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Recebido em 22-03-2017 Revista Filosófica de Coimbra

Aceite para publicação em 22-11-2018 vol. 28, n.º 55 (2019)


ISSN: 0872­‑0851
DOI: https://doi.org/10.14195/0872-0851_55_1

A OBRA DE ARTE MUSICAL:


UMA PERGUNTA PARA HEIDEGGER
THE MUSICAL WORK OF ART: A QUESTION FOR HEIDEGGER

CLAUDIA DRUCKER1

Abstract: Heidegger’s thinking on the arts has considered poetry in the first
place, and then the visual arts. Music goes almost unmentioned. From works and
composers it is never stated that they reach historical relevance (at least in the
foundational sense that the thinker gives the terms). At the same time, Heidegger’s
thinking about the work of art could not fail to encompass music and influence later
approaches, even if it just deconstructs established certainties. In this article, I try to
expose the dual direction that characterizes the main lines of Heidegger’s thinking
about music and some of its implications.
Key­‑words: Hermeneutics ­‑ Esthetics ­‑ deconstruction ­‑ language ­‑ poetry

Resumo: O pensamento de Heidegger Zusammenfassung: Heideggers


sobre as artes considerou a poesia, em Denken an die Künste hat die Dichtung
primeiro lugar, e depois as artes plás- in Betracht gezogen, zuerst, und dann
ticas. A música quase não é citada. De die bildende Künste. Die Musik wird
obras e compositores afirma­‑se que não kaum erwähnt. Von Werken und Kom-
alcançaram relevância histórica (no ponisten bestätigt man nie, daß sie ge-
sentido fundacional que o pensador dá schichtliche Bedeutung erreicht haben
aos termos). Ao mesmo tempo, o pen- (wenigtens nicht im grundlegenden
samento de Heidegger sobre a obra de Sinne, daß der Denker meint). Glei-
arte não poderia deixar de abarcar a chzeitig sollte Heideggers Denken an
música e influenciar abordagens pos- das Kunstwerk die Musik umarmen und
teriores, mesmo que maneira negativa, nachfolgende Untersuchungen beinflus-
desconstruindo certezas sedimentadas. sen. Das ist der Fall, eben wenn dieser
No presente artigo, tento expor a dupla Einfluß negativ ist und sedimentierten
direção que caracteriza as linhas prin- Gewissheiten dekonstruiert. In diesem
cipais do pensamento heideggeriano Artikel versuche ich die doppelte Rich-

1  Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Email: claudia.drucker@ufsc.br ORCID: 0000­‑0003­‑1921­‑9611

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8 Claudia Drucker

sobre a música, bem como algumas de tung anzuführen, die die Grundzüge des
suas implicações. Gedanken Heideggers über Musik und
einige ihrer Auswirkungen charakterisi-
Palavras­‑chave: Hermenêutica – ert.
Estética – desconstrução – linguagem
– poesia Schüsselwörter: Hermeneutik –
Ästhetik – Dekonstruktion – Sprache –
Dichtung

Historicamente, a música comparece no pensamento ocidental como a


única arte que também é uma ciência. No seu sentido mais alto, seria uma
arte excepcional, porque dispensa a audição. A educação musical elabora-
da pela cultura cristã se caracterizou por certo amálgama de várias teorias
antigas, como a síntese boeciana de ensinamento prático e aposta na músi-
ca como cognição. Apesar de não ter jamais alcançado a unanimidade, essa
síntese foi forte o suficiente para inserir a música no quadrivium e separá­‑la
das outras artes.
Por meio de muitas reviravoltas, já bem mais perto da nossa época, a mú-
sica veio a ser concebida como o oposto completo de uma linguagem univer-
sal que ultrapassa o homem, e ao mesmo tempo lhe descortina uma verdade.
Os filósofos esclarecidos propuseram a sua libertação, tanto quanto possível,
das regras da boa composição, em favor da expressão individual livre. Com
poucas exceções, a música se tornou a arte subjetiva por excelência, o veí-
culo de uma interioridade que clama o seu direito a aparecer no mundo. Por
ser a arte para a qual algumas vezes não importa a posição espacial da sua
fonte em relação ao ouvinte, é considerada a menos espacial de todas. Seria
a mais capacitada de exteriorizar estados internos, embora não seja a arte
superior. Finalmente, ela volta a ser a arte mais verdadeira, como porta­‑voz
da vontade universal.
Simplificadamente, se esse for o arco que reúne as contribuições princi-
pais à filosofia da música, então muitos dentre nós não nos encaixamos facil-
mente nele. A noção de que a música seja quase uma astronomia audível tem
uma conotação antipsicologista que agrada a sensibilidade contemporânea,
mas, ao mesmo tempo, a afasta por reivindicar um saber alternativo. Nos
pitagóricos, o público contemporâneo sente a falta de uma distinção explícita
entre arte e ciência, mesmo o público que suspeita do realismo. Muitos já se
ressentiram de uma atitude puramente estética diante da arte, que rebaixa as
obras de arte à função de deflagradora de sentimentos histórica e moralmente
irrelevantes. Schopenhauer e Nietzsche, que levam ao ápice a concepção de
música como o território da expressão da paixão e a dignifica. Essa postura
poderia ser sedutora em épocas de recusa de toda forma de repressão do dese-
jo, se o seu realismo e irracionalismo também não nos parecessem já datados.

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Se aceitarmos que houve uma mudança de atitude e sensibilidade que


caracteriza o pensamento contemporâneo, então Heidegger é um dos que
a articularam. No presente ensaio, vai ser tomado como um formulador de
anseios que encarnou como poucos o seu século de ânsia pela transformação
da filosofia, graças à sua influência desconstrutiva sobre a Estética e contri-
buição para uma abordagem hermenêutica. No que diz respeito a problemas
musicais, contudo, sua contribuição é quase involuntária. A declarações de
Heidegger sobre a música dão a entender que ela não é uma das artes histo-
ricamente relevantes, a menos que esteja unida à poesia.
As bases para a filosofia da arte de Heidegger independem da considera-
ção da arte e a precederam. Seguindo a trilha de Husserl, rejeitou o solipsismo
e o psicologismo. Essa motivação é tão forte que as preleções preparatórias
de 1925­‑6 sobre Lógica, um dos textos de base para a redação final de Ser
e tempo, são precedidas por um “Prolegômeno” intitulado “O psicologismo
e a questão da verdade”.2 Além disso, o pensador ajudou a transformar
Nietzsche, o aniquilador da moral, da metafísica e da autonomia subjetiva,
em uma referência básica da filosofia do pós­‑guerra, principalmente a filoso-
fia francesa. Desconstruiu a teologia como fundada na metafísica tradicional,
antes que na vivência da fé.
Por trás de todas essas investigações se encontra a insistência constan-
te no descentramento da existência e sua exposição originária. Nosso es-
tar no mundo, de uma forma pré­‑consciente, ou pré­‑temática, para usar o
vocabulário fenomenológico, é o ponto de partida legítimo e inescapável
do pensamento. Estamos dispersos no mundo, desde sempre, e esta condi-
ção inviabiliza qualquer pretensão à objetividade. Donde a substituição de
noções pseudo­‑objetivas como “animal racional” ou “imagem e semelhança
de Deus” pela noção de um modo de ser que já está desde sempre “aí”. Ao
invés de usar termos filosóficos tradicionais, Heidegger toma palavras do uso
cotidiano e lhes dá um outro sentido, ou simplesmente as remete a um senti-
do que ficou esquecido. No substantivo ser­‑aí, a ênfase está na copertinência
de ser e aí.
Igualmente determinantes são as estruturas da existência, que são tira-
das da latência cotidiana, como o estar lançado (ou Geworfenheit), traduzi-
do por Márcia Shuback como “estar lançado” e por Fausto Castilho como
“dejecção”.3 A condição de ser lançado do ser­‑aí está na base de uma rede
semi­‑estável de significados partilhados. O ser­‑no­‑mundo desde sempre

2  Martin Heidegger. Logik. Die Frage nach der Wahrheit. (Frankfurt: Klostermann,

1995), 31. (Gesamtausgabe vol. 21.)


3  Martin Heidegger, Sein und Zeit (Frankfurt: Klostermann, 1977), 180; Márcia S.

C. Shuback, trad. M. Heidegger, Ser e tempo (Petrópolis: Vozes, 1995), 189; F. Castilho,
trad. M. Heidegger, Ser e Tempo (Campinas: UNICAMP; Petrópolis: Vozes, 2012), 387.

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habita uma configuração contingente de associações e referências. O que


não é contingente é que uma configuração qualquer sempre já vai ser en-
contrada, sem que demos conta disso. Todavia, não temos aqui uma filosofia
do senso comum, pois este já não é mais o solo mais básico sobre o qual
nos movemos. O senso comum pode caducar e vir ser substituído por um
novo. Heidegger jamais deixa de sublinhar a possibilidade de uma ruína dos
significados sedimentados e como, do ponto de vista do senso comum, essa
ruína se converte em experiência da falta de um fundamento, ou angústia (no
sentido que dá à palavra). Em suma, a existência tem um caráter pendular:
ora ela se vê cercada por um mundo articulado, ora ela pende no abismo –que
não é um abismo absoluto, mas a experiência do caráter contingente de toda
cultura constituída. A existência humana pende entre extremos: o sentido
sedimentado e a ruína do sentido que acomete o ser­‑aí quando se depara com
a sua condição sem poder verbaliza­‑la com o auxílio do sentido sedimentado.
Nem sentido sedimentado nem ruína de sentido, tomados isoladamente, são
estados que descrevem de forma fiel o que somos, nem é superior ao outro.
Se o ser­‑aí como ser­‑no­‑mundo foi tão negligenciado na história da
filosofia, é justamente porque a sua inevitabilidade nos torna cegos para ele.
Lançamento e entrega são ainda mais operativos e poderosos porque não se
prestam à contemplação distanciada. A forma mais constante e, nesse senti-
do, operante do estar no mundo é a ocupação e até o trabalho. A passividade
ou receptividade iniciais do ser­‑aí não são incompatíveis com o viés prático
de Ser e tempo; muito ao contrário reforçam­‑no. O eu com que nos depa-
ramos “imediatamente e na maior parte das vezes” é aquele que ocupa um
lugar no mundo, como professor, banqueiro ou padeiro, e interage com
outros a partir de tal lugar.

