Você está na página 1de 20
comunistas pertengam a tendéncias politicas divergentes, basta passarem migos de antes, que nao queriam ‘um momento em conversa pessoal ¢ os ouvir falar um do outro, descobrem afinidades, ficam amigos. Ou aquela hoteleira parisiense da rue de l'Ouest, que, por principio, nio aceita erian- ‘as em seus quartos, mas derrete-se toda ao ver 0 primeiro bebe real, Buber~ Neumann conservaré essa ligdo e far dela uma norma de vida: 0 engaja- mento politico nunca esgota a identidade dos individuos; a histéria dos seres € a das sociedades, regimes, paises, raramente sio coordenadas. Em Ravensbriick, ao ver chegarem em misao 0s bombardeiros aliados, alegra porque a derrota da Alemanha acelerard a queda do nazismo, mas rio pode impedir-se de pensar em todos os alemaes nem um pouco fascis- tas sobre os quais também caem “bombas incendisrias € bombas de fésfo- lar as pessoas as la se ro"? Depois da guerra, ela continua recusando-se a assi respectivas fumngdes — quando, por exemplo, a guardi de Ravensbrtick, Langefeld, um dia bate & porta de sua casa em Frankfurt. Eassim é que, em seus livros, consegue reservar um lugar a parte para Heinz Neumann, cujas fraquezas e erros ela agora vé, cujas idéias © agbes cla condena ~ € que no entanto, durante oito anos inesqueciveis, foi © amor da sua vida. 0 comunista fanatico, 0 dogmatico stalinista é também um ser humano terno ¢ vulneravel. Buber-Neumann sabe praticar a intransigéncia para com as idéias e os regimes, sem esquecer que cles se encarnam em seres humanos dignos de ser amados. A lucidez em relagao aos primeiros nao impede uma certa fidelidade aos segundos. Tal € a liltima ligao que nos deixou essa mulher cujo destino se confundiu com 0 do século. 132 A conservacao do passado ‘A Madona viveu two conosco, porque ela somos ns, seu filho somos nds Parece-me que esi Madona a vida em sua &x- pressio mais atéia,o humano sem a partcipacio do divino, ‘VASSLI GROSSMAN, AMadona Sistina Controlar a meméria ios do século XX revelaam a existéncia de um pe- Os regimes total rigo antes insuspeitado: 0 de um dominio completo sobre a memdria. Nao que, no passado, se desconhecesse a destruigao sstematica dos documentos dos monumentos, o que é um modo brutal de orentar a memoria de toda a sociedade. Para dar um exemplo distanciado ée nés no tempo € no espa~ 60, sabe-se que, no inicio do século XY, o impaador asteca Itzcoatl orde- now a destruigio das estelas e dos livros, a fimde poder recompor a tradi- ‘cdo & sua maneira; um século mais tarde, os corquistadores espanhiéis irio icios confirmadores da dedicar-se, por sua vez, a apagar e queimar 0s antiga grandeza dos vencidos. Mas, nao sendo totalitarios, esses regimes climinam somente os acervos oficiais da meméria, deixando sobreviverem muitas outras formas desta, como as narratives orais ou a poesia. Ja as tiranias do século XX, tendo compreendido quea conquista das terras e dos homens passa pela conquista da informagio e da comunicagio, sistemati- zaram seu dominio sobre a memoria € tentaram controla-la até no que ela tem de mais recOndito. As vezes essas tentativas resultaram em fracasso, mas é certo que, em outros casos (os quais, por defini¢ao, somos jincapazes ” de recensear), os vestigios do passado foram eliminados com sucesso. Os exemplos desse esforgo para controlar ameméria séo incontaveis e bastante conhecidos. “Toda a historia do ‘Reich milenar’ pode ser relida como uma guerra contra a meméria", escreve com raziio Primo Levi! € 0 mesmo poderia ser dito da URSS ou da Chine comunista. Entre os mais ‘comuns procedimentos utilizados ca e 14 para controlar a circulagio da informagio, pode-se mencionar primeiro a supressdo dos vestigios. Desde 0 vyerdo de 1942, e sobretudo apés a derrota de Stalingrado, os nazistas co- regam a desenterrar os velhos cadiveres para incineri-los ¢ transforma Jos em po. Nos proprios campos de concentragao, eles constroem imensos fornos crematorios para esse fim. As testemunhas das matancas € até 0s funcionirios sio, por sua ver, eliminados. Os regimes comunistas nao tém esse cuidado, jd que se acreditam instalados pela eternidade; os espagos do Grande Norte, na URSS, acolhem incontiveis sepulturas. Na véspera da ‘evacuagio dos campos, 0s SS queimam todos os arquivos ¢ outros docu- mentos comprometedores; por enquanto, nfo € possivel saber se, nos pal- ses comunistas, os representantes dos diversos servigos de seguranca fize- ram a mesma coisa nos dias anteriores & sua queda ‘Um segundo procedimento de controle consiste na intimidagao da popu- tagdo e na proibigdo de que ela procure informar-se ou difunda