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Bibliografia:

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Compêndio (1ª Parte).

DUQUE J., Homo credens. Para uma teologia da fé (UCP, Lisboa 2002)

JOAO PAULO II, &DUWD(QFtFOLFD³)LGHVHW5DWLR´ (Libreria Editrice, Vaticano) 1998. (Nºs 1-15; 67.

PIÉ-NINOT S., La Teología Fundamental (ed. Secretariado Trinitario, Salamanca 2002).

I. REVELAÇÃO E FÉ- QUE RELAÇÃO?

1.1. Conceito de Revelação

1.1.1. Etimologia e sentido

Etimologicamente, o termo Revelação ($SRNDOX\L9 Revelatio) traduz a acção de


retirar ou remover o véu (velum-NDOXPQD), isto é, aquilo que esconde a realidade de uma
coisa ou de alguém.
O conhecimento e adesão a esse algo ou alguém depende, pois, da sua "epifania",
isto é, da sua manifestação ou revelação. Na verdade, quando uma coisa ou alguém se
manifesta, dá-se a conhecer, ou seja, revela-se. Isto quer, realmente, dizer que quando
afirmamos que algo ou alguém se revela supõe-se primeiramente um momento de
ocultação, escondimento e só depois um momento de manifestação. O termo
gregoNDOXSWZe o derivado latino velare traduzem precisamente a ideia de cobrir, ocultar,
esconder, silenciar...
Devido ao duplo sentido do prefixo re(DSR), que tanto pode significar a acção de
remover ou retirar como a repetição do acto em causa, a revelação pode assim traduzir por
XP ODGR D LGHLD GH ³UHWLUDU R YpX´ FRPR GH YROWDU D WDSDU re-velare) ou velar. Assim se
conclui, portanto, como em sentido etimológico, a revelação possui este duplo movimento:
silêncio (ocultação) e expressão (manifestação).

Numa primeira interpretação do conceito, para além do seu significado etimológico e


ainda fora do contexto religioso, entende-se por revelação uma comunicação

2
surpreendente de um conhecimento que tem um significado profundo para a vida e
possivelmente para o mundo que o rodeia.
Por outro lado, designa ainda a acção através da qual uma pessoa confia livremente
a outra os seus pensamentos e sentimentos mais íntimos, introduzindo-a, assim, na sua
própria intimidade... Na verdade, ninguém pode conhecer plenamente uma pessoa se ela
não comunicar de si mesma, isto é, se não se der a conhecer. Do mesmo modo, as
pessoas revelam-se na medida em que as acolhemos como fazendo parte da nossa vida.

([SHULrQFLDKXPDQDGHUHYHODomR$³DQDORJLD´GD5HYHODomR

Para podermos perceber melhor a experiência da Revelação de Deus teremos que


partir- não resta alternativa possível- da experiência humana de revelação. Isto quer dizer
que só de forma analógica, isto é, por comparação se poderá compreender, embora não
esgotar, o acontecimento da Revelação Divina. Analisemos, portanto, a dinâmica da
analogia aplicada a este conceito.
Se olharmos à nossa volta constatamos que tudo o que nos envolve possui um
carácter revelador- é revelação -,na medida em que «no que aparece manifesta-se sempre
o que não aparece, mas que é profundamente real» 1. Ou ainda de uma forma mais
significativa:

« Tudo quanto existe pode converter-se para o homem numa realidade


reveladora e significante, pode trocar-se numa parábola ou comparação, num
símbolo : tudo o que é terreno mais não é do que uma metáfora » 2 .

Vejamos um simples exemplo: uma lágrima. O que é que ela nos mos-tra? A
lágrima pode ser definida como um líquido salobre, uma solução aquosa proveniente do
saco lacrimal. Tais designações estão, sem dúvida, correctas do ponto de vista químico.
Mas com esta definição fica tudo dito acerca do que é uma lágrima ?
Esta questão tem a sua razão de ser se buscarmos o significado pleno da lágrima,
ou melhor, saber o que ela pode expressar e revelar. Neste âmbito, estamos certamente a
descobrir que, para além de ser um mero líquido incolor e salobre, a lágrima é algo distinto
HPDLVSURIXQGR(VVHDOJR³PDLV´QmRRSRGHPRVYHUDSHQDVQROtTXLGRGDOiJULPDTXH
captamos com os olhos da cara, mas na pessoa que a derrama. E é a partir deste conceito

1 H. FRIES, Teologia Fundamental (Herder, Barcelona 1987), 201.


2 Ibidem 202.

3
superior que procuramos entender a lágrima enquanto manifestação interior de cada um.
Na verdade, nas lágrimas de uma pessoa podem-se revelar - segundo os casos-
sentimentos de dor, compaixão, alegria, tristeza, raiva, entusiasmo e impotência;
sentimentos e emoções que são invisíveis, mas que tecem o interior de cada um.
De facto, tudo o que existe e acontece é e tem não só uma existência, mas é
também um ser significante, um ser de sinal e de revelação, na medida em que diz algo,
permite ver a própria existência. Porém, na existência há algo mais que se torna patente
fora da própria realidade, tal como nós a percebemos e captamos à primeira vista, ou seja,
apenas no seu lado exterior.
Assim sendo, tem razão Saint-Éxupéry ao dizer na sua obra O Principezinho que «o
essencial é invisível aos olhos», na medida que o que se manifesta exterior e visivelmente
adquire e possui um sinal revelador, apontando para a fonte do significado e sentido que
está para além do que pYLVtYHO«
O símbolo é, sem dúvida, um grande exemplo de toda a carga reveladora e
significativa da realidade. O símbolo, que significa literalmente algo composto por um sinal
externo e por um sentido interno, encontra-se indissoluvelmente ligado com o significado
que ele exprime na sua disposição e qualidade perceptíveis pelos sentidos. Por exemplo, a
luz é, do ponto de vista físico, uma energia que procede de uma fonte lumínica como
irradiação em forma de onda electromagnética e que se difunde pelo espaço com a
velocidade da luz. Nós percebemos a luz como claridade, cor e calor. Todavia, essa luz
pode converter-se em sinal e símbolo de uma qualidade e propriedade do homem, a qual
por sua vez pode ser descrita com imagens sensíveis.
Assim, falamos, por exemplo, da diafanidade do espírito, da claridade da
LQWHOLJrQFLDGRIRJRGRHQWXVLDVPRGRIHUYRUGRDPRU«$OX]H[WHULRUFRPDVXDIRUoD
propriedades e efeitos converte-VH HP VtPEROR GH XPD ³OX] LQWHULRU´ GR KRPHP GD VXD
espiritualidade, liberdade e amor invisíveis.
Além disso, o símbolo torna-se uma possibilidade humana comum de ver a
realidade, ou seja, um símbolo nunca é um símbolo só para mim, na medida em que ele
possui uma referência interna a uma comunidade, através da sua função expositiva,
reunificadora e integradora. Um símbolo pode mesmo vivificar, reforçar e aprofundar a
comunhão de duas pessoas. O símbolo é portanto uma realidade que aponta e assinala
outra realidade, em virtude da semelhança que lhe é própria. De maneira parecida com o
que acontece com a luz, assim se podem evidenciar outros exemplos: a água que vivifica,

4
fecunda, refresca e purifica converte-se em símbolo de processos, movimentos e formas
de comportamento na existência humana...

Como pudemos ver, há pouco, através do exemplo da lágrima, o homem pode


revelar algo de si mesmo ou até revelar-se totalmente; e fá-lo em virtude da sua liberdade,
do seu espírito, da sua linguagem e corporeidade, em virtude da possibilidade que ele
possui de se dar a conhecer. De facto, o homem pode fazer algo por si mesmo, livremente:
comunicar-se através de um acto, uma palavra, ou através de uma omissão ou negação.
Em tudo isto, o homem revela-se, torna-se presente. Por outro lado, todas estas
manifestações tornam-se transparentes para o homem. Por elas, ele abre-se e dá-se a
conhecer. Dizemos que, com isso, o homem se revelou, isto é, mostrou o seu verdadeiro
ser. Daqui se conclui que por outro modo que não seja o da revelação - o acto básico da
comunicação e abertura - a pessoa não descobre o seu rosto, não dá a conhecer o que é e
quanto nela existe. Assim, como diz H. Fries, «quando a revelação fala, a pessoa dá-se» 3.
De facto, a auto-abertura e auto-comunicação da pessoa é um acto do espírito e de
liberdade e, sobretudo, um acto de amor e verdade, na medida em que ela podia fechar-
se, negar-se ou enganar. A isto corresponde o facto de que a fé coordenada com a
revelação da pessoa é um acto de respeito, veneração e alta estima. O negar-se a
acreditar em alguém representa, pois, um menosprezo da pessoa, talvez a ofensa mais
grave que se pode cometer.

1.1.3. Revelação Divina: características e expressões

Com base nestas fundamentações podemos efectivamente, ainda que por analogia,
perceber a realidade da Revelação de Deus. Os fenómenos da Revelação e da Fé,
tratados pela Teologia, têm, pois, uma correspondência analógica com a realidade
humana. Por outras palavras, só com base no contexto da compreensão das revelações
KXPDQDVVHSRGHUi³SHUFHEHU´RPLVWpULRGD5HYHODomR'LYLQDHVHDFHLWDUHH[perimentar
a realidade de um Deus pessoal, capaz de se comunicar, manifestar, dar a conhecer, ou
numa palavra, revelar.

3 Ibidem 198. A revelação humana está ligada à linguagem cujo veículo mais expressivo é a palavra.
Revelação e linguagem constituem, pois, dois eixos inseparáveis.

5
Se realmente está correcta a tese de que tudo quanto existe é uma realidade
reveladora, se nós mesmos temos essa compreensão da realidade e essa relação com
ela, se através desse simbolismo revelador entramos em contacto com as dimensões da
realidade, surge espontaneamente a pergunta: será que a realidade que nós vemos (com
os olhos da cara) pode ser entendida enquanto transparência do fundamento e referência
ao sentido universal que chamamos DEUS? Ou perguntar então se na realidade como
manifestação se revela também a Realidade que tudo define e que se chama Deus? Será ,
pois, tudo o que é terreno uma metáfora da transcendência, um símbolo de Deus ? Para
quem crê e é capaz de ver com os olhos do espírito parece não haver dificuldade em
aceitar...
A dificuldade consiste no facto de que a Realidade (Deus) como tal não se
manifesta de forma directa, não se identifica com o mundo existente nem se pode
comparar com ele. Deus não é, de modo algum, um objecto particular, mas sim «o
fundamento não objectivo de tudo» 4. No entanto, a realidade empírica na sua totalidade e
profundidade não se pode descrever sem o fundamento que a sustenta e define e que, por
sua vez, é o fundamento determinante de toda a realidade.
Acatar esta constatação é dar-se realmente conta que a revelação plena, mesmo
das coisas terrenas, tem sempre a ver com algo que está para além do visível, do
manifestativo e empírico. Só nesta perspectiva se poderá também entender o mistério da
Revelação Divina 5.
Neste sentido, a Revelação de Deus deve entender-se como:
a) auto-doação e auto-manifestação (Deus que vem ao encontro do homem, entra
em diálogo com ele e se lhe oferece como possibilidade de uma vida nova);
b) acontecimento constituído por palavras e acções - as obras realizam as
promessas (Cf. DV 2 e 4);
c) economia e História de Salvação (Deus que se manifesta de forma adequada ao
homem e nas circunstâncias históricas do seu viver).

1.2. Ponto de partida para uma reflexão sobre a Fé

a) O conceito e a palavra fé são bastante imprecisos e polivalentes. Se ligarmos a


palavra fé ao verbo crer obtemos as mais variadas respostas:

4 H. FRIES, Op. cit. 204.


5 Para um confronto mais directo destas ideias, veja-se Ibidem 201-206.

6
1. (XFUHLRTXH«- traduz uma mera suspeita e reduz a fé àquilo que é não saber.
2. (X FUHLR TXH DTXHOH VXMHLWR HVWi HUUDGR«- esta afirmação, por exemplo, traduz
uma certeza já provável, embora não totalmente certa (= DFKRTXHVLP« $TXL
DIpQRVHQWLGRGHDFUHGLWDUWUDGX]DSHQDVXPDSUREDELOLGDGH«
3. Eu creio em ti! ± Nesta afirmação, o acto de fé refere-se directamente a uma
pessoa e determina a certeza interior que uma pessoa tem por outra. Esta
afirmação é a mais excelente e mais importante de todo o acto de fé, uma vez
que a experiência da fé (mesmo no âmbito da experiência humana) é, acima de
tudo, um acto de encontro e de confiança.
Esta afirmação de fé encontra-se mais ligada com a derivação e o sentido do
verbo latino credere que procede, segundo uma das suas possíveis derivações,
de cor+dare (= dar o coração; concordar com alguém«).
Ainda nesta afirmação encontra-se a expressão de um acto de conhecimento. O
facto de dizermos que acreditamos numa pessoa leva-nos a concluir isso
porque, na medida em que essa pessoa se dá a conhecer, ela revela-se ou
manifesta-se.
É, de facto, a afirmação de uma pessoa que nos leva sempre a um acto de fé.
Mas também esse acto é livre. Não que deva crer. Eu é que posso e quero crer!

b) A questão do ponto de partida na abordagem da Fé

- Um caminho de acesso possível para a compreensão do que significa a atitude de


fé encontra-se no facto de que a vida humana e do dia-a-dia de cada um pressupõe formas
elementares de fé (no outro, na sua palavra, nas condições de vida da sociedade, etc.) e
de que ninguém pode viver sem um suporte basilar de confiança, esperança e amor. Este
caminho tem a sua validade, enquanto sugere que a fé é uma atitude humana. E, se
alargada às experiências humanas mais profundas que apontam para o problema do
sentido da vida enquanto questão decisiva da existência humana, é até indispensável para
a compreensão do lugar onde se enraíza a atitude de fé (a fé no horizonte da questão do
sentido, lugar onde se coloca a questão de Deus«).

- Mas por esta via pode correr-se o risco de não se captar a originalidade e a
especificidade da fé cristã, que não é um mero produto das interrogações e buscas
humanas, nem se esgota no âmbito das potencialidades do Homem. A fé cristã supõe a
7
Revelação de Deus. Ela pode descrever-se como aquela atitude fundamental e global do
Homem que entende e procura viver a sua vida como resposta ao Mistério de Deus que se
revelou na História humana, de forma definitiva na vida, morte e ressurreição de Jesus.

Desta forma, o ponto de partida adequado para a compreensão da Fé é, sem


dúvida, a consideração da Revelação histórica de Deus.
A Fé não é outra coisa senão resposta do Homem à Revelação, ou seja, à iniciativa
salvadora de Deus na História dos homens. A Fé significa ³Revelação respondida´,
³Revelação acolhida´, «Revelação que chegou ao seu destinatário e assim ao seu
objectivo. Sem fé, a Revelação deixa de ser aquilo que deve e pretende ser: revelação
para o Homem» 6 .
Não é, de facto, possível falar sobre a Fé sem falar sobre a Revelação e/ou vice-
versa. Mais ainda: não é possível compreender o que é a Fé senão à luz da Revelação e o
que é a Revelação senão à luz da Fé.

c) Os diversos ³sentidos´ da Fé

Quando falamos de Fé estamos a referir-nos concretamente:


1. Aos conteúdos ou estruturas mediante as quais, pela nossa liberdade,
prestamos assentimento a Deus; a resposta pessoal de cada um a Deus, na sua
vida«;
2. Ao Cristianismo = Fé cristã ;
3. À Igreja e à forma como ela se situa perante os desafios do nosso tempo e se
enfrenta no processo evangelizador = a Fé, hoje.

1.3. Noção bíblica de Fé

Em relação ao AT, podemos dizer que a noção de fé possui uma diversidade de


sentidos e termos. De facto, são vários os termos utilizados para exprimir essa atitude
fundamental, manifestando uma diversidade de significados específicos, tais como: confiar,
esperar, amar, escutar, conhecer, servir, seguir...