1.  Teoria fisiológica e abordagem hermenêutica do som.

Alguns elementos básicos da analítica existencial de Ser e tempo, men-


cionados apenas de passagem, incidem diretamente sobre o tema da audição
e da música. Em primeiro lugar, decorre deles uma desconstrução da con-
cepção empirista da percepção. Refiro­‑me a toda doutrina que suponha uma
série de impactos ou impressões sobre nosso corpo e que então são reunidos.
Se o rótulo abrange o empirismo britânico, já abrangera antes o estoicismo,
segundo o qual o corpo afetado dá o seu assentimento à afecção.4 A audição
não é explicável pela teoria da unificação de pedaços separados de impres-

4  Løkke, Håvard. “The Stoics on Sense Perception”, in Simo Knuuttila e Pekka


Kärkkäinen (org.) Theories of Perception in Medieval and Early Modern Philosophy,
(s/l, Springer, 2008), 36.

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sões. Nós desde sempre ouvimos vagões que rangem, motocicletas, colunas
militares marchando, o Vento Norte, o pica­‑pau que bica e o fogo que crepi-
ta.5 A audição só é o que é por pertencer a um conjunto integrado. Um puro
percepto é uma construção intelectual. A audição de puros sons é um ponto
de chegada, resultante de uma operação de reconstrução.
Para Heidegger, encontramos sempre, de saída, um som mundanizado
ou um mundo sonoro. Não há síntese interior que possa explicar o que já foi
dado desde sempre como união –não apenas união dos cinco sentidos, mas
antes, e principalmente, união do homem aberto ao seu mundo. A “paisagem
sonora” só existe para o ser­‑aí e em vista deste, em vista da sua orientação
articulada para aquilo que não é ele mesmo.
O musicólogo canadense Raymond Murray Schafer criou o conceito de
paysage sonore ou soundscape.6 Em paralelo com a disciplina da ecologia, a
ecomusicologia trata o ambiente sonoro como um recurso que pode se degra-
dar, e pelo qual devemos nos tornar responsáveis. Assim, uso esse termo fora
do seu contexto inicial, pois a paisagem sonora de que fala a hermenêutica é
coetânea ao homem. Não existe paisagem sonora que possa ser colonizada
pelo ruído incessante e monótono das máquinas, ou devolvida aos sons cícli-
cos e ocasionais da natureza, como paisagem natural. A paisagem sonora co-
lonizada pela técnica ou a paisagem sonora do indígena, de baixa interferência
sobre a natureza, são iguais, hermeneticamente falando. A paisagem sonora,
mesmo uma que fosse anterior a qualquer intervenção civilizatória, já é es-
cutada ao modo como o ser­‑aí pode escutar, ou seja, articulada como sentido.
Uma abordagem semântica que buscasse identificar uma categoria de
sentido aplicável à audição também seria estranha a Heidegger. Originaria-
mente falando, não existe um ente em particular que tenha sentido ou uma
palavra que tenha seu significado definitivamente delimitado. Não se per-
gunta aqui pelo sentido de sons dados na paisagem sonora ou depurados e
organizados como música, pela mesma razão por que não se pergunta por
perceptos abstratos. O sentido é “aquilo em que se mantém a compreensibili-
dade de algo”; é “o que é articulável na abertura compreensiva”.7 Há sentido,
antes de coisas e palavras terem sentido. Só há sentido na prática e significa-
do das palavras por uma derivação ou modificação da conjuntura mundana
que o ser­‑aí desde sempre encontra. Será preciso voltar a esse ponto, quando
o tema for a origem da linguagem.

5  Heidegger, Sein und Zeit, 217, Shuback, Ser e tempo, 222, Castilho, Ser e tempo,
461.
6 
Raymond Murray Schafer. The Tuning of the World (Random House, 1977).
7 
Heidegger, Sein und Zeit, 201. Trad. minha. Cf. Shuback, Ser e tempo, 222. Castilho,
Ser e tempo, 429.

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Assim, na história da filosofia da arte, nunca houve uma distância


“ótima” entre nós e as coisas. A interpretação objetiva afasta demais as coi-
sas de nós, como se nada tivessem a ver conosco. A interpretação empirista
as aproxima de nós em demasia. Quando considera as coisas como parte
de uma corrente de sensações, esta interpretação nos constrange (rückt uns
zu sehr auf den Leib) . “Em ambas as concepções, a coisa desvanece­‑se”.8
Trazendo estas palavras para a história da teoria da música, encontramos des-
crições objetivas e empiristas da música e da audição. Segundo um esquema
um pouco arbitrário, pois será justificado precariamente, vou me limitar a
assinalar dois momentos centrais na busca de um fundamento natural para a
música, um antigo e um moderno. A tradição pitagórica postulou a música
das esferas, isto é, a noção de que cada planeta produz a sua altura própria
ao cruzar o céu, e que todas as alturas produzem um acorde perfeito. Esse
acorde estaria baseado em combinações da tétrade, ou conjunto dos quatro
primeiros números naturais, em diferentes proporções. A sua dignidade con-
siste menos em ser ouvido do que em ser compreendido. No que diz respeito
à aritmética e à geometria (duas ciências inseparáveis no mundo grego), os
pitagóricos se interessaram pelas propriedades dos números inteiros, ou com
frações de números inteiros, e só deles. Assim, “trataram dos aspectos do
som musical que podem ser numerados com números inteiros. Isto significou
que sua atenção estava focada sobre intervalos musicais [desse tipo], pois
estes se prestam prontamente à expressão numérica”.9 Nem todas as frações
de números inteiros foram privilegiadas, mas apenas as contidas dentro da
tétrada, isto é, os quatro primeiros números inteiros que, somados entre si,
resultam em 10. Mais tarde esse conjunto é chamado por Zarlino o quartena‑
rio, em oposição ao senario, ou conjunto de tudo o que está incluído dentro
do número 6 e que o próprio Zarlino empregou.10
O modo de medir e controlar relações numéricas preferido dos antigos
foi usar cordas de comprimentos diferentes, usando um instrumento de uma
só corda criado para esse propósito: o monocórdio. O monocórdio, como o
nome diz, consiste em uma corda esticada sobre uma base, oca ou não – há
modelos que se valem de uma pequena caixa de ressonância. Sobre a corda
esticada, um traste deslizável permite dividir a corda em frações, encurtando­
‑a. Os pitagóricos experimentaram tocar cordas cujos comprimentos estavam

8  Martin Heidegger, Ursprung des Kunstwerkes, 11, I. Borges­‑Duarte e F. Pedroso,

“A origem da obra de arte”, in Caminhos de Floresta (Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2002), 16.
9   Crocker, Richard L. “Pythagorean Mathematics and Music”, The Journal of

Aesthetics and Art Criticism, v. 22, no. 2 (Winter, 1963), 192.


10  Stuart Isacoff. Temperament. How Music became a Battleground for the Great

Minds of Western Civilization (Nova York: Vintage, 2003), 137.

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uns para os outros em proporções envolvendo os números 1, 2, 3 e 4. Um dos


pilares do pitagorismo é justamente a correspondência entre as proporções
encontradas dentro do quaternário, mediadas pelo uso de cordas vibrantes
de comprimentos proporcionais entre si, e as relações harmônicas entre as
notas musicais. Uma corda que seja o dobro de outra vai produzir a mesma
nota uma oitava acima. A quinta corresponde ao som emitido por uma corda
que seja limitada a 2/3 da extensão inteira inicial. No caso de a corda inteira
emitir uma nota dó, a corda encurtada emite uma nota sol da escala acima.
Um número de trabalhos recentes retomou as ideias musicais do século
XVI, tanto nas suas variantes neoplatônicas e neopitagóricas, como nas mais
iconoclastas. Vincenzo Galilei, o pai do famoso físico, argumentou em 1581
que tais frações só funcionam ceteris paribus. Ele mudou a espessura ou
tensão de diferentes cordas para mostrar que as frações pitagóricas já não se
verificavam por comparação.11 A seu ver, os antigos formularam uma geo-
metria do som, mas não uma física.
Na segunda metade do séc. XVII, a disciplina que investiga a física do
som foi nomeada e suas investigações levadas adiante. Também se torna
possível uma descrição objetiva da música, por exemplo, como uma suces-
são organizada de diferentes alturas verticais (notas) e horizontais (tempo).
A sucessão das alturas na música se distingue do som aleatório por obedecer
a regras –por exemplo de sucessão harmônica­‑­‑ enquanto a sucessão das uni-
dades de tempo é regulada pelo ritmo e padrões métricos. Enquanto as regras
de composição são obviamente variáveis histórica e culturalmente, pergunta­
‑se sobre o substrato natural em que estão fundadas: o som como fenômeno
físico e as relações de consonância e dissonância.
Concomitantemente, a série harmônica foi sendo progressivamente des-
crita e sugerida como um fundamento natural das regras harmônicas. A série
harmônica é um fenômeno acústico que consiste numa sequência de notas
relativas a uma nota mais baixa. Dada uma nota qualquer, outras notas vão
ressoar junto com ela em intensidade decrescente, sempre na mesma ordem.
Rameau foi possivelmente o teórico mais importante do século XVIII ao se
basear na série harmônica para justificar as progressões de acordes corretas.
Embora ambos estejam muito distantes sob outros aspectos, o pitagorismo
postula uma ordem natural, assim como fará o influente teórico Rameau, o
alvo da polêmica de Rousseau.
Finalmente, temos o reforço mútuo de ciência acústica e psicologia, no
século XIX, com Helmholtz. Segundo uma abordagem psicofísica, o som
é a face subjetiva de um fenômeno físico palpável. Ao som definido objeti-
vamente como onda dotada de frequência vem se somar uma explicação do
nosso aparelho auditivo como capaz de interagir com ele. O físico descreveu
11  Isacoff, Temperament, 143.

