a m u lhe r que v ai
d enu nc iar u m a agressão , ao co ntrário , assesso ram-na e a p ro teg em;
tam b é m ning uém m ais vê c o m naturalid ad e que u m p ai b ata e m seus
filho s.
M e u p ensamento se afasta d o d aqueles que af i rm am que o m u n -
d o está c ad a v ez p io r. A o co ntrário , acho que as so cied ad es v ão ev o -
luind o , a seu ritm o , de m o d o que, sem ser p erfeito - jam ai s será - ,
no sso m u nd o p elo meno s j á não m an d a as histéricas p ara a fo g ueira e
ning uém sup o rtaria, sem se espantar, p elo meno s, que o co rressem as
atro cid ad es co metid as d urante a Id ad e M éd ia.
Si g m u n d Fre u d , c riad o r d a p sicanálise, fo i u m h o m e m que atra-
v esso u muito s mo mento s difíceis n a v id a. A mo rte de u m a filha, seus
irmão s exterm inad o s p elo antissemitismo , seus filhos d etid o s e interro -
gad o s. Fo i d eclarad o inimig o d o reg ime e seus liv ro s f o ram q ueimad o s
pelo s naz istas.
C o ntu d o , af i rm av a que, feliz mente, a hu m anid ad e hav ia p ro g re-
d id o : " D u ran te a Id ad e M é d i a teriam m e q ueimad o . A g o ra, co nten-
tam-se e m q u eim ar meus liv ro s".
174 EN CO N TRO S

Violentar o outro é não respeitar seus desejos

Dissemo s rep etid as v ezes que o h o m e m é u m sujeito d o desejo e


não d a necessid ad e, e isso se vê c laramente n a m an e i ra c o m o evo luí-
r a m as regras d as relaçõ es afetiv as.
A té há p o uco , a m u lhe r p rec isav a d o h o m e m p ara se sustentar.
Po r isso, q uand o se ap ro x i m av a dos trinta ano s e era so lteira, to d o s e m
seu ento rno c o m eç av am a se p reo cup ar. " Se rá que v o cê não é p reten-
sio sa d emais? 55 , d iz ia a m ãe a u m a de m inhas p acientes.
Po rque, naq uele m o m ento , a m u lhe r era u m sujeito de q u e m al -
g uém d ev ia c uid ar; inic ialmente o p ai, m ais tard e o m arid o . E , o b v ia-
mente, u m a situação assim instaura algo que é p o r si m esm o p erigo so ,
que é a d ep end ência. Po rque q u em se resp o nsabiliz a p o r alguém ad q u i-
re d ireito s so bre essa p esso a.
O m elho r exemp lo são os p ais q uand o o filho é m e no r de id a-
de. Ex e r c e m so bre ele u m d ireito que g era, p o r sua v ez , o brig açõ es,
mas que co lo ca o d epend ente e m u m a situação de inferio rid ad e. E isso,
q uand o o co rre e m u m a relação que d ev eria ser de p arid ad e, c o m o
u m a relação de casal, p o r exemp lo , j á é u m ato agressiv o .
Feliz mente, n a atualid ad e, essa m an e i ra de se relac io nar m u d o u , e
as mulheres ab and o naram esse lug ar de d ep end ência. H o je , u m a m u -
lher de trinta ano s não está p ensand o e m q u e m v ai sustentá-la, e sim
e m c o m o v ai sustentar a si m e sm a, o que v ai estud ar, c o m que d eseja
trab alhar e inclusiv e se d eseja o u não se casar o u ter filhos. Co isas que
e ram imp ensad as há ap enas c inq uenta ano s.
M as esse fato de a m u lhe r não p recisar m ais d o h o m e m , lo nge de
ser algo meno r, p õ e ambo s d iante de u m d esafio m arav ilho so que é se
faz er d esejar mutuamente, v isto que d uas pesso as que não se necessi-
tam esco lhem estar ju nto s de q ualq uer m an e i ra so mente q u and o é o
que d esejam. E isso os o brig a a se sed uzir, a se escutar e faz er esfo rço s
p ara se c o mp reend er e estabelecer aco rd o s p ara v iv er a d o is.
U m a de m inhas p acientes m e co nto u que, antes de ir p ara a c am a,
ap ro ximo u- se de seu m arid o , que estav a lend o n a sala, e lhe p erg unto u
se não q u eria ficar e d o rm i r c o m ela essa no ite.
O b v iam ente, era u m jo g o de sed ução , d ad o que o m arid o m o ra
ali, mas, aind a assim, é marav ilho so que alg uém p o ssa exercer esse d i -
A M O RES Q UE M A TA M 175

