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CDD. 20.ed. 613.707

REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO FÍSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL1

Eliana AYOUB*

As discussões em torno da educação com a professora “generalista”, aparece a figura da


física na educação infantil vêm se intensificando professora “especialista”, com formação em
desde a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da diferentes áreas de conhecimento (como a
Educação Nacional (LDB no. 9.394/96). De Educação Física, por exemplo) para ministrar aulas
acordo com a nova LDB (Art.26, § 3o.), “A específicas.
educação física, integrada à proposta pedagógica Abordando o tema do espaço físico
da escola, é componente curricular da Educação como um dos elementos fundamentais para uma
Básica, ajustando-se às faixas etárias e às Pedagogia da Educação Infantil, Faria (1999) faz
condições da população escolar, sendo facultativa uma crítica a um modelo “escolarizante” de
nos cursos noturnos”. educação infantil. Faria (1999, p.76) salienta que a
Podemos considerar que a sua configuração de diferentes tipos de espaço em
inserção curricular na esfera da educação infantil creches e pré-escolas,
significa um avanço para o ensino da educação (...) com intencionalidade educativa,
física (Sousa, Vago, 1997, 125). No entanto, possibilita superar qualquer resquício:
sabemos que a construção de uma educação escolarizante (centrado na professora,
pública, democrática e de qualidade, da qual a alfabetizante, seriado, com
educação física seja parte integrante, não depende matérias/disciplinas, etc); assistencialista
exclusivamente de leis, mas também, e (não confundir com o direito de todos à
fundamentalmente, de políticas e ações assistência); e também adultocêntrico,
governamentais que garantam as condições higienista, maternal, discriminatório,
objetivas para a sua concretização. Nesse sentido, preconceituoso, reforçando o objetivo
ainda temos muito o quê refletir a respeito do principal da educação das crianças de 0
espaço da educação física na educação infantil. a 6 anos que é o cuidado/educação (sem
Um dos pontos essenciais dessa confundir com assistência/escola).
reflexão diz respeito à organização geral do
Pensar o espaço e sua arquitetura
currículo das creches e pré-escolas, levando em
parece-me tarefa imprescindível para a educação,
consideração a indissociabilidade entre educação e
tanto no âmbito da educação infantil quanto nos
cuidado (educar e cuidar) no sentido de se buscar
outros níveis de ensino. A organização do espaço
uma superação da dicotomia educação/assistência
configura o ambiente do contexto educativo,
no trabalho com a criança de zero a seis anos de
influenciando as relações humanas. As pessoas
idade.
produzem o espaço e sua arquitetura e, ao mesmo
Em linhas gerais, observamos que
tempo, são produzidas pelo espaço e sua
alguns estudos propõem uma organização afinada
arquitetura. Nas palavras da italiana Anna Lia
com os princípios de uma pedagogia voltada para a
Galardini (citado por Faria, 1999, p.85)
experiência e para o interesse da criança, na qual
compete à professora2 “generalista” o Um espaço e o modo como é organizado
desenvolvimento das diversas atividades resulta sempre das idéias, das opções,
curriculares. Outros estudos sugerem uma dos saberes das pessoas que nele
organização mais próxima do modelo escolar e habitam. Portanto, o espaço de um
centrada em disciplinas. Nesse caso, juntamente serviço voltado para as crianças traduz a

*
Faculdade de Educação da Universidade de Campinas.