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o ouvido humano com base em um aparelho que ele mesmo construiu, no


formato de câmara vibratória: o ressonador. 12 O ressonador de Helmholtz se
assemelharia ao ouvido humano, pois sofre o impacto das ondas sonoras, ao
invés de produzi­‑las. É usado até hoje para medir rebatimentos indesejáveis
de frequências.
Ao contrário, para Heidegger o fato de termos um aparelho sensorial
não prova que o som é uma onda mecânica; só prova que podemos conce-
ber também a nós mesmos como corpos dotado de propriedades físicas que
complementam as de outros corpos, e que essa abordagem objetiva é eficaz.
O ressonador de Helmholtz tem sua utilidade, mas não a de servir como um
modelo para a audição humana:
De fato, escutamos uma fuga de Bach mediante os ouvidos, mas não poderí-
amos jamais escutar uma fuga de Bach com os ouvimos, se considerássemos
que o escutado enquanto onda sonora que percute o tímpano. Nós escutamos,
não o ouvido. Decerto escutamos mediante o ouvido, mas não com o ouvido,
se “com” significa, aqui, que o ouvido é o órgão sensorial que nos transmite
o escutado.13
Pode ser inclusive o caso, como acrescenta o pensado, de alguém escutar
grandiosamente mesmo sem o auxílio do aparelho sensorial, como Beetho-
ven. A música das esferas tampouco cabe dentro da analítica existencial do
ser­‑aí, no sentido em que não há nada para entender se não for entendido
como o ser­‑aí entende.
A abordagem originária de Heidegger implica que as teorias rivais não são
propriamente erros. Elas só não são originárias. São interpretações que não
sabem que o são, fundadas na abertura compreensiva que é velada pela emer-
gência de um mundo compreensivo articulado. As opções por congelar o som
em uma frequência física, ou como uma idealidade, são tomadas como uma
“confirmação” de que os projetos históricos do ser­‑aí permitem a interpretação
do som desta maneira. A fisiologia moderna e o conjunto da ciência natural
não são recusados como mais um dado cultural entre outros, dissolvendo­‑se no
relativismo. As abordagens não­‑hermenêuticas e não­‑fenomenológicas são fal-
sas se tomadas por si mesmas, como válidas absolutamente, mas atestam que,
antes de a cultural ocidental fazer essa escolha, existe um nível mais originário.

12  “Ele foi o primeiro a compreender plenamente que a análise da consonância ou

dissonância, para não dizer nada da existência de tons combinados e de timbres de instru-
mentos musicais combinados exigia mais do que a física da estrutura vibrante. A análise
tinha que incluir a interação do som provindo da fonte da vibração sobre outra estrutura
vibrante, o ouvido humano.” James Bell, C. Truesdell e Murray Campbell, “Physics of
Music”, in Grove Music Online, ed. Deanne Root. 23 de fevereiro de 2017. http://oxford.
online.com. Tradução minha.
13  Martin Heidegger, Der Satz vom Grund (Frankfurt: Klostermann, 1997), 70.

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O mesmo se pode dizer do empirismo. O empirismo pressupõe que coi-


sas imprimem a sua marca sobre nós, tomando o nosso corpo como o corre-
lato passivo capaz de receber o correlato ativo. O corpo está para o mundo
como a lacre está para o sinete. Em contraste, não só a audição pode ser
reformulada, mas toda a fenomenologia da percepção é reformulada a partir
de Ser e tempo; todos os sentidos passam a ser situados no mundo. O nosso
habitar o espaço, o nosso ser um corpo todos podem ser traduzidos para a
linguagem da dejecção ou ser jogado no mundo desde sempre. Desde sempre
o mundo é significativo para nós em todos os seus aspectos, mas esses senti-
dos estão à espera de uma articulação sempre histórica e contingente. Essas
são possibilidades humanas, metade escolhidas e metade determinadas pelo
mundo como um mundo histórico particular se atualizou. A prioridade do
estar no mundo perpassado por uma série de remissões determina a relação
de Heidegger com o ouvir, por contraste com uma premissa empirista de que
as coisas imprimem em nós a marca que já têm.
Nossa imersão primeira em um mundo sonoro é o que faz com que um
aparelho auditivo seja operativo. Ele não nos serviria, se não fôssemos orien-
tados na nossa constituição para a audição, isto é, para um exterior mini-
mamente compreensível. Puros sons, se existissem, já seriam desde sempre
captados junto com uma conjuntura contingente de sentidos, de tal forma que
só se pode falar em um som idêntico a si mesmo de maneira aproximativa,
quando ouvido em situações e mundos distintos.
O pensamento de Ser e tempo não procede tanto por refutação, mas muito
mais por recuo e inclusão. A história da filosofia é uma espécie de confirma-
ção da abordagem originária, incluindo a adoção, por parte dos filósofos, do
quadro conceitual da ciência natural. Definir o que mais essencial à música
recorrendo a uma fórmula como a da sucessão organizada de diferentes al-
turas verticais (notas) e horizontais (tempo) e a nossa audição como voltada
essencialmente para essas qualidades é a “prova” do esquecimento da nossa
condição primeira, que é a compreensão, ao invés de provar que a abordagem
objetiva está correta porque leva a resultados palpáveis, na prática cotidiana.
Não se nega que as descobertas de Helmholtz e seus predecessores ilustres
nos ajudem a construir instrumentos musicais de som mais nítido, ou que
tenham proporcionado à música ocidental um alcance jamais sonhado pelas
outras, com a introdução de novos sistemas de afinação. A questão é explicar
esse progresso como impelido apenas pela curiosidade e experimentação, ou
acrescentar a essas faculdades uma imersão histórica e cultural.
Heidegger afirma ao mesmo tempo seu caráter derivativo, além de
tremendamente eficaz. O derivativo também pode muito bem ser o que
encobre, quando é tomado pelo originário. Dá­‑se então um esquecimento
ou repressão do originário. As interpretações são verdadeiras no sentido em

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que são possibilidades do ser­‑aí, da sua compreensão e autocompreensão,


mas são falsas no sentido em que encobrem a relação originária do ser­‑aí
com o som, se a tomamos abstraindo da sua relação precisamente com a
existência. Eis a direção em que o pensamento posterior de Heidegger vai
se encaminhar, ou seja, tomando­‑a como o ponto de interseção de todos os
outros comportamentos do ser­‑aí. No caso específico da música, todavia, não
é possível fazê­‑lo sem levar em consideração seu copertencimento à poesia.

2.  A escuta como primeiro ato da fala.

Heidegger não visa reformular a filosofia da percepção, a não ser de


modo secundário. A transformação na filosofia visada pela hermenêutica se
mostrará em todo o seu alcance, se abordarmos a importância da compreen-
são. Esta última se mostra muito antes na fala do que no som.
Por tudo o que foi dito até agora, é apenas coerente que o movimento de
recuo constante em direção ao mais originário também marque o esboço de
uma filosofia da linguagem heideggeriana. O projeto de uma filosofia exis-
tencial da linguagem está ao menos indicado no curso Lógica: a pergunta
sobre a verdade e em Ser e tempo, mesmo que não plenamente desenvolvido.
Interessa a Heidegger a prática cotidiana da fala como origem de qualquer
futura tomada de posição sobre temas de uma filosofia da linguagem como a
proposição e o significado. O fenômeno da compreensão cotidiana precisaria
ser delimitado antes que se pudesse confrontar com a lógica no seu próprio
território, por assim dizer. Não se trata de desistir da lógica, mas de remetê­
‑la ao seu solo e de não aceitar as suas premissas. O fio condutor da filosofia
heideggeriana da linguagem não é conteúdo da proposição, seja ele referido
a dados dos sentidos ou a relações, sendo que as proposições são compreen-
didas pela mente em situação de ócio. A linguagem não é retirada da situação
em que ocorre primeiramente: a lida prática. Ainda assim, o tema da com-
preensão se encaminha antes para ser abordado no âmbito da linguagem do
que na música.
A linguagem, segundo Heidegger, precisa ser compreendida a partir
do que é mais básico. A lida prática cotidiana é o estado em que nos en-
contramos na maior parte das vezes, e ela se organiza em torno de tarefas.
A existência tem uma estrutura teleológica, entendendo com isso que as tare-
fas são determinadas por propósitos ou finalidades, e fazemos algo para obter
algo mais. O direcionamento para tarefas não se encarna tanto em gestos
corporais, embora os envolva, mas principalmente na compreensão. A com-
preensão está na base da linguagem: “a linguagem (Sprache) só é possível
porque há compreensão, isto é, o ser­‑aí, ao qual a estrutura do compreender

