CLAUDIA DRUCKER1
Abstract: Heidegger’s thinking on the arts has considered poetry in the first
place, and then the visual arts. Music goes almost unmentioned. From works and
composers it is never stated that they reach historical relevance (at least in the
foundational sense that the thinker gives the terms). At the same time, Heidegger’s
thinking about the work of art could not fail to encompass music and influence later
approaches, even if it just deconstructs established certainties. In this article, I try to
expose the dual direction that characterizes the main lines of Heidegger’s thinking
about music and some of its implications.
Key‑words: Hermeneutics ‑ Esthetics ‑ deconstruction ‑ language ‑ poetry
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8 Claudia Drucker
sobre a música, bem como algumas de tung anzuführen, die die Grundzüge des
suas implicações. Gedanken Heideggers über Musik und
einige ihrer Auswirkungen charakterisi-
Palavras‑chave: Hermenêutica – ert.
Estética – desconstrução – linguagem
– poesia Schüsselwörter: Hermeneutik –
Ästhetik – Dekonstruktion – Sprache –
Dichtung
2 Martin Heidegger. Logik. Die Frage nach der Wahrheit. (Frankfurt: Klostermann,
C. Shuback, trad. M. Heidegger, Ser e tempo (Petrópolis: Vozes, 1995), 189; F. Castilho,
trad. M. Heidegger, Ser e Tempo (Campinas: UNICAMP; Petrópolis: Vozes, 2012), 387.
sões. Nós desde sempre ouvimos vagões que rangem, motocicletas, colunas
militares marchando, o Vento Norte, o pica‑pau que bica e o fogo que crepi-
ta.5 A audição só é o que é por pertencer a um conjunto integrado. Um puro
percepto é uma construção intelectual. A audição de puros sons é um ponto
de chegada, resultante de uma operação de reconstrução.
Para Heidegger, encontramos sempre, de saída, um som mundanizado
ou um mundo sonoro. Não há síntese interior que possa explicar o que já foi
dado desde sempre como união –não apenas união dos cinco sentidos, mas
antes, e principalmente, união do homem aberto ao seu mundo. A “paisagem
sonora” só existe para o ser‑aí e em vista deste, em vista da sua orientação
articulada para aquilo que não é ele mesmo.
O musicólogo canadense Raymond Murray Schafer criou o conceito de
paysage sonore ou soundscape.6 Em paralelo com a disciplina da ecologia, a
ecomusicologia trata o ambiente sonoro como um recurso que pode se degra-
dar, e pelo qual devemos nos tornar responsáveis. Assim, uso esse termo fora
do seu contexto inicial, pois a paisagem sonora de que fala a hermenêutica é
coetânea ao homem. Não existe paisagem sonora que possa ser colonizada
pelo ruído incessante e monótono das máquinas, ou devolvida aos sons cícli-
cos e ocasionais da natureza, como paisagem natural. A paisagem sonora co-
lonizada pela técnica ou a paisagem sonora do indígena, de baixa interferência
sobre a natureza, são iguais, hermeneticamente falando. A paisagem sonora,
mesmo uma que fosse anterior a qualquer intervenção civilizatória, já é es-
cutada ao modo como o ser‑aí pode escutar, ou seja, articulada como sentido.
Uma abordagem semântica que buscasse identificar uma categoria de
sentido aplicável à audição também seria estranha a Heidegger. Originaria-
mente falando, não existe um ente em particular que tenha sentido ou uma
palavra que tenha seu significado definitivamente delimitado. Não se per-
gunta aqui pelo sentido de sons dados na paisagem sonora ou depurados e
organizados como música, pela mesma razão por que não se pergunta por
perceptos abstratos. O sentido é “aquilo em que se mantém a compreensibili-
dade de algo”; é “o que é articulável na abertura compreensiva”.7 Há sentido,
antes de coisas e palavras terem sentido. Só há sentido na prática e significa-
do das palavras por uma derivação ou modificação da conjuntura mundana
que o ser‑aí desde sempre encontra. Será preciso voltar a esse ponto, quando
o tema for a origem da linguagem.