reito de d iz er ao o utro que aind a o q uer e m sua v i d a, que c o ntinu a


esco lhend o -o .
E m ép o cas m ais injustas, se u m a m u lher quisesse se sep arar, não
tinha ao nd e ir, a não ser que vo ltasse à casa do s p ais, caso estes lhe
p ermitissem. Feliz mente, isso não é m ais u m p ro b lem a, d ad o que u m a
m u lher p o d e se sustentar so z inha, ter u m a v i d a auto ssuficiente e p lena,
e isso p õ e e m jo g o algo que é muito m ais saud ável, p o rq ue é d a o rd em
d o desejo , e não d a necessid ad e.
A necessid ad e, c o m o j á d issemo s, é u m a d as p o ucas característi-
cas anim ais que aind a no s restam; necessid ad e de resp irar o u de no s
alimentar, p o r exemp lo . M a s q uand o essa necessid ad e se instala no
âm b ito d o amo r, tud o se c o rro mp e. O desejo , p o rém , intro d uz a c ap a-
cid ad e de esco lher, e é o nd e enco ntramo s u m v alo r imp o rtante.
Re to m an d o o te m a d a v io lência, d ig amo s que o v io lento , c o m o
o p o ssessiv o , é alg uém que b asic am ente não te m resp eito p elo d e-
sejo alheio . M a s isso que, de al g u m a m an e i ra, f o i enco berto , o u , no
m ínim o , silenciad o e m o utro s temp o s, é algo d e que ag o ra se f ala, e
m u ito .
Po r isso a situação de u m a m u lher que no s ano s 1930 sup o rtav a
u m a bo fetad a não é a m e sm a de u m a que o faz ho je. Po rque, naqueles
temp o s, essa ab erraç ão , c ulturalmente, f az ia p arte do s usos e co stumes,
e, além de tud o , ela não tinha p ara o nd e ir. A tu alm ente, essa atitud e
de ficar não se d eve a u m a d ificuld ad e d a ép o c a e d a c u ltu ra; é u m a
c o nd u ta d eriv ad a de sua p ró p ria subjetiv id ad e, algo que d eve assumir
p ara p o d er mud ar. E é o nd e os p sicanalistas têm a p o ssibilid ad e de f a-
z er algo p ara rev erter a situação .

A violência também tem um começo

E muito c o m u m u m a p esso a não d ar imp o rtânc ia ao s p rimeiro s


sinais que an u n c i am a p resença de u m a c o nd uta v io lenta. O que a
exp eriência m o stra é que é m u ito raro que os maus-trato s c o m ec em de
c ara c o m u m a agressão física. E m g eral, o que se enc o ntra é que antes
j á h av i am ap arecid o alguns sinais m ais sutis, u m insulto , u m a b atid a
176 EN CO N TRO S

de p o rta o u u m a resp o sta atrav essad a, co isas a que a p esso a não d eu a


d ev id a mag nitud e.
N o caso de Lu c i an a, a p rim eira situação que ela reco rd o u ao ana-
lisar a histó ria de seu p arceiro teve a v er c o m u m a brig a que tiv eram
p o r u m a causa insignificante. N essa discussão, seu namo rad o ficou muito
tenso e g rito u c o m ela, d iz end o que fosse em b o ra e saísse de sua frente.
U m a s semanas d epo is, q uand o ela estav a saind o p ara o trabalho ,
ele a p eg o u p elo b raç o c o m fo rça e a d eteve d iz end o que ning uém lhe
d av a as co stas enq uanto ele estivesse faland o .
O último av iso j á fo i m u ito m ais claro . H a v i a m brig ad o p o rq ue
ela hav ia cheg ad o tard e d ep o is de ir ao c i ne m a c o m u m a am ig a. Se u
nam o rad o a acuso u de estar c o m o utro h o m e m e a ad v ertiu que to -
masse muito cuid ad o , p o rq ue ela não sabia d o que ele era c ap az .
N a d iscussão seguinte, p eg o u-a pelo s cabelo s e lhe bateu p ela p ri -
m e i ra v ez .
O b se rv e m c o m o a v io lência c o stuma ir crescend o se não fo r d e-
tid a. E c o m o u m d esliz amento de p ed ras que c ae m b arranc o ab aixo e
au m e n tam de v elo cid ad e e fo rça e m seu trajeto até o instante d o i m -
p acto final. Po r isso , o m o m ento de d efinir as p autas de u m a relação é
o c o m eç o . E d iante d o surg imento desse p rim eiro grito o u insulto que
a pessoa deve deter essa atitude c o m firmeza. C o m o d iz ia u m paciente a
sua espo sa, que c o stumav a g ritar: "N estas co nd içõ es, não v o u co nti-
nu ar c o nv ersand o ".
Po rq ue é inegáv el que, e m muitas o casiõ es, u m a d iscussão p o d e
ser p ro d u tiv a, m as u m insulto , jam ai s. A o co ntrário , g era no agresso r
a tentaç ão de av ançar aind a mais, p o rq ue c o m c ad a u m desses ato s v ai
p erd end o o respeito p elo o utro .
E é e m situaçõ es c o m o essas que p o d emo s o bserv ar c o m o é p eri-
go sa aq uela id ealiz ação d o am o r de que falamo s, acred itar que c o m o
am o r tud o é po ssível. Isso é m entira. Só o am o r não basta.