6 H. FRIES, Op. cit. 17.

8
Porém, o termo mais frequente é KH¶HPLQ (hifil de µPQ) que já em sentido profano
significa possuir um apoio para a vida. Apoio e salvação que vêm do exterior. Deste modo,
KH¶HPLQ significa literalmente estar sólido, estar seguro, ser fiel.
Tal significado mantém-se no uso mais tipicamente teológico salientando-se o facto
de que, àquele que recebe esse apoio, vindo sempre da parte de Iahvé, compete-lhe
aceitá-lo, precisamente em atitude de fé. Assim, em sentido teológico KH¶HPLQ traduz a
ideia de crer ou acreditar em Iahvé.
Na versão dos LXX, o termo é traduzido por pisteuein / pistis, significando também
saber com certeza, ter fé, confiar, dizer a Deus: AMEN, ou seja, tomar seriamente e sem
reservas Deus na vida.
Para além destes termos, encontramos outros com raízes diferentes e que
significam: buscar refúgio, esperar, persistir, perseverar...
Esta verificação terminológica indica já de si que não encontramos na Bíblia uma
definição propriamente dita do que seja a fé, sendo pois uma atitude global de vida que se
exprime de diversos modos.
Contudo, os dados terminológicos são claros no indicativo de que o nuclear da
atitude crente é um confiar, um apoiar-se em Deus como Aquele em quem o homem
coloca toda a sua fé e a sua esperança. Apoiar-se em Deus, isto é, crer em Deus, tem,
pois, a ver com a fórmula bíblica por excelência da fé, exprimindo assim a relação pessoal
do crente com Deus. Consciente da sua própria fragilidade, o crente apoia-se no único que
não pode falhar nem faltar...
Aqui reside, portanto, o núcleo da revelação veterotestamentária, dentro da sua
enorme variedade ou diversidade de conteúdo e de linguagem: somente Iahvé salva,
somente Ele é Deus (Cf. Is 43,10-12; 45,20-25; Dt 4, 32-40).
Como síntese da perspectiva tanto do Antigo como do Novo Testamento, podemos
afirmar que a fé é a adesão total ± o AMEN- do homem à Palavra definitiva e salvadora de
Deus. E na totalidade humanas deste acto entrelaçam-se estes três elementos: 1- o
conhecimento e a confissão da acção salvífica na história; 2- a confiança e a submissão à
Palavra de Deus e seus preceitos; 3- a comunhão de vida com Deus, quer agora quer na
orientação escatológica.
Existe, contudo, uma clara diferença de acentuação entre a fé veterotestamentária e
a neotestamentária (basta indicar a enorme diferença na frequência com que se fala de fé:
243 casos de pistis e 241 de pisteuein no NT, para 51 de KH¶emin no AT), na medida em
que na primeira predomina o aspecto da confiança, ao passo que na segunda o aspecto do
9
conhecimento e da confissão é primordial. Tal diferença está, sem dúvida, determinada
pela singularidade do acontecimento-Cristo que a define como fé propriamente cristã.

II- ITINERÁRIO BÍBLICO DA ATITUDE CRENTE

Bibliografia:

J. DUQUE, Homo credens... 68-87


S. PIÉ-NINOT, La Teología Fundamental... 174-185

2.1. Principais desenvolvimentos veterotestamentários da atitude crente. Para


uma teologia da fé no Antigo Testamento

A) O testemunho de fé de Abraão

À fé de Abraão atribui-se um valor paradigmático, na medida em que a sua história é


YLVWD SHOR SUySULR 17 FRPR ³UHSUHVHQWDomR´ H PRGHOR GD DWLWXGH FUHQWH 6 3DXOR QD
Carta aos Romanos 4,11 denomina-R GH ³SDL GH WRGRV RV FUHQWHV´ H D SDVVDJHP GD
Carta aos Hebreus 11,8-10 é bastante sugestiva como reflexão do que significa
acreditar verdadeiramente em Deus.

Deixemos, por enquanto, a análise destas passagens para nos centrarmos nos
textos mais significativos do Livro do Génesis que narram a história deste patriarca. São
estes os principais capítulos: Gn 12 (vocação de Abraão e história da sua descida ao
Egipto); Gn 15 ( as promessas de uma descendência...); Gn 17 (aliança de Iahvé com
Abraão e de novo a promessa de descendência); Gn 21 (nascimento de Isaac) e Gn 22
(sacrifício de Abraão pela imolação do filho...).
Tendo, pois, como base o conteúdo dos supraditos capítulos, podemos dizer que na
história de Abraão manifestam-se os traços fundamentais (exemplares) do que é a fé:
1- Um apoiar-se em Deus, confiando plenamente na sua Palavra e na sua
promessa pondo em Iahvé o fundamento da sua existência. A expressão
³QmR WHPDV´ *Q   VDOLHQWD SUHFLVDPHQWH R VHQWLGR GR DSRLR
confiante...

10
2- Uma resposta pessoal à iniciativa de Deus, uma decisão da existência
pessoal face ao chamamento divino. A atitude de fé pressupõe e exige,
SRLV XP ³SDUWLU´ SHUPDQHQWH 1mR p H[WiWLFD SHOR FRQWUiULR WUDWD-se de
uma caminhada em movimento...
3- A certeza incondicional de que essa promessa fundada em Deus e no
seu compromisso de aliança se cumprirá.
4- A submissão a Deus e a obediência às suas indicações, mesmo
quando humanamente não se vê como é que Deus levará a cabo a sua
promessa (crer como esperança contra toda a esperança ± Cf. Rm 4,18-
20).

Mas é também de notar que esta história de fé nem sempre se realiza de forma
grandiosa (Cf. Gn 12,10-20). Isto significa, portanto, que o caminho de fé não é um
caminho linear. Não há, de facto, lugar para uma idealização abstracta do caminhar
crente.

B) Moisés e o testemunho de fé nas tradições do Êxodo

Na história do Êxodo e suas tradições emergem os elementos constitutivos da


identidade de Israel como povo crente, libertado por Deus e objecto de um amor de
aliança (Vós sereis o meu povo... Eu serei o vosso Deus...). A experiência da aliança
FRQVWLWXLVHPG~YLGDD³FKDYHGHOHLWXUD´GDH[SHULrQFLDGHIpQRÇ[RGR

Se nos fixarmos primeiramente na história contida no Livro do Êxodo, teremos que


destacar, sobretudo os capítulos 3-6 (vocação de Moisés); 12 (narração da Páscoa); 14
(passagem do Mar Vermelho e vitória sobre os egípcios...) e 19 (a aliança no Sinai).

A experiência de fé aí descrita, bem como nas demais tradições do Êxodo, apresenta


como elementos mais significativos os seguintes:

1- Uma experiência de salvação-libertação. O Deus da promessa e da aliança


revela-se como Deus libertador-salvador (Cf. Ex 14,13), Alguém que acompanha
o povo e nunca o abandona (Cf. Dt 31,6-8; Jos 1, 5.9). Não há razões para temer
porque Iahvé está presente!

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2- Uma relação com Deus que se vive nas circunstâncias históricas
concretas. Ela é a resposta ao Deus que age na história e surge assim marcada
pelos condicionalismos da história. A própria confissão de fé em Deus reporta-se
a acontecimentos históricos. De facto, o credo veterotestamentário é
fundamentalmente uma história que se narra e transmite (Cf. Dt 26,5-9; Jos 24,2-
13...)
3- O crente é membro de uma comunidade fundada na aliança renovada por Deus
(Cf. Ex 19-24). Ele é membro de um povo que tem por Deus Iahvé (Cf. Dt 5; 2 Rd
23,3). A fé aparece, assim, como uma estrutura essencialmente comunitária.
e R SRYR UHXQLGR TXH ID] D H[SHULrQFLD H FHOHEUD DV ³PDUDYLOKDV GH 'HXV´ HP
seu favor.
4- Nesta relação e neste diálogo entre Deus e o seu povo ocupa, de facto, um lugar
fundamental a mediação de Moisés como testemunha qualificada, enviado de
Deus (Cf. Ex 4,1ss; 14,31) e animador da fé. O uso teológico do termo KH¶HPLQ
concentra-se realmente e de um modo muito particular na tradição em torno de
Moisés. Aqui a fé pode significar como em Ex 4,1.5.8.9.31 uma atitude de escuta
e de aceitação de uma mensagem, ou seja, a afirmação de que Iahvé apareceu
a Moisés e que este constitui, portanto, o seu mensageiro para salvação do
povo. Neste uso, manifesta-se um estilo de fé que não se fica por uma atitude
existencial mas que se concretiza na aceitação de conteúdos objectivos. Neste
contexto assumem especial importância os sinais de credibilidade do
mensageiro. O apelo a não temer, tão frequente na boca de Moisés (Cf. Nm
14,19; Dt 1,29) liga a sua tradição à de Abraão. Em síntese: na tradição de
Moisés o conceito de fé reveste-se, pois, de grande significado para a recepção
que o povo de Israel efectuou da tradição relativa ao início do seu caminho como
povo constituído pela aliança com o seu Deus.
5- Por último, podemos ainda dizer que a história da fé nas tradições do Êxodo não
é um simples progresso linear, mas um caminho de vida sujeito à falha, à falta
de confiança em Deus, à incredulidade. Durante a caminhada no deserto, o
povo que professava constantemente a sua fé em Iahvé, também o negava,
pondo em causa a sua protecção soberana (Cf. Ex 14, 10-18; 32,1-4; Nm 14,1-9;
Dt 1,19-33

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Em conclusão: a experiência do Êxodo influenciou a formulação da atitude de fé (ou
de incredulidade) em muitas outras passagens do AT. Pode-se pois dizer, de forma
muito sintética, que o KH¶HPLQ do Êxodo exprime a ligação religiosa totalizante do povo
de Israel em relação a Deus e ao seu enviado. Tal experiência implica um aspecto
intelectual; comporta a confiança e o respeito a Deus; supõe a memória das
intervenções salvíficas passadas de Deus na história; inclui a obediência aos preceitos
divinos e exterioriza-se no louvor da grandeza divina. Esta fé apoia-se, além disso, em
sinais prodigiosos que Moisés realizou por encargo de Deus.

C) A experiência da fé na Literatura Profética

1- A dimensão histórica da fé emerge, com particular intensidade na existência e


nos escritos proféticos. O profeta sente-se chamado e enviado por Deus para interpretar
os acontecimentos à luz do Deus da aliança e da salvação. É nos acontecimentos
concretos da história que se tem de comprovar o que significa crer (Cf. Is 7- história do
rei Acaz).

Na verdade, como ponto de partida do uso que o AT faz do conceito de fé, pode
servir-nos de base o texto de Is 7, não tanto porque constitua o início cronológico ±
aliás, indeterminável ± da fé de Israel, mas porque marcará o início de um modo mais
preciso e mais teológico do conceito.

O versículo central deste capítulo é o v. 9 que foi incorrectamente traduzido pela


Vetus Latina SRU ³VH QmR DFUHGLWDUGHV QmR FRPSUHHQGHUHLV´ GDQGR D]R D
desenvolvimentos posteriores também imprecisos 7. Assim, a tradução correcta deste
versículo que faz consequentemente emergir o conteúdo central do sentido e da
experiência da fé nos escritos do Proto-Isaías é esta: «Se não o crerdes não vos
mantereis firmes» 8.

No sentido, então, deste profeta e como ideia original deste texto, a fé poderia assim
situar-VH SUHFLVDPHQWH DR QtYHO GR ³DSRLR VHJXUR´ apenas encontrado em Iahvé e em
mais nenhuma instância humana, quer individual, quer estatal ou cósmica. A fé
significaria, pois, o encontro de um apoio, com pertinência político-religiosa em situação

7Cf. S. PIÉ-NINOT, Op. cit. 179-181; J. DUQUE, Op. cit. 70.


8 Tradução da Bíblia de Jerusalém. A nota v desta Bíblia contém um precioso comentário à evolução
semântica deste versículo.

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precária e de medo. O reforço desta ideia encontra-se ainda em Is 28,16, sobre a ilusão
da protecção egípcia frente à ameaça de Ezequias por parte de Senaquerib.

O significado, portanto, dessas situações e da atitude correspondente é


WHRORJLFDPHQWH XQLYHUVDO 3RU RXWUDV SDODYUDV D ³SROtWLFD GD Ip´ QmR WHP D Yer com o
aviso de um momento ditado por determinadas circunstâncias históricas, mas é sim com
a proposta de uma norma constante da atitude dos grandes e do povo de Israel. Trata-
se do reconhecimento da infinita excelência e do domínio de Deus e, portanto, a
submissão à sua vontade.

Em síntese: para o Proto-,VDtDV R ³SURIHWD GD Ip´ VHJXQGR D GHVLJQDomR GH 6
Virgulin) crer é confiar só em Deus, aderindo incondicionalmente à sua palavra
salvadora e não buscando outra garantia ou apoio senão a promessa que brota
precisamente dessa palavra. A fé tem a ver, pois, com uma atitude existencial global
que envolve a confissão do verdadeiro Deus, a obediência à sua Palavra, a confiança na
sua promessa, a esperança no futuro que Deus possibilita.

2- Os escritores em torno à crise do exílio, sobretudo os que viveram a própria crise,


dão uma orientação algo diferente à fé. Se a tradição do êxodo se fixava nos factos
realizados por Deus, que interpelavam a uma fidelidade específica, a fidelidade exigida
pela fé exílica orienta-se para a esperança nas futuras gestas de Deus em favor de um
povo desiludido e contra todas as aparências presentes. Intervenções ou gestas essas
que se crê que irão superar as do próprio êxodo.

É, sem dúvida, o Deutero-Isaías que sobressai nesta linha de escatologização da


fé. Mas a par de tal escatologização, o mesmo escrito deixa transparecer já uma
crescente reflexão sobre o conceito de fé, no sentido de forma de conhecimento,
talvez por influência de uma certa perspectiva grega de questionamento. O texto, por
excelência, que faz transparecer essa ideia é o de Is 43,10.Surge aqui o conceito de
conhecimento pela fé ou conhecimento crente, emergindo assim a dimensão
cognoscitiva da fé com um perfil mais nítido. Quer isto significar que crer em Iahvé é
não só confiar na sua soberania salvadora e na sua fidelidade indefectível, mas também
³FRPSUHHQGHU´H³UHFRQKHFHU´TXH(OHpR~QLFR'HXVH6DOYDGRU

Todavia, essa dimensão de conhecimento não se reduz ao puramente intelectual; é


GHFLVLYDPHQWHXPD³H[SHULrQFLDGH'HXV´TXHSHUPLWHYHURPXQGRGHRXWURPRGR DTXL
se encontra toda a raiz da mensagem profética) e viver de outra maneira: a fé liberta do

14
temor, dá novas forças aos que se encontram abatidos, é a alegria da libertação e
refúgio profundo e seguro para os que não têm esperança (Cf. Is 40,29-31; 43,1; 44,2;
49,14-16; 51,3...).

Este conhecimento crente é visto aqui como meta da eleição do Servo de Iahvé que,
embora considerado individualmente, representa o próprio povo. Em Is 53,1, a fé
significa aceitar uma mensagem como verdadeira, apesar de parecer pouco provável e
até escandalosa, porque ligado ao próprio escândalo do servo sofredor...

3- Além de tudo isso, acreditar em Deus exige um certo tipo de comportamento


SDUD FRP R SUy[LPR ³&RQKHFHU D ,DKYp´ H[SUHVVmR TXH DSDUHFH IUHTXHQWH H
particularmente nos profetas), ou seja, confessá-lo e prestar-lhe culto enquanto Deus é
algo que não pode acontecer à margem da atitude para com os outros. Isto quer dizer
que, mesmo antes do anúncio por Cristo do mandamento novo do amor que caracteriza
DPRUDOHYDQJpOLFDHFULVWmR$7SRUVHQVLELOL]DomRGRVSURIHWDV ³KRPHQVGH'HXV´H
³ERFD GH ,DKYp´  Mi DSUHVHQWD R DPRU FRPR QRUPD LQWHJUDQWH H H[LJrQFLD GR YLYHU
crente. Estar atento a Deus exige, de igual modo, estar atento ao próximo... Na verdade,
a mensagem profética é particularmente incisiva na afirmação de que o Deus da aliança
recusa o culto sem a prática da justiça (Cf. Is 1,21-23; Jr 22,3; Am 2,6-7; Os 4,1-2).

4- A adesão do homem a Deus, no mais profundo do seu ser e na totalidade das


dimensões da sua vida, não é no entanto resultado do simples esforço humano, mas
sim resposta à acção de Deus no coração do homem.