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(des Verstehens) pertence”.14 De fato, o verbo escolhido, verstehen, não por


acaso também significa “escutar”. Aqui, trata­‑se de escutar o modo como o
ser­‑aí estrutura o seu mundo prático cotidiano, tomado como origem existen-
cial da linguagem.
A lida cotidiana faz suas conexões teleológicas, as únicas dentro das
quais algo inicialmente aparece “como” algo. O instrumento aparece como
esse ou aquele (p. ex., um martelo), de acordo com a tarefa determinada
que o pôs no meu campo de trabalho (circunvisão). Além de martelar com o
martelo, também posso deparar­‑me com ele enquanto martelo. Não se trata
de tomar uma distância contemplativa absoluta em relação à lida prática,
perguntando, socraticamente, o que é um martelo. Sem que o instrumento
deixe de ser instrumento, podemos modificar a nossa relação com ele e toma­
‑lo como tema da sentença. A intenção do autor foi explicar a gênese prática
da proposição.
Heidegger aceita que as sentenças tenham a estrutura da síntese e diére-
se, associação e dissociação, já indicada por Aristóteles e por boa parte da
lógica posterior. Junção e separação são as relações principais que podem
existir entre sujeito e predicado, pois o predicado pode ser afirmado do sujei-
to, ou negado dele. A estrutura vazia e formal da síntese e diérese, contudo,
está baseada na compreensão prática cotidiana, e precisa ser preenchida pela
analítica existencial. As operações fundamentas do discurso são remetidas a
nexos prático­‑fáticos.
Pode­‑se dizer que a linguagem sofre uma “operação de ontologização”.15
Não se pode duvidar de que o mundo se presta à linguagem; ambos estão
mutuamente referidos. As relações internas à proposição são o vestígio de
uma articulação de sentido encontrada desde sempre, por assim dizer. Quan-
to mais se recua, mais se caminha na direção de um imbricamento sempre
já dado de ser­‑aí e mundo. Uma das estruturas desse imbricamento é a com-
preensão, articulada em sentenças. Contudo, a ontologização não significa
que existe uma linguagem objetiva e silenciosa da natureza, copiada pela
língua humana audível. Esta não é um espelho objetivo do mundo que dis-
pensa o ser­‑aí nem é um mecanismo autônomo, arbitrário ou convencional.
No limite, a linguagem surge da significatividade reunida do mundo, mas só
existe mundo significativo por causa das relações que o ser­‑aí entabula com o
seu “aí”.
A sentença dissocia o martelo do contexto onde se mostrou como tal
inicialmente, sem abolir o contexto. Mediante a dissociação o instrumento

14 M. Heidegger, Logik, 151.


15 Franco Volpi, “La question du lógos dans l’articulation de la facticité chez le
jeune Heidegger, lecteur d’Aristóteles”, in Jean­‑François Courtine (org.) Heidegger 1919­
‑1929: de l’herméneutique de la facticité à la métaphysique du Dasein, (Paris: Vrin, 1996), 56.

Revista Filosófica de Coimbra — n.o 55 (2019) pp. 7-34


18 Claudia Drucker

não mais aparece como bom para algo, mas aparece em outras associações
pertinentes à linguagem. A sentença promove uma nova forma de associação
–ainda vinculada à primeira—como associação de significados capazes de
mostrar aquilo que está diante do ser­‑aí, e promove uma dissociação como
abstração do seu nexo teleológico inicial. Na sentença se encontra o vestígio
daquela relação inicial de lida comprometida com tarefas, subjugado ao fator
mais decisivo, a saber, que na sentença algo se mostra como o que é –e não
para que é. Eis como na origem da sentença se encontram operações pré­
‑conscientes de síntese e diérese conforme a sentença.
A sentença está existencialmente mais próxima da compreensão do que
a audição. É nela que o sentido gerado existencialmente pelos nexos teleoló-
gicos dentro dos quais o ser­‑aí se move se tornam portadores da verdade. Foi
dito acima que a percepção é situada. Ela nunca está sozinha, como sensação
simples, mas carrega consigo uma série de significados. Ainda assim, pode-
mos dizer que a percepção depende da linguagem muito mais do que a lin-
guagem depende dela. Eis um padrão que não se alterará no pensamento pos-
terior de Heidegger, a saber, a interdependência de compreensão e palavra,
o que torna bastante difícil justificar uma compreensão puramente musical.
Isso é verdade mesmo quando concordemos que Heidegger participa de
uma tendência à demoção do sentido da visão como sentido principal e subs-
tituição da visão pela audição como porta­‑voz da verdade. Nunca é seguro
seguir um rastro de influências, mas é possível dizer que Heidegger se insere
dentro de uma tendência da hermenêutica que lhe é anterior, e privilegia a
palavra em detrimento da imagem. Antes disso, Schopenhauer e Nietzsche
haviam proclamado a superioridade da música.16 Por um lado, a audição
se torna a maior prova da nossa receptividade originária, da nossa entrega
lançada no mundo. Por outro lado, a articulação pela linguagem é a mais
originária e a mais verdadeira do que aquela onde o som está presente, sem
a palavra.
Podemos suspeitar que seriam possíveis uma síntese e diérese musicais?
Em 1955 ou 1956, Heidegger chega a se referir a Mozart como “um dos
mais ouvintes dentre os ouvintes”.17 Ora, o estar lançado originário do ser­‑aí,
ainda que não audível, poderia descrito como um acordo não aleatório – se
este acordo puder ser articulado em sons, estaremos diante de uma defini-
ção possível de origem da música. Como apontando, segundo a analítica
existencial não há distância reflexiva possível em relação ao existir, e todas
as expressões que poderiam dar a entender que essa distância é possível são
evitadas, como “tomar consciência de si em uma situação” ou “perceber a si

16 Martin Jay, Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth Century French
Thought (Berkeley: University of California Press, 1993), 265.
17  M. Heidegger, Der Satz vom Grund, 100.

pp. 7-34 Revista Filosófica de Coimbra — n.o 55 (2019)


A obra de arte musical: uma pergunta para Heidegger 19

mesmo dentro de uma situação”. O eu não é abolido, mas é tratado como um


fenômeno de superfície, o epifenômeno de um acontecimento mais profundo
que desafia as noções de autonomia e individualidade. Quando o eu conse-
gue tomar um mínimo de distância frente aos significados sedimentados em
que se move, isso raramente se deve a um ato volitivo consciência, mas a
uma mudança no nível dos sentimentos.
A rigor, Heidegger evita falar em sentimentos, dando preferência à “afi-
nação” – Stimmung, palavra polissêmica que pode ser traduzida simultanea-
mente por “atmosfera”, concordância” e “afinação”. As traduções para o por-
tuguês disponíveis são escolhas que tentam abarcar as quatro direções que se
quer indicar: acordo, estado anímico, afinação, e pertencimento a uma “at-
mosfera” ou ambiente. 18 Existe um acordo do externo com o interno que é
muito simplesmente a forma como ambos são encontrados ao mesmo tempo,
e quase como se foram o mesmo. Ocasionalmente, verifica­‑se que afinação e
sentimento são entendidos como sendo o mesmo.19 Além disso, o sentimento
é entendido como concordância não­‑aleatória e até mesmo potencialmente
audível, o que poderia justificar que um compositor seja um grande ouvinte.
No entanto, esta direção não é seguida. O padrão da prioridade da pala-
vra sobre o som – ou, no mínimo, da inseparabilidade de palavra e música
– não se altera na obra subsequente de Heidegger, embora encontre outras
formulações. É o que se depreende da raridade de comentários heideggeriano
sobre a música. Nisso Heidegger segue a grande maioria dos filósofos, para
quem a arte da palavra é superior à arte dos sons organizados. Considere-
mos algumas menções posteriores à linguagem – melhor dizendo, ao lógos.
Em meados da década de 1930, Heidegger se volta para a Grécia antiga e
leva para lá o seu método de exploração dos sentidos das palavras. Vou me
referir ao seu tratamento de lógos, advertindo que se trata de um termo muito
anterior a outros já usados até aqui, como “lógica” (que deriva de lógos) ou

18  Shuback: “disposição”, Ser e tempo, 188; Castilho: “estado de ânimo”, Ser e tempo,
383, Marco Antônio Casanova: “tonalidade afetiva”, trad. M. Heidegger, Nietzsche I (Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2007), 91.
19  Como na passagem: “o sentimento não é nada que transcorra apenas na ‘interiorida-

de’, mas é aquele modo de ser fundamental de nosso ser­‑aí, por força do qual e de acordo
com o qual já sempre somos alçados para além de nós mesmos em direção ao ente em
sua totalidade, ao ente que nos diz respeito ou não de um modo ou de outro. Tonalidade
afetiva não é nunca um mero ser afinado em uma interioridade estabelecida por si, mas
é sempre, em primeiro lugar, um deixar­‑se afinar em meio a tal ou tal tonalidade afetiva.
A tonalidade é, precisamente, o modo de ser fundamental como nos encontramos fora
de nós mesmos. No entanto, é assim que somos essencial e constantemente”. Casanova,
Nietzsche I, 92, trad. Martin Heidegger, Nietzsche I (Frankfurt: Klostermann, 1996), 100.
(GA 6.1)