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cultura da infância, a imagem da A organização curricular em


criança, dos adultos que o organizaram; disciplinas com a presença de “especialistas” na
é uma poderosa mensagem do projeto educação infantil é uma discussão extremamente
educativo concebido para aquele grupo complexa que necessita contemplar, de um lado, as
de crianças. hierarquizações presentes entre os(as) profissionais
A crítica a um modelo escolarizante da educação, as quais geram disputas por espaços
de educação infantil tem sido feita por vários político-pedagógicos e, de outro, os riscos de uma
autores e vem acompanhada de uma crítica à abordagem fragmentária de conhecimento que
organização do currículo em disciplinas. tende a compartimentar a criança.
Segundo Sayão (1999, p.226), no Sabemos que, tradicionalmente, ao
caso da pré-escola no Brasil, a idéia de educação profissional “especialista” atribui -se um status
física e de outras disciplinarizações surge, num superior na carreira docente. Ao abordar “as
primeiro momento, muito mais no setor privado do diferentes ‘ordens’ hierárquicas entre nós”,
que no público, com a proliferação de “escolinhas Campos (1999, p.134) destaca pelo menos três
infantis” nas décadas de 1970 e 1980, “ (...) as diferentes corpos hierárquicos profissionais no
quais se utilizaram de elementos como o ballet, ensino: a) as(os) professoras(es) “generalistas” (na
jazz, inglês, artes marciais e, mais recentemente, sua maioria mulheres), formadas(os) no curso
da informática como estratégia de marketing para Normal secundário ou no curso de Pedagogia – que
atrair os pais que podiam pagar por isso”. atuam na pré-escola e nas séries iniciais do ensino
Preocupadas em aumentar a fundamental (1a. à 4a. série); b) os(as)
quantidade de alunos, observamos uma verdadeira professores(as) “especialistas”, formados(as) em
corrida das “escolinhas infantis” para garantir o seu curso superior – que atuam a partir da 5a. série do
espaço no mercado educacional. E nessa corrida, ensino fundamental, lecionando disciplinas
associa-se à bandeira da “educação de qualidade” específicas; e c) educadoras(es) leigas(os), mal
uma pulverização de “aulas de...” que visam pagas(os), sem vínculo empregatício formal (na
preparar a criança para o ensino fundamental e, não sua maioria mulheres) – que atuam em creches e
seria exagerado dizer, para o mercado de trabalho. programas pré-escolares de baixo custo e muitas
Para Kuhlmann Júnior. (1999, p.64), vezes em programas educacionais ligados a órgãos
de assistência social, a entidades filantrópicas ou
É claro que a educação infantil não pode
comunitárias, “ Atendem os filhos da pobreza,
deixar de lado a preocupação com uma
aquelas crianças e adolescentes que costumam ser
articulação com o ensino fundamental,
rejeitados pelos sistemas formais de ensino”
especialmente para as crianças mais
(Campos, 1999, p.135). Ressalta, ainda, que esses
velhas que logo mais estarão na escola e
corpos hierárquicos sobreviveram a sucessivas
se interessam por aprender a ler,
reformas educacionais, “ (...) incorporando as
escrever, contar. Isso poderia ser
transformações sociais no seu perfil – perda de
resolvido muito mais facilmente se
prestígio, origem social diversa, condições de
houvesse clareza quanto ao caráter da
trabalho mais difíceis – mas sem perder seus
educação infantil, se a criança fosse
lugares na estratificação interna da profissão”
tomada como ponto de partida e não um
(Campos, 1999, p.135) e que o modo como serão
ensino fundamental pré-existente.
afetados diante das atuais reformas é algo que terá
Tomar a “criança como ponto de se ser avaliado.
partida” significa pensar n um currículo que Podemos identificar que esse intenso
contemple diferentes linguagens em suas múltiplas processo de hierarquização profissional está
formas de expressão, as quais se manifestam por relacionado tanto com o nível de formação do(a)
meio da oralidade, gestualidade, leitura, escrita, professor(a) (leigo, secundário e universitário)
musicalidade... “ Estas formas de expressão, quanto com o nível de ensino no qual o(a)
vividas e percebidas pelo brincar, representam a professor(a) atua (educação infantil, 1a. à 4a. série
totalidade do ‘ser criança’ e precisariam estar do ensino fundamental, 5a. à 8a. série do ensino
garantidas na organização curricular da sua fundamental e ensino médio). E, ainda, entre os(as)
educação (...) e não enquadradas em áreas do professores(as) “especialistas” ocorre também uma
conhecimento e alocadas em disciplinas” (Sayão, forte hierarquização em relação à área de
1999, p.234; grifos meus). formação: educação física e artes são áreas

