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Literatura Brasileira
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TRIUNFO ÉPICO
O RESPLANDECER DE UM HERÓI: A MÉTIS COMO ALICERCE PARA
O TRIUNFO ÉPICO
1. Contextualização
A trajetória intelectual de Homero, que escreveu as duas grandes obras mais antigas do
mundo ocidental, A Ilíada e Odisseia, revelou inúmeras características das antigas civilizações
gregas, como costumes, crenças, modos de vida e de relacionamento, proporcionando ao leitor
uma visão panorâmica da vida grega.
Odisseia é a epopeia que narra o regresso do herói Odisseu à sua pátria, Ítaca, após
passar dez anos na guerra de Troia. No entanto, o que seria um simples retorno, passa a ser um
enorme tormento, marcado por caminhos tortuosos. Poseidon amaldiçoa Odisseu e promete que
dificultará a volta da sua tripulação. Monstros, civilizações desconhecidas, deusas possessivas
e a ira de um mar bravio propiciam uma volta lenta e sofrida.
Por fim, no decorrer de mais de dez anos, e já sem os seus companheiros, o herói volta
à pátria, onde retoma seus bens, sua esposa e pune seus inimigos.
2. Crítica textual
A definição dos autores abre portas para muitas situações de aplicabilidade da métis, e
uma delas é ter a engenhosidade de lutar por sua sobrevivência. É, em momento oportuno, saber
exatamente como proceder em face ao conflito, que é mútuo, efêmero, inconstante,
desenvolvendo estratagemas e arquitetando planos. O uso da métis ocorre, por exemplo, quando
um herói faz uso da sua eloquência e sabedoria desleal para triunfar sobre o inimigo.
Odisseu utiliza seu traquejo oral já nos primeiros momentos de contato com o ciclope.
O globolho pergunta onde ele havia deixado o navio, se era resistente. Assim sendo, Odisseu
mente e diz que seu navio fora destruído por tempestades, pela ira de Poseidon, quando, na
verdade, suas naus o aguardavam nas margens da ilha.
“Eu lhe enfiaria a espada na barriga no lugar em que o diafragma reveste o fígado.
Apalpei o lugar. Outro impulso me deteve. Morreríamos todos, presos na caverna.
Cadê os braços para remover a pedra gigante que tampava a entrada, obra do monstro?
Aguardamos, apreensivos, os fulgores da Aurora. […] Tive uma ideia. De muitas, essa
pareceu-me a melhor. Junto à parede secava o cajado do olhudo, um tronco de oliveira
recém cortado. Ele o preparava para seu uso. Passamos a examiná-lo. Tinha o tamanho
de um mastro para um navio de vinte remos, embarcação comercial, construída para
enfrentar ondas. Avaliando comprimento e espessura, foi o que constatamos.” (O,
p.131)
Nesse momento, Odisseu é tomado por inúmeras ideias, todas com o objetivo da
possível fuga. O domínio do espaço-tempo é evidente, no sentido da dedução. Se ele agisse por
impulso, terminaria morrendo preso na caverna, por não pensar estrategicamente. O que
podemos notar é o alto grau de observação detalhista e bem medida por parte do herói. A
percepção do cajado, a avaliação do comprimento e espessura mostra que Odisseu leva consigo
uma carga histórica bastante vasta. Tal observação, será, como veremos mais adiante, decisiva
para o desfecho do mito. Nossos teóricos em estudo mostram a existência da métis por trás de
tais ações em:
“O homem que tem métis mostra-se em relação ao concorrente ao mesmo tempo mais
concentrado num presente, do que nada lhe escapa, mais tenso em relação ao futuro,
do qual ele antecipadamente maquinou diversos aspectos, enriquecido da experiência
acumulada no passado. Esse estado de premeditação vigilante, de presença contínua
nas ações em curso, o grego exprime pelas imagens de emboscada, de espreita, quando
o homem em prontidão espia o adversário para atingir no momento escolhido.”
(MAAI, p.21)
“Tomando coragem, falei-lhe bem de perto: vinho tinto enchia a gamela que eu trazia
nas mãos: 'Vinho, meu caro Ciclope, junta vinho ao festim de carne de heróis. Provarás
a delícia da bebida guardada em nossa nau submersa. Trouxe-o na esperança de me
poupares, de me enviares para minha casa. […] Pouco lhe interessaram minhas
palavras. Agarrou e bebeu. Botou de um trago a preciosidade goela abaixo e pediu
mais: 'Vem com essa delícia! Por favor! Teu nome! Como te chamas? […] O gigante
ululava. Agi. […] A bebida afrouxou-lhe o parafuso. Quando a bebida lhe tinha subido
à telha, abordei-o com palavras de seda: 'Caro Ciclope. Queres saber meu nome? Será
um prazer receber a recompensa prometida. Nulisseu ou Ninguém é meu nome.
Nulisseu me chamaram minha mãe e meu pai. Por Nulisseu me conhecem todos os
meus amigos'”(O, p.133 e 135)
“A métis é uma potência de astúcia e de engano. Ela age por disfarce. Para ludibriar
sua vítima, ela toma emprestada uma forma que mascara, em lugar de revelar seu eu
verdadeiro. Nela a aparência e a realidade desdobradas opõem-se como duas formas
contrárias, produzindo um efeito de ilusão, apáte, que induz o adversário ao erro e
deixa-o, em face de sua derrota, tão ofuscado quanto diante dos sortilégios de um
mágico.” (MAAI, p.29)
A métis dá a possibilidade de uma espécie de transfiguração de personalidade.