2 DQ~QFLR SURIpWLFR GH XPD WUDQVIRUPDomR LQWHULRU H SURIXQGD GR ³FRUDomR´ GR
homem pelo próprio Deus aponta para a percepção neotestamentária de que a fé é
realmente graça de Deus, acção do seu amor e do seu Espírito no mais íntimo do
homem, relação vivencial de comunhão com o próprio Deus (Cf. Paulo e João). Se nos
fixarmos num ou noutro texto da literatura profética comprovamos realmente tal ideia
(Cf. Ez 36,26-27; 11,19-20; Jr 24,7; 31,33-34).

D) A vivência da fé na Literatura Sapiencial e no Judaísmo tardio

1- Um caso especial de concepção de fé no AT (embora com muitas ligações à


figura do servo sofredor) é, sem dúvida, o caso do Livro de Job, cuja personagem central é
FRQVLGHUDGDSRUPXLWRVFRPRR³FUHQWHQDFRQWHVWDomR´

15
Job dá, realmente, corpo a uma profunda crise de uma determinada forma
tradicional de conceber Deus e a fé, estreitamente ligada aos compromissos da aliança e
pressupondo, muitas vezes, um código jurídico e mesmo teológico baseado no esquema
da retribuição. Segundo esse esquema, crer significava confiar apenas em Deus e quem
acreditasse seria feliz e teria uma vida próspera. Pelo contrário, o infeliz e o sofredor devia
a sua infelicidade precisamente ao facto de não se apoiar em Iahvé.
Ora, o Livro de Job coloca essa concepção completamente em causa, procurando
uma nova forma de viver a fé para além da derrocada desse esquema, ou seja, viver a fé é
possível na e a partir da própria experiência de sofrimento e infelicidade humana.
Trata-se, assim, de uma experiência de fé enquanto atitude purificada por um
percurso árduo. E dessa purificação resulta, sem dúvida, uma fé não propriamente calma e
sem questões, mas uma fé enquanto atitude interpelativa em relação ao próprio Deus.
Interpelação essa que não contraria a fé mas que a aprofunda, permitindo assim um
correcto discurso sobre Deus, face à insolúvel questão do sofrimento inocente. Assim se
pretende, pois, superar uma concepção reducionista da fé, enquanto atitude cega frente à
realidade do mundo, para se tornar uma atitude fortemente interpelativa e questionadora.
2- Nos escritos que exprimem e alimentam a piedade popular, como é o caso dos
Salmos, a fé salienta-se sobretudo como confiança em Deus, particularmente em
momentos de necessidade e provação.
3RGHPRV UHDOPHQWH GL]HU TXH D ³RUDomR GH ,VUDHO´ UHIOHFWH RV WUDoRV IXQGDPHQWDLV
da experiência crente no AT e sintetiza-os e/ou sistematiza-os. Neles sobressai, portanto, a
dimensão da confiança da fé e a sua íntima relação com a esperança e com a obediência
à Palavra.
De facto, crer em Iahvé é S{U Q¶ (OH D VXD HVSHUDQoD, reconhecer o seu poder
libertador manifestado na história, estar certo da sua presença e intervenção, permanecer
fiel à vontade de Iahvé e observar os seus mandamentos. Destacam-se, a título de
exemplo, o Sl 23(22) [ O Senhor é meu pastor, nada me falta...]; o Sl 27(26) [O Senhor é
minha luz e salvação: de quem terei medo? O Senhor é a fortaleza da minha vida: frente a
quem temerei? v.1], nos quais é ressaltada a dimensão da confiança.
Por outro lado, o Sl 116 (114-115) salienta a força do poder salvador e
misericordioso de Deus [ Eu amo o Senhor porque Ele ouve a minha voz suplicante... Ah!
Senhor, liberta a minha vida...vv. 1.3].
O conteúdo do Sl 119(118) salienta o aspecto da fidelidade e cumprimento da
vontade de Deus, pela prática e observância dos preceitos divinos: « Felizes os íntegros
16
em seu caminho, os que andam conforme a lei de Iahvé! Felizes os que guardam os seus
preceitos, procurando-O de todo o coração» (vv 1-2).
Fixemo-nos, contudo, no Sl 78(77), pois todo ele estabelece um paralelismo entre o
que são características ou componentes de uma verdadeira atitude de fé (reconhecimento
GRSRGHUHGDVPDUDYLOKDVGR6HQKRUDFRQILDQoDQ¶(OHDREVHUYkQFLDGRVPDQGDPHQWRV
a obediência e fidelidade à sua Palavra de aliança) daquela que não são. Deste modo, não
crer em Iahvé significa não pôr a esperança na sua promessa, esquecendo as maravilhas
que Deus operou na libertação do seu povo; não confiando no seu poder salvador e no seu
auxílio e desobedecer à sua Palavra (Cf. Vv. 10.22.32.56; Cf. tb Sl 106, 7.21.24ss).
3- Também segundo o Livro de Daniel, a salvação é concedida porque se acreditou,
LVWR p ³SRUTXH FRQILRX QR VHX 'HXV´ RX ³SRUTXH WLQKD WLGR Ip HP VHX 'HXV´ 'DQLHO IRL
retirado da cova dos leões, não se tendo nele encontrado qualquer ferimento (Dn 6,24).
Aqui, mais uma vez, a fé é vista como pressuposto da salvação individual, enquanto
atitude pessoal de confiança. Sem fé, Deus não salva!
4- Alguns aspectos particulares da concepção veterotestamentária da fé encontram-
se noutros livros ou tradições, como é o caso do Livro de Jonas 3,5, em que a fé não é
interpretada como confiança, em geral, nem como aceitação de uma promessa, mas sim
como conversão, facto que corresponde a uma fase tardia do AT, num contexto que terá
marcado de perto a própria pregação de Jesus e a concepção de fé do NT. Aí se vê como
realmente a dimensão prática da transformação radical de vida assume aí um papel
saliente.
5- Por seu lado, os Livros dos Macabeus e da Sabedoria apresentam a fé como
capacidade de resistir à provação e à perseguição, resistência que permite, a par da
salvação pessoal, afirmar e manter viva a própria identidade face ao perigo da dissolução
religiosa e cultural. A fé surge, assim, como instauradora de uma identidade, de um saber
e de uma cultura próprias, que se opõe, portanto, a uma concepção pagã de vida.

E) Conclusão

1- Em jeito de conclusão, podemos dizer que o conceito de fé no AT é, de facto,


muito diversificado ou multifacetado, tendo-se modificado evolutivamente com o tempo e
adquirindo, portanto, diferentes matizes ao longo da História de Israel, alargando-se
mesmo a semântica do âmbito mais propriamente grego.

17
2- Fundamental para o conceito veterotestamentário de fé permanece, pois, o facto
de a correspondente atitude afectar toda a existência do ser humano - enquanto membro
de um povo- constituindo a atitude central de aceitar a fundamentação dessa existência no
seu Deus transcendente, que é Iahvé.
3- O acto de fé, apesar de toda a sua complexidade, implica sempre confiança e
estabilidade (mesmo que sujeito à dúvida e à provação do percurso íngreme e não linear),
escuta e obediência (em liberdade e em esperança), à acção de Deus na história quer
individual, quer comunitária.

2.2. Principais desenvolvimentos neotestamentários da atitude crente. Para


uma teologia da fé no Novo Testamento

1- Nuclearmente, a fé surge no NT como tomada pessoal de posição perante o


acontecimento pascal. A fé é, antes de mais, a aceitação do anúncio de Cristo morto
e ressuscitado e compreensão vivencial deste acontecimento como cumprimento
definitivo das promessas de Deus. É adesão total à salvação realizada definitivamente
em Jesus Cristo (Cf. Rm 1,2-4; 1 Co 15,3ss; Act 4,10-12; 10,43; 17,3; Gl 3,16; 2 Co
1,20; Lc 24,26ss).

2- Acentua-se, concomitantemente, a dimensão confessional da fé, como


afirmação dessa intervenção salvadora de Deus realizada na vida, morte e ressurreição de
Jesus. Por isso mesmo, possui uma estrutura essencialmente cristológica (Cf. Rm
10,9ss; 1 Co 15,20; Act 2,36; 16,31; Fl 2,9-11; Lc 24,34).
3- Para a fé cristã, porém, a ressurreição de Jesus não é só o cumprimento das
promessas de Deus, mas também a promessa nova e definitiva da manifestação plena
GDVDOYDomRQRILPGRVWHPSRVTXDQGR'HXVIRU³WXGRHPWRGRV´$DGHVmRWRWDODRTXH
Deus realizou em Jesus alimenta a esperança no que há-de vir: a fé tem uma dimensão
essencialmente escatológica ( Cf. 1 Co 1,7; 15,22-28; 1 Ts 1,10; Rm 8,23.31-38; Act
1,11; 1 Pe 1,3.13).

A) A atitude de fé nos Evangelhos Sinópticos

1- Os Evangelhos Sinópticos testemunham globalmente uma certa progressão: a fé


de que em Jesus e na sua acção e palavra se encontra já presente o Reino de Deus -

18
cuja vinda Ele anuncia- surge progressivamente associada à fé na sua própria pessoa.
A fé significa, pois, aceitação do cumprimento do Reino que Cristo anuncia ( Cf. Mc
4,41; 9,42; Lc 18,6; Mc 15,32; Mt 27,42; Mc 8,27-30 e par.; Mt 11,2-6; Lc 7,18-23).

2- Ligada à mensagem e anúncio sobre a proximidade do Deus surge a exigência


de conversão. A salvação do homem está condicionada à sua resposta, ou seja, à
adesão à pessoa de Jesus. Coloca-VHDVVLP HP UHOHYR D UHODomR SURIXQGD HQWUH ³IpH
VDOYDomR´ HRX ³Ip H FRQYHUVmR´ (P 0DUFRV VREUHWXGR D H[LJrQFLD GH FRQYHUVmR p
equiparada à necessidade de crer no Evangelho (Cf. Mc 1,15; 8,35; 10,29; 16,16; Mt
4,17; 5,11, 10,32-33.37; 18,5; 19,28; 25,34-46; Lc 9,48.59; 10,13-15;11,23;14,26).

3- É nas narrações dos milagres que nos aparece mais frequentemente o tema da fé
bem como as correlativas expressões SLVWL9 e SLVWHXHLQ. Fundamentalmente, trata-se da
fé no poder de Deus que age na pessoa de Jesus. Uma fé que tanto pode surgir como
condição da cura pedida, como pode igualmente brotar em consequência dos milagres,
que possibilitam e suscitam a fé (Cf. Mt 8,5-10; Lc 7,50; 17,19; Mc 2,5; 7,29; 9,14-29).

É, pois, a fé que torna possível o milagre acontecer e o milagre acontece para


aumentar e/ou conduzir à fé. A manifestação do poder de Deus acontece quando se dá
acolhimento e aceitação por parte do homem. Não é impositivo...

Desta forma, ressalta-VHWDPEpPDUHODomRHQWUH³Ip´H³VLQDLV´SHUDQWHRVTXDLVp


necessária uma tomada de posição (a favor ou contra), do mesmo modo que se insiste
na necessidade de ouvir a palavra anunciada (Cf. Mt 8,10; 23,27; Lc 7,9; Mc 4,1-25).

4- Para os Evangelhos Sinópticos, a iniciativa no acolhimento da fé pertence ao


Pai, que envia o seu Filho (Mt11,27; 16,17; Lc 10,22; 22,23). Neste sentido, a fé é
entendida como dom gratuito de Deus.

5- Além disso, a fé exige um comportamento prático correspondente, já que o


amor de Deus é indissociável do amor do próximo (Mt 22,38ss; 25,31-46; Lc 10,25-37;
Mc 12,31). A exigência de um comportamento vivencial da fé constitui, na verdade, um
apelo constante na pregação de Jesus, levando, portanto, a mensagem dos profetas a
um aperfeiçoamento e radicalidade a toda a prova.

6- De facto, a radicalidade da atitude de fé é particularmente sublinhada nas


SDODYUDVGH³VHJXLPHQWR´ sequela Christi). Tendo por base o testemunho dos discípulos
e concretamente dos apóstolos, poder-se-á afirmar que a fé supõe uma orientação

19
total para Jesus XPD YLQFXODomRGDSUySULD YLGD j G¶(OH VHJXLQGR-O para onde quer
que Ele vá (Cf. Mc 10,28; Mt 19,27-30; 10,37-40; Lc 14,26-27...). Por outras palavras, a
fé requer uma exigência total de vida no seguimento de Cristo.

7- Em relação com tudo isto poderá colocar-se a fé exemplar de Maria e de José,


na sua submissão e abandono sem reservas à vontade de Deus.

a) Começando por Maria, podemos sintetizar os principais aspectos da sua atitude


de fé, tendo por base o percurso do seu caminhar em estreita relação com Deus
revelado no seu próprio Filho:

- O assombro humilde e o questionamento compreensível que, perante o convite de


Deus em ser mãe do salvador, Maria manifesta. O quadro da anunciação (Cf. Lc 1,26-
38) revela, pois, como D Ip QmR VH WUDWD GH XPD DWLWXGH ³FHJD´ PDV ORJLFDPHQWH
questionável: ³FRPR VHUi LVVR"´ Perante uma resposta humanamente
incompreensível, Maria abandona-VHQ¶$TXHOHTXHQXQFDIDOKDHDEGLFDQGRGH qualquer
forma de raciocínio, compreende efectivamente (na fé) que a vontade de Deus se irá
cumprir: ³)DoD-VHHPPLPVHJXQGRDWXDSDODYUD´.

- Consequentemente, a fé de Maria sobressai como verdadeira e radical atitude, ou seja,


DFomR GLQkPLFD ³DSUHVVDGD´ &I /F   GHVLQVWDODGD H GHVDFRPRGDGD
Imediatamente e após o anúncio de que iria ser mãe do salvador, Maria dispõe-se,
disponibiliza-se e oferece-se para servir, cuidando da sua parente Isabel, também ela
³UHFHSWRUD´GDJUDoDGLYLQDTXDQGRDRVROhos humanos, tudo pareceria impossível... No
quadro da visitação a Isabel (Cf. Lc 1, 39ss), esta reconhece o segredo da felicidade de
Maria: a sua fé profunda de que haveria de cumprir-se o que o Senhor lhe havia dito. Na
fé da mãe de Jesus transparece, sem dúvida, a certeza de que a Palavra de Deus é
eficaz e, portanto, fecunda e realizadora. Por este motivo é que Isabel afirma tão
convictamente: Feliz de ti que acreditaste, porque se vai cumprir tudo o que te foi dito da
parte do Senhor (Lc 1,45). A certe]D GD Ip ³REULJD´ QmR Vy j VXD SURFODPDomR FRPR
WDPEpPjFHOHEUDomRIHVWLYDGDPHVPD'DtTXHD³EHQGLWDHQWUHDVPXOKHUHV´DFROKLGD
e compreendida por Isabel, exulte de alegria (Cf. Lc 1,46ss). A dimensão celebrativa e
comunitária da fé sobressai, de facto, no exemplo de vida da mãe do messias.

- 0DVQHPWXGRVmR³URVDV´7DPEpPDH[SHULrQFLDGRVRIULPHQWRFRPR³VXSRUWH´
do caminhar crente se apodera de Maria. Quando por ocasião da apresentação do
ILOKRQRWHPSORRSURIHWD6LPHmROKHYDWLFLQDD³HVSDGD GHGRU´ &I/F-35), Maria

20
não compreende ainda o que isso significava, apesar de já silenciosamente ter passado
SHOD³KXPLOKDomR´GHGDUjOX]QXPORFDOKXPDQDPHQWHLQDSURSULDGRHSRULVVRPHVPR
ser motivo para o evangelista afirmar que ela ³FRQVervava todas estas coisas,
ponderando-DV HP VHX FRUDomR´ (Lc 2,19). Quando o menino, já adolescente, se
distancia dela no templo e lhe afirma que estaria a cumprir verdadeiramente a vontade
GR 3DL R VLOrQFLR ³VRIUHGRU´ GH 0DULD  UHYHOD-se de uma extraordinária aceitação do
SURMHFWR GH 'HXV D UHVSHLWR GD VXD SUySULD YLGD 1HP WXGR p SDUD ³FRPSUHHQGHU´
segundo os parâmetros da lógica! Por isso, voltaria a ³JXDUGDUWRGDVHVWDVFRLVDVQRVHX
FRUDomR´ (Lc 2,51). Certamente que a maior prova de fé da mãe de Jesus é a sua
atitude de presença radical e vertical, junto à cruz. O discípulo amado não deixa de
referir a expressão dessa atitude: Maria, a mulher da firmeza e radicalidade- encontra-se
de pé (Cf.Jo 19,25), ou seja, numa atitude de aceitação e de acolhimento, até às
últimas consequências. Na verdade, no exemplo da mãe do salvador, não há lugar para
a derrota, mas sempre e unicamente para a certeza de que o Senhor não falta, apesar
das circunstâncias demonstrarem humanamente o contrário...