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consideradas menos “nobres” e, portanto, são Educação, refletida nas propostas


desvalorizadas no rol das disciplinas escolares. oficiais que se distanciam de uma
Essas hierarquizações, aliadas à formação profissional qualificada.
ausência de propostas oficiais para uma formação
A educação infantil foi inserida na
qualificada dos(as) profissionais que atuam e que
educação básica, portanto, seus
pretendem atuar na educação infantil, trazem
profissionais requerem o mesmo
conseqüências extremamente negativas para o
tratamento dos outros que nela atuam. É
desenvolvimento do trabalho educativo em creches
preciso eliminar preconceitos arraigados
e pré-escolas.
da tradição brasileira, como o de que o
Referindo-se à qualidade da
profissional que atua com crianças de 0
formação desses(as) profissionais, Barreto (1995,
a 6 anos não requer preparo acurado
p.14) alerta que:
equivalente ao de seus pares de outros
Se a formação do professor da educação níveis escolares, o que demonstra o
básica como um todo deixa muito a desconhecimento da natureza humana e
desejar, no caso da educação infantil que de sua complexidade, especialmente do
abrange o atendimento às crianças de potencial de desenvolvimento da faixa
zero a seis anos em creches e pré- etária de 0 a 6 anos.
escolas, exigindo que o profissional
cumpra as funções de cuidar e educar, o Pensar em uma política de formação
desafio da qualidade se apresenta como profissional para a educação infantil
uma dimensão maior, pois é sabido que requer, antes de tudo, a garantia de um
os mecanismos atuais de formação não processo democrático que permita a
contemplam essa dupla função. ascensão na escolaridade, em todos os
níveis, e a valorização dessa formação
Lamentavelmente, o “mito”,
no patamar de outros cursos. Portanto, é
fortemente enraizado entre nós, de que para ser
preciso pensar também nos leigos, não
profissional da educação infantil basta ser mulher,
expulsar os recursos humanos que atuam
delicada e gostar de criança, é confirmado pelas
no sistema.
estatísticas que demonstram a presença majoritária
de mulheres atuando nesse nível de ensino e a A diversidade brasileira requer
precariedade da formação profissional. Essa propostas que atendam às
concepção precisa ser urgentemente revista! O especificidades do país. Se o contexto
reconhecimento de que a infância representa um social requer uma formação mais ágil
período precioso da educação do ser humano, para essa faixa etária, uma política de
requer ações efetivas por parte do governo formação profissional deve estimular o
brasileiro em direção à criação de condições para convívio de propostas diferentes, sem
que a educação infantil, que é um direito de todas que a faina da quantidade obscureça a
as nossas crianças, seja tratada com o qualidade dessa formação, sem que a
profissionalismo que merece. discriminação anule a identidade do
Sobre esse assunto, Kishimoto profissional.
(1999, p.74) afirma que, Esses são, certamente, desafios a
O imaginário popular e até dos meios serem enfrentados por todos nós.
oficiais pouco afeitos às reflexões sobre No que se refere aos riscos de uma
a criança e a educação infantil abordagem compartimentada de educação infantil,
referendam, ainda, a perspectiva Sayão (1999, p.224) diz que “ (...) algumas vezes, a
romântica do século passado, de que presença da ‘especialista’ em determinada
para atuar com crianças de 0 a 6 anos disciplina na organização curricular é sinônimo de
basta ser ‘mocinha, bonita, alegre e que uma concepção fragmentária do conhecimento”.
goste de crianças’, e a idéia de que não Soma-se a isso possíveis indefinições e conflitos
há necessidade de muitas especificações em relação aos papéis de cada professora(or), à
para instalar escolas infantis para os organização dos horários das aulas na jornada
pequenos. Essa parece ser também a cotidiana e, conforme abordado anteriormente, às
forma de pensar que reina entre hierarquizações e disputas por espaços de trabalho.
membros do atual Conselho Nacional de