informases- F rigorosamente proibido escutar estagdes de ridio estrangeiras, ou ento estas sto embaralhadas para tornar-se inaudiveis. Taisinterdigdes estendem- se 20s proprios executantes. “Todos os SS que participavam da ago de exter- ‘minio haviam recebido a mais severa ordem de calar-se”, relata Rudolf Hoess,? co comandante de Auschwitz; apés o fechamento dos campos, eles sio freqilen- temente enviados para os setores mais perigosos. Essa é também uma das grandes raz0es pelas quais se substituem as unidades miveis de matanga (os insatzgruppen) por campos de morte: nas primeira, hid demasiados indivi- duos 2o par dos fatos. Quanto ao pessoal superior, claro que este € mantido informado, mas Himmler apela para o senso de responsabilidade dos inte- grantes: eles devem concordar em carregar sozinhos 0 fardo do segredo, a fim de poupé-lo ao resto do povo alemiio, a quem ameaga faltar a dureza necesséria, Em seu célebre discurso de Poznan, em outubro de 1943, Himmler afirma, de maneira paradoxal: “Esta € uma pagina gloriosa de nossa Historia, que nunca foi escrita e nunca o ser"3 Mas como esse fato jamais menciona~ do poder contribuir para a gléria dos nazistas? Somente Hitler, no topo do Estado, imagina comemorar mais tarde o exterminio com placas de bronze, instaladas nos locais do crime. Nos paises comunistas, a proibigio de saber atinge vastos setores da vida, mas € particularmente rigorosa no que se refere aos campos. A popu- lagio tem apenas vagos pressentimentos; os guardas so constrangidos 20 136 Meméria do mal, ten gio de bem segredo profisional; os proprios prisioneiros, qu aqui, tém mais possibi- lade de sair, sto obrigados a fazer um jurament de siléncio, sob ameaca de novas punigdes. Nas ilhas Solovki, segundo sediz, fuzitam-se as gaivo- tas para que elas nio possam levar mensagens. Quando se concede wma Gobrigada a asinar uma declaragdo pela wvraa ninguém, apés voltar & vis qual se compromete a nifo dizer uma 86 pi npo, através dos arames Farpados”; 0 deti- ccheia de ameagas, "pela qual promete mulher de um preso, “el sua casa, sobre o que viu no ca a out do, por sua vez, rio mencionar, em sta conversa, as condicéts de vida que existem no campo" Na Bulgaria, o prisioneiro, quando € Iiterado do campo, também aragio segundo a qual nada diri sobre o que viu durante assina uma d sua detengio; do contrario, seria acusado de cpalhar ‘rumores', ¢ tudo ‘a recomecar. Em muitos casos, foi preciso esperar vinte anos para pod que os antigos detidos ousassem relatar 0 que hiviam vivido. Outro meio de dissimular a reatidade ¢ de ¢iminar da memoria qual- quer vestigio deta consiste no uso de eufemisms. Entre os nazistas, estes sfo particularmente abundantes no que se refre ao segredo central do ‘exterminio; 0 sentido daquelas célebres frases ~ “solugio final”, “trata~ nsparente desie entio, mas, mesmo na mento especial” — tornou-se 1 época, elas se mantinham suficientemente sugetivas ("0 tratamento espe |S Assim que sea sentido secreto € conhe- é aplicado por eriforcamento ido, elas exigem ser substituidas por novas expressbes, mais neutras ain- da, ¢ que no entanto correm 0 risco de tornar-se inutilizéveis por sua vez: evacuagio, deportagio, transporte; numerosas circulares do instrugdes precisas quanto a isso. 0 objetivo desses eufemismos € impedir a existe iar aos executantes 0 curm- de certas realidades na linguagem e, assim, primento da tarefa, Vinte anos depois, durante seu interrogatério, Adolf Fichmann continua a expressar-se desta maneira: “uma zona inteiramente desembaragada dos judeus", “a evacuagao de todos os judeus para 0 campo de Auschwitz", “fatigar-me com todos esses assuntos de deportagbes".. Esta claro que esse uso torna-Ihe as matangas mais ceitiveis; €preferivel, X- plica ele, “dizer a coisa com mais humanidade'* ‘A transformagio da linguagem se estende muito além desses poucos cufemismos notérios, e chega Aquilo que 0 filélogo antinazista Victor 137 Klemperer denomina LTI, Lingua Tertii Imperi, a lingua do IM Reich.” Do lado comunista, ela atinge também a palavra em seu conjunto ¢ origina 0 que se chama de labia: um discurso feito de chavdes, que ja mio tém a menor relagao com a realidade. ‘Um tiltimo e abrangente procedimento uti ado com vistas ao controle da informagiio e & manipulago da meméria é pura ¢ simplesmente a men- tira ou, como se diz. nesses casos, a propaganda, Em seus primordios, 0 io da arte da propa regime nazista passa por ter alcangado grande doi ganda, e costuma-se citar, com admiragao ou com pavor, as proczas do rministro Goebbels. Mas, a0 comparar os dois regimes totalitarios, percebe- se que, nesse