- Além de tudo isso, o exemplo de fé de Maria torna-se ainda mais expressivo e


fecundo como modelo, enquanto ela se mantém fiel à Palavra, acolhendo-a e pondo-a
em prática, ao longo da sua vida. A mãe acompanharia sempre o filho, desde o
nascimento até à morte, fazendo caminho com Ele, enquanto Palavra encarnada e
gerada desde toda a eternidade. O próprio filho reconhece na mãe a fonte da grandeza
e a manifestação da graça de Deus na sua pessoa. O mais importante não é os laços de
sangue, mas sim a fidelidade ao cumprimento da Palavra de Deus (Cf. Lc 8,21).

b) Apesar de passar quase despercebido nos evangelhos, também José deverá


merecer uma atenção muito especial, na medida em que nele sobressaem os aspectos
comuns quer à fé de Maria, quer à de outro modelo bíblico da atitude crente.

- Se estabelecermos um justo paralelismo entre o quadro da anunciação a Maria e o seu


próprio quadro de anunciação (também a José lhe foi anunciado de que iria ser pai de
Jesus) (Cf. Lc 1,26-38 e Mt 1,18-25), encontramos com absoluta certeza enormes
semelhanças e, ao mesmo tempo, traços característicos muito peculiares. Do mesmo
modo que a Maria lhe foi dito para não temer (Cf. Lc 1,30), assim é dito a José (Cf. Mt
1,20). Na verdade, a fé confirma-se na certeza de que o Senhor está presente e

21
nunca nos abandona. A atitude justa é, pois, aquela que se centra na confiança sem
limites e não no temor. Além disso, podemos salientar que, em confronto com o
anúncio da promessa divina, Maria responde pela palavra ± ³0DULD GLVVH´ /F   
José, por seu lado, responde pela acção ± ³-RVpIH]´ 0W 

- A fé de José é, na verdade, uma fé de obras. Nas restantes passagens dos


HYDQJHOKRVTXHID]HPDOXVmRjPLVVmRGR³KRPHPMXVWR´ 0W SRGHPRVXPDYH]
mais, comprovar tal afirmação. Perante os pedidoV IUHTXHQWHV GH 'HXV ³/HYDQWD-te,
WRPDRPHQLQRHVXDPmHHIRJH´ 0W H³/HYDQWD-te, toma o menino e sua mãe e
YDL´ 0W -RVpVySRVVXLXPDDWLWXGH³/HYDQWRX-se... tomou o menino e sua mãe
e partiu..´ 0W H³/HYDQWDQGR-se, tomou RPHQLQRHVXDPmHHYROWRX´ (Mt 2,21).

Como podemos realmente comprovar, José é o homem sempre pronto para servir,
numa atitude de permanente disponibilidade à Palavra divina. De facto, a fé não
tolera passividade; pelo contrário, é uma atitude e, como tal, realiza-se num permanente
projecto dinâmico de atenção e cumprimento.

- Em síntese, a fé de José não se compagina apenas na palavra, mas concretiza-se


fundamentalmente na acção fecunda, primeiramente acolhida no silêncio da oração e
da intimidade. Deste modo, José é também ele um humilde, fiel e excelente cumpridor
da Palavra, através da verticalidade (sempre em pé!) da sua atitude de resposta sempre
pronta à vontade de Deus.

B) A experiência da fé nos Actos dos Apóstolos

1- O dado fundamental neste livro é que Cristo passa GH³DQXQFLDGRU´D³DQXQFLDGR´


A fé é a aceitação do testemunho acerca de Jesus morto e ressuscitado; é adesão ao
acontecimento da ressurreição como acontecimento salvífico. O apóstolo é
testemunha da ressurreição (Cf. Act 1,21-22; 3,15; 4,20) e o essencial da pregação
apostólica é a afirmação constante de que em Jesus, morto e ressuscitado por Deus,
reside a salvação (Cf. Act 2,22-36; 3,12-26; 4,8-12; 9, 20-22; 13,16-41...).

2- A fé aparece como uma adesão livre à mensagem ouvida e acreditada como


verdadeira ³RXYLUDP H DFUHGLWDUDP´- Act 15,7; 18,8). Uma adesão que não é a mera
aceitação de um facto histórico, mas uma relação, uma entrega pessoal a Cristo morto e
ressuscitado. Uma adesão que supõe um conhecer e um ter por verdadeiro, mas que
não é algo puramente intelectual; é antes um estar persuadido existencialmente da

22
verdade da salvação de Deus em Jesus Cristo; é uma entrega obediente da totalidade do
homem ao acontecimento da salvação (Cf. Act 6,7; 14,1s).
3- A adesão da fé acontece na força do Espírito, cuja acção se manifesta nas
testemunhas (a testemunha deve ser um homem cheio de fé e do Espírito Santo - Act 6,5),
mas também no próprio crente (Cf. Act 8,17; 19,2.6...).

C) A fé nos Escritos Paulinos

1- O tema da fé aparece enquadrada no contexto da teologia da justificação. Ela é o


elemento primordial da salvação (fé salvífica). Crendo na morte e ressurreição de Cristo,
o homem reconhece a gratuidade absoluta do perdão divino e recebe, assim, a graça
da justificação ou salvação. Neste sentido, a fé é a atitude do homem que corresponde
ao dom da reconciliação de Deus em Cristo; é aceitação da força salvífica de Deus
manifestada em Jesus (Cf. Rm 3,21-31; 4,1-8; 10,9; Gl 2,16; 1 Co 4,7; 2 Ts 2,13; Ef. 2,6-
10).
2- A fé brota da escuta e realiza-se no acolhimento da Palavra (Cf. Rm 10,14-21
± ³QDVFH GD SUHJDomR´ &R VV  7V  D TXDOp VXSRUWDGD H WRUQDGD HILFD] SHOR
Espírito de Deus. Paulo acentua a primazia da iniciativa de Deus no dom da fé (Cf. 1 Co
2,4ss; Rm 8,28-30; 10,14-17; 1 Co 12,3; Ef 2,6-10; 1 Ts 1,4s).
3- A salvação, que tem o seu início na fé, é comunhão com Deus em Cristo, cujo
amor o Espírito Santo derramou nos nossos corações. Ao renunciar radicalmente a toda a
auto-suficiência e ao fundar em Cristo a sua existência, o crente começa uma vida nova. A
fé é, pois, uma entrada num modo de viver em profunda comunhão de vida com
Cristo no seu Espírito; é relação de intimidade filial com Deus (Cf. Rm 5,1-5; 8,14-17;
6,11; Gl 3,26-28; 4;6; 1 Co 1,30; 2,14-15; 2 Co 5,15.17; Ef 1,3-10; 2,10.13; 3,14-19; Cl 3,4).
4- Paulo acentua também a dimensão confessional da fé. Crer é aceitar como
verdadeira a mensagem da morte e ressurreição de Cristo; é conhecer e reconhecer a
verdade ouvida pela pregação ( Cf. 1 Co 15,1-5.11); Rm 10,9-10.14-17; Gl 2,16; 4,9; 1 Ts
4,14; Fl 2,10s). Nesta linha, enquadra-se o facto de o termo SLVWL9, que originariamente
VLJQLILFDR³DFWRGHFUHU´DSDUHFHUQRVHQWLGRGH³RFULGR´RXVHMDRFRQWH~GRDFUHGLWDGR
(Cf. Rm 10,8; Gl 1,23; Ef 4,5; cf. ainda 1 Tm 1,19; 4,1; 6,10).
5- O decisivo da atitude de fé está, no entanto, na adesão total do homem ao
acontecimento da salvação em Jesus, isto é, a obediência e submissão ao Evangelho
(Cf. Rm 1,5; 10,3s; 16,26; 2 Co 9,13; 10,2; 2 Ts 1,8).

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6- Por fim, a existência cristã, segundo S. Paulo, condensa-se na fé (como entrega
confiante ao Deus que nos justifica em Cristo), na esperança (como antecipação da
salvação futura e definitiva) e no amor (como novo modo de viver, na força do Espírito e
guiado interiormente pela sua lei). Deste modo, fé, esperança e caridade são, para o
apóstolo dos gentios, expressões distintas, mas mutuamente conexas e interdependentes,
de uma única e global atitude de Fé e, portanto, de vida (Cf. 1 Co 13; 1Ts 1,3; 5,8; Rm
8,23-25; Ef 1,13-14; Gl 5,1-6.13-14).

D) A fé na Carta aos Hebreus

1- Não se trata aqui propriamente da elaboração de uma teologia da fé, mas sim -
atendendo ao tom predominantemente parenético da carta- de uma grande exortação a
que os cristãos perseverem na fé e na esperança, fundados na promessa que Deus
cumpriu em Jesus (Cf. Hb 2,1-4).
2- Acentua-se o vínculo entre a fé e a esperança, às quais se atribui indistintamente
as mesmas características (Cf. Hb 3,6; 4,14-16; 10,19-22.35-36; 12,1-3). Pela esperança
torna-se já presente o que ainda não existe e a fé é o fundamento - ImóaxocaiQ - das
coisas que se esperam e uma demonstração (prova) -
"

eXeyxoc
,
-

das que não se vêem


+E&ITXDQWRDRXVRGRWHUPR³KLSyVWDVH´ 
3- Nas circunstâncias de fragilidade do viver humano, peregrinando na história e
sujeito à incredulidade (Cf. Hb 3,7-19), o crente é exortado à firmeza e à fidelidade na fé
(Hb 10,19-25; 32,3), numa existência modelada pelos exemplos dos que perseveraram
na fé (Cf. Hb 6,12; 11).

E) A atitude crente segundo os Escritos Joaninos

1- Também a fé joanina tem como elemento nuclear a referência ao mistério da


salvação manifestado em Jesus. Crer é aceitar como verdade que Jesus é o Messias,
enviado pelo Pai, o Filho de Deus que veio para comunicar aos homens a vida eterna. Crer
é dizer sim à Palavra (Aoyoc ) que é Jesus e assim entrar no caminho da salvação (Cf. Jo
,

1,16s; 2,11; 3,16; 5,26; 6,46-51).


2- Acreditar é aceitar o testemunho de Cristo, reconhecendo-O como revelador de
Deus. João assinala uma relação entre a fé, o testemunho e os sinais: o Pai dá

24
testemunho do seu enviado (Cf. Jo 5,32.37; 6,27; 8,18; 1 Jo 5,5-12), do mesmo modo que
o Filho dá testemunho do Pai (Jo 14,24; 17,6). O próprio Filho dá testemunho de si mesmo,
surgindo assim simultaneamente como revelador e revelado ± Cf. Jo 6,29s; 8,30s; 5,38-
43). Os crentes, por sua vez, são também eles chamados a dar testemunho (Cf. Jo 19,35;
1 Jo 1,1; 4,14).
3- Como adesão pessoal a Jesus Cristo, a fé é uma atitude existencial global. Ela
pDOJRGHYLWDOXPDFRQWHFHUHXPFDPLQKDUXP³YLUD(OH´³VHJXL-O¶2´³RXYLUDVXDYR]´$
fé joanina aparece como um caminho concreto e activo 9 realizado no seguimento de
Jesus, num dinamismo marcadamente cristocêntrico (Cf. Jo 1,12; 3,11-12.32-36; 5,40-43;
6,35-40.45.66; 7,17).
4- A globalidade que representa a atitude crente aparece ainda na unidade, tão
FDUDFWHUtVWLFD GH -RmR HQWUH ³DFUHGLWDU´ H ³FRQKHFHU´ SRGHQGR D Ip SUHFHGHU R
conhecimento (Jo 10,38) ou o conhecimento preceder a fé (Jo 17,8). Trata-se, pois, de um
conhecimento não meramente teórico ou intelectual, mas de um encontro pessoal e de
amor que integra todas as faculdades do homem e que é possibilitado pela acção interior
do próprio Espírito (Cf. Jo 6,44-46; 14,23).
5- João acentua a iniciativa primeira de Deus que possibilita a fé. Deus foi o primeiro
DDPDU &I-R-RpR3DLTXHP³DWUDL´ -R-44; 10,29; 17,4-26)
(a fé é, assim, dom de Deus e³R(VStULWRGDYHUGDGH´TXHDFWXD -RVV FRPR
³HQVLQR LQWHULRU´ VHU DWUDtGR SHOR 3DL VLJQLILFD VHU HQVLQDGo por Ele- Cf. Jo 6,44-46) do
homem, na profundidade do seu coração. Porém, o dom da fé não significa que deixe de
pertencer também ao homem a decisão sobre a fé ou a descrença (Cf. Jo 5,24ss) ( a fé é
também resposta livre do homem).
6- Por esta acção interior do Espírito, a vida da fé é um processo de comunhão
vital com Cristo e uma participação da sua experiência filial em relação ao Pai (Cf. Jo
6,44-46; 7,29; 14,20ss; 6,57). Esta visão da fé como comunhão vital do cristão com Deus
em Cristo no seu Espírito adquire ainda relevo mais forte na Primeira Carta de S. João
(2,29; 3,9; 4,7).
7- Nesta linha se percebe melhor porque é que a teologia joanina acentua
YLJRURVDPHQWHR³DJRUD´GDVDOYDomRGRKRPHPSHODIpHP&ULVWR &I-R-R
5,1). Mas a ³YLGD HWHUQD´ MRDQLQD QmR GHL[D GH VHU XPD UHDOLGDGH IXWXUD $ Ip DQWHFLSD

9 O carácter concreto e activo manifesta-se no uso quase exclusivo da forma verbal SLVWHXHLQ em vez do
substantivo SLVWL9,

25
portanto, essa salvação futura e definitiva enquanto entrega confiada a Cristo e vida de
comunhão com Ele, na esperança da plenitude (Cf. Jo 14,1-3.28; 17,24; 1 Jo 3,2-3).
8- À visão joanina da fé pertence ainda como nota marcante a acentuação da
relação indissolúvel entre o amor de Deus e o amor do próximo, particularmente na
Primeira Carta (Cf. 1 Jo 4,7ss; 3,10-18).

2.3. Esboço de síntese

Se quisermos já, ainda que em jeito de síntese e com base na leitura e reflexão
feitas tanto nos escritos do Antigo como do Novo Testamento, sintetizar os aspectos ou
dimensões do acto verdadeiramente crente, podemos afirmar o seguinte:

1.A fé é primordialmente uma atitude de confiança, uma relação pessoal do homem


com Deus, mas engloba necessariamente a adesão à verdade de Deus que se revela em
Jesus Cristo pelo seu Espírito. Dimensão fiducial e dimensão confessional da fé não se
opõem, pois são elementos integrantes da única atitude de fé.
2.A fé é uma atitude existencial global que envolve todas as potencialidades
humanas e diz respeito a todas as facetas do viver. É um acto fundamental do homem que
tem que ver com o sentido total da sua existência.
3.A fé é essencialmente cristológica e, assim, trinitária. Centra-se no acontecimento
pascal: a morte e ressurreição de Jesus Cristo como cumprimento definitivo das
promessas de Deus e acontecimento salvífico para o homem que a ele adere na força do
Espírito.
4. A fé é simultaneamente dom de Deus e resposta livre do homem. Tem uma
estrutura essencialmente dialógico-pessoal. Ela é fruto da iniciativa primeira de Deus,
supõe a resposta do homem a partir do núcleo da sua liberdade, vive-se num contexto de
diálogo com Deus nas circunstâncias históricas concretas.
5.A fé é começo da salvação e entrada numa maneira nova de viver (conversão)
que é também experiência de libertação (de progressiva realização humana) na esperança
da libertação-salvação definitiva.
6.A fé, atitude fundamental de confiança em Deus, engloba necessariamente a
esperança e o amor como dimensões fundamentais da sua realização (modos, expressões
de uma única atitude de vida). A fé tem, assim, uma dimensão escatológica (vive na tensão

26
GR³Mi´HGR³DLQGDQmR´ HXPDGLPensão práxica (no amor de Deus enraíza-se a exigência
basilar e indissociável do amor aos homens).
7.A fé é uma relação profundamente pessoal, mas insere-se necessariamente num
contexto comunitário. Esta estrutura comunitária da fé manifesta-se também no facto de
que a fé pressupõe o testemunho e está dependente de testemunhas.
8.$ Ip WHP XPD GLPHQVmR KLVWyULFD HOD YLYH GD DWHQomR DRV ³VLQDLV´ GH 'HXV QD
história dos homens, ela é um diálogo com Deus vivido sob condicionalismos históricos
concretos que iQWHUSHODPD³UHVSRQVDELOLGDGH´ DFDSDFLGDGHGHUHVSRVWD GDIp
9.A vivência da fé aparece como um projecto de vida, integrado em todo o processo
de maturação humana. Ela está, pois, sujeita a processos de crescimento e de maturação,
sendo fundamental a fidelidade e a perseverança.
10.A fé é simultaneamente: adesão ao testemunho de alguém, dimensão dialogal de
entrega e de obediência, aceitação da verdade de Deus que se manifesta no
acontecimento da revelação em Jesus Cristo, caminho de progressiva união a Deus em
Jesus Cristo na força do Espírito, comunhão de vida com Deus na esperança da plenitude
(relação pessoal de intimidade e comunhão).

