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Capítulo publicado no livro: RELACIONAMENTOS POSITIVOS NA FAMÍLIA organizado


por Drs. LIDIA WEBER E JOSAFÁ MOREIRA DA CUNHA, pela editora Juruá.

A família e a deficiência: viver, amar e superar

Giovanna Beatriz Kalva Medina


Maria de Fátima Joaquim Minetto

Palavras-chave: Família, Deficiência, Emoções, Rede, Aceitação, Crise.

Desde pequenos somos incentivados, seja pela cultura, pela religião, pelo contexto ou
pelos modelos, a constituirmos uma família, e a família dos sonhos é composta por uma relação
conjugal "perfeita" com filhos lindos e saudáveis. No nosso imaginário não participam as
incertezas, as diferenças, as dificuldades e os problemas. Quando sonhamos, o panorama é
sempre lindo e alegre, no entanto, muitas vezes a realidade não é tão bela e confortante. A
natureza das muitas possibilidades pode fazer com que pais tenham filhos diferentes daqueles
que imaginaram, como por exemplo, com uma deficiência.
Já ouvimos pessoas falarem: "se uma família tem um filho com deficiência, é porque é
forte, e pode aguentar esse desafio" (talvez não foram exatamente essas palavras, mas o sentido
era esse, você já ouviu algo assim?). Fato é que, ter um filho com deficiência pode ser
angustiante e assustador em um primeiro momento, e sim, trará vários desafios para a família
que precisará se reorganizar à partir disso, porém, será que é uma questão de força? E se te
dissermos que esse desafio pode gerar medo, confusão, raiva e tristeza? Aí você pode dizer:
Como assim? Um filho pode gerar medo? Um filho pode gerar raiva? Resposta: Sim e não.
Essas emoções são passíveis de qualquer pessoa, e a romantização do filho perfeito cai por
terra quando a realidade e a incerteza são materializadas em forma de deficiência. Amor e medo
podem estar presentes ao mesmo tempo. O amor pelo filho e o medo pela incerteza do futuro,
podem habitar o mesmo coração. Mas perguntamos: estar diante desse desafio só gera angústia
e dor? É possível se reorganizar em direção à algo bom, que gere satisfação e alegrias?
Quando encontramos uma família que tem um filho com deficiência, essa família
precisa de empatia, dizer que eles são fortes, pode ser uma forma de negar suas emoções. Essa
negação pode fazer com que se sintam proibidos de expressar o que sentem, e isso os impede
de ser acolhidos em suas dores emocionais, principalmente ver além delas.

Sim, dor e amor podem coexistir em uma mesma morada. À esse panorama chamamos
de complexidade.

Ao abordar esse tema lembramos de uma poesia chamada "A casa de hóspedes", de
Rumi (1), um mestre sufi do século XII, que diz:

O ser humano é uma casa de hóspedes.