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Mas a presença de professoras(es) formação e atuação, irão compartilhar seus


“especialistas” para trabalhar com linguagens diferentes saberes docentes para a construção de
específicas na educação infantil conduz projetos educativos com as crianças. Nesse sentido,
necessariamente à fragmentação de conhecimento poderíamos pensar também em parceria com as
e à hierarquização profissional? crianças, considerando e valorizando as suas
experiências e interesses.
Apesar dos sérios riscos existentes
“ Não considere os seus alunos
nessa direção, acredito que é possível imaginarmos
‘tolos’” é um importante alerta de Snyders (1988,
creches e pré-escolas nas quais profissionais de
p.218) para nós, professoras(es), que pretendemos
diferentes áreas de formação trabalhem em
respeitar nossos alunos e alunas como parceiros(as)
parceria na educação e cuidado das crianças. No
culturais, tenham eles(as) zero ou cem anos de
entanto, devemos estar atentos às características
idade. Somos todos, professores(as) e alunos(as),
das crianças pequenas, cujos vínculos afetivos com
seres humanos inconclusos, em constante processo
as(os) professoras(es) são de extrema importância e
de constituição. E nessa relação de ensino-
demandam tempo para serem construídos,
aprendizado, mediada pelas(os) professoras(es),
especialmente com as crianças entre zero e três
são múltiplos os caminhos que construímos para
anos de idade. Nessa perspectiva, mudanças
nos tornamos professoras(es).
excessivas de professoras(es) e/ou atividades
“ Como nos tornamos professoras?”
durante a jornada diária podem, de fato, gerar
é o nome da brilhante obra de Roseli Fontana
fragmentações e causar desconforto, ansiedade e
(2000), na qual a autora convida-nos a refletir
bloqueios que dificultam as relações educativas.
sobre essa inquietante busca que se concretiza
Entretanto,
cotidianamente no tecer da própria vida.
as múltiplas relações que podem ser
Tempo, acaso e significação... Drama...
estabelecidas em ambientes educativos
Vida...
nos quais convivem crianças de faixas
etárias diversas, juntamente com No tempo, vivemos e somos nossas
profissionais de várias áreas, além de relações sociais, produzimo-nos em
pais e membros da comunidade, nossa história. Falas, desejos,
constituem portas de entrada para a movimentos, formas perdidas na
construção do conhecimento que se memória. No tempo nos constituímos,
processa quando se respeita a relembramos, repetimo-nos e nos
diversidade social e cultural, a transformamos, capitulamos e
multiplicidade de manifestações da resistimos, mediados pelo outro,
inteligência e a riqueza dos contatos mediados pelas práticas e significados
com personagens e situações de nossa cultura. No tempo, vivemos o
(Kishimoto, 1999, p.73; grifos meus). sofrimento e a desestabilização, as
perdas, a alegria e a desilusão. Nesse
Os argumentos da autora a favor das moto contínuo, nesse jogo inquieto, está
múltiplas relações possíveis e necessárias para a em constituição nosso ‘ser profissional
educação das crianças considerando a participação (Fontana, 2000, p.180).
de profissionais de várias áreas, leva-nos a
considerar que a presença de profissionais E esse processo de constituição de
“especialistas” no contexto da educação infantil nosso “ser profissional” se faz e se refaz a cada dia,
pode constituir-se numa rica possibilidade para o a cada jornada, com parcerias, em meio a
desenvolvimento de trabalhos em parceria nesse desafios, conquistas, temores, encontros,
nível de ensino. desencontros, conflitos, buscas... Pois se somos
Reforçando a idéia da possibilidade seres inconclusos, como nos ensina Paulo Freire
de construirmos relações de parceria, de (1997, p.64), “ A consciência do mundo e a
confiança, não hierarquizadas, entre diferentes consciência de si como ser inacabado
profissionais que atuam na educação infantil, necessariamente inscrevem o ser consciente de sua
poderíamos pensar não mais em professoras(es) inconclusão num permanente movimento de
“generalistas” e “especialistas ”, mas em busca”.
professoras(es) de educação infantil que, Pensando na “criança como ponto de
juntas(os), com as suas diversas especificidades de partida” na educação infantil, a expressão corporal