aspecto, os nazistas permaneceram como desajeitados ini de intes; nao € por acaso que cada célula do Partido tem seu encarregado iitagdo [no sentido de doutrinacao] e propaganda’. Reatando com a tradig&o das aldeias de Potemkin, cenirios de teatro erguidos ao longo da estrada dos visitantes, 0s funcionarios da KGB ou de seus antepassados néio temem as visitas de estrangeiros, tanto mais crédu- Jos quanto mais intelectual é sua profissio. Edouard Herriot, presidente do Conselho Francés ¢ chefe do partido radical, visita a Ucrania no tempo da fome generalizada: mostram-Ihe criangas alegres que declaram comer varios >pirojki* todos os dias. Herriot pede para ver uma igreja ¢, especialmente para ele, abrem uma que havia sido transformada em entreposto: os tchekistas, mal contendo a gargalhada, disfargam-se de fiis; o chefe deles cola no rosto uma barba para fingir-se de pope; Herriot se trangiiliza. Romain Rolland aplaude, em companhia do sinistro chefe da policia, lagoda, ‘um espeticulo montado pelos prisioneiros dos campos ¢ tenta convencer- se de que se trata, nessa reeducagZo para o trabalho, de uma maravillosa cexperiéncia pedagégica, a formagao de um homem realmente novo, Bernard Shaw visita os campos para cantar-Ihes o elogio; Gorki faz o mesmo (mas talvez tivesse outras razBes para nfo dizer a verdade). Durante a guerra, 0 entio vice-presidente dos Estados Unidos, Henry Wallace, vai ao campo de Kolyma; sua narrativa de viagem, transbordante de entusiasmo, constitui um documento assombroso. ™ Pequenos pastéis recheados de came, peixe et, tpicos da cozinha russa (N. da T). 138 Meméria do mal, tentagio do bem Um caso particularmente instrutivo ¢ o de krzy Gliksman* Judeu po- onés, socialista, ele segue para a URSS em 1935.como turista simpatizante; jurista de formagao, pede para visitar um campode reabilitacio. Levam-no ‘a Bolehevo, nfio longe de Moscou, onde ele'fza maravilhado ao ver as faces radiosas dos jovens delinqientes, agora eeducados. Cinco anos mais tarde, Gliksfnan se encontra na parte da Polétia ocupada pelo Exército ‘Vermelho, de acordo com 0 pacto germano-sovietco assinado por Ribbentrop € Molotov; comeca entio uma segunda temponda nos campos, desta vez involuntiria e bem mais longa: suas impressbes agora, sio muito diferen- tes. Por toda parte, uma encenagéo eficaz.conqusta a adesao dos observa- lores (os quais, é verdade, nao querem senio aceditar). 0s nazistas jamais souberam fazer a mesma coisa No antigo campo de Terezin, na Checoslovaquia, pode-se ver um filme de propaganda nazista sobre a vida nos guetos:destes, Terezin era 0 exem= plar mais apresentavel, um gueto-modelo (de onde, porém, os habitantes ‘eram ‘transportados’ para Auschwitz, a intervabs regulares); portanto, po- dia-se mostri-lo ao mundo exterior. Hoje, o filme nos parece frustrante para os nazistas: as tentativas de embelezamenio sio evidentes, de resto, ‘o que cles mostram néo é muito animador. Os mes de futebol jogsam com ‘um empenho suspeito; os alojamentos sio supelotados; 0 olhar dos prisio- neitos, lagrado de passagem pela cimera, ¢ chro de desespero. Os sovieti- cos produziram sobre o campo das ilhas Solovki um filme semelhante, no qual as inabilidades sio igualmente visiveis: tmbém neste, a empolgagao dos detidos parece forgada e seus sorrisos, artficais. Mas lembremos, sobre- tudo, a imensa produgéo de livros € filmes swiéticos, a qual inundou 0 planeta durante décadas ¢ deu a milhdes de honens uma razdo para viver ow para esperar, uma imagem da felicidade a aguariar:a patria do Socialismo © da justiga, o paraiso na terra; imagem que ainds persiste em alguns recantos do mundo! No tempo de Hitler, os jovens alemies deviam ficar tao iludidos ‘quanto nés ficdvamos, eu e meus colegas de celégio em Sofia; mas, fora do pais, a propaganda nazista jamais conheceu un sucesso comparivel. Esses meios, ¢ alguns outros, sao sistematicamente empregados pelo poder totalitrio para garantir sua superioridaée na guerra que se desenrola paralclamente & dos exércitos: a guerra da informagao. E sem diivida pelo 139 fato de 0s regimes totalitérios fazerem do controle da informagio uma 1s, por sua vez, se encarnigam em levar essa prioridade que seus inimis politica ao fracasso. 