Toda manhã uma nova chegada.
A alegria, a depressão, a falta de sentido, como visitantes inesperados.
Receba e entretenha a todos, mesmo que seja uma multidão de dores que violentamente varrem sua casa e tiram
seus móveis do lugar.
Ainda assim trate seus hóspedes honradamente.
Eles podem estar te limpando para um novo prazer.
O pensamento escuro, a vergonha, a malícia, encontre-os à porta rindo.
Agradeça a quem vem, porque cada um foi enviado como um guardião do além.
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Receber as emoções, aceitá-las, ouvir que mensagem elas nos trazem, nos faz humanos,
nos faz pensar que podemos tirar a roupa de super-heróis, e que podemos existir em nossa
totalidade. Quando somos visitados pela raiva, medo, desespero, tristeza precisamos entender
que são sentimentos como outros, que aparecem quando temos de lidar com o inesperado ou
indesejado. Estranho seria passar por uma situação inesperada e não sentirmos nada. Por isso,
os pais não devem se sentir constrangidos, o que se faz necessário é olhar para essas emoções,
reconhecê-las, e à partir disso, pensar o que precisa ser feito. Razão e emoção devem estar
integradas para nos sentirmos plenos em nossa existência. Se as emoções dominam, agimos
pelo desespero, muitas vezes de forma impulsiva ou precipitada, assim como agir somente pela
razão pode nos fazer frios e duros, como se vestíssemos uma armadura de ferro. Claro que fazer
isso é desafiador, pois exige que olhemos no espelho e tenhamos compaixão por nós mesmos,
nos aceitando integralmente, nos despindo dos paradigmas de certo e errado, da perfeição e de
que manifestar emoções é algo vexatório ou de pessoa fraca.
Ao longo do ciclo vital familiar são previstas crises como a passagem da infância para
a adolescência, ou a chegada da velhice para os pais, porém existem crises inesperadas, como
uma doença grave na família, um acidente, a perda de um emprego e também a chegada de um
filho com deficiência. Uma crise significa que houve uma ruptura que não permite mais que
algo volte a ser como era (a criança deixa de existir para que possamos nos tornar adultos, crise
da adolescência; o luto é uma crise pela morte de alguém que não voltará). Essas crises geram
um estresse que afeta à todos. Os recursos que a família utilizará para lidar com esse estresse
depende de alguns fatores como: dos aspectos emocionais e relacionais dos pais; das
experiências semelhantes vivenciadas anteriormente; da rede de apoio com que a família pode
contar; os serviços de saúde e educação disponíveis para atender e orientar, não somente a
criança mas também à família; e dos valores e da cultura tanto familiares, quanto sociais que
irão permear a visão que se tem sobre a família e as deficiências (2). Todos esses recursos
fazem parte do sistema familiar, do micro ao macrossistemas, que segundo Bronfenbrenner (3)
perpassam a criança e a família, oferecendo fatores de risco e proteção ao desenvolvimento dos
mesmos.
Poderíamos escrever páginas e páginas sobre estudos que abordam o impacto de um
filho com deficiência para a vida de pais e irmãos. Mas, lamentamos se você esperava por isso.
Te convidamos a olhar além e ver o que muitas vezes não conseguimos. Um diagnóstico não
deve ser o fim do mundo, e sim o começo de um mundo novo diferente e que tem seus encantos
e oportunidades, se conseguirmos enxergá-los.

É possível ver o filho e não a deficiência?