Faz end o u m a analo g ia c o m termo s matemátic o s, p o d eríamo s d i -


z er que o am o r é c o nd iç ão necessária, m as não suficiente, p ara que u m
v ínculo seja viável. V am o s d ar u m exemp lo .
E p reciso que u m a figura tenha quatro lad o s p ara que seja u m
quad rad o , mas só isso não basta. A lém de tud o , é co nd ição que esses q u a-
A M O RES Q UE M A TA M 177

tro lad o s sejam ig uais e que os quatro ângulo s sejam reto s, senão , p o r
mais que a figura tenha quatro lad o s, não teremo s u m q uad rad o .
O m esm o p o d eríamo s d iz er d a relação entre os v ínculo s e o amo r.
E imp o rtantíssimo am ar alg uém p ara c o nstruir algo e m c o m u m , m as
isso não basta, e se não so m arm o s o respeito e a c o nf ianç a, p o r e x e m -
p lo , não enco ntraremo s nessa união o c l i m a necessário p ara, p elo m e -
no s, no s sentirmo s b e m .
C o ntu d o , ap ó s tanto temp o insistind o que o am o r tud o p o d e, não
é de estranhar que as pesso as q u e i ram m anter o relac io namento a
q ualq uer custo só p o r estarem ap aixo nad as, q u and o o m ais sensato se-
ri a v iv er o luto p ela ru p tu ra d essa relação e v er-se liv re p ara co nstruir
u m a no v a d ep o is, c o m reg ras m ais saud áveis.
M as , claro , d isseram-no s tam b é m que o leg al é am ar alg uém c o m
lo u c u ra, e se isso fo r só u m a metáf o ra, não há p ro blemas à v ista; mas,
q u and o isso é literal, estamo s d iante de u m a situação p erig o sa.
Perm ito - m e insistir n a necessid ad e de tirar d a l o u c u ra esse o lhar
ro mântic o que v ê nela v islumb res de g enialid ad e o u excentricid ad e. A
lo u c u ra é algo d o lo ro so que m ac h u c a o d o ente e seu ento rno . N ão há
nad a de atraente o u invejável nela.
O difícil não é am ar c o m lo u c u ra, p ara isso basta se entreg ar ao
p io r de nó s sem o p o r resistência. O difícil é am ar de f o rm a saud á-
v el, co ntro land o a i ra, o m a u humo r, usand o p alav ras e m v ez de atos
e c o mp reend end o que a p aixão , q u and o está a serviço d o ero tismo ,
p o d e lev ar a mo mento s marav ilho so s, mas, q u and o essa m e sm a p aixão
é c o lo c ad a sem freio nas d iscussõ es, p o d e ter co nseq uências lamentá-
v eis.
N ão é simp les lid ar c o m isso , p o rq ue a p aixão c o stum a se d eslo car
pelo s d iferentes afeto s e se m istu rar de u m m o d o ind isc rim inad o ; p o r
isso, muito s casais, d ep o is d e g rand es brig as, c o m grito s e até m au s-
-trato s físicos, ac ab am m antend o relaçõ es sexuais, c o m o se a situação
de v io lência os excitasse.
E é po ssível que excite m esm o ; v isto que a v io lência, muitas v e-
zes, é u m a m an e i ra eq uiv o c ad a de inc entiv ar a p aixão e m u m rela-
c io namento . Eq u i v o c ad a p o rq ue, nesses caso s, a p aixão af lo ra de u m a
m an e i ra d estrutiv a. O que no s lev a à co nclusão de que, assim c o m o o
amo r, a p aixão tam b é m não é intrinsecamente b o a o u ru i m ; isso v ai
d ep end er d o que f aç a ard er c o m seu fo go .
178 EN CO N TRO S