5 Heidegger, Sein und Zeit, 217, Shuback, Ser e tempo, 222, Castilho, Ser e tempo,
461.
6
Raymond Murray Schafer. The Tuning of the World (Random House, 1977).
7
Heidegger, Sein und Zeit, 201. Trad. minha. Cf. Shuback, Ser e tempo, 222. Castilho,
Ser e tempo, 429.
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dissonância, para não dizer nada da existência de tons combinados e de timbres de instru-
mentos musicais combinados exigia mais do que a física da estrutura vibrante. A análise
tinha que incluir a interação do som provindo da fonte da vibração sobre outra estrutura
vibrante, o ouvido humano.” James Bell, C. Truesdell e Murray Campbell, “Physics of
Music”, in Grove Music Online, ed. Deanne Root. 23 de fevereiro de 2017. http://oxford.
online.com. Tradução minha.
13 Martin Heidegger, Der Satz vom Grund (Frankfurt: Klostermann, 1997), 70.
não mais aparece como bom para algo, mas aparece em outras associações
pertinentes à linguagem. A sentença promove uma nova forma de associação
–ainda vinculada à primeira—como associação de significados capazes de
mostrar aquilo que está diante do ser‑aí, e promove uma dissociação como
abstração do seu nexo teleológico inicial. Na sentença se encontra o vestígio
daquela relação inicial de lida comprometida com tarefas, subjugado ao fator
mais decisivo, a saber, que na sentença algo se mostra como o que é –e não
para que é. Eis como na origem da sentença se encontram operações pré
‑conscientes de síntese e diérese conforme a sentença.
A sentença está existencialmente mais próxima da compreensão do que
a audição. É nela que o sentido gerado existencialmente pelos nexos teleoló-
gicos dentro dos quais o ser‑aí se move se tornam portadores da verdade. Foi
dito acima que a percepção é situada. Ela nunca está sozinha, como sensação
simples, mas carrega consigo uma série de significados. Ainda assim, pode-
mos dizer que a percepção depende da linguagem muito mais do que a lin-
guagem depende dela. Eis um padrão que não se alterará no pensamento pos-
terior de Heidegger, a saber, a interdependência de compreensão e palavra,
o que torna bastante difícil justificar uma compreensão puramente musical.
Isso é verdade mesmo quando concordemos que Heidegger participa de
uma tendência à demoção do sentido da visão como sentido principal e subs-
tituição da visão pela audição como porta‑voz da verdade. Nunca é seguro
seguir um rastro de influências, mas é possível dizer que Heidegger se insere
dentro de uma tendência da hermenêutica que lhe é anterior, e privilegia a
palavra em detrimento da imagem. Antes disso, Schopenhauer e Nietzsche
haviam proclamado a superioridade da música.16 Por um lado, a audição
se torna a maior prova da nossa receptividade originária, da nossa entrega
lançada no mundo. Por outro lado, a articulação pela linguagem é a mais
originária e a mais verdadeira do que aquela onde o som está presente, sem
a palavra.
Podemos suspeitar que seriam possíveis uma síntese e diérese musicais?
Em 1955 ou 1956, Heidegger chega a se referir a Mozart como “um dos
mais ouvintes dentre os ouvintes”.17 Ora, o estar lançado originário do ser‑aí,
ainda que não audível, poderia descrito como um acordo não aleatório – se
este acordo puder ser articulado em sons, estaremos diante de uma defini-
ção possível de origem da música. Como apontando, segundo a analítica
existencial não há distância reflexiva possível em relação ao existir, e todas
as expressões que poderiam dar a entender que essa distância é possível são
evitadas, como “tomar consciência de si em uma situação” ou “perceber a si
16 Martin Jay, Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth Century French
Thought (Berkeley: University of California Press, 1993), 265.
17 M. Heidegger, Der Satz vom Grund, 100.
18 Shuback: “disposição”, Ser e tempo, 188; Castilho: “estado de ânimo”, Ser e tempo,
383, Marco Antônio Casanova: “tonalidade afetiva”, trad. M. Heidegger, Nietzsche I (Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2007), 91.