Certamente se você é pai ou mãe e está lendo essas palavras deve achar que a resposta
é não. Quando o filho passa a ser a deficiência, por melhores que sejam os pais, eles só
conseguem ver isso. Vamos pensar um pouco o que seria a deficiência para muitas pessoas:
defeito, anormalidade, incapacidade, fraqueza, fracasso, dependência, peso, vergonha, dentre
outros adjetivos. Diante desses conceitos paralisantes, acrescentamos nesta história a cobrança
da sociedade em torno da perfeição e da beleza, que sujeita os pais à frustração de não terem
um filho "normal" como a maioria.
De certa forma, espera-se que os pais façam mágica, sejam calmos, pacientes e lutem
pelos seus filhos. Porém, assim que recebem um diagnóstico, começa, então uma reviravolta
na família, uma romaria de médicos e atendimentos especializados que fazem com que o pai e
a mãe só vejam e tenham que lidar com a deficiência, com ênfase no que não está funcionando.
Não enxergam a criança, apenas a deficiência que passa a ser conduzida de lá para cá, de
atendimento em atendimento.
E aí, se pai ou mãe só olham para a deficiência e só conseguem pensar sobre a
deficiência, entram num ciclo de sentimentos, pensamentos e ações entorno da deficiência, que
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acaba tomando todo o espaço na vida da família. Poderíamos aqui falar do impacto que isso
tem na constituição da subjetividade desses pais que acabam por se anular diante dessa
realidade, porém vamos deixar esse tema para uma próxima oportunidade.
E os sonhos sobre o filho? Se o filho tem deficiência, esses sonhos podem ser tão
deficientes quanto a imagem que criaram dele. A criança se desenvolve a partir do olhar que
temos dela. A constituição da pessoa, depende de características individuais, que são expressas
no meio, constituindo um ecossistema que vai da família até a sociedade. Essas características
o singularizam, o distinguem e o diferenciam como autor de seu próprio processo organizador
que o torna sujeito de seu desenvolvimento, tornando-o um ser único que surge a partir de sua
capacidade auto organizadora (4). A família é um sistema integrado à muitos outros sistemas
que são interdependentes e exercem influência sobre o desenvolvimento. Quando uma criança
nasce, se constitui como sujeito a partir dos padrões e das conexões com os subsistemas em
que estabelece relação, tais como a família, escola e a sociedade, sua cultura e valores (3),
influenciando e sendo influenciados por eles. A criança com deficiência, como todas as outras,
vai estabelecendo uma imagem sobre si mesma a partir do meio em que vive, por isso pode ter
grande prejuízo no seu futuro se não é vista nas suas potencialidades.
Hoje a concepção de deficiência, felizmente, ultrapassou a visão linear que ficava
centrada nas condições da pessoa, para uma visão mais ampliada da realidade. Vejam bem,
ninguém aqui está negando a deficiência, ou tentando convencer alguém de que ela não existe.
A deficiência existe, faz parte da diversidade humana, por isso é assim que precisa ser vista,
não como algo somente da pessoa, mas resultado do meio em que vive. Meio este que ao longo
do tempo criou “verdades absolutas” sobre sucesso e fracasso, sobre felicidade e infelicidade,
e se arraigou em preconceitos que escravizam todos, independente de ter ou não uma
deficiência.
E o que queremos enfatizar é: antes de ter uma deficiência o filho é uma pessoa! Ou
seja, ele é como é: o meio precisa adaptar-se à ele, bem como ele também precisa adaptar-se
ao meio. Assim, para exercermos a adequada inclusão devemos promover atenção à pessoa
com deficiência, centrada em suas necessidades particulares (como os atendimentos
especializados), mas principalmente temos que identificar as barreiras que são impostas pela
sociedade que dificultam um desenvolvimento pleno.
A deficiência é uma característica, mas não o todo, a criança, o adulto com deficiência
têm muitas outras características além dela, e não é certo nem justo que só sejam salientadas
suas dificuldades. Isso afeta a imagem que tem de si mesmo e o seu potencial de
desenvolvimento, que passa a ser constituídos no fracasso. Como sonhar com um filho com
deficiência autônomo e feliz na vida adulta se não vemos essa possibilidade nas pequenas
coisas que realiza?
Permitir que seu filho com deficiência possa assumir papéis sociais compatíveis com
as suas potencialidades é uma forma de prepará-los para a vida. Um importante autor da
psicologia questiona: “como preparar as pessoas para a realidade isolando-as em ambientes
artificiais?” (5). As relações sociais que começam dentro de casa com irmãos e familiares,
implicam na aquisição de regras, que são aprendidas em um convívio social e entendidas de
forma gradativa. As pessoas as quais não se atribui nenhum papel social ficam impossibilitadas
também de reconhecer o papel dos outros, tornando-se marginalizadas, ao orbitar o mundo dos
outros. Por isso, a verdadeira inclusão ocorre com o desenvolvimento da autonomia e atribuição
de papéis sociais (6).