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caracteriza-se como uma das linguagens construir, desde que se cuide para a
fundamentais a serem trabalhadas na infância. A ocorrência disto (Oliveira, 1996, p.137).
riqueza de possibilidades da linguagem corporal Favorecer a brincadeira no contexto
revela um universo a ser vivenciado, conhecido, da educação infantil não pode levar a uma atitude
desfrutado, com prazer e alegria. Criança é quase de “laissez faire” - abandono pedagógico, de abrir
sinônimo de movimento; movimentando-se ela se mão da mediação do adulto no processo educativo
descobre, descobre o outro, descobre o mundo à com a criança. Ao contrário, é no contexto da
sua volta e suas múltiplas linguagens. Criança é brincadeira que precisamos aprender a realizar o
quase sinônimo de brincar; brincando ela se nosso papel: “ (...) o papel do professor como
descobre, descobre o outro, descobre o mundo à mediador, intencional e explícito, do processo de
sua volta e suas múltiplas linguagens. Descobrir, elaboração dos conceitos sistematizados na
descobrir-se. Des-cobrir, tirar a cobertura, mostrar, relação de ensino” (Fontana, 1996, p.43).
mostrar-se, decifrar... Alfabetizar-se nas múltiplas De acordo com o Grupo de Estudos
linguagens do mundo e da sua cultura. Ampliado de Educação Física (1996, p.64)4:
A contribuição da educação física na
Na Educação Física a cultura
educação infantil, “ (...) para ser relevante e
corporal/de movimento traz no seu
justificada, precisa auxiliar na leitura do mundo,
campo-objeto de conhecimento,
por parte das crianças com as quais trabalha,
manifestações corporais já presentes na
partindo do pressuposto da construção de si
vida das crianças, que deverão ser
mesmo, no decorrer desse processo de
tematizadas com elas, não só na aula
‘alfabetização’” (Grupo de Estudos Ampliado de
dessa disciplina, como também em
Educação Física, 1996, p.51).
outros momentos, atendendo assim, a
A educação física na educação
perspectiva de articulação a ser
infantil pode configurar-se como um espaço em
desenvolvida pela equipe pedagógica
que a criança brinque com a linguagem corporal,
(grifos meus).
com o corpo, com o movimento, alfabetizando-se
nessa linguagem. Brincar com a linguagem
corporal significa criar situações nas quais a Sob essa ótica, a linguagem corporal
criança entre em contato com diferentes não é uma “propriedade” da educação física e,
manifestações da cultura corporal (entendida como embora seja a sua especificidade, deve ser
as diferentes práticas corporais elaboradas pelos trabalhada em outros momentos da jornada
seres humanos ao longo da história, cujos educativa, tendo a dimensão lúdica como princípio
significados foram sendo tecidos nos diversos norteador.
contextos sócio-culturais3), sobretudo aquelas Considerando as especificidades da
relacionadas aos jogos e brincadeiras, às ginásticas, educação infantil e da educação física, qual o(a)
às danças e às atividades circenses, sempre tendo profissional que deveria trabalhar com a educação
em vista a dimensão lúdica como elemento física nesse nível de ensino?
essencial para a ação educativa na infância. Ação
que se constrói na relação criança/adulto e Constata-se que, “ (...)
criança/criança e que não pode prescindir da tradicionalmente, não há, nos cursos de
orientação do(a) professor(a): licenciatura em Educação Física, uma
(...) deixar a criança brincar como preocupação em formar professoras para
queira, como se jogar fosse algo da intervirem na educação de zero a seis anos”
(Sayão, 1999, p.223). Quando essa preocupação
natureza biológica da espécie, que não
existe, na maioria das vezes, a formação fica
necessita de suportes culturais. Assume-
restrita ao aprendizado de um conjunto de
se, então, uma ‘concepção’
espontaneísta de educação que afasta o atividades corporais (especialmente jogos e
professor como figura de interação e brincadeiras) para serem desenvolvidas com as
crianças de acordo com as diferentes faixas etárias.
interlocução, ou seja, como parceiro da
As discussões em torno da educação infantil como
criança em seu processo de
um todo, suas problemáticas específicas e suas
desenvolvimento, ignorando que neste
processo certas noções estão se relações mais amplas com o contexto educacional
construindo, ou antes, poderão se brasileiro, parecem não fazer parte da formação
dos(as) licenciados(as) em educação física.

