Introdução
Questionamentos
Não há pergunta relativa à linguagem que seja simples de tratar, mas a que diz respeito à argumentação
talvez seja uma das mais difíceis e uma das mais ardilosas.
Em que sentido é preciso entender essa noção? Num sentido geral, remetendo ao fato de que todo ato de
linguagem seria, de qualquer maneira, argumentativo? Num sentido restrito, que consideraria que a atividade
argumentativa só seria uma atividade entre outras, como a descritiva ou a narrativa? Aceitando-se a existência
dessa noção, pode-se falar indiferentemente de argumentação, de explicação, de demonstração, de persuasão;
são simples variantes, outras categorias, subcategorias? Será que toda argumentação incluiria uma explicação, ou
seria o inverso? Toda argumentação seria ao mesmo tempo uma informação?
Caso se aborde essa questão por meio dos tipos de textos, enfrentam-se ainda mais dificuldades: uma receita
de cozinha, uma bula farmacêutica, o texto redacional de uma publicidade, um artigo de uma revista científica, a
lição de um manual escolar, certa crônica jornalística podem ser perfeitamente distinguidos como
argumentativos, explicativos, persuasivos ou demonstrativos? Correlativamente, quais seriam os critérios que
permitiriam distinguir um texto argumentativo de outros tipos de textos? Seriam as marcas de encadeamento
lógico (conectores)? Em outras palavras, um texto seria argumentativo à vista unicamente de sua manifestação
explícita, não podendo ele ser implicitamente argumentativo?
Enfim, poder-se-ia considerar as coisas por um outro lado e perguntar para que serve a argumentação, qual é
sua finalidade comunicativa e social (o que faz com que, em uma dada circunstância de comunicação, se escolha
preferencialmente narrar, descrever ou argumentar?) e se essa finalidade não permitiria classificar diferentes
tipos de discursos.
* In: GIERING, Maria Eduarda e TEIXEIRA, Marlene. Investigando a linguagem em uso: estudos em Lingüística Aplicada. São Leopoldo, RS: Editora Usininos, 2004. pp. 33 – 44.
necessárias e suficientes, retomada e mantida pela lógica matemática) como referência e garantia da boa
argumentação.
Declarar que a argumentação depende de uma atividade de língua revela uma tomada de posição
radicalmente oposta à precedente. Esse ponto de vista afirma que o que concerne ao raciocínio só pode ser
apreendido por meio da atividade de linguagem e que esta impõe sua própria lógica, denominada lógica natural.
A argumentação deve, então, ser estudada como um fenômeno estritamente linguageiro. Todavia, alguns vão
ainda mais longe, tentando demonstrar que é na língua que se encontra a argumentação. Trata-se, aqui, de
considerar que as palavras (gramaticais e lexicais) possuem nelas mesmas uma força de orientação semântica.
Elas adquiriram essa orientação pelo emprego em contextos recorrentes; além disso, tal orientação se encontra
reforçada ou refutada conforme as particularidades semânticas de outras palavras do contexto. Assim, todo
enunciado participaria de um fazer crer, e a escolha de cada palavra far-se-ia segundo a orientação argumentativa
desta.
Enfim, declarar que a atividade argumentativa depende do discurso remete à dita tradição dos estudos de
retórica argumentativa, pelo menos aqueles que tentam descrever as categorias e os mecanismos da
operacionalização da linguagem com fins de persuasão. Sabe-se que essa tradição, forte na filosofia clássica,
conheceu momentos de declínio após sua ascensão e, atualmente, passa por uma certa recrudescência.
Um terceiro fator em jogo se dá em torno da questão de saber se um texto argumentativo será declarado
como tal pelo seu aspecto explícito (é possível localizar marcas específicas, como os conectores e um certo tipo de
construção frástica) ou se um texto pode ser igualmente considerado argumentativo por sua organização
implícita. Por exemplo, pode-se dizer que uma receita de cozinha é um texto argumentativo, mesmo se ele não
apresenta qualquer conector?
Isso levanta a questão de critérios que deveriam permitir diferenciar os textos: são critérios que remetem às
características formais de textos ou critérios que remetem à finalidade da situação em que se inscreve o texto?
Um testemunho, por exemplo, que é, ao mesmo tempo, uma mini-narrativa, podendo ter um valor de prova, será
reconhecido pelas marcas particulares ou pelo fato de se encontrar em uma situação que lhe confere estatuto de
testemunho? Responder a essas questões supõe que se tenha recorrido a uma teoria de gêneros e de tipos
discursivos.
Enfim, o que está em jogo em torno da questão é saber qual a finalidade comunicacional da argumentação.
Caso se considere essa questão do ponto de vista do julgamento social, por meio do que se chama o discurso
circulante, que é portador de representações, percebe-se que ter uma atitude argumentativa ou falar de
argumentação faz surgir julgamentos opostos: ora positivos, porque essa atitude manifesta -por parte daquele
que argumenta bem - rigor de pensamento, domínio do raciocínio, força de persuasão e saber dizer (seu raciocínio
é sem falha, tem argumentos incontestáveis), ora negativos, pelo fato de que ela é tida como coercitiva; o sujeito
que argumenta se impõe ao outro, tomando a palavra por muito tempo e se colocando em posição superior
relativamente a seu interlocutor (que raciocínio!, que expositor de conhecimentos!).