Le m b ro que, q uand o garo to , p artic ip ei de u m enco ntro no q u al


u m sacerd o te falo u d o que ele c h am o u d e "Paixão de C ri sto " . Senta-
do e m u m banc o , escutei esse relato p rim eiro c o m curio sid ad e, d epo is
c o m atenç ão e finalmente c o m ho rro r. E certamente não entend i o
que, de tud o que o sacerd o te hav ia acabad o de co ntar, p o d ia ter sid o
excitante p ara Jesus. Te m p o s d ep o is, c o m p reend i que p aixão tam b é m
sig nifica so frimento .
E m u ito interessante no tar que se utiliz a u m a m e sm a p al av ra p ara
falar d o m áx im o p raz er e d a m áx i m a do r, p o rq ue é u m a f o rm a n a q u al
a ling uag em despe a d ualid ad e essencial que p erc o rre o ser h u m an o
e m seu p ró p rio sang ue: Ero s e Tânato s, a p ulsão de v i d a c o nf ro ntad a e
m esc lad a o temp o to d o c o m a p ulsão de mo rte.

Uma pessoa violenta pode mudar?

A m u d anç a, c o m o j á d issemo s, é algo po ssível, mas muito difícil.


E o resultad o de u m pro cesso que im p lic a, antes de m ais nad a, reco -
nhecer-se d o ente e entregar-se a u m a árd ua lu ta p ara co ntro lar seus
imp ulso s enq uanto se p ro c u ra a o rig em de tanta ag ressiv id ad e. M as o
que não existe de jeito n e n h u m é a m u d anç a milag ro sa.
Se n e m sequer o m eno r do s hábito s p o d e ser m u d ad o de u m d ia
p ara o o utro , muito meno s algo tão enraiz ad o n a p erso nalid ad e.
V am o s reto mar o caso clínico .
N a última fase d o relac io namento , o nam o rad o de Lu c i an a, v en-
d o que ela estav a prestes a d enunciá-lo , p ro meteu-lhe que seria u m a
p esso a d iferente d a que ela hav ia co nhecid o até esse m o m ento .
" C o nv ersam o s, e ele disse que i a m u d ar" , disse ela e m u m a ses-
são , "e realmente p arece o u tro ."
O b v iam ente, não acred itei. E ev id ente que p arec ia o utro , p o rq ue
estav a fingindo ser q u e m não era.
Po r m ed o de que ela o pusesse p ara f o ra de casa o u p ro curasse a
p o lícia, ele hav ia m u d ad o to d as as suas atitud es de u m m o d o exage-
rad o . Isso não era u m a m u d anç a, era ap enas u m fingimento, co mo
ficaria p ro v ad o p o uc o temp o d ep o is.
A M O RES Q UE M A TA M 179

M a s u m a co isa é tanto o u m ais imp o rtante que p erg untar se a


p esso a c o m q u e m se está p o d e m u d ar sua c o nd u ta ag ressiv a. E enten-
d er que p o d emo s esco lher e m que v ínculo ficamos e e m q u al não .
E ev id ente que se alg uém m anté m u m a relação c o m essas caracte-
rísticas é p o rque, e m alg u m p o nto , está im p lic ad o nesse mo d elo d o en-
tio ; m as é preferível trab alhar so bre si mesmo , p erg untar-se e analisar
o p o rq uê dessas esco lhas, e m v ez de esp erar que m u d anç a v e n h a d o
o utro .
U m encerramento

O univ erso é u m a im ensa p erv ersid a-


de feita de ausência. N ão estamo s quase e m
lad o n e n h u m . C o ntu d o , no m eio d as inf ini-
tas d eso laçõ es há u m a b o a no tícia: o amo r.

A LEJA NDRO DOLIN A


182 EN CO N TRO S

O que é pulsão de morte?


(ou Por que escolhemos sofrer)