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Em decorrência disso, podemos atividades corporais, é comum vermos crianças


observar que quando há professoras(es) de sedentas pela aula de educação física quando
educação física trabalhando em diferentes espaços chegamos às escolas; salta-me aos olhos imagens
de educação infantil, acabam atuando, de “explosão corporal” diante da possibilidade de
predominantemente, como meros “aplicadores de “libertar -se das carteiras escolares” que funcionam,
joguinhos” que têm como função primordial na maioria das vezes, como “armaduras corporais”,
“divertir” as crianças. Somos os “especialistas em até mesmo em pré-escolas.
brincadeiras” responsáveis pelo corpo, pelo Se nós, profissionais da educação
movimento e pela diversão das crianças. física, queremos uma educação de qualidade em
Nesse caso, a presença dos(as) que haja espaço para
“especialistas” em educação física pode gerar uma (...) a vivência das múltiplas linguagens
concepção compartimentada de criança e acentuar produzidas pela humanidade, não
“velhas” dicotomias bastante conhecidas no espaço podemos nos submeter a ocupar espaços
escolar: a professora de educação física fica que se configuram como simples
responsável pelo “corpo” das crianças e a preenchimento de tempo ou como
professora "generalista" pelo “intelecto”, como se compensação das necessidades de
isso fosse possível. Essa visão dicotômica, movimento que as crianças são vítimas
relacionada à tradição racionalista ocidental, face a certas concepções de Educação
enfatiza, ainda, a superioridade do “intelecto” Infantil que se propõem a preparar as
sobre o “corpo”. Conforme afirma (Bracht, 1999, crianças para a 1a. série, forjando um
p.70): ensino mecânico, repetitivo, alienante e
A tradição racionalista ocidental tornou conseqüentemente, disciplinador do
possível falar confortavelmente da corpo (Grupo de Estudos Ampliado de
possibilidade de uma educação Educação Física (1996, p.49).
intelectual, por um lado, e de uma Entretanto, não podemos negar que a
educação física ou corporal, por outro, especificidade da educação física localiza-se
quando não de uma terceira educação, a justamente no âmbito da cultura corporal.
moral (...). Essas educações teriam alvos Assumirmos essa especificidade, sem a pretensão
bem distintos: o espiritual ou o mental (o de sermos os “donos” da expressão corporal das
intelecto), por um lado, e o corpóreo ou crianças, pode ser um importante ponto de partida
físico, por outro, resultando da soma a para configurarmos entrelaçamentos com
educação integral (educação intelectual, diferentes áreas de conhecimento.
moral e física). (...) Também na melhor Outra situação a ser refletida diz
tradição ocidental, a educação ‘corporal’ respeito ao fato de não ser raro encontrarmos pré-
vai pautar-se pela idéia, culturalmente escolas do setor privado com aulas de “balé” para
cristalizada, da superioridade da esfera as meninas e de “judô” para os meninos. Nesses
mental ou intelectual – a razão como casos, além de se limitar as possibilidades das
identificadora da dimensão essencial e crianças de contato com diferentes temas da cultura
definidora do ser humano. O corpo deve corporal, reforça-se uma visão “sexista”,
servir. O sujeito é sempre razão, ele (o extremamente equivocada. As crianças, desde
corpo) é sempre objeto; a emancipação é muito cedo, vão aprendendo que “dança é coisa de
identificada com a racionalidade da qual menina” e “luta é coisa de menino”, reforçando
o corpo estava, por definição, excluído. esteriótipos em relação às práticas corporais e aos
Outro aspecto a ser considerado é diferentes papéis sociais desempenhados por
que, muitas vezes, por existir um espaço específico meninas e meninos, mulheres e homens. Mais
para um trabalho corporal nas aulas de educação tarde, serão o “futebol dos meninos” e o “vôlei das
física, nos demais tempos da jornada cotidiana, meninas” alguns dos principais exemplos de
acentua-se um trabalho de natureza intelectual no esteriotipias no âmbito da educação física escolar,
qual a dimensão expressiva por meio da as quais têm reforçado a idéia de turmas separadas
gestualidade é praticamente esquecida. A aula de em meninos e meninas nas aulas de educação
educação física passa, então, a ser vista como a física.
“dona” do corpo e do movimento das crianças. Reconhecer as discriminações e os
Somando-se a isso o possível caráter lúdico das preconceitos vividos nas aulas de educação física a