Revista Filosófica de Coimbra — n.o 55 (2019) pp. 7-34


20 Claudia Drucker

“sentença”, mas não se confunde com eles, nem há ponto de contato ime-
diato entre a reflexão sobre o lógos e o que normalmente se chama lógica. Se
em Ser e tempo era necessário recuar às estruturas existências para recons-
truir a partir delas uma lógica e uma filosofia da linguagem, aqui se trata de
recuar mais ainda na história, de modo que nem o pensamento de Ser e tempo
tem uma conexão imediata com o que Heidegger busca agora.
Não existe uma sentença aristotélica literal que enuncie ánthropos zôon
lógon échon: “o homem é o animal dotado de fala”. Há sentenças próximas
a esta, mas nenhuma idêntica. Na Ética a Nicômacos 1098a1: leípetai dè
pratiké tis toû lógon échontos zôou, “resta a atividade específica do animal
que tem lógos”; na Política: (1253a10), lógon dè mónon ánthropos échei
tôn zôon”: “entre os animais, só o homem tem lógos”. Nas duas citações,
importa demarcar a atividade específica do homem frente aos animais. Por
razões históricas, ela foi traduzida como o uso da razão: homo est animal
rationale. No entanto, quanta diferença entre as duas traduções! Está aí uma
das maiores contribuições de Heidegger: ter mostrado o frescor de textos que
pareciam já mais que compreendidos. Ele, por sua vez, insistirá que lógos e
légein estão associados, nos seus usos mais arcaicos, a “recolher” e “reunir”.
Nós poderíamos acrescentar que em latim acontece algo bem semelhante: há
o verbo legere. Lego quer dizer tanto “eu leio” quanto “eu escolho” quanto
“eu aponto”. Por isso, em português, temos o verbo “colecionar”, derivado
do latim legere, no sentido de “reunir”.
O interesse pelo lógos aproxima Heidegger de Aristóteles, mas também
afasta. Heidegger retém o fato de a linguagem ser o que nos torna huma-
nos, e que a linguagem é ligação e separação de palavras. De Heráclito,
Heidegger retém a noção de linguagem humana como resposta a uma lin-
guagem não totalmente humana e talvez inaudível para o ouvido. Como
apontado acima, já se mencionava um déficit na compreensão aristotélica
da origem profunda da linguagem em Ser e tempo. A reunião ainda tácita
do ser­‑aí com os seus múltiplos envolvimentos mundanos não foi levada
em consideração pela história da lógica. Agora, Heidegger recorre aos pen-
sadores pré­‑socráticos para tentar dar conta dessa reunião, patrocinada pela
união de homem e ser. Vê­‑se que os critérios a partir dos quais Heráclito
e Aristóteles são comparados não são os convencionais, e aliás aristotéli-
cos, segundo os quais, antes de Sócrates, os pesquisadores não conseguiam
diferenciar a perguntar sobre o ser e a pergunta sobre a natureza. A linha
divisória, segundo Heidegger, é traçada precisamente pela disposição
maior ou menor a considerar a articulação pré­‑proposicional que o discur-
so torna explícita.
Tomemos o seu fragmento 50, segundo a numeração padrão de Diels e
Kranz: “não de mim, mas do lógos tendo ouvido é sábio homologar: tudo

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A obra de arte musical: uma pergunta para Heidegger 21

é um”.20 Na tradução de Heidegger, no curso sobre Heráclito, de 1943­‑4,


segundo Márcia Shuback: “se não ouvirem simplesmente a mim, mas se ti-
verem auscultado (obedecendo­‑lhe, na obediência) o lógos, então é um saber
(que consiste em) dizer igual o que diz o lógos: tudo é um”.21 O homem não
é o “sábio”, em primeiro lugar. O sábio é um tipo de fala, a saber, uma fala
afinada com o Um ou todo. Só por referência ao que é sábio homologar pode
o homem dizer algo sábio.
Essas são palavras difíceis de traduzir para as nossas circunstâncias, de
um modo que encontrem eco na nossa experiência. Não é recomendável pen-
sar no lógos como o esboço do conhecimento das leis físicas, ou pelo menos
não exclusivamente, pois o lógos abarca a totalidade do que há para ser dito,
sem recortar a natureza como um domínio separado. Parece impossível re-
plicar a experiência pré­‑socrática nos nossos dias, com as nossas categorias.
É assunto para uma discussão se o retorno de Heidegger aos pré­‑socráticos
tem por objetivo apenas compreendê­‑los sem o auxílio de categorias pos-
teriores e de certa forma artificiais, ou se existe uma intenção implícita de
reviver a experiência do Tudo­‑Um. É bastante possível que haja insinuações
de neopitagorismo ou neoplatonismo no Heidegger tardio, apesar de todas
objeções a tais insinuações que podemos formular com o auxílio do próprio
Heidegger. Meu propósito foi apenas frisar que o sábio do fragmento de
Heráclito não se torna audível como música, mas apenas mediante o pensa-
dor que chega a dizer “tudo é um”. Sempre nos deparamos com a necessida-
de de investigar a palavra do pensador e do poeta para encontrar o seu ves-
tígio. Assim como na fase de Ser e tempo há uma ênfase nos envolvimentos
de que não somos conscientes, e que, no entanto, são os mais decisivos para
a compreensão. Poderíamos até considerar que houve uma retomada, ainda
que modificada, do que anteriormente fora descrito como afinação. A afina-
ção originária, no pensamento de Heidegger é o prelúdio de uma voz falante,
ao invés de cantante.
O que pode haver de originário na música se encontra na musicalidade
marcam os poetas líricos e trágicos. A poesia de Hölderlin é de importância
capital para o pensador: “o meu pensamento está ligado inevitavelmente
à poesia de Hölderlin. Não considero Hölderlin um poeta qualquer, cuja
obra foi tematizada, como muitas outras, pelos historiadores da literatura.
Hölderlin é, para mim, o poeta que indica o futuro, que aguarda o deus”.22

20 José Cavalcante de Souza (org. e trad.), Os pré­‑socráticos, José Cavalcante de


Souza (org. e trad.) (São Paulo: Abril, 1973), 90. (Coleção Os pensadores vol. 1.)
21  Martin Heidegger, Heraklit (Frankfurt: Klostermann, 1994), 243, GA 55, Márcia S.

C. Shuback, trad. M. Heidegger, Heráclito (Rio de Janeiro: Relume­‑Dumará, 1998), 270.


22  Há três traduções para o português para a declaração “Mein Denken steht in einem

unumgänglichen Bezug zur Dichting Hölderlins”, além da proposta aqui. Cf. Irene Borges

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22 Claudia Drucker

Mas o envolvimento musical de Sófocles ou Hölderlin é pensado como


decorrência do seu envolvimento com a palavra: “assim como a poesia lírica
exibe um movimento e uma característica básica que tende ao musical, assim
a música tem exibe um movimento e uma característica básica que tende à
poesia”.23 A música sem palavras parece suceder a poesia.24
Seria agora o caso de inverter o ponto de partida da investigação e consi-
derar o que Heidegger de fato tem a dizer sobre a arte, em geral, para verifi-
car se aí também a música, ao final, não é uma variante da fala, sem nenhum
traço próprio que merecesse atenção maior do que aquela efetivamente dis-
pensada pelo autor. Haveria em alguma parte da obra a insinuação de que a
música pudesse explicitar a articulação do mundo, em pé de igualdade com
a fala?

3.  É possível uma obra de arte musical?

O papel da arte em Ser e tempo é nulo, como assinalado. As artes são


possibilidades da existência, entre outras, que se realizam ou não, e ademais
se realizam sempre dentro de um horizonte fático, como se depreende da
alusão à poesia.25 As menções a obras literárias têm um caráter ilustrativo de
estruturas existenciais. A orientação hermenêutica, ainda assim, nos interes-
sa, pois já dispensa a definição de arte como um construto humano que apela
aos sentidos, por contraste com as sentenças, que apelam ao pensamento.
Heidegger enfatizará a capacidade humana de compreender, de preferência
às capacidades clássicas do perceber e do pensar, também na sua futura pre-
ocupação com a arte. Desde o começo, sua abordagem também dispensa um
possível caráter alegórico da arte, quando uma figura sensível visa repre-

Duarte: “O meu pensamento está iniludivelmente ligado à poesia de Hölderlin.” Trad.


M. Heidegger Já só um deus pode nos salvar, (Covilhã: Universidade da Beira interior.
2009), 41. Decerto houve aí um erro de revisão, e a tradutora teve a intenção de traduzir
o adjetivo unumgänglich por “ineludível”. Cf. José Pedro Cabrera: “O meu pensamento
sustenta­‑se numa relação incontornável com a poesia de Hölderlin”. Trad. “Martin Hei-
degger entrevistado por Der Spiegel”, in François Fédier (org.) Escritos políticos 1933­
‑1966 (Lisboa: Instituto Piaget), 239. A de Emanuel Carneiro Leão é de difícil acesso e
não foi conferida (“Martin Heidegger entrevistado pelo Der Spiegel”, Tempo Brasileiro,
nº 50, jul.­‑set. 1977).
23  Günther Pöltner, “Heidegger”, in Stefan Lorenz Sorgner (org.), Music in German

Philosophy: An Introduction (Locais do Kindle 3182­‑3183). Edição do Kindle.


24  Sobre a poesia como origem da música, em uma interpretação inspirada por

Heidegger, cf. Jardim, Antônio. Música: vigência do pensar poético (Rio de Janeiro:
7 Letras, 2005).
25  Heidegger, Sein und Zeit, 22, Shuback, Ser e tempo, 43, Castilho, Ser e tempo, 71.