Se ria difícil d esenv o lv er u m co nceito tão c o mp lexo no âmb ito de


u m liv ro que, c o m o este, não v isa ao d esenv o lv imento d a teo ria p sic a-
nalítica. Para q u e m sentir interesse no tem a, sugiro o texto "A lém d o
p rincíp io d o p raz e r" , de Si g m u n d Fre u d .
D i g am o s p elo meno s que, assim c o m o bio lo g icamente nascemo s
c o m o g erme de no ssa p ró p ria d estruição , o u seja, lev amo s e m nó s
a inf o rm aç ão que ind ic a a no ssas células que d ev emo s env elhecer e
mo rrer, tam b é m p sico lo g icamente temo s u m a fo rça que ap o nta p ara o
aniq uilam ento p esso al.
E m cap ítulo s anterio res, nó s o c ham am o s de inco nsciente estrutu-
ral. Basic amente, é u m a fo rça que no s im p u lsio na a esco lher o que v ai
no s faz er m a l e a rep etir essa esco lha semp re.
E p o r isso que co stumamo s no s relac io nar de u m m o d o d o entio ,
e é nesse m o d o que ap arec em o ciúme, a po sse, os amo res inc o nd ic io -
nais o u as relaçõ es v io lentas d as quais falamo s.
Esc o lhem o s esses v ínculo s p o rque, e m alg u m p o nto no civ o , satis-
f az em u m a p arte de nó s: no ssa p ulsão de mo rte. M a s o p reço d essa
satisfação é no sso so frimento .
E este liv ro trato u disso .
N ão fo i m i n h a intenção jo g ar u m o lhar cínico so bre o amo r, e sim
tentar p ensar u m p o uco m ais ac erc a de u m a temátic a tão c o m p lexa e
imp o rtante, so bre a q u al não há u m saber po ssível e n a q u al, no entan-
to, co stumamo s no s c o m p o rtar c o m o se so ubéssemo s p erfeitamente d o
que se trata.
Po r isso, p arec eu- me interessante que questio nássemo s esses l u -
g ares-co muns que atrav essam o d iz er co tid iano e que muitas v ezes no s
f az em to m ar d ecisõ es equiv o cad as.
N ão é v erd ad e que o am o r p o d e tud o . N ão é v erd ad e que q u e m
am a não p o d e trair. N ão é v erd ad e que não se d ev em im p o r co nd içõ es
à relação amo ro sa. N ão é v erd ad e que o am o r e o d esejo an d am sem-
p re junto s. M as d iz er que tud o isso não é v erd ad e não im p lic a que seja
impo ssível.
UM EN CERRA M EN TO 183

A arte de amar

C ertam ente muito s l e ram , o u p elo meno s o u v i ram falar, d o liv ro


de Er i c h Fr o m m c ham ad o A arte de amar. Co nfesso que semp re go stei
desse título . Po rque p ensar no am o r c o m o u m a arte é p ensar no ap ai-
xo nad o c o m o u m artista, c o m o alg uém que co nstró i u m a o b ra, que
c u id a d ela, que v o lta so bre seus passo s e se co rrig e, que m e l ho ra e ten-
ta d ar o m elho r de si p ara que o fruto de seu trabalho seja algo no bre
e belo .
Esse, e não o utro , é o d esafio de to d a p esso a que tenta co nstruir
u m a relação saud ável, seja ela u m relac io namento afetiv o , de am iz ad e,
o u até m esm o u m a relação tão p rimária c o m o a de p ais e filhos.
Este liv ro fo i u m co nv ite p ara refletir so bre o amo r, resistind o à
tentaç ão de c air no s clichés que o id ealiz am e o v e e m c o m o fo nte de
to d a a felicid ad e o u c o m o u m a fo rça que v ence tud o .
Lo ng e disso , tentei p ensar no am o r tal q u al o v ejo d iariam ente
atrav essand o a v i d a do s ho mens, p ro d uz ind o - lhes so nho s e desilusõ es,
p raz eres extremo s e d o res insup o rtáv eis.
N este brev e p ercurso falamo s d o ciúme e d o desejo , d a infid eli-
d ad e e d a v io lência, d o relac io namento afetiv o e d a sexualid ad e, d a
p aixão é d a ilusão v ã de transf o rm ar d o is e m u m .
N ão fo i m e u interesse c riar a id eia de que o am o r não existe o u de
que é algo sem imp o rtânc ia. M as aco ntece que só u m a co isa é c ap az
de c ausar tanta angústia e tanta d o r c o m o a mo rte: o amo r.
G o staria de c o nc luir este liv ro c o m o relato de u m caso que reco r-
d ei d urante u m d aqueles enco ntro s, e que tem a v er c o m a m ais fo rte
histó ria de amo r, de d esejo e de sexo que c o nhec i n a v id a.
C o u b e- m e p resenciá-la e, de alg um mo d o , ser p arte dessa histó ria.
H o je, quero co mp artilhá-la c o m v o cê. E m i n h a m ane ira de d iz er que é
perfeito so nhar e m enco ntrar o amo r. Desd e que o am o r seja isto.