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partir das relações de gênero pode ser um dos MÃOS DADAS


primeiros passos para um entendimento acerca dos Não serei o poeta de um mundo caduco.
processos de construção de esteriotipias. E, “ Sendo Também não cantarei o mundo futuro.
gênero uma categoria relacional, há de se pensar Estou preso à vida e olho meus companheiros.
sua articulação com outras categorias durante as Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
aulas de educação física, porque gênero, idade, Entre eles, considero a enorme realidade.
força e habilidade formam um ‘emaranhado de O presente é tão grande, não nos afastemos.
exclusões’ vividos por meninas e meninos na Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
escola” (Sousa & Altmann, 1999, p.56). (...)
Pensar numa educação e numa O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os
educação física preocupadas com a co-educação de homens presentes, a vida presente
nossas crianças, requer ações que contribuam para
uma desmistificação de esteriótipos sexuais. (Carlos Drummond de Andrade, 1983, p.108;
grifos meus).
A desmistificação dos esteriótipos
sexuais, mesmo esses tendo sua base na
educação familiar e uma história cultural De “ mãos dadas” temos um longo
(...), deve, então, passar pela escola e caminho a construir em busca de centros de
pela Educação Física, pois esta, no educação infantil nos quais o educar e o cuidar
contexto escolar, se constitui no campo, estejam sempre presentes nas relações com as
onde, por excelência, acentuam-se as crianças; centros de educação infantil nos quais as
diferenças entre homem e mulher. Isso crianças sejam vistas no tempo presente, como
porque (...), a Educação Física tem se seres humanos em constituição, e não como futuros
desenvolvido como uma ‘atividade’, em alunos do ensino fundamental e/ou como futuros
que o movimento é considerado a partir adultos no mercado de trabalho; centros de
de disponibilidades/possibilidades educação infantil nos quais as crianças possam
físicas que os seus executantes oferecem descobri-se, descobrir o outro, descobrir o mundo e
(Saraiva, 1999, p.177). suas múltiplas linguagens por meio do brincar;
enfim, centros de educação infantil nos quais seja
realizado um trabalho efetivamente de parcerias
Nessa perspectiva, a co-educação
(entre os(as) profissionais, as crianças, os
deve ser um princípio educativo a ser adotado a
familiares e a comunidade) que contribua para uma
partir da educação infantil. Assim como Sousa &
educação verdadeiramente humana, na qual haja
Altmann (1999, p.64), acredito “ (...) que existe a
espaço para o diálogo, para o lúdico, para a vida.
possibilidade de ampliação de espaços para a
construção de relações não-hierarquizadas entre
homens e mulheres, para a qual a escola pode
NOTAS
contribuir” e, eu diria ainda, para a qual a
educação infantil tem um papel imprescindível.
1. Mesa Redonda “Educação Infantil e a formação de
Apesar das deficiências na formação professores”.
do(a) profissional da educação física para atuar no 2. Fiz a opção de utilizar o termo professora no
contexto da educação infantil, as quais têm feminino, ao invés da utilização genérica da palavra
favorecido posturas e ações equivocadas, a minha masculina professor, por considerar que na
vivência como professora de educação física em educação infantil, historicamente, esse papel social
turmas pré-escolares, aliada às experiências dos(as) vem sendo desempenhado majoritariamente pelas
alunos(as) das disciplinas “Prática de Ensino e mulheres.
Estágio Supervisionado” da Faculdade de 3. A concepção de cultura corporal é aprofundada na
obra “ Metodologia do ensino de Educação Física”,
Educação Física da Unicamp5, levam-me a crer que
de Soares, Taffarel, Varjal, Castellani Filho,
a presença do(a) profissional da educação física na Escobar & Bracht (1992).
educação infantil pode colaborar muito
positivamente na educação das crianças, desde que
essa presença seja compreendida como uma
possibilidade de desenvolvimento de trabalhos em
parceria, sem hierarquizações, de “mãos dadas”. 6