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A obra de arte musical: uma pergunta para Heidegger 23

sentar, na medida do possível, algo apenas inteligível. Menos ainda caberia


falar do apelo irracionalista da música às paixões mais recônditas. Por tudo
que foi alegado acima, o primado da compreensão está na origem tanto da
produção artística como da cognitiva. O modo como ambas diferem não é o
modo como corpo e espírito diferem; a hermenêutica é a busca deste modo
alternativo de respeitar a diferença entre arte e pensamento, arte e ciência, ao
mesmo tempo em que aponta a sua origem comum – não no espírito, mas na
compreensão situada.
O interesse de Heidegger pela lógica e pelo tema da verdade não esmorece,
mas em meados dos anos 1930 algumas posições básicas do pensamento de
Ser e tempo ressurgem à luz de preocupações novas relativas à arte e história
europeia. Não cabe aqui resumir o conjunto de três ensaios “A origem da obra
de arte”, iniciado em 1935, o único em que o pensador tentou uma definição
geral da obra de arte. O ensaio foi publicado na coletânea Caminhos de floresta
em 1950, com a indicação do autor que a versão aí constante fora apresenta-
da entre novembro e dezembro de 1936.26 Vou retomar apenas algumas das
suas noções principais. Assim como Hegel antes, e Gadamer depois dele,
Heidegger define a obra de arte por referência ao mundo grego. Ao ver des-
tes autores, reconhecer a grandeza e importância histórica da arte grega pré­
‑filosófica não implica necessariamente em aceitar um gosto convencional e
tradicionalista. No mínimo, a preferência pelos gregos não provém da rejeição
da arte contemporânea, “pós­‑canônica”, cuja estranheza despertaria o desejo
de fuga a um passado já familiar e menos complexo. O importante é, primei-
ramente, compreender como a obra de arte grega se relacionou com o seu
mundo, deixando em segundo plano a pergunta sobre ela ainda ser um modelo
para os nossos dias. De fato, em “A origem da obra de arte”, as artes medievais,
barrocas ou contemporâneas basicamente brilham pela sua ausência.
Como Hegel antes dele, e Gadamer depois, Heidegger dá como certo que
a arte foi, antes do advento da filosofia, a portadora da verdade e a inspira-
dora moral do povo grego, e também o explicam em termos de um caráter
fundacional da arte. Essa só foi a sequência cronológica porque é a sequência
que satisfaz a ordem das coisas. Mesmo que ciências como a geometria e
a matemática já fossem conhecidas, eram cultivadas em pequenos círculos
iniciáticos, e não tiveram impacto sobre a cultura geral senão após o advento
da filosofia, com Sócrates e Platão. Mas mesmo a filosofia só poderia surgir
depois da arte. O papel fundacional da arte é explicado com respeito ao seu
caráter de obra.

26  Martin Heidegger, Der Ursprung des Kunstwerkes, in: Holzwege (Frankfurt: Klos-

termann, 2003), 375. (GA v. 5). Filipa Pedroso, trad. M. Heidegger, Referências, in:
Irene Borges­‑Duarte (coordenação científica da edição e tradução), Caminhos de floresta,
(Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002), 441.

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24 Claudia Drucker

Hegel partiu, apesar de tudo, de um quadro kantiano, em que a liberdade


humana se vê cerceada pela férrea necessidade que caracteriza a natureza.
O modo como o homem pôde afirmar a sua liberdade foi, primeiramente, a
obra de arte. É uma irrupção do mundo histórico na paisagem natural, que
Hegel, com sua herança kantiana, compreende como irrupção da liberdade
em uma ordem natural que não carece dela. A obra de arte introduz um ele-
mento livre e, nesse sentido, novo e distinto na paisagem natural. A obra de
arte foi o que foi – até o advento da filosofia e da teologia – porque inaugura
uma nova ordem de coisas, em que a liberdade faz uma aparição brilhante no
mundo. Eis porque Hegel enfatiza o caráter de obra da arte. Ele não dispen-
sa totalmente a noção platônico­‑aristotélica de poíesis, como um encontro
de matéria e forma, do sensível e do suprassensível. A obra de arte é isso
também. Mais importante, contudo, é que ela é uma ocorrência palpável do
espírito humano, isto é, da liberdade, no mundo, operativa como obra. Por
isso, não é definida mediante o conceito platônico e aristotélico de imitação
da natureza, no sentido em que ela é histórica e formadora de história. A obra
de arte, para Hegel, tampouco é puro espírito, no sentido de algo que é inapa-
rente e inefetivo no mundo, nem algo puramente extenso, físico ou material.
Obra em alemão se diz Werk, em proximidade com o adjetivo wirklich,
“efetivo”, ou “operante”, como sugiro, para sublinhar sua proximidade de
Werk. O “efetivo ou operativo não produzido pelo homem” é o que chamamos
realidade.27 Assim, a obra de arte é dotada de certa autonomia ontológica,
ainda que abrigue uma tensão que a empurra nas direções opostas do espírito
e da aparência. Os Cursos de Estética já são principalmente uma ontologia?
Se com isso quisermos nos aproximar de algumas tendências modernas que
terminam por um retorno à objetividade, a resposta é negativa.28 Mas as pala-
vras introdutórias de Hegel sobre a esterilidade última da Estética, ou seja, de
uma ciência das sensações não conducentes ao conhecimento, encontram seu
fundamento último em uma posição de fundo sobre o que é a arte.
Heidegger faz uma referência a Hegel em “A origem da obra de arte”,
a propósito do o papel central da tragédia ática na demoção definitiva da
religião pré­‑olímpica ou, como Hegel o chama, “a luta dos deuses antigos
e novos”. 29 No entanto, a citação mais necessária, aquela em que a impor-

27  G. W. F. Hegel, Vorselungen über die Ästhetik, I (Frankfurt: Suhrkamp, 1986), 49,

Marco Aurélio Werle, trad. Hegel, Cursos de Estética, II (São Paulo: EdUSP, 1999), 51.
28  Gethmann­‑Siefert, Anne­‑Marie. Einführung in Hegels Ästhetik (Munique: W. Finkl,

2005), 224, 258. Penso que a autora se refere, sem citar nomes, a Roman Ingarden e,
principalmente, à filosofia anglo­‑saxã.
29  Martin Heidegger, Ursprung des Kunstwerkes, 29, I. Borges­‑Duarte e F. Pedro-

so, A origem da obra de arte, 40. Cf. G. W. F. Hegel, Vorselungen über die Ästhetik, II
(Frankfurt: Suhrkamp, 1986), 46, Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle, trad. Hegel, Cursos
de Estética, II (São Paulo: EdUSP, 2014), 183.

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A obra de arte musical: uma pergunta para Heidegger 25

tância da noção de obra seria reconhecida, ficou implícita. 30 Para Hegel a


obra é uma categoria autônoma em relação à distinção entre espírito e maté-
ria, ainda que sempre atravessa pela oposição entre sensibilidade e espírito,
aparência e verdade apenas inteligível. Eis como Heidegger pode partilhar
a opinião sobre a centralidade da obra sem adotar premissas fundamentais
do pensamento de Hegel. Heidegger pode se valer da noção de obra sem se
valer das oposições esclarecidas entre liberdade e necessidade e entre sujei-
to e objeto. A crença que permanece é que a obra é o lugar privilegiado de
acontecimento da existência.
A arte é o grande modelo ou paradigma da emergência de uma existência
humana e histórica onde ela ainda não existia, uma emergência que já é desde
sempre caracterizada por algumas “decisões” fundamentais sobre temas exis-
tencialmente importantes. Essas decisões não são imediatamente formuladas
como texto sagrado ou constitucional –todos esses supõem o texto poético.
Graças ao seu referencial grego, Heidegger também toma a arte como ponto
de referência: “o templo, no seu estar­‑aí­‑de­‑pé, dá às coisas pela primeira
vez o seu rosto, e aos homens dá pela primeira vez a perspectiva acerca de si
mesmos”.31 Só a obra pode fazê­‑lo, pois nela emerge o humano a partir do
pré­‑humano e em conflito com ele. A noção de obra em Heidegger não envol-
ve diretamente uma síntese de natureza e história. Existe decerto tensão no
interior de cada obra, mas uma mais originária: a tensão entre terra e mundo.
Não é fácil definir o que seja a terra sem aceitar o testemunho da ciência natu-
ral, e a filosofia parece ter se libertado da noção de terra no momento mesmo
em que completou a sua despedida do “mito”. De fato, as características que
Heidegger atribui à terra lembram a cosmogonia e a poesia trágica grega,
como algo que se doa incansavelmente ao homem, e ao mesmo tempo reserva
os seus segredos. Pode­‑se entender a terra também como o elemento que an-
cora um povo histórico e contingente em seu contexto particular.
O mundo, por sua vez, é entendido como a “fenda”, ou movimento es-
tranho à terra, por meio do qual ela se torna a terra dos homens históricos.32
O rasgo principal é precisamente que ergue a obra a partir da terra, sem que
a tensão entre ambos jamais possa ser resolvida: o excesso de cultura mata
a obra, assim como a falta de certa violência ou emergência fundadoras.
Mesmo a terra, no sentido de natureza, natureza é antes de tudo uma natureza
pátria; por outro lado, o mundo também precisa desse elemento terreno para
30   Anne­‑Marie Gethmann­‑Siefert, “Hegel, Heidegger und die Griechen”, in

A. Gethmann­‑Siefert e Elisabeth Weisser­‑Lohmann (org.), Kultur – Kunst – Öffentlichkeit,


(Munique: W. Fink, 2001), 209.
31  Heidegger, Ursprung des Kunstwerkes, 29; Borges­‑Duarte e Pedroso, A origem

da obra de arte, 40.


32  Heidegger, Ursprung des Kunstwerkes, 51; Borges­‑Duarte e Pedroso, A origem

da obra de arte, 66.