A velha sem-vergonha

H á muito s ano s, q u and o eu era u m p sicó lo go muito jo v e m , tra-


b alhei e m alg umas casas geriátricas. E r a m ais o u meno s fácil arranjar
184 EN CO N TRO S

emp reg o nesses lug ares, p o rq ue não são muito s os p ro fissio nais que
q u erem trab alhar c o m id o so s. Preco nceito s o u , talv ez , u m a m an e i ra
de se pro teger. N ão é fácil v er u m p aciente mo rrer, e, p o r questõ es
ó bv ias, nessas instituiçõ es é algo que c o stuma aco ntecer c o m bastante
frequência.
Le m b ro que e m u m a d as instituiçõ es o nd e eu trab alhav a hav ia
u m a senho ra de 98 ano s. E u f az ia m i n h a ro nd a hab itu al, v isitav a to d as
e m seus quarto s, meno s ela. N ão a q u eria inc o m o d ar p o rq ue j á era
v elha d emais. A té que u m d ia essa senho ra m an d o u m e c h am ar e m e
disse:
" V ejo que v o cê v e m semp re aq u i e f ala c o m to d as, meno s co mig o ,
e g o staria de lhe faz er u m a p erg unta. D i g a- m e " o lho u- me fixamente,
" ac h a que p o rq ue so u v elha não tenho n ad a imp o rtante p ara d i z e r? "
Fi q u e i calad o alg uns segund o s e m e d esculp ei. Disse que não era
o que eu p ensav a, só que não q uisera inc o mo d á- la.
" O u ç a " interro m p eu - m e, "v o c ê d eve ter no tad o que j á não m e
resta muito temp o , não é ? "
A ssenti.
" Be m , então m e ajud e. Te n h o muitas co isas p end entes, e não gos-
taria de ir em b o ra deste m u nd o sem p elo meno s ter tentad o faz er algo
c o m isso ."
A p artir desse d ia, trab alhamo s d urante quase u m ano junto s.
A q u e l a senho ra tinha muito que falar. Feliz mente m e c ham o u , e espe-
ro ter feito o suficiente p o r ela.
M a s não é essa a histó ria que quero lhes co ntar, e sim o utra, o co r-
rid a e m o u tra instituição .
V o c ê p o d e trab alhar o u ter trab alhad o e m alg u m a instituição , e
d ev e saber que a p ri m e i ra c o isa que q u e m trab al ha e m u m lu g ar as-
sim d eve faz er é ir à c o z inha, p o rq ue a c o z inheira é q u e m sabe de tud o
que aco ntece. M ai s que os méd ico s, inclusiv e.
C heg u ei, então , u m a m anhã, e m e d irig i à c o z inha; e, c o m o era
hab itual, p erg untei à c o z inheira.
" O l á, Betty, alg u m a no v id ad e? "
" Si m , d o u to r" ela m e c h am av a de d o uto r, e m b o ra não o seja. " Já
v i u a v e l ha sem - v erg o nha? "
UM EN CERRA M EN TO 185

" N ã o " resp o nd i surp reso . " En t r o u u m a senho ra n o v a? "


- Si m , u m a v e l hi nha safad a.
Fi q u e i to m and o c him arrão c o m ela e não to quei m ais no assunto ,
até que entro u a enf erm eira e d isse:
" G ab y , j á v i u a sem - v erg o nha? "
" N ã o " resp o nd i.
" T e m que ver. O no m e d ela é A n a . "
A p ri m e i ra co isa que m e c h am o u a atenç ão fo i que utilizasse, p ara
se referir a ela, o m esm o term o que a c o z inheira hav i a usad o : sem-
- v erg o nha. M as a v erd ad e é que h av i am co nseg uid o d esp ertar m e u
interesse p o r c o nhec ê- la. D e m o d o que fiz m i n h a ro nd a hab itu al p ela
casa e d eixei p ara o final a v isita ao q uarto o nd e estav a A n a .
Nesse m o m ento , eu estav a m e p erg untand o de o nd e teria v ind o o
mo te " v e l h a sem - v erg o nha". Im ag i ne i que d ev ia ser u m a m u l he r que
q uand o jo v e m teria trab alhad o e m u m c ab aré, o u que teria alg u m a
histó ria p icaresca. M a s não era isso .
Q u an d o entrei e m seu q uarto , enco ntrei u m a senho ra m uito d e-
p ri m i d a, que quase não p o d ia f alar p o r c ausa d a tristez a. Su a im ag e m
não p o d ia estar m ais lo nge d a de u m a v elha sem- v erg o nha. A p ro x i -
m ei- m e d ela, ap resentei-me e p erg untei:
" V ó , o que a senho ra te m ? "
El a não quis f alar m uito ; ap enas resp o nd eu a alg umas p erg untas
p o r u m a questão de ed uc aç ão . M a s u m p sicanalista sabe que isso p o d e
aco ntecer, que às v ezes é necessário temp o p ara estabelecer o v ínculo
que o p aciente p rec isa p ara p o d er falar. E m e d isp us a lhe d ar esse
temp o . D e m o d o que a v isitav a c ad a v ez que i a lá, e ficava e m silêncio
ao seu lad o . A s v ezes eu c antaro lav a alg u m tango . E , lá p ela sétima o u
o itav a v isita, a senho ra f alo u:
"D o u to r, v o u lhe co ntar m i n h a histó ria."
E m e co nto u que ela hav i a se casad o , c o m o era co stume e m sua
ép o c a, m uito no v inha, ao s dezesseis ano s, c o m u m h o m e m cinco ano s
mais v elho .
E u a escutav a c o m p ro f u nd a atenç ão .
" Sab e " ela m e o lho u c o m o se m e avisasse que i a faz er u m a co nfis-
são , " e u m e casei c o m o único h o m e m que am e i n a v i d a, c o m o único
186 EN CO N TRO S