Quanto à escola, outro lugar a que diz respeito essa problemática, percebe-se, ao analisar o que dizem as
instruções, o que propõem os manuais e o que revelam as sondagens feitas junto aos professores, um mal-estar,
que, com certeza, não aparece quando se trata de outros objetos de ensino. Como ensinar a argumentação?
Quando se trabalha com atividades tais como a dissertação literária, a análise gramatical ou lógica, a análise de
textos, a produção de textos não-literários? Além disso, a aula de francês é, de fato, o lugar de aprendizagem da
lógica do pensamento? Não seria preferencial na aula de matemática? Não obstante, trata-se do mesmo rigor de
pensamento daquele exigido para a escritura de um texto?
Vê-se, mediante essa série de perguntas e de reflexões, que não se pode responder pontualmente a cada uma
delas sem propor um quadro geral de tratamento dessa noção. O meu será um quadro de análise de discurso que
tenta definir as condições semiolingüísticas da comunicação.
As restrições da situação
Entretanto, as condições dessa atividade cognitiva não poderiam constituir o todo da argumentação, pois esta
aparece sempre em uma situação particular de troca linguageira. O conjunto de dados de um tipo de situação
define o que se denomina um contrato de comunicação. Ora, a natureza do quadro comunicacional e do contrato
de comunicação aparece como absolutamente determinante para a qualidade de argumentações que aí se
desenvolvem^. Eu defini e justifiquei essa noção em vários escritos e não me estenderei, portanto, em relação a
eles. Só lembrarei seus componentes e darei um exemplo deles.
Os componentes do contrato de comunicação são em número de quatro: a finalidade, que determina por que
se fala, o que está em jogo no ato de comunicação; a identidade dos parceiros da troca, que determina quem fala
a quem, em função de estatutos e de lugares que estes devem ocupar; o tema, que determina de que se fala, o
domínio temático que é objeto da troca; enfim, as circunstancias, que constituem os dados materiais do quadro
da troca.
Assim, julgar a validade de um discurso argumentativo remete à interrogação, antes, sobre as características
do contrato em que ele se insere. Tomemos o exemplo do contrato de informação midiática. Este se caracteriza
por uma dupla finalidade de credibilidade e de captação. De credibilidade, porque ele se inscreve numa lógica
simbólica de democracia que consiste em construir a opinião pública; de captação, porque ele se inscreve numa
lógica comercial que o obriga a dirigir-se a um maior número de pessoas. É, portanto, com um duplo problema de
veracidade do discurso e de sedução que está confrontado o sujeito informante que quer argumentar nesse
quadro, situação muito pouco confortável na medida em que ele deve, ao mesmo tempo, a) explicitar a
causalidade imediata de acontecimentos da maneira mais verdadeira possível; b) analisar as causas profundas do
acontecimento, o que ele dificilmente pode fazer, pois não tem suficiente distância em relação à atualidade
fenomenal; é por isso, aliás, que freqüentemente se recorre a especialistas externos; c) provar neutralidade; d)
dramatizar seu discurso para torná-lo o mais atraente possível.
Conclusão
Reitero, descreveram-se aqui as condições de uma atividade linguageira, e não um tipo de texto. Disso,
podem-se tirar alguns ensinamentos:
a) Inicialmente, não mais se referir à idéia de que existiria uma maneira ideal de argumentar; portanto, seria
a partir desse parâmetro que se julgaria a argumentação. É claro que o ato de argumentar depende de uma certa
mecânica (a atividade cognitiva), mas só pode ser julgado e validado em função de imposições da situação de
comunicação e do projeto de fala que o sujeito opera dentro de estratégias. Não há mais quadro falacioso; cada
situação contratual produz seu próprio quadro de validação.
b) Em seguida, não procurar, a qualquer preço, tipos de textos que seriam definidos como unicamente
argumentativos, pois os textos são plurais, extraídos mais freqüentemente de tipos discursivos diferentes; um
gênero textual não se define nem por seu modo de organização discursiva (ainda que este sirva para alguma
coisa), nem por suas condições de produção, condições que não são discursivas mas situacionais; isso obriga, do
mesmo modo, a não reduzir a argumentação unicamente à sua parte explícita.
Enfim, é necessário esclarecer que, ao tratar a argumentação como uma prática social da qual se procura
determinar as condições de enunciação, vê-se melhor como podem se exercer os jogos de manipulação e de
contra-manipulação nas trocas linguageiras. Isso impede a crença de que a argumentação é um privilégio apenas
dos dominantes e de que ela é um acontecimento ligado exclusivamente ao sujeito argumentador. A
argumentação diz respeito ao conjunto de parceiros do ato comunicativo, o que mostra o papel que a escola pode
desempenhar no ensino dessa atividade linguageira, que é o principal instrumento da formação da opinião
pública.