19 Como na passagem: “o sentimento não é nada que transcorra apenas na ‘interiorida-
de’, mas é aquele modo de ser fundamental de nosso ser‑aí, por força do qual e de acordo
com o qual já sempre somos alçados para além de nós mesmos em direção ao ente em
sua totalidade, ao ente que nos diz respeito ou não de um modo ou de outro. Tonalidade
afetiva não é nunca um mero ser afinado em uma interioridade estabelecida por si, mas
é sempre, em primeiro lugar, um deixar‑se afinar em meio a tal ou tal tonalidade afetiva.
A tonalidade é, precisamente, o modo de ser fundamental como nos encontramos fora
de nós mesmos. No entanto, é assim que somos essencial e constantemente”. Casanova,
Nietzsche I, 92, trad. Martin Heidegger, Nietzsche I (Frankfurt: Klostermann, 1996), 100.
(GA 6.1)
“sentença”, mas não se confunde com eles, nem há ponto de contato ime-
diato entre a reflexão sobre o lógos e o que normalmente se chama lógica. Se
em Ser e tempo era necessário recuar às estruturas existências para recons-
truir a partir delas uma lógica e uma filosofia da linguagem, aqui se trata de
recuar mais ainda na história, de modo que nem o pensamento de Ser e tempo
tem uma conexão imediata com o que Heidegger busca agora.
Não existe uma sentença aristotélica literal que enuncie ánthropos zôon
lógon échon: “o homem é o animal dotado de fala”. Há sentenças próximas
a esta, mas nenhuma idêntica. Na Ética a Nicômacos 1098a1: leípetai dè
pratiké tis toû lógon échontos zôou, “resta a atividade específica do animal
que tem lógos”; na Política: (1253a10), lógon dè mónon ánthropos échei
tôn zôon”: “entre os animais, só o homem tem lógos”. Nas duas citações,
importa demarcar a atividade específica do homem frente aos animais. Por
razões históricas, ela foi traduzida como o uso da razão: homo est animal
rationale. No entanto, quanta diferença entre as duas traduções! Está aí uma
das maiores contribuições de Heidegger: ter mostrado o frescor de textos que
pareciam já mais que compreendidos. Ele, por sua vez, insistirá que lógos e
légein estão associados, nos seus usos mais arcaicos, a “recolher” e “reunir”.
Nós poderíamos acrescentar que em latim acontece algo bem semelhante: há
o verbo legere. Lego quer dizer tanto “eu leio” quanto “eu escolho” quanto
“eu aponto”. Por isso, em português, temos o verbo “colecionar”, derivado
do latim legere, no sentido de “reunir”.
O interesse pelo lógos aproxima Heidegger de Aristóteles, mas também
afasta. Heidegger retém o fato de a linguagem ser o que nos torna huma-
nos, e que a linguagem é ligação e separação de palavras. De Heráclito,
Heidegger retém a noção de linguagem humana como resposta a uma lin-
guagem não totalmente humana e talvez inaudível para o ouvido. Como
apontado acima, já se mencionava um déficit na compreensão aristotélica
da origem profunda da linguagem em Ser e tempo. A reunião ainda tácita
do ser‑aí com os seus múltiplos envolvimentos mundanos não foi levada
em consideração pela história da lógica. Agora, Heidegger recorre aos pen-
sadores pré‑socráticos para tentar dar conta dessa reunião, patrocinada pela
união de homem e ser. Vê‑se que os critérios a partir dos quais Heráclito
e Aristóteles são comparados não são os convencionais, e aliás aristotéli-
cos, segundo os quais, antes de Sócrates, os pesquisadores não conseguiam
diferenciar a perguntar sobre o ser e a pergunta sobre a natureza. A linha
divisória, segundo Heidegger, é traçada precisamente pela disposição
maior ou menor a considerar a articulação pré‑proposicional que o discur-
so torna explícita.