0 conhecimento c a compreensio do regime total ituigio extrema, os campos, séo primei- ¢, mais particularmente, de sua ramente uth meio de sobrevivéncia para os detidos. Porém, lid mais: infor- mar o mundo sobre os campos € 0 melhor meio de combaté-Ios; alcancar esse objetivo justifica sacrificios. Certamente por esse motivo, os forcados da Sibéria cortavam um dedo € 0 amarravam a uim daqueles troncos de rvores que éles empurravam para flutuar ao longo do rio; melhor do que ‘uma garrafa langada ao mar, esse dedo indicava, a quem o descobrisse, por qual espécie de lenhador a arvore fora abatida, A informagiio que se difun- de permite salvar vidas humanas: durante 0 vero de 1944, a deportacio dos judeus da Hungria se interrompe porque Vrba e Wetzler, entre outros, conseguiram fugir de Auschwitz ¢ transmitir um relato sobre o que aconte- ce li, Claro, 0s riscos dessa atividade nao sto despreziveis: por ter conse~ {guido testemunhar, Anatoly Martchenko,’ veterano do Gulag, foi nova- ‘mente aprisionado; ele morreri em detencao. Por conseguinte, compreende-se facilmente por que a meméria viu-se aureolada de tanto prestigio aos ollos de todos o: mo, por que todo ato de reminiscéncia, mesino 0 mais humilde, pode ser assimilado A resisténcia antitotalitéria (0 termo russo pamjat’, meméria, antes de ser monopolizado por uma organizagao anti-semita, servia de titulo a uma notavel série divulgada como samizdat:* a reconstituigéo do passado jé era percebida como ato de oposicio 2o poder). Nos paises demo- craticos, a possibilidade de acessar 0 passado sem submeter-se a um con trole centralizado é uma das liberdades mais inaliensveis, ao lado da liber- dade de pensar e de expressar-se. Ela é particularmente titil no que concerne as paginas negras do passado desses mesmos paises. A historia colonial da Franca, por exemplo, talvez ainda no tena sido escrita de maneita satisfa~ téria, mas no existe nenhum obsticulo de principio a que isso seja feito. Conquanto se tenha tentado, no imediato pos-guerra, atenuar € embelezar Em russ, “auto-edigfo" O termo se refere ds publieagdes clandestinas dos dissidentes, nna URSS e em outros paises comunistas (N. da T 140 Meméria do mal, tentagio do bem «© papel de Vichy durante a Segunda Guerra Munda, hoje € possivellembra~ 10 c analisi-o sem encontrar resistencias politics significativas. Com mais forte razio, sfo livres as pesquisas sobre o passato dos regimes totalitarios. 0s crimes nazistas stio um dos fatos mais'documentados de toda a historia do século XX, As atrocidades cometidas sob os regimes comunistas conti- ‘nuam menos presentes na memoria comum, ¢ 19 entanto jé mio se pode dizer que clas sejam ignoradas, como logo apés aSegunda Guerra Mundial. 0 Livro Negro do Comunismo foi um best-seller. ‘Mesmo assim, 0 estatuto da meméria nas sociedades democraticas nio parece defi tores talentosos que viveram em paises tot ‘méria ea simultanea acusago contra 0 esquecimento difundiram-se nestes inal, En nossos dias, é freqiiente iiltimos anos fora de seu contexto ori -a is democracias liverais da Europa ocidental ouvit-se formular uma cr ‘ou da América do Norte, reprovando-as por contribuirem ao perecimento da meméria, a0 reinado do esquecimento, Precipitados num consumo de informagSes cada vez mais desenfreado, estariimos fadados a eliminagio delas, com igual rapidez; desconectados de nosss tradigdes ¢ embrutecidos pelas exigéncias de uma sociedade do lazer, éesprovidos de curiosidade ras do passado, estariamos spiritual e de familiaridade com as grande condenados i futilidade do instante e a0 crime do esquecimento, Com isso, de maneira menos brutal mas, em ltima anciise, mais eficaz, porque nfo suscitaria nossa resisténcia, fazendo de nds, ao contrario, agentes consenti- dores dessa marcha para o esquecimento, os Estados democraticos condu- ziriam suas populagdes ao mesmo alvo dos regimes totalitdrios, ou seja, 20 reinado da barbitie, 7 Mas, generalizados dessa forma, o elogio incondicional da meméria ¢ a difamagao ritualistica do esquecimento se tormam por sua vez problemati- cos. A carga emotiva de tudo o que se liga ao passado totalitério & imensa, 0s que a experimentam desconfiam dos esforgos de clarificagio, dos ape- Jos por uma andlise que preceda o julgamente. Ora, 0 que a meméria poe cm jogo & grande demais para ser entregue a» entusiasmo ou & célera. E preciso comecar por reconhecer as grandes caracteristicas deste fendmeno complexo, a vida do passado no presente. 141 Os trés estagios \s acontecimentos passados deixam dois tipos de rastros: uns, chama- {as palavras: também sao fatos). Esses diferentes rastros possuem varios, eventos passados, ficando perdido o resto; depois, a escolha dessa parte restante nao é, em geral, produto de uma decisao voluntaria, mas do acaso ou de pulsdes inconscientes na mente do individuo (sendo a excegao justa- vida em algumas cidades vizinhas ao vulcdo, preservou-lhes os vestigios pela eternidade; mas poupou as outras cidades ¢ aldeias, as quais, com isso, desapareceram da meméria. 