III-CARACTERÍSTICAS E ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS


DA FÉ

Trata-se agora, numa reflexão sistemática, de analisar estruturas e dimensões


fundamentais da fé cristã. De entre as várias características e estruturas da atitude crente
salientamos, pois, as seguintes:

3.1. A Fé, dom de Deus e resposta pessoal do Homem

O crente experimenta ao mesmo tempo a sua fé como uma resposta sua à


mensagem do evangelho e como algo que não é criação sua, mas dom que brota da acção
de Deus em Jesus Cristo, pelo Espírito.
Analisemos esta dupla dimensão em três aspectos: o testemunho bíblico e da
tradição, a reflexão teológica e as implicações pastorais (práticas).

27
A) Testemunho bíblico, da Tradição e do Magistério

O testemunho bíblico não deixa quaisquer dúvidas de que a fé é um dom de Deus


que, pelo Espírito, cria no Homem os pressupostos ou condições necessárias para que ele
possa acreditar e assim livremente entrar em comunhão com Deus. O facto de ser Deus
quem toma a iniciativa e convida o Homem a acolhê-O¶2 GDQGR-lhe ao mesmo tempo
capacidade para esse acolhimento encontra-se presente em diversas passagens do NT,
sobretudo nos escritos de Paulo e João (Cf. 2 Co 1,22; Fl 2,13; Jo 6,65...).
Por seu lado, o testemunho bíblico é também claro ao afirmar que a atitude crente
supõe o empenhamento da liberdade humana. Não se trata apenas de um dom, pois o
Homem pode ou não acreditar e até recusar a revelação, o apelo de Deus na sua vida (CF.
Jo 3,18.32; Rm 10,16...)

A acção de Deus pelo seu Espírito que capacita o Homem para a Fé foi
interpretada, desde os Padres, particularmente a partir de Santo Agostinho, como
³LQVSLUDomR´³LOXPLQDomR LQWHULRU´³DWUDFomRHVSLULWXDO´2PRQJHLUODQGrV3HOiJLRFRQVLGHUD
que o Homem por si só, através das suas próprias forças, é capaz de aderir a Deus,
FXPSULQGRILHOPHQWH D VXD YRQWDGH 'HXV QHP WHULD ³QHFHVVLGDGH´DOJXPD GH VH UHYHODU
na medida em que o Homem estaria naturalmente capaz de O captar e compreender em
toda a plenitude. Na luta que teve que empreender contra o supradito monge, Santo
Agostinho afirma que a graça precede qualquer agir do Homem e a Fé, portanto, terá a ver
FRPXPD³DWUDFomR´GR Pai para o Filho.
Por seu lado, S. Tomás de Aquino afirmaria que a fé permanece acção livre do
Homem, apesar da liberdade dever e poder ser elevada a uma ordem superior. É a isso
TXHGHVLJQDGH³OXPHQILGHL´RX³OXPHQJORULDH´
Na verdade, a doutrina da Igreja acentua que, tanto no seu início como no seu
crescimento, a fé é dom da graça, acção do Espírito no mais fundo do Homem. Como
importante exemplo desta posição eclesial temos o II Concílio de Orange (sec VI) que, em
resposta ao semi-pelagianismo10, afirmaria assim: «Se alguém disser que se encontra
naturalmente em nós, quer o aumento quer o início da fé e até o afecto de credulidade e que
chegamos à regeneração do sagrado baptismo, não por dom da graça, quer dizer, por inspiração

10 0RYLPHQWR SHODJLDQLVWD PLWLJDGR  VHJXQGR R TXDO R ³LQtFLR´ ± e só o início- ou iniciativa da Fé cabia


primeiramente ao Homem, o qual iria à procura de Deus como o doente vai do médico.

28
do Espírito Santo que corrige a nossa vontade da infidelidade à fé, mostra-se inimigo dos dogmas
católicos» (DZ 178).
Como resposta aos reformadores, principalmente a Lutero, que acentuavam o
carácter passivo da fé ± dimensão fiducial...-, o Concílio de Trento (sec XVI) irá também
sublinhar o carácter activo da mesma. Na verdade, a justificação e o crescimento na fé
são efectivamente obra da graça de Deus: ³VRPRVMXVWLILFDGRVSHODIpSRUTXHDIppRSULQFtSLR
GD VDOYDomR KXPDQD´ ³7XGR R TXH SUHFHGH D MXVWLILFDomR VHMD D fé sejam as obras, provém da
PHVPD JUDoD GD MXVWLILFDomR´ (Dz 801). Mas que na fé que conduz à salvação o Homem
empenha a sua liberdade é repetido também pelo magistério deste Concílio (Cf. Dz 819;
797).
O Concílio Vaticano I (sec XIX) irá, por sua vez, na Constituição Dei Filius, afirmar
que a fé é, por um lado, uma virtude sobrenatural, dom de Deus e o seu acto é obra que
SHUWHQFH j VDOYDomR  &I ']   H SRU RXWUR ³p REUD SHOD TXDO R +RPHP SUHVWD DR
próprio Deus livre obediência, consentindo e cooperando com a sua graça à qual pode
UHVLVWLU´ '] 
No número 12 da Constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II é dito que a
Ip VH WUDWD GH XPD ³XQomR GR (VStULWR´ H R Q~PHUR  GD Dei Verbum afirma deste modo:
³3DUDSUHVWDUHVWDDGHVmRGDIpVão necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e
os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do
HQWHQGLPHQWRHGiDWRGRVDVXDYLGDGHHPDFHLWDUHFUHUDYHUGDGH´ Por outro lado e ao mesmo
tempo, ³SHODIpRKRPHPHQWUHJD-VHWRWDOHOLYUHPHQWHD'HXV´
Em conclusão desta parte podemos dizer que ao longo de toda a história da Igreja a
problemática da conjugação da acção de Deus e a liberdade humana, tematizada no
binómio graça-liberdade, tem sido alvo de inúmeras controvérsias e reflexões, sendo de
destacar como exemplo mais actual para um conhecimento mais aprofundado da questão
DHQFtFOLFD³)LGHVHW5DWLR´GH-3,,  

B) Reflexão teológica

De tudo o que foi dito e em jeito de síntese teológica, tomando uma frase de Von
Balthasar, « a fé é uma acção que é recebida». E como acção que é recebida, a fé é antes
de mais:
1. Dom de Deus. Quer dizer, toda a iniciativa está do lado de Deus, parte
G¶(OH 7UDWD-se de uma auto-manifestação livre do próprio Deus que se

29
revela como Palavra, à qual o Homem só pode aderir verdadeiramente se
Deus a faz interiorizar primeiramente no coração de cada um, através do
seu Espírito. De outra forma não seria Palavra de Deus mas uma simples
palavra humana sobre Deus.
2. Resposta livre do Homem: Como resposta livre do Homem, a fé torna-se
um acto completa e verdadeiramente humano, na medida em que é o
Homem que acredita e não o Espírito Santo por ele ou nele. Além disso e
ainda como resposta livre, a fé envolve todas as capacidades e
potencialidades humanas da inteligência e da vontade, radicando em
PRWLYRVFUHGtYHLVHSRUWDQWR³UD]RiYHLV´
3. Além disso e como acção que se recebe, no dizer de Balthasar,
entendemos que chegámos à atitude crente não por uma mera conquista
nossa, mas como algo que nos foi dado através do contributo de outros e
de diversas mediações. Desta forma, dizer que a fé é dom de Deus não
VH WUDWD GH DFHQWXDU DSHQDV R ³GRP HVSLULWXDO´ H GLUHFWR GH 'HXV PDV
também a importância da mediação dos outros, através dos quais
podemos chegar a Ele e acolher a sua Palavra. Assim se pode entender,
portanto, como os outros são dom para nós e nos podem ajudar a acolher
o dom da fé.
4. Por outro lado ainda, vemos como a confiança e o amor humanos nos
podem ajudar a perceber melhor como a fé pode realmente ser dom de
Deus e resposta livre do Homem, na medida em que confiar em alguém
ou amar alguém nunca se trata de uma pura criação nossa. É necessário
que essa pessoa (em quem eu confio e amo) me tenha surgido primeiro
como digna de confiança e amor, ou seja, como alguém que me atrai e se
me dá. Só depois de eu ser atingido e arrebatado por este dom é que me
encontro capaz de assumir uma atitude de resposta...

C) Implicações pastorais

Esta dimensão ambivalente da fé acentua sobretudo o carácter de gratuidade e


gratuitidade da mesma, expresso quer na celebração festiva, quer na tarefa de
transmissão da fé aos outros (catequese, em família e no diálogo com os outros

30
homens...), quer ainda na apresentação do evangelho ao mundo, enquanto proposta e não
como imposição...

3.2. A dimensão dialógica da Fé

1. Dom de Deus e simultaneamente expressão da liberdade humana, a fé é também


um acontecimento dialógico-pessoal.

Se o ponto de partida da fé cristã não é um gesto de criação e autonomia humanas, mas


a iniciativa primeira e gratuita de Deus, isso não quer dizer, no entanto, que o crente se
limite a um papel passivo. Pelo contrário, a revelação de Deus que, nas mediações de
uma tradição viva e pela força do Espírito, suscita a fé não é algo independente do
acolhimento e da palavra afirmativa que exprime esse acolhimento nas circunstâncias
históricas em que se desenrola. A revelação só existe concretamente como revelação
³RXYLGDHDFUHGLWDGD´ .5DKQHU 6yQDHVFXWDHQDresposta da fé, numa experiência
concreta de vida, é que a revelação de Deus se torna realmente presente como
chamada e promessa, como dom significativo para a existência crente.

2. A revelação de Deus tem, pois, de ser entendida - e isso tanto no seu aspecto de
auto-manifestação como de auto-doação de Deus- como acontecimento de relação
pessoal e não como algo que consiste apenas ou decisivamente em dar a conhecer um
FRQMXQWR GH YHUGDGHV FRPR VLPSOHV VXMHLomR j ³DXWRULGDGH´ GH 'HXV TXH VH UHYHOD
como meUD ³FRPXQLFDomR GH FLPD´ $ UHYHODomR WHP SRLV XPD HVWUXWXUD
essencialmente dialógica ou dialogal. Trata-se de um acontecimento pessoal dinâmico
de amizade (Cf. Jo 15,15), supõe um diálogo continuado (entre Deus e o crente inserido
num Povo) que é vivido no concreto singular das circunstâncias históricas e pessoais.

Esta estrutura dialógica da revelação ressalta já do próprio lugar central que nela ocupa
D 3DODYUD TXH SHGH XPD ³UHVSRVWD´ H p D UDL] GH XPD ³UHVSRQVDELOLGDGH´  (OD p
também visível na impoUWkQFLD GHFLVLYD TXH R ³7HVWHPXQKR´ TXH VXS}H GLiORJR
relação, contacto pessoal) tem no acesso à fé e na sua vivência.

3. Desta estrutura dialógica da revelação e da fé resulta que a resposta humana não


é acidental e simplesmente posterior ao próprio facto da revelação, mas é um elemento
co-constitutivo da própria revelação, enquanto acontecimento que se actualiza e torna
presente ao longo da história. A Palavra de Deus não é perceptível sem a mediação da

31
palavra humana e as circunstâncias que envolvem a experiência humana de
acolhimento de Deus são mediações decisivas da revelação de Deus para nós
(mediações que condicionam a nossa compreensão de Deus e da sua Palavra). Assim,
e do mesmo modo que ontem, também a nossa situação actual e as experiências
históricas que vamos fazendo são elementos constitutivos da compreensão que temos
de Deus e da forma como o seu amor se manifesta para connosco.

4. Mas esta estrutura dialógica tem dimensões ainda mais profundas. Ela insere-se
radicalmente no âmago da atitude de fé como relação pessoal e íntima com Deus, que
nos chama à comunhão de vida com Ele. A fé é entrada num modo de existência
transformado por uma nova relação de amizade e de comunhão com Deus, nova
relação de comunhão possibilitada pela presença actuante do Espírito (do Pai e do
Filho) em cada crente ( Cf. Rm 5,5; 8,9; Gl 4,6; Ef 4,24; Tito 2,11-14;3,14-16; Jo 3,1-
8.14-16; 14,23; 1 Jo 3,24).

Por aqui se vê como, por mais necessárias e indispensáveis que sejam todas as
mediações pelas quais nos chegam os dons e os apelos de Deus, em última análise só
a força do Espírito torna essas mediações transparentes como sinal e graça de Deus e
capacita interiormente o crente para aquela resposta radical, continuada e fiel que é a
opção de fé. Por outro lado, a partir daqui é também visível como a vivência pessoal da
fé é expressão de uma singularidade irrepetível, de um diálogo íntimo e singular com
Deus ao longo de uma vida. Viver a fé é ser chamado pessoalmente a uma resposta
³LQGLYLGXDOL]DGD´ QRV GRQV H FLUFXQVWkQcias próprios de cada pessoa; é entrar num
processo de descoberta e realização da sua própria identidade humana a partir de
Deus.

5. Diálogo íntimo e singular com Deus ao longo de uma vida, a fé tem na oração não
um acessório ou um suplemento, mas a sua forma mais concreta e nuclear de
expressão. A atitude crente consolida-se e fortifica-se na oração, nela encontra e deixa
transparecer a sua mais profunda identidade (oração expressa em momentos
SULYLOHJLDGRVRXFRPR³FRQWHPSODomRQDDFomR´ $RUDomRpR³FDVRVpULR´GDIpFULVWm
(W. Kasper).

Da estrutura dialógico-pessoal da revelação e da fé decorrem consequências muito


importantes para a compreensão e vivência da própria fé.

32
1. Atitude dialógica no testemunho da fé: A estrutura dialógica da fé tem de
transparecer na forma como a Igreja e os cristãos se situam no mundo (diálogo com
Deus vivido no diálogo com o mundo), face aos problemas e às esperanças dos
homens, face às grandes religiões da humanidade, face aos cristãos de outras
confissões (ecumenismo). Esta atitude dialógica (de disponibilidade e abertura ao
diálogo) é a forma do testemunho missionário que decorre do cerne da existência cristã:
³$,JUHMDGHYHHQWUDUHPGLiORJRFRPRPXQGRHPTXHYLYH$,JUHMDID]-se palavra, faz-
se mensagem, faz-se colyTXLR´(Paulo VI- Ecclesiam Suam).

2. A Igreja como espaço de diálogo: Exigência e condição fundamental é que a


comunidade crente seja, na sua própria vida interna, espaço de diálogo. Isto supõe,
antes de mais, que toda a comunidade crente se entenda primordialmente como
³GLVFHQWH´ FKDPDGDDRXYLUHDFROKHUD3DODYUDGH'HXV HTXHDWRGRVRVFUHQWHVVHMD
UHFRQKHFLGRSRUSULQFtSLRHGHIDFWRR³GLUHLWRGHSDODYUD´QDYLGDFRPXQLWiULD LVWRp
que os crentes não sejam reduzidos a uma atitude de escuta, obediência, repetição ou
até silêncio). Mas exige, igualmente, valorização do testemunho dos outros crentes em
solidariedade comunitária, condições de liberdade, aceitação e fomento da opinião
pública dentro da Igreja. Que a Igreja seja espaço de diálogo é importante não só para a
YLYrQFLDLQGLYLGXDOGRFUHQWHPDVWDPEpPSDUDRVLQDOGH³KXPDQLGDGH´TXHGHYHEURWDU
da fé.