Tomemos o seu fragmento 50, segundo a numeração padrão de Diels e
Kranz: “não de mim, mas do lógos tendo ouvido é sábio homologar: tudo
unumgänglichen Bezug zur Dichting Hölderlins”, além da proposta aqui. Cf. Irene Borges
Heidegger, cf. Jardim, Antônio. Música: vigência do pensar poético (Rio de Janeiro:
7 Letras, 2005).
25 Heidegger, Sein und Zeit, 22, Shuback, Ser e tempo, 43, Castilho, Ser e tempo, 71.
26 Martin Heidegger, Der Ursprung des Kunstwerkes, in: Holzwege (Frankfurt: Klos-
termann, 2003), 375. (GA v. 5). Filipa Pedroso, trad. M. Heidegger, Referências, in:
Irene Borges‑Duarte (coordenação científica da edição e tradução), Caminhos de floresta,
(Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002), 441.
27 G. W. F. Hegel, Vorselungen über die Ästhetik, I (Frankfurt: Suhrkamp, 1986), 49,
Marco Aurélio Werle, trad. Hegel, Cursos de Estética, II (São Paulo: EdUSP, 1999), 51.
28 Gethmann‑Siefert, Anne‑Marie. Einführung in Hegels Ästhetik (Munique: W. Finkl,
2005), 224, 258. Penso que a autora se refere, sem citar nomes, a Roman Ingarden e,
principalmente, à filosofia anglo‑saxã.
29 Martin Heidegger, Ursprung des Kunstwerkes, 29, I. Borges‑Duarte e F. Pedro-
so, A origem da obra de arte, 40. Cf. G. W. F. Hegel, Vorselungen über die Ästhetik, II
(Frankfurt: Suhrkamp, 1986), 46, Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle, trad. Hegel, Cursos
de Estética, II (São Paulo: EdUSP, 2014), 183.
ser o mundo desta comunidade e não de outra qualquer. Assim, a arte não é
apenas um ponto de referência entre outros, um dado importante da cultura,
ao lado da economia, geografia ou história de um povo. Ao contrário, todas
essas dimensões estão na dependência da arte, de alguma forma. Elas se
depreendem das obras: elas nascem da terra, tornada linguagem na obra e
por meio dela
É nesse sentido que cabe entender a relação entre arte e verdade. A com-
preensão da verdade em Heidegger é tal que ela não é o oposto da arte, mas
acontece de modo privilegiado nela. Heidegger refere‑se então à obra como
“acontecer da verdade”. Não cabe aqui justificar de modo suficiente a noção
de verdade em Heidegger, entendida a partir de uma tradução literal do grego
alétheia, “desabrigamento”. Nesse contexto particular, com a devida vênia,
podemos reformular a noção de acontecer da verdade como a fundação de
um ponto de referência ou padrão diante do que todas as coisas, fatos e even-
tos são comparados. Novamente, existe um momento histórico que autoriza
a dizê‑lo e no qual a música chamada hoje instrumental parece ter função
de entretenimento. A música dramática está intimamente ligada à poesia, e
assim Heidegger pode encontrar o lugar da música no mundo antigo entre as
artes aléticas.
Contemporaneamente a situação é bem outra, como atestam as referên-
cias à obra de arte e à música em particular feitas por Heidegger no período
de redação de “A origem da obra de arte” e obras posteriores.33 A referência
mais extensa de Heidegger a um compositor específico, e à música de modo
geral, se encontra no primeiro curso sobre Nietzsche, de 1936, “A vontade
de poder como arte”, na seção intitulada “Seis fatos fundamentais a partir da
história da Estética”. Trata‑se de uma sinopse sobre as relações entre filosofia
e arte, cujo penúltimo capítulo é a filosofia de Hegel, em especial a sua com-
preensão da arte como carecimento absoluto (no passado). O ensaio sobre
a obra de arte fora iniciado no anto anterior e apresentado pelas primeiras
vezes em 1936; ambos os textos pertencem ao mesmo âmbito de discussão.
O surgimento da Estética em sentido estrito, isto é, enquanto disciplina
autônoma, no século XVIII, é o terceiro momento. É a época da “distinção
estética”, para usar os termos de Gadamer, quando a obra de arte é abstraí-
da de “objetivo, função e significado de conteúdo” para ser “pura” obra de
arte.34 O surgimento da Estética equivale à virada cartesiana para dentro da
subjetividade. Só estados internos interessam; eles são a medida de tudo o
Wirkung, org. Dieter Thomä (Stuttgart e Weimar: J. B. Metzler, 2013), 509 s. As principais
referências de Heidegger à música se encontram citadas abaixo.