h o m e m que d esejei n a v i d a, c o m o único h o m e m que m e to co u n a


v i d a, e é o h o m e m que am o e c o m q u e m quero estar."
C o nto u - m e que seu m ari d o estav a v iv o , que ela tinha 86 ano s e
ele 9 1 , e que, c o m o estav am muito v elho s, a família ac ho u que era p e-
rigo so que ficassem so z inho s e d ec id iu interná-lo s e m u m asilo . M as,
c o m o não enc o ntraram v ag a e m u m lar misto , i nte rnaram - na no que
eu trab alhav a, e ele e m o utro . E l a n a p ro v íncia e ele n a c ap ital.
Q u e r d iz er que, d ep o is de setenta ano s junto s, hav iam - no s sep a-
rad o . O que n e m o ciúme, n e m a infid elid ad e, n e m a v io lência h av i am
co nseg uid o fazer, a família hav ia feito .
Esse v elhinho , c o m seus 91 ano s, to d o s os d ias f az ia que u m p a-
rente, u m amig o o u u m táxi o levasse no ho rário de v isita, p ara v er sua
mulher.
E u os v i a de mão s d ad as n a sala de estar, o u no jar d i m , enq uanto
ele ac aric iav a a c ab e ç a d ela e a o lhav a. E q u and o ti n h am que se sep a-
rar, a c ena era de co rtar o c o raç ão .
E de o nd e v i n h a o ap elid o de v e lha sem-v erg o nha? V i n h a d o fato
de que, c o m o o m ari d o i a v ê-la to d o s os d ias, ela hav ia p ed id o p erm is-
são à d ireto ria d o asilo p ara que p elo meno s u m a o u d uas v ezes p o r
sem ana os d eixassem d o rm i r a sesta junto s. E , então , eles d isseram:
" A h , muito b e m . . . v eja só , que v elha sem - v erg o nha."
Q u an d o a senho ra m e co nto u isso, estav a m u ito ang ustiad a e u m
p o uc o env erg o nhad a. M as o que m ais m e c o m o v eu fo i q uand o m e d is-
se, b aixand o a c ab eç a:
"D o u to r, o que v am o s faz er de errad o nesta id ad e? Só o que que-
ro é to rnar a p ô r a c ab eç a no o m b ro d o m e u v elhinho p ara que ele
acaricie m e u cabelo e m inhas co stas, c o m o semp re fez. Q u e m ed o eles
têm, se j á não p o d emo s faz er n ad a de e rrad o ? "
C o ntend o a em o ç ão , ap ertei sua m ão e p ed i que o lhasse p ara
m i m . E então , eu d isse:
" A n a, o que v o cê q uer é faz er am o r c o m seu m arid o . E não m e
v e nha c o m essa de o que p o d e riam faz er de errad o . Po rque é m arav i -
lho so que v o cê, setenta ano s d ep o is, co ntinue tend o a m e sm a v o ntad e
de beijar esse h o m e m , de to cá-lo , de se d eitar c o m ele, e que ele tam -
b é m a deseje d essa m ane i ra. E essas carícias, e seu ro sto so bre a pele
UM EN CERRA M EN TO 187