3. A necessidade de processos diálogicos na vivência e interpretação da fé: A


importância do diálogo na experiência da fé e sobre a experiência da fé (na família;
grupos de cristãos que dialogam sobre a fé vivida nas mais diversas situações e
experiências; o contar a própria história de fé aos outros...); os processos dialógicos na
formação da fé (valorização da experiência crente; capacidade de verbalização;
desenvolvimento da consciência crítica; participação na própria formação); estruturas
comunitárias que fomentem a participação (representação aos mais diversos níveis;
possibilidades de deliberação; tomar parte activa na formulação das opções pastorais
através de conselhos pastorais...) e assim contribuam para que os crentes possam ser
YHUGDGHLUDPHQWH³VXMHLWRV´GDVXDIp

4. 2 GHVHQYROYLPHQWR GR ³VHQWLGR GD Ip´ sensus fidei) dos crentes 2 ³VHQWLGR GD
Ip´ VHJXQGR R Qž  GD /* p D VHnsibilidade da própria fé para tudo o que lhe diz
respeito; é a capacidade dada ao crente, com a fé, de perceber- de forma mais intuitiva
que racional, de forma mais vivencial que teórica- onde está a verdade da fé, o que é

33
decisivo no seu testemunho, por onde passa o plano salvador de Deus no concreto da
história dos homens. W. Beinert descreve-o como ³XP FDULVPD OLYUH GDGR D WRGRV RV
membros da Igreja, o carisma da sintonia interior com o objecto da fé, por força do qual
a Igreja na sua totalidade (...) reconhece o objecto da fé e o confessa na realização de
YLGD HP SHUPDQHQWH FRQVRQkQFLD FRP R PDJLVWpULR HFOHVLDO´ Alois Grilmeier
compreende, por sua vez, o atingir da verdade próprio do sentido da fé como
³FRQVHUYDomRDFWLYDFRPRWHVWHPXQKRYLYRFRPRSHnetração cada vez mais profunda
QDIp H FRPR FRQILJXUDomR DFWLYD QD YLGD´ 5HFRQKHFHUHIRPHQWDUR ³VHQWLGR GDIp´p
VXEOLQKDU XPD YH] PDLV R FDUiFWHU GH ³VXMHLWR´ GR FUHQWH HP UHVSRVWD DRV GRQV GH
Deus), ao qual não cabe um mero papel passivo, mas verdadeiramente activo em todas
as dimensões da vida da comunidade eclesial. Um papel activo que se concretiza
também na tarefa de descoberta e de testemunho da verdade, que é de enorme
relevância para o processo de conservação da verdadeira fé e seu testemunho
actualizador em cada tempo e lugar. Assim se afirma também a importância dos
processos dialógicos na busca da verdade prática.

3.3. A Fé, opção consciente de liberdade e experiência de libertação

Com esta estrutura, pretendemos fundamentalmente aprofundar o modo como se


concretiza a liberdade na atitude de fé e de sublinhar a dinâmica de libertação que aí se
enraíza.

A) 2FDUiFWHU³RSFLRQDO´GDIp

$IpQmRpXPDDWLWXGHFHJDRXDUELWUiULDPDVDSDUHFHDRFUHQWHFRPR³UD]RiYHO´
fundada em razões e adequada às exigências mais profundas da sua razão. De outra
forma não seria uma atitude verdadeira e completamente humana. Há, pois, para o crente
³PRWLYRVGHFUHGLELOLGDGH´TXHWRUQDPDVXDIpXPDDWLWXGHGLJQDGHVHUYLYLGDPHUHFHGRUD
da sua resposta afirmativa, porque fundada no acontecimento da revelação de Deus.
Os motivos (critérios) de credibilidade eram habitualmente, na teologia tradicional,
divididos no seguinte esquema:
- internos (os que são dados pelo próprio facto da revelação em si mesmo);
- externos (os factos e acontecimentos que comprovam a veracidade da
revelação);
34
- subjectivos (encontram-se dentro do próprio crente);
- objectivos (encontram-se fora do sujeito que crê, podendo ser tanto
externos como internos).

A apologética clássica insistia nos critérios externos e objectivos, contra o


subjectivismo protestante, mas também contra as tendências modernistas.
Esta estreiteza apologética é hoje corrigida pelas seguintes perspectivas:
1ª- Não existem sinais de revelação puramente externos, isto é, à margem de uma
OHLWXUDHLQWHUSUHWDomRSHVVRDO R³PRWLYRGHFUHGLELOLGDGH´QmRSRGHVHUFRQVLGHUDGRFRPR
um facto bruto, isolado do sujeito que crê);
2ª- À ambiguidade própria que acompanha os sinais como realidades marcadas
pelos limites e condicionalismos da história acresce o conjunto de circunstâncias culturais
que dificultam a percepção da credibilidade desses sinais;
3ª - Os sinais ou motivos de credibilidade só adquirem a sua eficácia no quadro de
uma valoração global da pessoa que integra as razões múltiplas de crer na totalidade da
sua própria adesão.

1mR VH HVWi Mi SRLVDRQtYHOGRV ³IDFWRV EUXWRV´ H VXD DQiOLVHSHOD VLPSOHV UD]mR
humana, mas no âmbito de um conhecimento de tipo interpessoal, que envolve a pessoa
em todas as suas potencialidades e que supõe uma sintonia interior com o próprio objecto
DTXHVHDGHUH QDOLQKDGR³FRQKHFLPHQWRSRUFRQDWXUDOLGDGH´GH67RPiVRTXHVXJHUH
também a acção da graça na percepção da credibilidade e a importância de todas as
condições prévias- desde a educação ao meio ambiente- que favorecem essa percepção).
Pode concluir-VH HQWmR TXH D Ip VH VLWXD DR QtYHO GR ³RSFLRQDO´ TXH VH WUDWD GH
XPD³RSomRGHOLEHUGDGH´1mRVHQGRXPDDWLWXGHDUELWUiULD VHPUD]}HVTXHDMXVWLILTXHP
como verdadeiramente razoável e humana), ela não é também simples atitude racional
(mero produto da razão humana argumentativa, o que afectaria o seu carácter de
liberdade). A fé é, sim, decisão fundamental da liberdade humana, atitude que só é
possível através de uma opção que sabe dos motivos que justificam essa opção, através
de um conhecer comprometido da e com a realidade a que se adere. A fé é, portanto, uma
³RSomR UD]RiYHO´ PDV HVVD UD]RDELOLGDGH HP ~OWLPD DQiOLVH Vy SRGH VHU FRPSURYDGD
dentro do compromisso de opção que a fé envolve e como experiência global e processual
(razoabilidade não apenas de uma decisão, mas de todo o conjunto de decisões que
suportam o viver crente ao longo de toda uma vida).
35
A fé enraíza-se, pois, naquele núcleo em que cada pessoa é chamada a empenhar
e a comprometer a sua liberdade em busca de sentido para a vida. Um comprometer-se
que envolve todas as suas potencialidades: a inteligência, a vontade, o amor, a liberdade...
A fé ± como resposta crente à busca de sentido para a vida- surge como o apelo mais
radical ao Homem e à realização da sua liberdade. Fazer esta experiência é fundamental
para que o crente perceba também que, na sua fé, está em jogo o seu próprio processo de
libertação.

B) A fé como experiência de libertação/salvação

Como já se referiu, a fé entende-VHFRPRSULQFtSLRHFRQGLomRGDVDOYDomR ³LQtFLR


IXQGDPHQWR H UDL] GH WRGD D MXVWLILFDomR´- cf. Dz 801) do Homem e do seu mundo. Tem,
portanto, uma dimensão essencialmente soteriológica. Na fé não se trata de uma simples
interpretação da vida, mas da resposta fundamental do Homem a Deus que se lhe revela
como salvação, como o poder que o liberta e lhe possibilita caminhar para a sua plena
realização.
Tendo em conta a história do uso dos termos libertação e salvação podemos afirmar
que os mesmos exprimem acentuações algo diferentes.
³6DOYDomR´ DSRQWD PDLV SDUD D GLPHQVmR GHILQLWLYD H ILQDO D SOHQLWXGH IXWXUD R
aspecto do dom de Deus, a transformação interior, do coração.
³/LEHUWDomR´ VXJHUH PDLV D GLPHQVmR GH SURFHVVR D H[SHULrQFLD SUHsente, o
aspecto da resposta humana, a dimensão estrutural.
Esta simples verificação semântica torna claro que, na realidade, os dois termos são
QHFHVViULRVSDUDH[SULPLUDPHQVDJHPFULVWmGD³VDOYDomR-OLEHUWDomR´QDVXDDPSOLWXGHH
na sua complexidade.
Se a fé tem a ver com o acolhimento confiante do acontecimento Jesus Cristo como
definitiva revelação de Deus e salvação para o Homem, ela constitui a possibilidade de
uma vida nova em Jesus, na força do seu Espírito. O crente sabe que a sua existência está
fundada no amor de Deus manifestado em Jesus e, no seguimento desse Jesus, sente-se
liberto da pretensão de se salvar por si mesmo ou encontrar a salvação nas suas próprias
realizações. A fé é uma conversão, uma orientação nova da existência do Homem que se
abre dialogicamente a Deus e ao serviço dos outros (Cf. Rm 10,9; 3,22-30; Gl 2,16; 4,4-7;
Ef 2,8-10).

36
Envolvido e suportado pelo amor salvador de Deus, o crente é capaz de uma nova
H[LVWrQFLD HP OLEHUGDGH XPD ³OLEHUGDGH OLEHUWDGD´ SDUD R VHUYLoR H SDUD o amor. Esta
liberdade é fruto da acção do Espírito no crente que, a partir da experiência da liberdade e
da comunhão filiais, é chamado a ser livremente fraterno (Cf. Gl 5,1-4.6,13; 4,5; Rm 8,9-11;
1 Co 3,16; 8,7-13; 10,24; 13; 2 Co 3,17; 13,13).
Todavia, o dom da reconciliação oferecido por Deus ao Homem e a libertação da lei,
do pecado e da morte, em Jesus (Cf. Rm 8) não significa que a vida do crente deixe de
HVWDUFRPSOHWDPHQWH LPXQH UHODWLYDPHQWH DHVVHV ³SRGHUHV´6DOYR SRUGRP GH 'HXVR
crente está, no entanto, ainda a caminho da salvação plena e definitiva na comunhão total
com Deus e com os irmãos. A mensagem cristã da salvação/libertação não ignora, pois, a
possibilidade do pecado, a realidade do sofrimento, a obscuridade da morte e o risco do
sem sentido. Porém, no seguimento de Jesus morto e ressuscitado e na força do seu
Espírito é possível desde já ao crente vencer as alienações que afectam o viver humano,
recomeçar sempre de novo na certeza do perdão misericordioso de Deus, tirar a esses
³SRGHUHV´DSUHWHQVmRDEVROXWDGH~OWLPDSDODYUDVREUHDH[LVWrQFLDKXPDQD
A salvação/libertação que Deus oferece e que Deus é não consiste em algo que
venha por acréscimo como uma superstrutura que nada tivesse a ver com a realidade e as
aspirações mais profundas do Homem. Pelo contrário, a oferta da salvação é a
possibilidade de o Homem se reencontrar consigo mesmo, atingir a plenitude das suas
potencialidades, realizar verdadeira e totalmente a sua liberdade. A mensagem cristã da
salvação/libertação diz respeito, pois, a todas as dimensões humanas e prende-se com
todas as condições históricas que ajudam o Homem a realizar-se ou que impedem a sua
realização.

C) A necessidade da fé para a salvação

A doutrina da Igreja, em consonância com o testemunho bíblico (Cf. Por exemplo Hb


11,6; Jo 3,16-21...), afirma a necessidade da fé para a salvação. Há, no entanto, milhões
de pessoas que não conhecem o conteúdo ou até a própria facticidade da revelação
histórica de Deus em Jesus Cristo e isso sem culpa sua. Por isso, e tendo em conta a
vontade salvífica universal de Deus, a necessidade absoluta da fé para a salvação só pode
significar, nesse caso, que o oferecimento permanente de Deus como graça (autêntica
revelação) interpela e chama cada homem, na sua transcendência mais radical como
pessoa que tem em mãos um projecto de vida, a um acolhimento livre, amoroso, confiante.
37
Nessa decisão fundamental (de acolhimento ou recusa) face ao Absoluto, ao Mistério que
se oferece como pura graça, transparece a identidade e a radicalidade mais profundas da
própria decisão de fé: o Homem não se fecha em si mesmo, mas ultrapassa a tendência a
apoiar-se em si próprio e nas suas forças para se abrir a Deus (como razão profunda do
seu existir) e ao amor aos outros.

D) Aspectos prático-pastorais

- Não pode haver contradição entre as exigências de plenitude humana e as


exigências de Deus, entre os valores humanos e os valores da fé. Essa
³FRQWUDGLomR´ SRGH VXUJLU D SDUWLU GH ³IDOVRV´ YDORUHV KXPDQRV GH
incompreensões ou deformações dos valores da fé, ou ainda da
incapacidade de abertura à plenitude do humano (à luz do Reino de Deus).
1HVWH ³SULQFtSLR GH QmR FRQWUDGLomR´ UHVLGH XP FULWpULR FUtWLFR LQWHUURJDWLYR
das nossas mentalidades, valorações e práticas dentro da Igreja.
- Educar para uma autêntica atitude de fé é educar para a liberdade. Trata-
se, pois, de contribuir para que seja possível uma verdadeira decisão em
liberdade. Mas importa também ajudar a que se perceba que, na fé, está
em causa a decisão mais fundamental, mais radical da existência de uma
pessoa.
- O processo de libertação pessoal na vivência da fé não decorre à margem
da libertação dos outros e da transformação das estruturas que não
respeitam o Homem, a sua dignidade, as suas aspirações fundamentais.
Um entendimento intimista, espiritualista ou individualista da fé constitui um
obstáculo à compreensão e, sobretudo, à experiência da fé como dom e
processo de libertação.

3.4. A Fé, conhecimento e vivência

A fé é também conhecimento, um conhecimento que não está em contradição


com as potencialidades e os dinamismos da razão humana, antes corresponde ao
seu profundo desejo de verdade. No entanto, a fé é, fundamentalmente, um modo
de viver. É simultaneamente ortodoxia e ortopraxis. Vejamos como.