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4. Este grupo foi constituído a partir de uma parceria FARIA, A.L.G.; PALHARES, M.S., orgs. Educação
entre o Núcleo de Estudos Pedagógicos da infantil pós LDB: rumos e desafios. Campinas,
Educação Física da Universidade Federal de Santa Autores Associados/FE/UNICAMP, 1999.
Catarina (NEPEF/UFSC) e a Divisão de Educação FONTANA, R.A.C. Como nos tornamos professoras?
Física da Secretaria Municipal de Educação da Belo Horizonte, Autêntica, 2000.
Prefeitura de Florianópolis/SC (SME de _____. Mediação pedagógica na sala de aula. 2.ed.
Florianópolis/SC), cujos trabalhos desenvolvidos, Campinas, Autores Associados, 1996.
ao longo de quatro anos, foram publicados num FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes
Caderno de Educação Física intitulado “ Diretrizes necessários à prática educativa. 2.ed. Rio de
curriculares para a educação física no ensino Janeiro, Paz e Terra, 1997.
fundamental e na educação infantil da rede GRUPO DE ESTUDOS AMPLIADO DE EDUCAÇÃO
municipal de Florianópolis-SC” (1996). FÍSICA. Diretrizes curriculares para a educação
5. Sou responsável pelas disciplinas “Prática de física no ensino fundamental e na educação
Ensino de Educação Física e Estágio infantil da rede municipal de Florianópolis-SC:
Supervisionado I e II” do Curso de Licenciatura da registro da parceria NEPEF/UFSC-
Faculdade de Educação Física da Unicamp, desde SME/Florianópolis, 1993 a 1996. Florianópolis,
1998. NEPEF/UFSC-SME, 1996.
6. Uma experiência nesse sentido foi relatada no artigo KISHIMOTO, T.M. Política de formação profissional
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ENDEREÇO: Eliana Ayoub


R. Mogi Guaçu, 1441 – Chácara da Barra
013093-000 - Campinas – SP – BRASIL
eayoub@terra.com.br

Rev. paul. Educ. Fís., São Paulo, supl.4, p.53-60, 2001

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