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26 Claudia Drucker

ser o mundo desta comunidade e não de outra qualquer. Assim, a arte não é
apenas um ponto de referência entre outros, um dado importante da cultura,
ao lado da economia, geografia ou história de um povo. Ao contrário, todas
essas dimensões estão na dependência da arte, de alguma forma. Elas se
depreendem das obras: elas nascem da terra, tornada linguagem na obra e
por meio dela
É nesse sentido que cabe entender a relação entre arte e verdade. A com-
preensão da verdade em Heidegger é tal que ela não é o oposto da arte, mas
acontece de modo privilegiado nela. Heidegger refere­‑se então à obra como
“acontecer da verdade”. Não cabe aqui justificar de modo suficiente a noção
de verdade em Heidegger, entendida a partir de uma tradução literal do grego
alétheia, “desabrigamento”. Nesse contexto particular, com a devida vênia,
podemos reformular a noção de acontecer da verdade como a fundação de
um ponto de referência ou padrão diante do que todas as coisas, fatos e even-
tos são comparados. Novamente, existe um momento histórico que autoriza
a dizê­‑lo e no qual a música chamada hoje instrumental parece ter função
de entretenimento. A música dramática está intimamente ligada à poesia, e
assim Heidegger pode encontrar o lugar da música no mundo antigo entre as
artes aléticas.
Contemporaneamente a situação é bem outra, como atestam as referên-
cias à obra de arte e à música em particular feitas por Heidegger no período
de redação de “A origem da obra de arte” e obras posteriores.33 A referência
mais extensa de Heidegger a um compositor específico, e à música de modo
geral, se encontra no primeiro curso sobre Nietzsche, de 1936, “A vontade
de poder como arte”, na seção intitulada “Seis fatos fundamentais a partir da
história da Estética”. Trata­‑se de uma sinopse sobre as relações entre filosofia
e arte, cujo penúltimo capítulo é a filosofia de Hegel, em especial a sua com-
preensão da arte como carecimento absoluto (no passado). O ensaio sobre
a obra de arte fora iniciado no anto anterior e apresentado pelas primeiras
vezes em 1936; ambos os textos pertencem ao mesmo âmbito de discussão.
O surgimento da Estética em sentido estrito, isto é, enquanto disciplina
autônoma, no século XVIII, é o terceiro momento. É a época da “distinção
estética”, para usar os termos de Gadamer, quando a obra de arte é abstraí-
da de “objetivo, função e significado de conteúdo” para ser “pura” obra de
arte.34 O surgimento da Estética equivale à virada cartesiana para dentro da
subjetividade. Só estados internos interessam; eles são a medida de tudo o

33  Rüdiger Bayreuther, Musikwissenschaft, in: Heidegger­‑Handbuch: Leben – Werk –

Wirkung, org. Dieter Thomä (Stuttgart e Weimar: J. B. Metzler, 2013), 509 s. As principais
referências de Heidegger à música se encontram citadas abaixo.
34  Hans Georg Gadamer, Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica

filosófica, trad. Flávio Paulo Meurer (Petrópolis: Vozes, 2008), 135 [91].

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A obra de arte musical: uma pergunta para Heidegger 27

que seja externo: eis a premissa partilhada. O mundo externo não deixa de
existir, mas se torna inacessível, senão por meio de uma mediação por re-
presentações, que não é neutra, mas constitutiva ou, no mínimo, autorizada.
No ataque de Vincenzo Galilei ao contraponto e ao pitagorismo já se
encontra o germe da posição esclarecida de Rousseau e Diderot. A música
é doravante associada exclusivamente ao sentimento, seja ele impositivo e
violento, seja ele de fruição agradável e leve. A seção 53 da Crítica da facul‑
dade de julgar de Kant é um exemplo de que ambos os sentimentos coexis-
tem, embora não tenham o mesmo teor. O quarto momento é a rejeição da
distinção estética, por parte de Hegel, concomitante com a percepção do fim
da arte, ou seja, que “a arte perdeu a força em relação ao absoluto, a força
absoluta”.35
O momento seguinte não é tanto uma superação dos precedentes, mas
uma resposta a ambos: é a proposta wagneriana de obra de arte total, não
apenas como reunião de todas as artes, mas como dissolução das fronteiras
entre música, poesia, dança, artes visuais etc. Em 1870, no ensaio “Beetho-
ven”, essa noção é atenuada pelo privilégio da música, que Wagner retirou
de Schopenhauer. Corretamente ou não, e certamente sob a influência de
Nietzsche, Heidegger vê em Wagner um acontecimento niilista da maior im-
portância. Wagner radicaliza a Estética ao enfatizar o irracional, as paixões
e o ilimitado, ao mesmo tempo em que toma o partido da arte moderna, no
sentido em que os belos dias da arte não precisam pertencer ao passado.
Sobre esse projeto, Heidegger diz que fracassou, porque a música não pode
tomar o lugar da poesia como arte suprema, e que essa escolha já é de fato
um sintoma da época. É porque o século XIX já não sabe como a poesia pode
ser fundadora é que pode sugerir que a música tome o seu lugar:
O fato de a tentativa de Richard Wagner ter precisado fracassar não reside
apenas no predomínio da música ante as outras artes. Ao contrário, a própria
possibilidade de a música ter, em geral, assumido esse predomínio já tem
sua razão de ser na posição fundamental crescentemente estética em relação
à arte na totalidade. O fracasso da tentativa wagneriana deveu­‑se com isso,
antes de tudo, à concepção e à avaliação da arte a partir do mero estado
sentimental, assim como à crescente barbarização do próprio estado senti-
mental, que acabou por se tornar mera efervescência e ardor do sentimento
entregue a si mesmo. [...] Foi preciso que a ascensão até a efervescência
dos sentimentos oferecesse o espaço faltante para uma posição fundamental
e articulada em meio ao ente, o tipo de coisa que somente a grande poesia
e o grande pensamento podem criar.36

35  M. Heidegger, Nietzsche I, 101; trad. Casanova, 78.


36  M. Heidegger, Nietzsche I, 105; trad. Casanova, 81.

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28 Claudia Drucker

Da música do século XIX diz­‑se que não se elevou acima do fluxo quase
totalmente desregrado das sensações, e da música de outras épocas nada se
diz. Da poesia já fora dito que é a obra de arte por excelência, nos ensaios
sobre a origem sobre a obra de arte. Agora se afirma que só ela pode sequer
entrar em diálogo com o pensamento a respeito do lugar da arte nos nossos
dias. A música faz companhia às outras artes, no que diz respeito a uma crise
de relevância das artes, mas a poesia – a de Hölderlin, em especial – pode ao
menos apontar essa crise tematicamente, ao invés de passar por cima dela,
como faz Wagner.
Parece que não existe autonomia musical, donde a incapacidade da músi-
ca para guiar uma discussão sobre o lugar da arte no mundo. Uma declaração
do pensador o enfatiza. Em conjunto com a referência a Bach, Mozart e a
Wagner, ela praticamente encerra o conjunto dos textos dedicados à música.
Trata­‑se da resposta a um questionário proposto a várias personalidades, em
1962, pela revista Melos. A enquete constava de duas perguntas: se o en-
trevistado conhecia a obra de Igor Stravínski e se a apreciava. A resposta é
como se segue:

Caro Sr. Strobel:


Com respeito à sua solicitação, quebrei a regra de não responder a en-
quetes, estabelecida por mim há muito tempo.
Suas perguntas são, corretamente consideradas, uma só, enquanto recor-
darmos a sabedoria antiga, segundo a qual só conhecemos aquilo de que gos-
tamos. Desse modo, só conheço duas obras de Igor Stravínski: a “Sinfonia dos
Salmos” e o melodrama “Perséfone”, baseado na poesia de André Gide. Am-
bas as obras transportam para um presente mais moderno a tradição imemorial
(uralte), de diferentes maneiras. São música no sentido supremo da palavra:
obras enviadas pelas musas.
Contudo, por que estas obras não conseguem mais fundar o lugar a que
pertencem? Essa pergunta não se refere às limitações da arte de Stravínski.
Ela incide muito antes sobre à determinação destinal da arte enquanto tal,
isto é, do pensar e do poetar.
Atenciosamente,
Martin Heidegger37

Heidegger chegou a abordar a pergunta se o ensaio sobre a obra de arte


caminha na direção de concordar com a tese famosa de Hegel sobre o cará-
ter de passado da arte. Um epílogo foi acrescentado para a publicação, em
que único ponto de convergência aceito em relação a Hegel é que é preciso
perguntar se “é a arte ainda um modo essencial e necessário como acontece
37  Martin Heidegger, “Über Igor Strawinsky”, in Aus der Erfahrung des Denkens,

1910­‑1976 (Frankfurt: Klostermann, 2002), 181. GA 13.

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A obra de arte musical: uma pergunta para Heidegger 29

a verdade que é decisiva para o nosso ser­‑aí histórico”. Todo o resto fica em
aberto, inclusive porque Heidegger solicita aos leitores que considerem nada
mais, nada menos que “o pensar ocidental desde os gregos”, qual a relação
tem Hegel com ele e o que lhe permite falar em fim da arte. 38 Em corres-
pondência privada, Heidegger admite que concordara com Hegel sobre o
caráter de passado da arte, mas também pede que o leitor comece por consi-
derar as diferenças entre o seu pensamento e o de Hegel.39 Fica em aberto se
simplesmente chamamos obras de arte mais entes do que os gregos estavam
dispostos a chamar, ou se até o nome “arte” é usado hoje em um sentido pro-
fundamente distinto, condizente com uma atitude também profundamente
distinta da parte do público. Ora, esta hipótese é muito mais condizente com
o corpus heideggeriano. Mesmo quando Heidegger nos solicita que levemos
em consideração que o seu pensamento não é hegeliano –no que diz respeito
à concepção de verdade­‑­‑, ele repete que temos uma relação com a arte dife-
rente daquela que os gregos tiveram e que incide de maneira profunda sobre
aquilo que chamamos arte. Quando a arte não é mais uma maneira essencial
e necessária em que acontece uma verdade decisiva para o nosso ser­‑aí his-
tórico, isso afeta tanto as obras como o público e o artista. Na poesia de Höl-
derlin, Heidegger pensa ter encontrado um interlocutor, mas não na música.
A resposta à pergunta sobre o estatuto da obra musical como obra de arte
legítima em Heidegger está em aberto, em que pesem as reticências do autor.
Se a essência da arte é ser obra, a música deve ser obra também. Também
nela acontece a tensão entre mundo e terra, nos termos do ensaio sobre a
origem da obra de arte. Historicamente, é também inegável que a música
é uma das artes mais populares, tanto no sentido de apelar a várias pessoas
como no sentido de apelar a pessoas de uma comunidade específica, mas
não de outras. Muitas vezes, peças que não foram compostas e executadas a
partir do propósito específico de ser simbólicas de uma comunidade e de uma
época terminaram por sê­‑lo, tal que satisfariam as condições para que sejam
historicamente relevantes.