Magicamente, envolto por um contexto, o ser astuto engana o inimigo. Ser ele mesmo em dado
momento é demasiadamente desvantajoso, visto que seus atos recairiam sobre seu eu. O que
para o adversário parece doce e inofensivo, termina por se mostrar áspero e agressivo no
momento certo, na hora já previamente calculada.
“Foi então que enfiei a lasca no vivo braseiro até constatá-la incandescente. Falei
entusiástico. Fiz tudo para impedir que o medo afrouxasse os braços dos
companheiros. Quando percebi que as labaredas começavam a lamber a ponta da lasca
de oliveira – ainda estava verde – na força do calor, botei as mãos nela e a arranquei
do fogo.[…] Sentimos um vigor divino penetrar os ossos. Eles levantaram a lasca
talhada de ponta ardente, firmaram-na no olho, e eu, pressionando de cima, a girei
como quem fura a trado a trave naval. Correm correias, viram, giram e regiram a
braços a brava broca pra cá e pra lá. Assim zunia pronta a ponta inflamada da lasca
do polifêmico olho. Cálidos circulam rubros esguichos de sangue. Ao vapor que subia
da pupila ardiam as pálpebras. […] Rebenta na rocha o hórrido urro do Globolho.
Assombrados sumimos de cena. O Ciclope arranca do olho ferido a lasca encharcada
de sangue. Louco de dor, arremessa a estaca que zune na sombra. Altos brados
despertam os ciclopes vizinhos, moradores das grutas agrestes disseminadas pelos
pícaros ventosos. Sacudidos pelos gritos acorrem de todos os lados. Reunidos em
torno da gruta perguntaram pela causa da queixa. 'Que dor te atormenta? Perturbas a
paz da noite sagrada. Arrancaste-nos do sono profundo. […] Te agridem? Alguém está
te matando? Um salafrário? Um bandido?' Do fundo da gruta grita o grande Polifemo:
'Camaradas, é Nulisseu! Ninguém me agride, Ninguém me mata.' Deram-lhe por
resposta palavras que voam pelos ares: 'Se ninguém te agride, seu Nulo, teus gritos
são de louco. Mal enviado por Zeus não tem cura. Fazer o quê?” (O, p.135)”
Neste dado momento, Odisseu põe em prática a fase mais árdua do seu plano, furar o
olho do gigante. O monstro estava bêbado e debilitado, facilitando as preliminares para o ato.
O herói mostra-se um grande líder, conseguindo, com maestria, administrar a situação e
encorajar seus companheiros. A ação segue o padrão de momentos em que a métis é usada, o
tempo de agir, a mudança repentina dos acontecimentos, a grande virada. O furo no olho é
inteligentemente pensado, pois limita completamente o campo visual de Polífemo, fazendo com
que ele não consiga devorar mais nenhum de seus tripulantes e nem se vingar de imediato de
Odisseu por ter sido enganado. Todos os gigantes levantam assustados com o pranto do
globolho. Em certo momento do mito, nos vem o pressentimento de que Odisseu será
brutalmente desmascarado, mas é neste exato momento que a “mágica homérica” acontece:
todo o planejamento de Odisseu resultou no total rebaixamento moral de Polífemo, que passa
por louco por bradar a todos que “Ninguém” teria feito aquilo com ele. Podemos perceber um
sistema de fatos muito bem encaixados e sequenciais. O fato de ter sido “Ninguém”, também
sugere obscuridade, desconhecimento, pequenez aos adversários, que não sabiam estar lidando
com um herói soberano em astúcias.
“Ora ele provocará tanto mais admiração quanto terá surpreendido mais, o mais fraco
tendo, contra toda a expectativa, encontrado em si recursos suficientes para pôr o mais
forte à sua mercê.” (MAAI, p.19)
“A divina apareceu com seus rosados dedos. Enquanto os machos procuram o verdor
das pastagens, balem no cercado as não ordenhadas fêmeas, de úberes tesos. O dono,
entretanto, ferido por dores lancinantes, detinha e apalpava o dorso de todos os
machos. Obtuso, não percebeu a artimanha: que os meus passavam agarrados nos
peitos lanudos. O meu saiu por último, o mais possante, retardado pelo peso da lã e
de mim. O inventor de truques.” (O, p. 139)
Depois do ocorrido, o anseio é sair da caverna sem ser apalpado pelo gigante. “O
inventor de truques”, como ele bem se define, mais uma vez põe em prática um plano infalível,
instruir seus tripulantes a se agarrarem no lado inferior dos carneiros, criando uma espécie de
camuflagem, própria da métis, impossibilitando Polífemo de capturá-los. O enaltecimento que
Homero faz ao herói é explícito, de forma que há sempre uma distinção, no intuito de mostrar
que o detentor de toda a inteligência e grandiosidade é Odisseu.
A duplicidade é a astúcia mais rara, pois ela se desdobra e permeia duas realidades
distintas que se unem em um mesmo indivíduo, causando espanto quando desmascarado, pois
o inofensivo transfigura-se no violento. A dissimulação é a peça fundamental, pois ela prepara
o terreno para no momento certo pôr em prática o seu projeto assassino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos à conclusão de que conseguimos com êxito alcançar os objetivos da
monografia, ou seja, chegar ao entendimento específico de como a métis se concretiza na
narrativa épica Odisseia através do herói Odisseu.