34 Hans Georg Gadamer, Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica, trad. Flávio Paulo Meurer (Petrópolis: Vozes, 2008), 135 [91].
que seja externo: eis a premissa partilhada. O mundo externo não deixa de
existir, mas se torna inacessível, senão por meio de uma mediação por re-
presentações, que não é neutra, mas constitutiva ou, no mínimo, autorizada.
No ataque de Vincenzo Galilei ao contraponto e ao pitagorismo já se
encontra o germe da posição esclarecida de Rousseau e Diderot. A música
é doravante associada exclusivamente ao sentimento, seja ele impositivo e
violento, seja ele de fruição agradável e leve. A seção 53 da Crítica da facul‑
dade de julgar de Kant é um exemplo de que ambos os sentimentos coexis-
tem, embora não tenham o mesmo teor. O quarto momento é a rejeição da
distinção estética, por parte de Hegel, concomitante com a percepção do fim
da arte, ou seja, que “a arte perdeu a força em relação ao absoluto, a força
absoluta”.35
O momento seguinte não é tanto uma superação dos precedentes, mas
uma resposta a ambos: é a proposta wagneriana de obra de arte total, não
apenas como reunião de todas as artes, mas como dissolução das fronteiras
entre música, poesia, dança, artes visuais etc. Em 1870, no ensaio “Beetho-
ven”, essa noção é atenuada pelo privilégio da música, que Wagner retirou
de Schopenhauer. Corretamente ou não, e certamente sob a influência de
Nietzsche, Heidegger vê em Wagner um acontecimento niilista da maior im-
portância. Wagner radicaliza a Estética ao enfatizar o irracional, as paixões
e o ilimitado, ao mesmo tempo em que toma o partido da arte moderna, no
sentido em que os belos dias da arte não precisam pertencer ao passado.
Sobre esse projeto, Heidegger diz que fracassou, porque a música não pode
tomar o lugar da poesia como arte suprema, e que essa escolha já é de fato
um sintoma da época. É porque o século XIX já não sabe como a poesia pode
ser fundadora é que pode sugerir que a música tome o seu lugar:
O fato de a tentativa de Richard Wagner ter precisado fracassar não reside
apenas no predomínio da música ante as outras artes. Ao contrário, a própria
possibilidade de a música ter, em geral, assumido esse predomínio já tem
sua razão de ser na posição fundamental crescentemente estética em relação
à arte na totalidade. O fracasso da tentativa wagneriana deveu‑se com isso,
antes de tudo, à concepção e à avaliação da arte a partir do mero estado
sentimental, assim como à crescente barbarização do próprio estado senti-
mental, que acabou por se tornar mera efervescência e ardor do sentimento
entregue a si mesmo. [...] Foi preciso que a ascensão até a efervescência
dos sentimentos oferecesse o espaço faltante para uma posição fundamental
e articulada em meio ao ente, o tipo de coisa que somente a grande poesia
e o grande pensamento podem criar.36
Da música do século XIX diz‑se que não se elevou acima do fluxo quase
totalmente desregrado das sensações, e da música de outras épocas nada se
diz. Da poesia já fora dito que é a obra de arte por excelência, nos ensaios
sobre a origem sobre a obra de arte. Agora se afirma que só ela pode sequer
entrar em diálogo com o pensamento a respeito do lugar da arte nos nossos
dias. A música faz companhia às outras artes, no que diz respeito a uma crise
de relevância das artes, mas a poesia – a de Hölderlin, em especial – pode ao
menos apontar essa crise tematicamente, ao invés de passar por cima dela,
como faz Wagner.
Parece que não existe autonomia musical, donde a incapacidade da músi-
ca para guiar uma discussão sobre o lugar da arte no mundo. Uma declaração
do pensador o enfatiza. Em conjunto com a referência a Bach, Mozart e a
Wagner, ela praticamente encerra o conjunto dos textos dedicados à música.