38
A) $IpFRPR³FRQKHFLPHQWR´

A IpSUHWHQGHVHUXP³PRGRGHFRQKHFHU´8PFRQKHFHUIXQGDPHQWDGRHFHUWRTXH
permite ao homem captar a verdade decisiva sobre a sua existência.
Esta consciência da fé é pressuposto elementar para o testemunho bíblico, pois diz
respeito à identidade profunda da própria fé, que se apoia na verdade de Deus e se
entende como verdade para o Homem. Isso transparece, desde logo, no Evangelho de S.
-RmRTXHS}HHPHVWUHLWDUHODomRRVWHUPRV³FUHU´H³FRQKHFHU´ FUHUHFRQKHFHUVmRXPD
e mesma coisa). Mas é igualmente afirmado ou pressuposto em muitos textos bíblicos, que
não deixam também de sublinhar que se trata de um conhecimento marcado pela
obscuridade e a fragilidade do caminhar crente na história e envolvido na adesão total
(também da inteligência) do Homem ao Evangelho e ao Mistério de Deus que nele se
revela (cf. v.g. Hb 11,1; 1 Co 13, 5-12; 2 Co 5,6-8; 11,2-6; Ef 1,17-21; 4,14ss; Cl 1,9-12; Fl
3,10; 1 Tm 6,3-5; 2 Tm 3,8; 4,2-5; 6,3-5...).
O conhecimento da fé não é, pois, da mesma ordem do conhecimento que se
baseia em provas científicas ou se fundamenta na demonstração ou clarividência racional.
O conhecimento ou saber que a fé possibilita situa-se a um outro nível, um nível
qualitativamente diferente, o que não desvaloriza em nada o conhecimento de tipo
científico e baseado em razões percebidas pela inteligência humana como mais ou menos
evidentes. Esse nível diferente pode ser caracterizado do seguinte modo:
- O conhecimento da fé é um conhecimento de tipo pessoal que se situa ao
nível do perceber global que brota do encontro entre pessoas (não é um
conhecimento que se refira a simples objectos);
- O conhecimento da fé envolve decisão da pessoa. Trata-se de um
conhecimento que brota de uma atitude fundamental de confiança em
Deus, de abertura ao seu Mistério de Amor, de comunhão profunda e
misteriosa em esse mesmo Mistério (não é um conhecimento neutro, mas
envolve compromisso e doação);
- O conhecimento da fé é um conhecimento existencial, isto é, um
conhecimento cujo conteúdo de verdade e de sentido para a vida se afirma
e se confirma através de um modo de viver em correspondência e
fidelidade à decisão fundamental da fé (as formulações da confissão de fé
QmR VmR VLPSOHV DILUPDo}HV VREUH ³REMHFWRV´ GH TXH VH VDEH DOJR QDV
afirmações que supõem e exigem o compromisso existencial da pessoa);
39
- O específico do conhecimento da fé como adesão pessoal ao Mistério de
Deus revelado em Jesus Cristo e comunhão de vida com Ele, na força do
Espírito, é participação no conhecimento que Deus tem de Si mesmo, do
Homem e do Mundo, participação no modo como Deus se vê a Si mesmo,
o Mundo e os homens. O conhecimento da fé é um conhecimento-acção
que consiste, em definitivo, em conhecer o mundo do Homem como mundo
de Deus, isto é, em esforçar-se por viver no mundo do Homem como se
vivesse no Reino de Deus. O mais autêntico conhecimento da fé é, por
último, o conhecimento do desígnio de Deus. Ver o mundo com os olhos de
Deus é ter conhecimento de fé. Por isso mesmo, a fé entende-se não só
como verdadeiro conhecimento, mas até como o verdadeiro conhecimento,
XPFRQKHFLPHQWRHPVHQWLGR³HPLQHQWH´eHVWHFRQKHFLPHQWRTXHSHUPLWH
ao Homem articular, segundo a convicção crente, a verdadeira resposta
existencial ao sentido último e definitivo do seu viver. Em contrapartida,
negar à fé a possibilidade de um autêntico conhecimento ou considerá-la
como um conhecimento deficiente são expressões que correspondem a
uma mentalidade estreita que vê no conhecimento científico e puramente
racional, centrado em objectos e o mais possível neutro, o protótipo ou
padrão normativo de todo o conhecimento. Além do mais, esquece-se que
não é por essa via que o Homem pode encontrar resposta à questão do
sentido da sua vida.

B) Fé e razão, crer e saber racional

No aprofundamento da relação entre a atitude de fé e a razão humana um primeiro


ponto de partida é a certeza de que não pode haver contradição entre elas, entre crer e
saber humano racional. Deus não pode contradizer-se. As aparentes contradições ou os
reais conflitos que podem surgir neste âmbito são fruto de limitações, más interpretações,
interferências abusivas de parte a parte.
Num segundo momento, importa sublinhar que a correcta relação entre fé e razão
só é possível na tensão e no equilíbrio entre duas posições extremas e que se têm que
excluir:
- o racionalismo, que só aceita como critério e medida aquilo que a razão
pode captar e assim considera que a fé é incompatível com as exigências
40
racionais do Homem, não admitindo qualquer continuidade entre o
dinamismo da razão e a atitude de fé;
- o fideísmo, que vê na fé algo alheio à razão, completamente fora das suas
possibilidades e dinamismos. A fé baseia-se no sentimento, na experiência
interior, etc.. Há uma ruptura entre fé e razão.
A tensão que ultrapassa estes dois extremos resulta, portanto, destes elementos
fundamentais: a fé e a abertura da razão humana ao Mistério.
A fé só é possível numa razão que não se absolutiza em si mesma, mas que se
abre ao Mistério mais profundo da realidade- Deus. A atitude de fé supõe o dinamismo
mais profundo do Homem na sua busca da verdade e de amor (o uso da capacidade
radical da sua razão dentro de uma opção global de liberdade), a abertura do Homem todo
e da sua razão ao Absoluto (a disponibilidade para ouvir e acolher a interpelação de Deus),
o dom da graça que torna concreta e existencialmente possível aquilo que, sem ela, seria
apenas possibilidade radical do Homem (graça que suporta essa abertura do Homem e
possibilita que seja adesão ao Mistério de Deus).
A fé supõe, pois, o dinamismo da razão. Esta- e aqui se contradiz qualquer
mentalidade fideísta- está naturalmente inserida na atitude crente, que é uma atitude
³UD]RiYHO´ H TXH Vy DVVLP VHUi WDPEpP FRPSOHWD H YHUGDGHLUDPHQWH KXPDQD 3RU LVVR
mesmo, o desenvolvimento das potencialidades e dos dinamismos da razão pertence
necessariamente à atitude crente, enquanto esta tem que ser expressão de um caminhar
progressivo em ordem à maturidade humana mais plena.

C) A fé como verdade a ser praticada

Como forma de ver a realidade a partir de Deus, a fé só se realiza, no entanto,


verdadeira e plenamente como conhecimento vivido, verdade praticada, modo de viver. A
fé é uma atitude que tem que ver com todas as facetas e situações do viver humano no
mundo e na história. Ela tem, por isso mesmo, um carácter eminentemente práxico. Três
aspectos, entre outros, põem em relevo esse carácter práxico ou prático:
- A verdade da fé é uma verdade a ser praticada, pois a fé só é verdadeira na
medida em que se faz verdade na existência crente pessoal e comunitária
(Cf. Jo 3,21; 1 Jo 3,19). As verdades do Credo são verdades cuja validade
HIHFWLYDGH³VDOYDomRSDUDR+RPHP´ VHQWLGRSDUDDYLGD HVWiHPtQWLPD
ligação com a sua realização práxica, com a sua concretização existencial
41
na vida. À existência crente pertence, por isso, estruturalmente a
disponibilidade permanente para dar razões- pela palavra, mas sobretudo
de forma vivencial- da esperança que o anima (Cf. 1 Pe 3,15). Por outro
ODGR p FODUR TXH D ³RUWRSUD[LV´ QmR p XPD PHUD FRQVHTXrQFLD GD
³RUWRGR[LD´ PDV XP HOHPHQWR LQWHJUDQWH QXPD relação dialéctica) da
³RUWRGR[LD´
- A mensagem cristã da salvação/libertação não se refere apenas a uma
dimensão do Homem (a dimensão religiosa entendida como aspecto interior
da relação com Deus), mas à sua totalidade no conjunto do seu viver e nas
suas diversas dimensões ( a relação religiosa com Deus como estruturante
e abrangente do Homem todo e situado em concreto). À atitude de fé não
pode ser indiferente tudo quanto impeça ou favoreça o processo de
construção de um mundo mais humano, e a salvação definitiva em que
espera assumirá o que de positivo ± na paz, justiça, liberdade, amor,
solidariedade- for sendo realizado neste mundo (Cf. GS 39). A dimensão
práxica da fé é, pois, de tal modo essencial que um cristão pode pôr em
risco a sua salvação, se desprezar os seus deveres terrenos (Cf. GS 43).
Nesse desprezo seriam postos em causa o amor do próximo e o amor de
Deus, cuja conjunção constitui a trave-mestra do evangelho da salvação.
Nesse sentido apontam também a denúncia social dos profetas e a
iniludível opção preferencial pelos mais pobres que resulta do Evangelho.
- 4XH DIp WHP GH VHU³PRGR GH YLYHU´ HP WRGDV DV VLWXDo}HVH kPELWRVGR
mundo ressalta ainda, e na linha do que se disse há pouco, na importância
fundamental e no significado específico que o compromisso social e político
tem hoje como lugar de realização práxica da fé. Isto nomeadamente
porque: 1- o processo de construção de um mundo mais humano supõe
radicalmente a conversão do coração, mas exige simultaneamente a
transformação das estruturas; 2- o compromisso social e político dos
cristãos, contribuindo para a modificação dos critérios e a transformação
das estruturas, aparece como uma forma indispensável (e até certo ponto
privilegiada) de realizar, em concreto, o amor ao próximo; 3- embora a
responsabilidade social e política dos cristãos e da Igreja possa e deve ser
H[HUFLGD GH GLYHUVRV PRGRV XPD SUHWHQVD ³QHXWUDOLGDGH´ QHVWH GRPtQLR

42
poria em causa a autenticidade e a credibilidade do Evangelho como
anúncio de salvação para a humanidade.

D) Aspectos prático-pastorais

1. Fé e Ideologia: A fé cristã situa-se num plano superior e, por vezes, oposto às


ideologias na medida em que reconhece Deus, transcendente e criador, que interpela
através de todos os níveis do criado o Homem como liberdade responsável. Que a fé não é
uma ideologia trata-se de uma afirmação que brota de elementos da sua própria
compreensão:
- Funda-se em Deus e, portanto, não é uma mera construção humana;
- Não é, em primeiro lugar, um conjunto de verdades interpretativas do
Homem e do Mundo, um sistema de ideias e de concepções, mas atitude
da pessoa numa resposta de vida em abertura ao Mistério de Deus;
- Tem essencialmente uma dimensão escatológica que não lhe permite
absolutizar momentos parciais da experiência e da construção do mundo,
pois o Evangelho não se deixa enquadrar num sistema social, económico
ou político como sua realização definitiva.
7RGDYLDHVWDDILUPDomRHVWiGHFHUWRPRGRMiLQVHULGDQDSUySULD³FRQILVVmRGDIp´
Isto é, que a fé não é ideologia só é, em última análise, justificado e compreensível dentro
da própria fé. De resto, a verdade definitiva da fé só pode ser comprovada totalmente na
escatologia (agora ela é ainda esperança a ser confirmada). Isto mesmo torna
compreensível que a fé apareça a quem está de fora como uma ideologia. Uma convicção
que pode encontrar apoio no facto de a realização histórica da fé (na vida de cada crente e
na comunidade eclesial no seu conjunto) não estar imune a aspectos marcadamente
ideológicos. Esta suspeita do ideológico pode surgir, por exemplo: 1- face a atitudes de um
certo dogmatismo ou monolitismo eclesiais; 2- face à defesa de interesses e objectivos
nem sempre transparentes; 3- face a pressupostos culturais-ideológicos que são
assumidos demasiado acriticamente como estando em relação com o Evangelho; 4- face
aos condicionalismos de ordem ideológica que são particularmente evidentes nas opções
políticas dos cristãos.
(VWH~OWLPRDVSHFWRWRUQDDOLiVYLVtYHOTXHDIpQXQFDpYLYLGDHP³HVWDGRSXUR´H
que pressupostos de ordem ideológica estão necessariamente implicados no viver crente.

43
De resto, ressalta daqui que o cariz ideológico não deve ser visto como pura negatividade,
mas como instrumento necessário na interpretação e transformação humanas no mundo.
Tendo isto em consideração, o importante para os cristãos é, sobretudo: 1- a
tomada de consciência da existência destes pressupostos ideológicos; 2- uma
sensibilidade mais apurada face ao risco de absolutizações; 3- a criação de atitudes e de
espaços abertos à crítica ideológica dentro da Igreja e, decisivamente 4- uma maior
disponibilidade para se deixar interrogar pelo Evangelho e criticar à sua luz as próprias
opções. Esta disponibilidade é tanto mais fundamental quanto, em última análise, a
verdade da fé cristã e a verificação do seu carácter não ideológico estão dependentes, no
tempo da história, da praxis cristã. É na medida em que esta praxis se mostrar
verdadeiramente libertadora , em todas as dimensões da existência humana, que a fé se
vai confirmando como verdade e salvação para o Homem.

2. Desenvolvimento de uma consciência crítica: O que se referiu acerca dos riscos


ideológicos que podem afectar a vivência histórica da fé mostra já com evidência como é
importante o desenvolvimento de uma consciência crítica. Mas isso mesmo é sublinhado
também a partir de outras considerações:
- Esse desenvolvimento corresponde ao dinamismo da própria fé( que
integra o esforço da razão e se procura compreender a si mesma) e ao
processo de maturidade humana;
- Ao ser cristão pertence a disponibilidade permanente para ouvir a
interpelação do Evangelho e, nessa abertura, agir à luz da sua consciência
(o que supõe capacidade de pensar e de decidir por si próprio diante de
Deus);
- As coordenadas culturais do Mundo moderno supõem e exigem do crente o
desenvolvimento de uma consciência crítica (correntes e movimentos
históricos; confronto de valores; necessidade também de autocrítica por
parte dos cristãos e da Igreja, em geral...)

44
3.5. A Fé, processo de crescimento e maturidade

A) O crescimento na fé

A fé está sujeita a um processo de crescimento e maturação, como a própria pessoa


cresce e amadurece nas diversas dimensões do seu viver (Cf. Lc 17,5; Cl 1,15). A fé é,
pois, elemento integrante ± e até estruturante ao nível da mais decisiva e radical
orientação de vida- GD ³ELRJUDILD´ GD SHVVRD (VVH FUHVFLPHQWR WHP GH FRQVWLWXLU XP
processo integrado no pleno desenvolvimento humano, sendo este desenvolvimento
humano um factor de importância fundamental para a própria maturidade da atitude crente.
Só deste modo a fé pode aparecer como o mais válido e feliz caminho que alguém
encontrou na busca do seu sentido de vida.
Como o seu início, o crescimento e amadurecimento da fé é dom de Deus, acolhido
na resposta livre de uma pessoa. A fé cresce, aprofunda-se e enraíza-se cada vez mais
como opção fundamental de vida a partir da fidelidade prática do crente, que procura
corresponder aos dons e apelos de Deus e traduzir com coerência, em todas as situações,
aquilo em que acredita. Para esse crescimento e nesse processo de maturação, a oração
do cristão, a celebração da fé, o diálogo com outros crentes, etc. ocupam um lugar
decisivo. Sobretudo a oração aparece como momento particularmente privilegiado, já que
o dinamismo da autêntica e profunda maturação da fé tem a ver com o crescimento da
relação pessoal de confiança em Deus e de comunhão com Ele.
O crescimento na fé é uma tarefa nunca acabada na história de uma vida. Por um
lado, ela pode ser posta em causa pela falha e pelo pecado humanos. O crente sabe-se
constantemente interpelado à conversão, a uma orientação de vida mais fiel a Deus e ao
serviço dos homens. Por outro lado, o caminhar na fé não surge como um processo linear
progressivo, mas como uma opção fundamental que é constantemente interpelada por
interrogações, ambiguidades, opções inevitáveis, riscos e dúvidas. O crescimento da fé
acontece, pois, como confirmação de uma esperança face a esses obstáculos, crises e
obscuridades que pertencem à condição histórica do viver humano e à obscuridade da
própria fé, que se reporta ao Mistério de Deus e não é experiência de visão (Cf. 1 Co
13,12; 2 Co 6ss; Hb 11,1...).

45
B) Certeza de fé e dúvida na fé

A doutrina da Igreja afirma que, embora obscura e supondo uma opção de


OLEHUGDGHDIpp³FHUWD´QDPHGLGDHm que supõe um assentimento firme e incondicional à
YHUGDGH H DXWRULGDGH GH 'HXV TXH VH UHYHOD H TXH ³QmR VH HQJDQD QHP SRGH HQJDQDU-
QRV´ &I'] 'iTXHVHWRUQHREULJDWyULRSHUVHYHUDUQDIp &I'] 
A certeza da fé tem características próprias. Não é do tipo da certeza do
conhecimento científico, da demonstração racional ou experimental. Não é também uma
mera certeza moral. A certeza da fé:
- é adquirida por um conhecimento de tipo pessoal, que brota da relação
pessoal e íntima entre Deus e o crente ( à semelhança do encontro entre
pessoas);
- trata-se de uma certeza ³SUiWLFD´ QmRWHyULFD , isto é, uma certeza adquirida
na própria realização da vida crente;
- é uma certeza abrangente, englobante, isto é, brota das múltiplas acções e
opções ao longo de toda a vida e funda-se nas muitas experiências da fé
(próprias e alheias);
- é uma certeza que só pode ser obtida pela adesão livre da pessoa, adesão
essa que se apoia em sinais, mas que, em última análise, é acção interior
da graça ( a certeza da fé está envolvida no próprio dom que é a fé).