0 mesmo se da com os individuos: quer la- mentemos ou nao, nao podemos escolher entre lembrar ¢ esquecer. Nao nossas insdnias. Os antigos conheciam bem essa impossibilidade de subme- ter a meméria vontade; segundo Cicero, Temistocles, famoso por sua capacidade de memorizar, queixava-se: “Eu retenho até mesmo o que nao desejo reter, ¢ no consigo esquecer o que desejo esquecer™” Se, ao contririo, quisermos fazer reviver 0 passado no presente, esse trabalho passard necessariamente por varias etapas. Na pritica, estas se confundem entre si, ou se sucedem desordenadamente; aqui, enumero-as ‘em separado por razbes de clareza. Estabelecimento dos fatos. fa base sobre a qual devem repousar todas as construg6es ulteriores. Sem esse primeiro passo, néio se pode sequer falar de um trabalho sobre 0 passado. Antes de serem feitas outras perguntas, ‘cumpre saber: de onde provém o bordereau de Dreyfus, ¢ este iltimo traiu ou no? quem ordenou a fuzilaria na floresta de Katyn, os alemdes ou 08, russos? quem era destinado as cdmaras de gés em Auschwitz, os homens ou 0s piolhos? # por ai que passa a fronteira, irredutivel, entre historiadores € fabuladores. Mas também é assim na vida cotidiana: ns nunca abrimos 142 Meméria do mal, tentagio éo bem io de distinguir entre testemunhas confidves ¢ mitomanos. Tanto na csfera privada como na esfera puiblica, mentiras, falsificagées, fabulagoes sto impiedosamente encurraladas quando se quer fazer reviver 0 passado verdadeiro, ¢ niio apenas reafirmar as proprias convicgBes. ‘Ainda assim, nio basta buscar esse passa para que ele se insereva mecanicamente no presente, De todo modo, subsistem apenas alguns si- nais, materiais € psiquicos, daquilo que aconteceu: entre os fatos em si um processo de selegio mesmos ¢ os sinais que eles deixam, desenrol: que escapa a vontade dos individuos. Agora, aisso se acrescenta um se {/ gundo processo de selegio, consciente¢ voluntiia desta ver: de todos os | sinais deixados pelo passado, escolheremos s6 rter ¢ 6 consignar alguns julgando-os, por uma razio ou por outra, dignos de ser perpetuados. Esse rabalho de selegio € necessariamente secundado por outro, de disposicio | portanto de hierarquizagio dos fatos assim estabelecidos: alguns sero des, /- tacados ¢ outros, langados a perferia > “A recuperagio do passado pode interrompe-se nesse primeiro estigio. [Na Franca, tem-se um exemplo notivel de um tal trabalho de estabeleci- ‘mento dos fatos: 0 Mémorial des déportés juifi (Memorial dos deportados _judeus),elaborado por Serge Klarsfeld. Os carrascos nazistas quiseram ani- quilar suas vitimas sem deixar rastros; com desconcertante simplicidade, 0 Memorial documenta nomes préprios, lugares edatas de nascimento, datas de partida para os campos de exterminio, Ao farr isso restitui aos desapa~ recidos sua dignidade humana A vida perdeu para a morte, mas a meméria sganha em sua luta contra o nada, Um exemplocomparivel €a publicagao, cem 1997, dos documentos relativos a0 massacre dito “de Katyn", a execu ‘cdo, sem julgamento, de todos 0s oficiais poloneses feitos prisioneiros em" 1939: essa publicag4o," da qual um dos prinspais artesios ¢ Alexandre Yakovlev, 0 colaborador de Gorbatchey, permite estabelecer a verdade dos fatos, independentemente de qualquer questdosobre o sentido itimo desse ‘acontecimento ou sobre 0 uso que se ia fazer dele; o estabelecimento dos fatos é, em si mesmo, um fim digno de estima. ‘Num pais democritico, como vimos, nenhum constrangimento deve pesar sobre essa primeira fase do trabalho relative zo passado. Nenhuma instancia superior, no Estado, deve poder proclamar: vocés no tém o dirci- 143 to de buscar a verdade por si mesmos, quem no aceitar a versao oficial do passado sera punido. Trata-se da propria definigio da vida em democracia: 0s individuos, tanto quanto os grupos, tém o direito de saber por si mesmos (autonomia do julgimento) e, portanto, também de conhecer ¢ fazer ¢ nhecer sua propria hist6ria; nfio cabe ao poder central proibi-los disso ou autorizé-los a isso. Quando os acontecimentos vividos pelo individuo ou pelo grupo si de natureza excepcional ou trgica, esse se transfor- rma em dever: o de lembrar-se e de testemunhar. 