Trata‑se da resposta a um questionário proposto a várias personalidades, em
1962, pela revista Melos. A enquete constava de duas perguntas: se o en-
trevistado conhecia a obra de Igor Stravínski e se a apreciava. A resposta é
como se segue:
a verdade que é decisiva para o nosso ser‑aí histórico”. Todo o resto fica em
aberto, inclusive porque Heidegger solicita aos leitores que considerem nada
mais, nada menos que “o pensar ocidental desde os gregos”, qual a relação
tem Hegel com ele e o que lhe permite falar em fim da arte. 38 Em corres-
pondência privada, Heidegger admite que concordara com Hegel sobre o
caráter de passado da arte, mas também pede que o leitor comece por consi-
derar as diferenças entre o seu pensamento e o de Hegel.39 Fica em aberto se
simplesmente chamamos obras de arte mais entes do que os gregos estavam
dispostos a chamar, ou se até o nome “arte” é usado hoje em um sentido pro-
fundamente distinto, condizente com uma atitude também profundamente
distinta da parte do público. Ora, esta hipótese é muito mais condizente com
o corpus heideggeriano. Mesmo quando Heidegger nos solicita que levemos
em consideração que o seu pensamento não é hegeliano –no que diz respeito
à concepção de verdade‑‑, ele repete que temos uma relação com a arte dife-
rente daquela que os gregos tiveram e que incide de maneira profunda sobre
aquilo que chamamos arte. Quando a arte não é mais uma maneira essencial
e necessária em que acontece uma verdade decisiva para o nosso ser‑aí his-
tórico, isso afeta tanto as obras como o público e o artista. Na poesia de Höl-
derlin, Heidegger pensa ter encontrado um interlocutor, mas não na música.
A resposta à pergunta sobre o estatuto da obra musical como obra de arte
legítima em Heidegger está em aberto, em que pesem as reticências do autor.
Se a essência da arte é ser obra, a música deve ser obra também. Também
nela acontece a tensão entre mundo e terra, nos termos do ensaio sobre a
origem da obra de arte. Historicamente, é também inegável que a música
é uma das artes mais populares, tanto no sentido de apelar a várias pessoas
como no sentido de apelar a pessoas de uma comunidade específica, mas
não de outras. Muitas vezes, peças que não foram compostas e executadas a
partir do propósito específico de ser simbólicas de uma comunidade e de uma
época terminaram por sê‑lo, tal que satisfariam as condições para que sejam
historicamente relevantes.
reunir todos os sentidos principais do termo, donde se lê “junção livre e fugidia” ao invés
de “fuga”. Cf. Casanova, Contribuições à Filosofia, 83.
43 Heidegger, Beiträge zur Philosophie, 9; Casanova, Contribuições à filosofia, 13.
44 Ingeborg Schüssler, “Le système et la fugue: deux modes de penser”, in Mejía,
Referências bibliográficas
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manuel e Schüssler, Ingeborg. Heideggers Beiträge zur Philosophie: Internatio-
nales Kolloquim vom 20.‑22. Mai 2004 an der Universität Lausanne (Schweiz).
Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2009, pp. 85‑102.
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Shuback, Márcia S. C., Trad. Martin Heidegger, Heráclito. Rio de Janeiro: Relume
‑Dumará, 1998.Trad. Martin Heidegger, Heráclito. Rio de Janeiro: Relume
‑Dumará, 1998.
Souza, José Cavalcante de, trad. Os pré‑socráticos, org. José Cavalcante de Souza.
São Paulo: Abril, 1973. (Coleção Os pensadores vol. 1.)
Volpi, Franco. La question du lógos dans l’articulation de la facticité chez jeune
Heidegger, lecteur d’Aristóteles, in: Heidegger 1919‑1929: de l’herméneutique
de la facticité à la métaphysique du Dasein, org. Jean‑François Courtine. Paris:
Vrin, 1996.
Werle, Marco Aurélio, trad. G. W. F. Hegel, Cursos de Estética, II. São Paulo:
EDUSP, 1999.
Werle, Marco Aurélio e Tolle, Oliver, trad. G. W. F. Hegel, Cursos de Estética, II.
São Paulo: EDUSP, 2014.