Para concluir...
Gostaríamos de reforçar a ideia central do nosso discurso o qual compreende que os
pais precisam se permitir existir, e que isso será possível se permitirem-se sentir, reconhecer o
que sentem e comunicar essas emoções, sem qualificá-las como boas ou ruins ou se
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preocupando com o que os outros irão pensar, pois ao compreender que elas são parte de um
fenômeno complexo que é a experiência humana, se libertam do peso e da dor que se impõem
em ter que aguentar tudo sozinhos.
Quando os pais se cuidam, se fortalecem para poderem cuidar dos seus filhos. Você
lembra da metáfora das "máscaras de oxigênio dos aviões"? Primeiro você deve colocar a sua,
e depois a dos outros, e por quê? Pois você só conseguirá dar a atenção que o outro necessita
se estiver bem.
Aí você pergunta, como os pais podem fazer isso? Às vezes, o caminho está mais
próximo do que imaginamos. Uma coisa que descobrimos, em anos de experiência com a
terapia sistêmica é que a rede é poderosa e curativa. Se encontrar com outras pessoas que
vivenciam experiências semelhantes em grupos terapêuticos e rodas de conversa, ousar ouvir
e ser ouvido, se permitir colocar em palavras o que se passa dentro de si, permite ampliar a
visão para outras possibilidades de soluções, o que conduz à restauração do bem-estar e
harmonia interior. A conexão emocional com os outros, promove acolhimento, sentimentos de
pertencimento, aceitação, e principalmente a compreensão de que está tudo bem deixar os
outros cuidarem um pouco de si.
Se você, que está lendo esse texto é um profissional que trabalha com esse grupo de
pessoas, promova esse espaço de diálogo e colaboração emocional. Nesse momento, muitas
rodas de conversa e grupos de terapia comunitária estão acontecendo, presencial e digitalmente,
e você pode ser mais um promotor desta oportunidade.

Você quer ver além da deficiência?


Então deixamos um livro e um exercício de reflexão.

✔ Livro
MONTOBBIO, E., & LEPRI, C. Quem eu seria se pudesse ser. Campinas: Fundação Síndrome
de Down, 2007.

✔ Exercício:
Vamos propor um exercício que pode ser repetido sempre que você estiver perdendo a visão.
Pegue uma folha de papel, desenho sua mão e agora escreva em cada dedo, portanto 5,
fortalezas suas. Faça o mesmo com seu filho, e veja o que consegue ver.

Referências
1 - RUMI, Jelaluddin. The Essential Rumi, translated by Coleman Barks with John Moyne.
1995.
2 - McGOLDRICK, Monica; CARTER, Betty (orgs). As mudanças no ciclo de vida familiar.
Porto Alegre:Artes Médicas, 2007.
3- BRONFENBRENNER Bioecologia do desenvolvimento humano: Tornando os seres
humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2011
4- MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2011.
5. VIGOTSKI, L. S. Obras completas. Tomo V. Fundamentos de Defectologia. Havana:
Editorial Pueblo y Educación, 1997.
6- MONTOBBIO, E., & LEPRI, C. Quem eu seria se pudesse ser. Campinas: Fundação-
Síndrome de Down, 2007.

Currículos:
GIOVANNA BEATRIZ KALVA MEDINA
5

Doutora (UFPR) e Mestre (PUCPR) em Educação, Especialista em Educação Especial e


Inclusiva, Psicóloga e Terapeuta Familiar Sistêmica. Professora no curso de graduação em
psicologia da FAE, em cursos de pós-graduação nas áreas da educação e psicologia e em cursos
de capacitação para professores na rede pública e privada de educação. Atua principalmente
nas seguintes áreas: família, educação, formação de professores, ensino-aprendizagem,
transtornos de aprendizagem, neuropsicologia da aprendizagem e inclusão.

MARIA DE FÁTIMA JOAQUIM MINETTO


Doutora e Pós Doutora em Psicologia (UFSC). Mestre em Educação e Especialista em
Educação Especial (UFPR). Psicóloga, Terapeuta Familiar Sistêmica. Professora Adjunta do
Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da UFPR e do Programa de Pós
Graduação em Educação da UFPR. É membro da equipe interdisciplinar do Ambulatório a
Síndrome de Down do Hospital de Clínicas desde 1997 Autora de materiais didático-
pedagógico, artigos, livros e capítulos de livros, dentre eles: "O currículo na escola inclusiva:
entendendo esse desafio.", da editora InterSaberes e "Bioecologia do Desenvolvimento na
Síndrome de Down.", da editora Íthala.

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