0 fato de ser abusive Uma conseqiiéncia marginal dessa exig® lar sobre 0 trabalho de estabelecimento d parta de boas intengées, ¢ inoportuna a recente “Iei Gayssot", que pune, na Franga, as elucubragées negacionistas. As leis anteriores ja permitiam pu- ¢€ portanto ji protegiam as fatos. Por isso, embora nit a difamago ou a incitagio a0 édio ra pessoas; por outro lado, os tribunais niio esto qualificados para estabele- cer fatos histéricos, ainda que to graves quanto os crimes dos regimes comunistas, do poder nazista ou dos Estados coloniais. Construgdo do sentido, A diferenga entre a primeira ¢ a segunda fase no trabalho de apropriagaio do passado é a que existe entre constituir os arqui- vvos ¢ redigir a histéria propriamente dita. Com efeito, uma vez estabeleci- dos os fatos, & preciso interpreti-los, isto é, essencialmente, relaciond-los uns aos outros, reconhecer as causas ¢ 0s efeitos, formular semelhancas, gradagées, oposigdes. Aqui reaparecem, mais uma vez, os processos de se- \ legdo e combinaio. Mas 0 crtério que permite avaliar esse trabalho mu \Jou. Enquanto a prova de verdade (tas fatos aconteceram?) possibilitava séparar 0s historiadores dos fabuladores, as testemunhas dos mit6manos, ‘uma nova prova permite agora distinguir 0s bons historiadores dos ruins, as testemunhas notaveis das mediocres. 0 termo mente titil aqui, desde que the seja dado um novo senti verdade de adequacdo, de correspondéncia exata entre 0 discurso presente € 05 fatos passados (°4'400 oficiais poloneses fuzilados pelas tropas do NKVD na floresta de Katyn em 1940"), mas uma verdade de elucidacéo, que permite aprender 0 sentido de um acontecimento, Um grande livro de histéria ndo contém somente informagoes exatas: ele também nos ensina erdade’ pode ser nova~ : no mais uma 144 Meméria do fagiio do bem quais so as molas propulsoras da psicologia individual ¢ da vida social Evidentemente, verdade de adequago e verdadede elucidagdo nao se con- sim completam-se. - {ra essa nova forma tradizem, Contudo, no se consegu de verdade. le ashi vode ser Insustentavel e, portanto, refutavel, no extremo oposto, um limiar superior. Saber Stalin era um g@ tirano oW um perverso niio depende da constatacio dos fatos. Uma interpre- tagdo brilhante nao impede que uma outra, maisbrilhante ainda, posse um dia ser tentada, Mas nao se dispoe de nenhum isstrumento de medigio im- pessoal para avaliar 0 ‘virtuosismo' desta ou daquta interpretacio historica Nisso, 0 historiadores esto em situagao semelhante& dos romancistase dos poetas: a indicagdo de que eles alcangaram uma verdade de elucidacio mais profunda esti na adesio dos leitores, proximos oadistantes, presentes € pos- teriores; o ertério titimo da verdade de elucidiséo é intersubjetivo, e no referencia. Mesmo assim, a auséncia de uma verdade factual nao implica que, nesse plano da significagio, todas as interpetagbes sejam equivalentes ‘A construco do sentido tem por objetivo compreender o passado; € querer compreender — tanto © passado como o presente — € préprio do hhomem, Em que nos baseamos para afirmar que essa € uma caracterstica dda espécie? No fato de que o homem, a diferenga dos outros animats, dis so significa que cle é constitutivamente pée de uma consciéncia de duplo, pois sempre subsiste uma sua parte quereflete sobre o resto €, com isso, escapa & reflexio. Tal caracteristica, responsavel por sua capacidade de agir livremente, ¢ também 0 motivo de sua vocacio interpretativa. Os homens realizam sta humanidade tanto mais quanto reforgam essa ativi- dade da consciéncia ¢ tentam compreender o mundo inteiro ~ ¢, conse~ qiientemente, compreender a si mesmos. Poderiamos perguntar-nos se, quando o objeto a conhecer ¢ formado por males to extremos quanto os do século XX, a atitude de compreensio continua recomendével. Ao tentarmos compreender o mal, ndo corremos 0 risco de banalizé-lo? Uma testemunha tio escrupulosa como Primo Levi 145 pode escrever, a respeito de Auschwitz: “Talvez 0 que se passou néo deva ser compreendido, na medida em que compreender & quase justificar”? ‘Vindo de um autor de tal probidade, o alerta merece reflexo. No entanto, seria bom lembrar, antes de tudo, que isso nao impediu o proprio Levi de passar grande parte de sua existéncia tentando compreender ¢ extrair todas as ligbes de sua experiéncia concentracionéria. Em outros momentos, ele 0 diz com énfase: “Para um homem laico, tal como eu, 0 essencial é compreen~ der e fazer compreender. F tentar, precisamente, desmistificar essa repre- sentagéo maniqueista do mundo em branco ¢ preto’.” Por outro lado, pode- ‘mos perguntar-nos a quem se dirige prioritariamente esse alerta, Podemos considerd-lo perfeitamente justificado se os destinatarios forem ou 0 proprio Levi ou os outros sobreviventes dos campos: niio cabe as antigas vitimas procurar compreender seus assassinos, tanto quanto nio cabe as mulheres cstupradas debrugar-se sobre a psicologia de seus estupradores, Nesse caso, a ‘compreensio implica uma identificago com 0 carrasco, ainda que parcial © proviséria, e isso pode acarretar uma destruigo de si mesmo. Paranés, que no somos antigas vitimas, a pergunta continua em aber- to: podemos descartar uma tentativa de compreender 0 mal, mesmo o mais extremo? Também se pode questionar a relagao automatica que Levi parece estabelecer: “compreender € quase justificar’: Toda a concepgo moderna da justiga criminal repousa sobre um postulado diferente. O assassino, as~ sim como o torturador, o estuprador, deve pagar por seu crime, Contudo, a sociedade nfo se contenta com puni-lo: esforga-se também por descobrir por que o crime foi cometido, e por agir sobre as causas dele para prevenir outros crimes semelhantes. Nao que 0 consiga facilmente; mas, pelo me- ros, ela se da esse trabalho. Se tiver sido a pobreza que contribui para levar o individuo ao crime, ela tenta combater a pobreza; se foi a desgraga afetiva durante a infancia, ela tenta cuidar melhor das eriangas abandona- das ou maltratadas. Ainda assim, a justica modea nunca elimina a idéia de responsabilidade do individuo: em si mesma, uma causa jamais leva auto- maticamente a uma conseqiiéncia (0 homem sempre pode, dizia Rousseau, “aquiescer ou resistit”);* porisso, compreender 0 mal nio significa justifica- de liberdade humana e portanto, exceto no caso dos doentes menta _1o, mas antes obter os recursos para impedir-Ihe o retorno. 146 Men mal, tentagio do bem ‘Uma dificuldade surge diante daquele que deve mesmo tempo compre- ender julgar.Pois julgar € tragar uma separagdo ente 0 sujeito que julga € 0 objeto julgado, ao passo que compreender € reconler 0 fato de pertencer- ‘mos todos & mesma humanidade. Os dois atos no s situam no mesmo pla- no: tenta-se compreender os seres humanos, suscetives de uma infinidade de ‘agbes, ao passo que se julgam as ages efetivamente cometidas, em dado momento, num certo ambiente. 0 fato de sermos todbs feitos da mesma arga~ ‘massa no significa que se deva ignorar 0 abismo que separa o possivel do 1m diivida somos todos egoistas, mas nem todos nos tornamos racistas entre os rente os nazistas, na Europa, cregaram ao extremo que &o exterminio racial. Os homens sio todos potencisimente capazes do mes- ‘mo mal, mas nio o sto ¢fetivamente, pois néo tivenm as mesmas experién- cias: sua capacidade de amor, de compaixio, de jplgamento moral ou fot vada € se desenvolveu ou, 0 contririo, foi sufpcada ¢ desapareceu. Tal a diferenga entre Pola Lifszyc, uma joven habitante do gueto de Varsévia, que entra por livre vontade no trem deTreblinka para acompa- ¢ Franz Stangl,!* que preside as atividades desse campo de im a nhar a mic, exterminio e procura concentrar sua atengio nos meios de sua agio, ivos dela. Certos seres humnos podem matar ¢ tor~ como recalcar 05 obj turar, outros no; por isso, evitaremos falar da “bmnalidade do mal", como o faz Hannah Arendt em suas reflexdes sobre o processo Eichmann: no s6 ‘mal executado por Eichmann ou Stangl néio € banal, mas também justa- ‘mente essas pessoas, no momento em que participam do homicidio de mi- {4 nfo so nem um pouco banais.Ent2o a diferenca existe, hares de outra é até decisiva, e€ isso que justifica o trabalho de ucago e de agio publi- a ao qual Levi esteve ligado ao longo de sua vita. Por mais semelhantes que os homens sejam, os acontecimentos so tinics; ora, a Historia é feita de acontecimentos, ¢ sio eles que nds devemos etudar ¢ julgar ‘Mas limitar-se ao plano da responsabilidade legal e moral tampouco € suficiente; também cumpre reconhecer que pertercemos & mesma humani- dade e interrogar-nos sobre as conseqiléncias disso. Sob essa nova perspec- tiva, embora no percamos inteiramente nossa aitonomia de sujeitos, po- demos admitir que j4 néo ha ruptura entre nés € um outro (porque 0s outros esto em nés ¢ porque vivemos através deles), nem entre 0 mal 147 ‘extremo dos campos ou dos genocidios ¢ 0 mal cotidiano que nos é familiar 1 todos. De fato precisamos dessa dupla visto, e sabemos todos fazer-nos, alternadamente, justiceiros dos individuos e advogados do género humano. (0 que se deve procurar compreender, precisamente, no surgimento de ‘um mal tio extremo quanto o do século XX? Sio os processos — politicos, sociais, psiquicos — que conduzem a ele, As vitimas, justamente na medida em que viram sua vontade alienada, nfo chamam de compreensio wm tal trabalho, Uma mulher estuprada deve ser deplorada, reconfortada, protegi- da, amada; 0 que ha para compreender em seu comportamento, quando ela no fez sendo sofrera violencia? 