do s o mbro s d ele, é o m o d o que enc o ntraram de c o ntinuar faz end o


am o r nessa id ad e. M a s d eixe- me lhe d iz er u m a co isa, A n a : isso é d irei-
to seu, faça-o v aler. Peça, insista, inc o m o d e até co nseg uir."
E a senho ra inc o m o d o u .
Le m b r o que o d ireto r d o asilo m e c h am o u a seu g abinete p ara m e
p erg untar:
" O que v o cê disse à v e l h a? "
" N a d a " resp o nd i m e faz end o de d esentend id o . " Po r q u ê ? "
A questão fo i que eu e a assistente so cial d o lar o nd e estav a seu
m arid o no s em p enham o s p ara enc o ntrar u m a instituição m ista p ara
que ficassem junto s. C o rríam o s c o ntra o reló gio , e sabíamo s d isso . L e -
v am o s quatro meses p ara enc o ntrar u m .
Sei que, d ito assim, p arece p o uc o temp o . M as quatro meses,
q uand o alg uém tem m ais d e no v enta ano s, p o d ia ser a d iferença entre
a v i d a e a mo rte. A lém de tud o , ela estav a c ad a v ez m ais d e p ri m i d a e
eu tinha m u ito m ed o de que não aguentasse. M as ag uento u.
N o d ia e m que i a e m b o ra de no ssa instituição , f u i b e m ced o m e
d esped ir, e assim que cheg uei, a c o z inheira m e intercep to u e d isse:
"V o c ê não sabe, desde as seis d a m an h ã que a v elha está c o m a
m al a p ro nta d o lad o d a p o rta. "
E u r i . Então , f u i v ê-la e lhe disse:
" A nita, v ai m e d eixar..."
El a m e o lho u em o c io nad a e resp o nd eu:
" Si m , d o u to r... V o u v iv er c o m m e u v elhinho de no v o ." E se jo -
g o u e m meus braç o s c ho rand o .
E u a ab rac ei b e m fo rte.
" A n a " disse eu, " n u n c a v o u esq uec ê- la."
C o m o p o d e m ver, eu não estav a m entind o .

Jam ai s a esqueci, p o rq ue ap rend i a amá- la e a resp eitá-la p o r sua


luta, p ela v alentia c o m que d efend eu seu d esejo e p o rque, g raças a essa
v elha sem- v erg o nha, p ud e c o m p ro v ar que tud o que hav ia estud ad o e
tud o e m que ac red itav a era v erd ad e; que é v erd ad e que a sexualid ad e
no s ac o m p anha até no sso último d ia e que p o d emo s lutar p elo que
queremo s, m esm o que m o rram o s tentand o .
188 EN CO N TRO S

E p o rq u e aq u ela senho ra m e d eixo u a sensaç ão de que, ap esar


de to d as as d ificuld ad es, q u and o alg uém a m a d e u m a f o r m a saud áv el
e seus sentimento s são no bres, é po ssível que se ap ai x o n ar seja real-
mente algo m arav ilho so e que o am o r e o d esejo c am i n h e m ju nto s
p ara semp re.

G ab ri e l Ro ló n
M ar ç o de 2012
Agradecimentos

A Gustavo Fulchi, que acompanhou meus primeiros passos no divã.

A David Laznik, que sustenta comigo esse espaço no qual continuo escutando
meu inconsciente.

A JVacho e Mariano, por apoiar, como sempre, cada sonho meu.

A JVatu e Roberto, impulsores desta aventura.

A Sónia, Charlie, Edgardo e Belen.


G A BR I EL RO LÓ N curso u
seus estudos na Faculd ad e de
Psico lo gia na Univ ersid ad e de
Bueno s A ires e fez especialização
em psicanálise. Histórias de divã
(Planeta, 2008), seu p rimeiro
livro sobre psicanálise, fo i um
sucesso de vendas sem precedentes
na A rgentina e fo i publicado no
Brasil, México e Esp anha. Pela
Planeta o autor também lançou
Palavras Cruzadas (2010) e seu
primeiro romance, O lamento do
violino (2012). Encontros fo i o
livro mais vendido na A rgentina
em 2012.
Não é verdade que o amor pode tudo.
Não é verdade que quem ama não pode trair.
Não é verdade que não se devem impor
condições à relação amorosa.
Não é verdade que o amor e o desejo andam
sempre juntos. Mas dizer que tudo isso
não é verdade não implica que seja impossível.

Encontros mergulha nos desdobramentos de questões tão


antigas quanto a humanidade: o ciúme, o desejo, a infidelidade,
o casal e a sexualidade, as relações entre pais e filhos, a paixão
e a ilusão do "eterno". Questiona os desafios comuns que
atravessam o cotidiano, e que, por vezes já provocaram
decisões erradas que causam angústia, dor e decepções diárias.
Longe de ter uma postura cínica ou sombria, os olhos
sempre lúcidos e afiados de Gabriel Rolón fazem de
Encontros uma viagem de ida e volta, cara a cara, entre
o autor e seus leitores. Um material essencial para
compreender que, apesar de sua complexidade, o amor
é, sem dúvida, o motor mais importante da vida.

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