A partir deste carácter específico da certeza da fé compreende-se que a experiência


GRTXHVWLRQDPHQWRGDFHUWH]DGDIp ³FHUWH]DGHIp´QmRGHYLVmR IDoDSDUWHFRQVWLWXWLYD
do próprio viver crente. Entre as formas de questionamento, que podem surgir dentro da
experiência da fé, sobressai a dúvida.
A dúvida, no seio da fé, pode surgir motivada por diversas causas e em vários
contextos (fases da vida; expressões diferentes da dúvida nas diversas idades;
deficiências na educação da fé; problemas de desequilíbrio psíquico; deformações ou erros
na visão da fé, etc). Daí que seja necessário eliminar, se possível, essas causas e atender
DHVVHVFRQWH[WRVSDUDTXHDG~YLGDQmRGHJHQHUHHP³FULVH´RXHVWLRODPHQWRGDSUySUia
fé. Mas, tido isto em conta, deve dizer-se que a dúvida, que acompanha normalmente o
viver crente, pode desempenhar um papel positivo no crescimento da própria fé, e isso de
diversos modos:

46
- Criando no crente um verdadeiro dinamismo de procura face à obscuridade
da fé e abrindo o seu coração a novas dimensões de diálogo com Deus
(sentido do Mistério- oração...);
- Contribuindo para se perceber melhor o carácter livre da fé e a fragilidade
que acompanha o viver crente. A fé pode perder-se!
- Despertando para a necessidade de diálogo com outros crentes e a
importância do testemunho dos outros;
- Tornando o crente mais sensível às dificuldades que outros homens
encontram para crer e, assim, fazendo com que viva em mais profunda
solidariedade com eles;
- Chamando a atenção para aspectos do desenvolvimento humano, de
formação da fé... que porventura foram descurados.

C) Outras ambiguidades ou formas opostas à fé 11

D) Aspectos prático-pastorais

- A vivência da fé implica que o crente faça também a experiência de um certo


³ULVFR´ TXH D Ip UHSUHVHQWD 7DO UHVXOWD Mi GR VHX FDUiFWHU ³RSFLRQDO´ H GD GLPHQVmR
HVFDWROyJLFD GD Ip TXH p HVSHUDQoD D VHU FRQILUPDGD 0DV HVVD H[SHULrQFLD GH ³ULVFR´
pode vir associada à necessidade de fazer opções históricas concretas ou ainda como
consequência do esforço de viver coerentemente a fé (em contradição com as evidências
do tempo ou as imposições culturais).
- Ao longo do seu viver o crente pode ver-VHFRQIURQWDGRWDPEpPFRP³VLWXDo}HV-
OLPLWH´ TXH TXHVWLRQDP UDGLFDOPHQWH D VXD Ip H Iazem da sua esperança uma esperança
³FUXFLILFDGD´1HVVDVVLWXDo}HVRFUHQWHpFKDPDGRD³HVSHUDUFRQWUDWRGDDHVSHUDQoD´R
que por vezes pode passar pela experiência de que não há, para si, alternativa humana
PDLVYiOLGDDRSHUVHYHUDUQDIp ³6HQKRUSDUDTXHPKDYHPRVGHLU"´ 
- Tudo isto indica que a fé tem de ser vivida em solidariedade com os problemas e
as angústias dos homens em cada tempo e lugar. Não há motivo para qualquer atitude
³HOLWLVWD´H³auto convencida´GDSDUWHGRFUHQWH

11Veja-se, a propósito, JOSEPH TRÜTSCH, A oposição à fé. Formas falsas de fé, in MS I/4 (Ed. Vozes,
Petrópolis RJ 1978) 99-105.

47
- A fé, vivida como experiência histórica de salvação, supõe uma permanente
VHQVLELOLGDGHDRVVLQDLVGH³VDOYDomR-OLEHUWDomR´TXHYmRDFRQWHFHQGRQRQRVVRPXQGR$
³KLVWyULDGDVDOYDomR´QmRpDOJRVHSDUDGRHLVROiYHOGD³KLVWyULDSURIDQD´

3.6. A vivência comunitária da Fé

Voltamo-nos agora, e por último, para a dimensão comunitária da fé, uma das suas
estruturas fundamentais.

A) A estrutura comunitária da fé

Crer nunca é uma atitude isolada, algo que o Homem possa realizar sozinho,
independentemente dos outros. Acreditar é um projecto pessoal de vida, mas tal só
acontece como possibilidade real de existência a partir de dons recebidos de outros e
como caminho suportado também por toda uma comunidade. Só numa configuração
comunitária é que a fé pode nascer, amadurecer e permanecer.
A relação indissolúvel entre o indivíduo e a comunidade na atitude de fé é a relação
GHXPSHUPDQHQWH³UHFHEHU´H³GDU´pDLQVHUomRQXPFRQWH[WRGHXPDWUDGLomRYLYD,VVR
ressalta de diversos modos:
- No acesso à fé (chega-se à fé entrando em contacto com outros crentes;
com a comunidade crente ± a família, pessoas da comunidade cristã, etc.);
- No testemunho H QD ³UHVSRQVDELOLGDGH´ GD Ip MXQWDPHQWH FRP RXWURV
crentes, em solidariedade mútua, é que o cristão pode sinalizar a presença
do Reino neste mundo; cada um precisa do apoio e do complemento do
outro para que o testemunho cristão seja completo, autêntico e eficaz);
- Na confissão da fé (os símbolos como expressão comunitária da fé; o
indivíduo crê e professa a fé da Igreja);
- Na permanência na fé (a necessidade do acompanhamento por outros
crentes; a força que irradia da fidelidade e da perseverança dos outros);
- Na esperança da fé (uma esperança que não fala apenas de um futuro de
plenitude para o indivíduo, mas que é esperança da plena e definitiva
comunhão com Deus e uns com os outros).

48
A estrutura comunitária da fé é particularmente visível na tarefa da sua transmissão
ao longo dos tempos. Essa tarefa ± na produção dos símbolos (palavras, imagens, ritos,
normas morais, etc) em que se sedimentam as experiências intersubjectivas feitas, nos
processos de socialização envolvidos, na amplitude de tempo e na diversidade de
situações que supõe ± só pode ser realizada por toda a comunidade e tem por verdadeiro
sujeito a Igreja Universal.
De facto, essa transmissão não diz respeito apenas a fórmulas dogmáticas ou do
ensino doutrinal, mas tem de englobar todas as formas vivenciais que tecem a existência
dos crentes e constituem expressões fundamentais da comunidade eclesial, ou seja, tem
GHDEUDQJHU³WXGRRTXHD,JUHMDpWXGRRTXHD,JUHMDFUr´ '9 eSRLVWRGRXPSRYRD
caminho ± e não apenas alguns ou um grupo dentro da comunidade- que é o verdadeiro
portador, o sujeito activo da transmissão da fé, num processo simultâneo de conservação
de depósito da fé, de interpretação no presente (a comunidade como sujeito hermenêutico)
e de projecção da fé em ordem ao futuro.

B) O crente e a fé da Igreja

2VDVSHFWRVDWpDJRUDUHIHULGRVDSRQWDPSDUDXPD³SULRULGDGH´ QmRQRWHPSRPDV
existencial) da Igreja relativamente ao indivíduo crente. Essa prioridade ressalta,
nomeadamente, nas seguintes perspectivas:
- O sujeito do Credo é, propriamente, a Igreja, pois só a Igreja vive a
totalidade da fé. O indivíduo crê dentro dela e com ela, o que não significa,
DOLiV TXDOTXHU ³KLSRVWDVL]DomR´ GD ,JUHMD SRLV HVWD FUr DWUDYpV GRV
indivíduos;
- Como sujeito real colectivo que suporta a fé dos crentes, a Igreja é um
espaço existencial de experiências e de expressões que configuram o viver
crente individual e tornam possível a relação pessoal a Jesus, na força do
VHX(VStULWR D,JUHMDFRPR³PmHGDIp´ 
- A comunidade de fé é, assim, lugar original e privilegiado da presença de
Cristo e da acção do seu Espírito e é à comunidade de fé como tal (à Igreja
Universal na sua totalidade) que se reporta a certeza de que Cristo está
presente nela e de que o seu Espírito permanece actuante até à
consumação no Reino de Deus, tornando-D³LQIDOtYHO´

49
Deste modo, a Igreja é também objecto de fé. Ela faz parte do próprio conteúdo da
fé. De facto, a Igreja, comunidade de crentes na continuidade de Jesus e no seu
seguimento, pertence ao próprio acontecimento da revelação de Deus em Jesus Cristo
enquanto realidade historicamente concretizada e dom de salvação para os homens de
todos os tempos. Fruto da acção de Deus que convida à fé, a Igreja tem, na profundidade
do seu Mistério, a mesma estrutura fundamental da fé: ela é, ao mesmo tempo, obra
concreta de Deus e resultado da liberdade humana.
Acreditar na Igreja é, assim e fundamentalmente, acreditar na acção de Deus que se
manifesta na Igreja. É crer na acção do Espírito que a mantém como comunhão (apesar
GDV GLYLV}HV  TXH D VDQWLILFD DSHVDU GR SHFDGR  TXH D ID] ³VDFUDPHQWR XQLYHUVDO GH
VDOYDomR´ DSHVDU GDV VXDV WHQGrQFLDV SDUWLFXODUL]DQWHV  TXH D VXSRUWa na fidelidade
original a Jesus e ao testemunho apostólico (apesar de todas as infidelidades dos crentes
na compreensão ou na praxis da fé). Acreditar na Igreja é, portanto, afirmar os dons e o
poder de Deus. Tal tarefa não pode, no entanto, ser motivo paUDXPD ³DEVROXWL]DomR´GD
Igreja.
Na afirmação de fé na Igreja está incluída, como ponto nuclear, a certeza de que ela
testemunha a verdade da fé e permanece nela:
« Se se crê assim na Igreja e na sua indefectibilidade (como resultado da
indefectível promessa do Espírito) crê-se na indefectibilidade da Igreja como
comunidade que confessa a Cristo; crê-se que não pode faltar na Igreja a fé em
Cristo, expressa em proposições humanas. Somente assim pode existir a fé
comunitária em Cristo; isto é, somente assim pode existir a comunidade dos que
crêem em Cristo, que chamamos Igreja. A permanência da Igreja identifica-se com a
sua permanência na verdade de Cristo e no testemunho comunitário (e, por
conseguinte, proposicional) desta verdade. No momento em que a Igreja deixasse
de proclamar a mensagem cristã deixaria de existir». 12
A fé da Igreja é, na verdade, norma para a fé de todos os crentes. Pela raiz em que
se funda, esta permanência da Igreja na verdade de Cristo é, antes de mais, exigência de
que toda a Igreja (todos os membros) se entendam radicalmente como Igreja crente,
discente, disponível para colher a Palavra do Senhor. Por outro lado, e não obstante a
existência a imprescindibilidade de carismas próprios e serviços específicos de anúncio e
formulação da fé com autoridade, a tarefa de transmissão fiel da verdadeira fé pertence ±

12 J. ALFARO, La certeza de la fe en su dimension personal y comunitaria, in Cristologia y


Antropologia (BAC Madrid 1973) 410.

50
como já se disse- a toda a comunidade. Todos os crentes têm um papel activo a
desempenhar nessa tarefa, em correspondência ao dom do Espírito que se exprime no
³VHQWLGR GD Ip´ 1este contexto e tendo também em conta as circunstâncias culturais do
PXQGR GH KRMH R FDPLQKR GH XPD ³RUWRGR[LD GLDOyJLFD´ : .DVSHU  DSDUHFH FRPR YLD
particularmente adequada à formulação e ao testemunho da verdadeira fé, da fé comum
de todos os crentes.

C) Aspectos prático-pastorais

- A possibilidade de fazer experiências comunitárias de vivência da fé é um


factor de extrema importância no processo de maturação da fé. As
dificuldades de origem diversa que surgem no mundo de hoje em ordem a
essas experiências tornam urgente a tarefa de descobrir e concretizar
formas novas e plurais do viver crente comunitário.
- A ligação à comunidade eclesial e a comunhão com ela é um critério de
discernimento dos espíritos e da autenticidade cristã. Mas a identificação
com a Igreja que se pede ao crente, sendo embora fundamental e exigente,
QXQFDSRGHUiVHU³WRWDO´3HORFRQWUiULRVySRGHUiVHUVHPSUH³SDUFLDO´'H
outra forma não se teriam suficientemente em conta o lugar da consciência
pessoal, a importância da profecia e do carisma, a novidade criativa que
pertence também ao viver histórico da Igreja em fidelidade ao Espírito.
- Em todo o seu viver, a Igreja deve ser possibilidade concreta e motivo
plausível da credibilidade da fé. A renovação da Igreja, em maior fidelidade
ao Evangelho e em melhor adequação à situação dos homens, aparece
assim como tarefa integrante do seu anúncio e testemunho da fé.
- $ GLPHQVmR FRPXQLWiULD GD Ip VXJHUH R FDUiFWHU GH ³H[LVWrQFLD
UHSUHVHQWDWLYD´ TXH PDUFD R YLYHU FUHQWH &UHPRV ³FRP´ RXWURV Pas
WDPEpP³SRU´H³SDUD´RXWURV2GRPJUDWXLWRUHFHELGR HPYH]GHRXWURV 
deve ser transmitido e testemunhado em favor de outros.
- A dimensão comunitária da fé tem que se traduzir em estruturas de
corresponsabilidade. Essa é uma das condições para que a participação
activa dos crentes se concretize e desenvolva de modo correspondente às
exigências da maturidade da fé e de uma Igreja entendida como
³FRPXQKmR´
51
IV- PARA A MATURIDADE DA FÉ NO MUNDO DE HOJE

Como breve síntese e a concluir esta reflexão/ sistematização teológica sobre a fé,
apresentam-se alguns aspectos que emergem como mais relevantes para uma
compreensão e praxis amadurecidas da fé no mundo de hoje:

1- Uma fé que saiba qual é o seu verdadeiro fundamento e que, nas dificuldades e
crises, saiba voltar sempre de novo Àquele em quem põe toda a sua confiança;

2- Uma fé centrada no seu núcleo mais fundamental, sabendo discernir o que é


decisivo e o que é menos importante ou até secundário (o seguimento de Jesus como
revelação definitiva de Deus e a ³KLHUDUTXLDGDVYHUGDGHV´ 

3- Uma fé vivida como projecto pessoal de vida enquanto resposta à busca de


sentido para a vida (só cada pessoa é que pode dar essa resposta e aí está em jogo o seu
destino...);

4- Uma fé experimentada como caminho de realização humana, como vivência de


progressiva libertação (fé sentida como valor que não se quer perder; fé estruturante do
ser pessoal);

5- Uma fé que vive da experiência de uma comunidade crente e se integra na vida


concreta de comunidades crentes (o sentido da Igreja; vivência fraternal; participação
activa e co-responsável);

6- Uma fé comprometida na vida dos homens, solidária com os seus problemas,


HVSHUDQoDVHWDUHIDV FRHUrQFLDGHYLGDRFUHQWHFRPR³SURIHWD´GH'HXVSHODSDODYUDH
pela vida);

7- Uma fé entHQGLGD H SUDWLFDGD FRPR GRP ³D IDYRU GH RXWURV´ H[LVWrQFLD
representativa; dimensão missionária; capacidade concreta de doação e serviço);

52
8- Uma fé em constante disponibilidade para se deixar interrogar pelo Evangelho e
vivida como processo de reflexão permanente (conversão; capacidade de discernimento;
consciência crítica);

9- Uma fé capaz de assumir em consciência diante de Deus a sua responsabilidade


e o risco das opções concretas (mesmo face à incompreensão e ao isolamento);

10- Uma fé que se afirma como esperança, na abertura ao futuro, na criatividade a


IDYRU GR KXPDQR QD FDSDFLGDGH GH UHVLVWLU jV DPHDoDV GR GHVHVSHUR  ³HVSHUDQoD
FUXFLILFDGD´HVSHUDQoDSDUDDYLGDHSDUDDPRUWH 

11- Uma fé que se sabe a caminho, que está aberta aos sinais de Deus na história
dos homens, que se sabe suportada, em última análise, pelo poder e pelo amor de Deus (o
YDORU GDV ³SURIHFLDV DOKHLDV´ XPD Ip ³H[SRVWD´ TXH QmR VH IHFKD HP IDOVDV VHJXUDQoDV
porque aberta ao Mistério de Deus e do seu Amor);

12- Uma fé que se enraíza na oração e se consolida em atitude e expressão orantes


(o cerne da experiência e da existência cristãs).

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