38  Heidegger, Ursprung des Kunstwerkes, 68; Borges­‑Duarte e Pedroso, A origem

da obra de arte, 87.


39  Nas palavras do autor, em uma carta de 25 de abril de 1950 a Rudolph Krämer­

‑Bardoni: “Quando, no Posfácio do meu ensaio (Holzwege, p. 66­‑67), concordo com a


citação de Hegel que diz que a arte é ‘sob o aspecto da sua vocação suprema, algo pas-
sado para nós’, isto não é nem uma aceitação da concepção de arte de Hegel nem uma
afirmação que a arte acabou. Eu diria, ao contrário, que a essência da arte se tornou digna
de questionamento para nós. Não posso ‘permanecer ao lado de Hegel’, porque nunca me
aproximei dele, impedido pela diferença abismal na determinação da essência da verdade
(tradução minha, apud Dastur). Dastur, Françoise. Heidegger’s Freiburg version of the
“Origin of the Work of Art”, in: Risser, James (org.) Heidegger toward the Turn –Essays
on the Work of the 1930’s (Albany: SUNY Press, 1999), 125.

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30 Claudia Drucker

No que tange à ocorrência de termos musicais em Heidegger, seria pre-


ciso incluir as menções à fuga. No alemão existem os homônimos Fuge e
seu parônimo Fug. Na marcenaria, Fuge é a ranhura que permite a junta das
peças, ou simplesmente a “junta”. Mais tarde, a fuga latina foi assimilada
à língua alemã como Fuge, embora o seu sentido literal tenha se perdido.
A noção musical de fuga designa um princípio composicional baseado na
imitação. “Imitação”, falando musicalmente, é o procedimento de introduzir
variações em um tema, desde as mais simples até as mais complexas, desde
que a integridade do tema básico se mantenha. A fuga é a forma mais com-
plexa de técnicas imitativas anteriores como o cânone medieval, o moteto e o
ricercare. Assim pode­‑se dizer dos temas variantes, em todos estes formatos,
que eles “vão ao encalço” do tema inicial, ou o “afugentam”, mesmo que o
nome “fuga” só seja usado a partir do séc. XVII para descrever um estilo de
domínio profundo da arte do contraponto instrumental.
Já em Introdução à metafísica, Heidegger começa a se valer do termo
arcaico Fug, usado sobretudo na expressão coloquial igualmente antiquada
“mit Fug und Recht” (“muito justificadamente”). Fug significa algo “perti-
nência” no sentido de “competência”, e é assim que é usado para traduzir
diké, ao invés da escolha mais convencional por “justiça”.40 Em português
já foi vertido como “juntura”.41 Na seção 39 de Contribuições à Filosofia
encontramos um jogo de palavras que aproxima Fuge e Fug, por ocasião de
algo como um ensaio sobre a fuga: “a fuga [die Fuge] é algo essencialmente
distinto de um ‘sistema’”.42
Seria necessário um estudo aprofundado desta seção e de sua constela-
ção de sentido que envolve Fuge, Fug e termos correlatos como sich fügen
(submeter­‑se a), einfügen (inserir), das Fügsasme (dócil) e verfügen (orde-
nar). Na falta de um estudo suficiente, vou me limitar a apontar que o modo
mais imediato como o elemento musical está presente na seção 39, sem pre-
dominar sobre os outros, é que o próprio texto das Contribuições à Filosofia
envolve apresentações retomadas de um mesmo tema, em contraste com uma
progressão linear. As seis fugas corresponderiam aos seis capítulos internos
do escrito, excluídos o primeiro e o último, que já tinham sido mencionadas
na seção 3: “a ressonância, a conexão de jogo, o salto, a fundação, os que
estão por vir e o último deus”.43

40 Heidegger, M. Einführung in die Metaphysik, 157.


41 Carneiro Leão, Introdução à metafísica, 182.
42  Heidegger, Beiträge zur Philosophie, 81. O tradutor brasileiro optou por tentar

reunir todos os sentidos principais do termo, donde se lê “junção livre e fugidia” ao invés
de “fuga”. Cf. Casanova, Contribuições à Filosofia, 83.
43  Heidegger, Beiträge zur Philosophie, 9; Casanova, Contribuições à filosofia, 13.

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A obra de arte musical: uma pergunta para Heidegger 31

Assim, a estrutura fugal do texto só faz sentido se considerarmos que


as contribuições são projetadas como um retorno ao “primeiro início” que
permanece impensado. O pensamento sistemático seria incapaz de um
retorno sobre si mesmo, e pensar o seu próprio começo, enquanto o que tem
o modo da fuga é a junção articulada que tem a estrutura de uma resposta,
isto é, de um olhar para trás, para o que determinou a filosofia até hoje,
sem que aparecesse como tal. As menções à fuga musical nem se justificam
por si mesmas, nem são puramente gratuitas. Dizer que as Contribuições à
Filosofia têm uma ordenação musical exige o entendimento de uma questão
do pensamento: “os diversos ‘momentos’ que são constitutivos da ‘fuga’ se
destacam, quanto à acentuação, diversamente, segundo o ângulo a partir do
qual ela é considerada”. 44
Não existe uma música que possa ser o correspondente sonoro da poesia
de Hölderlin, isto é, não existe música alética de forma autossuficiente do
mesmo modo como a arte e até mesmo o mito são, nas suas esferas pró-
prias. Nem mesmo a fuga, que recebe menção especial nas Contribuições
à Filosofia, em um sentido técnico, isto é, abstraído do uso comum. Temos
aí uma dinâmica constante na obra do pensador, que consiste nem tanto em
ignorar a música, mas em lhe conceder uma relevância condicionada a outras
preocupações. O assunto do discurso “Lassidão” (“Gelassenheit”), de 1955,
proferido por ocasião do 175º. aniversário do compositor Conradin Kreutzer,
não é a música, mas a técnica. Em circunstâncias atuais, é a técnica que toma
o lugar da arte na função de dar às coisas pela primeira vez o seu rosto, e
aos homens dá pela primeira vez a visada acerca de si mesmos. Podemos
dizer que uma freeway, que não segue os contornos sinuosos da paisagem
natural mas rasga nela uma via plana, ou o copo descartável e reciclável
são tão emblemáticos da civilização atual como a escultura de Fídias foi
em sua época, consideradas as devidas diferenças. A obra de arte antiga e
medieval são ocorrências singulares, um traço que não escapa a Hegel e foi
mais tarde definido como aura, por Walter Benjamin.45 A perda da aura ou
da singularidade não é um fator a ser considerado na possível aproximação
entre a arte antiga e a técnica atual. A técnica não precisa de entes singula-
res para se desabrigar, mas os entes singulares ao contrário é que apontam
para o seu pertencimento a uma rede de sentido. A freeway e o copo podem
facilmente ser substituídos. Só cumprem sua função se, precisamente, não
tiverem singularidade alguma mas pertencerem a uma cadeia de transporte

44  Ingeborg Schüssler, “Le système et la fugue: deux modes de penser”, in Mejía,

Emmanuel e Schüssler, Ingeborg. Heidegger’s Beiträge zur Philosophie: Internationales


Kolloquim vom 20.­‑22. Mai 2004 na der Universität lausanne (Schweiz), 98.
45  Walter Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduziertba‑

rkeit (Stuttgart: Reclam, 2011), 11.

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32 Claudia Drucker

ou de consumo. No entanto, podem instigar o pensador na medida em que


descortinam o caráter de todo ente como fundo de reserva para um emprego
presente ou futuro.
Em relação à técnica, Heidegger aponta na direção de uma atitude exis-
tencial lassa, ou seja, receptiva e não­‑ agressiva, comparável com aquela do
ouvinte musical, e que, no entanto, não parece ter nenhuma relação privile-
giada com a música. O som permanece menos importante que a palavra, e a
música menos relevante do que a poesia. Isso é verdadeiro mesmo quando
a audição é valorizada às custas da visão, e até mesmo quando a percepção
é reformulada hermeneuticamente, ao invés de ser definida como sensação.
Por fim, neste artigo foi dada ênfase ao lugar da música dentro do con-
junto das artes, principalmente das artes tardias, por assim dizer. Cabe acres-
centar que, se o leitor deixar de lado o compromisso de chegar a uma con-
frontação com as questões de fundo relativas à trajetória histórica da grande
arte, pode destacar temais isolados, como o uso que o pensador faz de con-
ceitos musicais. É quase inaceitável para um leitor inclinado à música que
Heidegger, sendo o pensador do tempo, não tivesse algo a dizer sobre uma
arte eminentemente temporal.

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