0 mesmo se di no caso de uma po} inteira: nao hé nada para ‘compreender’, nesse sentido da palavra, no sofri- mento dos camponeses ucranianos condenados 8 fome, ou no das eriangas aqui, a compreenstio desapare- e-velhos judeus langados as camaras de ce em proveito da compaixio. Mas ndo € assim quando se quer resistit 20 mal. Mais vale, entio, nfo eludir as questées propriamente politicas, “subs tituindo pelo espeticulo da infelicidade a reflexo sobre o mal”, segundo a frase de Rony Brauman."” Bem mais que a acdo softida, o que cabe compre ender é a ago assumida: a dos malfeitores, mas também a dos individuos, resistentes ou salvadores de vidas humanas, que souberam combaté-los A compreensio sempre pode ir além — 0 que no significa que ela possa ir“até o fim"; mais uma vez, um limite é colocado por aquela caracteristica inata da espécie humana, a capacidade de agir livremente, para além de todas as causas e a despeito de todas as verossimilhangas. A conduta dos individuos encerra uma parte irredutivel de mistério ~ € nisso que eles so numanos. De novo, isso conceme tanto aos atos de conseqiiéncias in duais quanto aos que afetam 0 destino de povos inteiros. Abro 0 jomal: num subiirbio residencial de Paris, acabam de encontrar os cadaveres de investigagao revela que a mulher ‘uma familia, um casal e duas eriang: drogou ¢ degolou marido e fillos, antes de se enforcar. Nada na vida dessa familia permitia prever tal drama: eles davam a todo mundo a impresstio de felicidade e sucesso totais. Nao ¢ impensavel, incompreensivel, 0 gesto des- sa mae que degola os filhos? Mudando de escala, enfrentamos a mesma pergunta: pode-se ‘compreender’ a ago que resulta nos milhdes de cadé~ vveres de Auschwitz? Pode-se ‘compreender' Stalin, o homem de ferro, quando 148 Meméria do mal, tentagio 40 bem decide que milhdes de ucranianos merecem marer? Os atos que levam a esses resultados macabros nao sto forgosamentt irracionais, como vimos; mas € possivel duvidar de que nosso conhecinento dos individuos e das sociedades humanas nos permita, como se diz, engendrar’ esses aconteci- ‘mentos, isto é reunir todos os ingredientes delespara poder produzi-los de ‘maneira mecdnica. ‘Assim observadas as duas primeiras fases dotrabalho de rememoracio, mpde-se outra conclusio: a de que:a meméria ni se opée absolntamente a0 termos que formam contrase so a supressio (0 esque , sempre € necessariamente, uma ‘esquecimento. Os cimento) € a conservagio; a memér A reconstituigio integral do pasado € coisa impossivel. Se c, seria pavorosa, como 0 mostrou Borges em sua historia de Funes, el ‘memorioso. A meméria ¢ forgosamente uma selesio: certos detalhes do acon" jo ow aos poucos, tecimento serio conservados, outros, afastados, go de € portanto esquecidos. Por isso € tio equivocado chamarem de ‘memoria’ a capacidade que tém os computadores de conservara informagao: falta a esta Ultima operagio um traco constitutive da memiéta, a saber, o esquecimento, Conservar sem escolher nio é ainda um tribalho de meméria. 0 que reprovamos nos carrascos nazistas € comunistss nfo é o fato de eles rete- rem certos elementos do passado de preferénciaa todos ~ més mesmos nao esperamos proceder de outra forma —, mas o de se arrogarem o direito de elementos a reter. Paradoxalmente, quase se pode- controlar a escotha dizer que, longe de opor-se a ele, a memériaéo esquecimento: esqueci- ‘mento parcial ¢ orientado, esquecimento indispensavel rente um terceiro’ estigio da vida do passado no presente, € que é a instrumentalizagio dele com vistas a objetivos atuais. Apés ter sido reco- nhecido interpretado, o passado sera agora uilizado. f assim que proce- ‘dem as pessoas privadas, que poein 0 passado a servigo de suas necessida~ des presentes, mas também os politicos, que relembram fatos passados para alcangar objetivos novos. Em geral, os historiadores profissionais repugnam admitir que partici- pam desse terceiro estgio; a partir do momento em que fizeram reviver os 149 Aproveitamento, Poderiamos designar por sse termo ium tanto inreve- acontecimentos em sua materialidade e seu sentido, eles preferem consid rar terminada a prépria missio. Claro, tal recusa a qualquer uso ¢ possivel, ‘mas eta considero excepcional. 0 trabalho do historiador é inconcebivel sem uma referéncia a valores. So estes que Ihe ditam sua conduta: se cle formula cértas perguntas, se delimita certos temas, & por julg-los utes, importantes, exigindo até mesmo um exame urgente. A seguir, em funsio de seu objetivo, ele seleciona, entre todos os dados que The vem de arqui- vos, depoimentos ¢ obras, aqueles que Ihe parecem mais reveladores, € 08 agencia depois numa ordem que considera propicia & sua demonstragio. Por fim, e embora sua ‘moralidade’ nao seja to explicita quanto a do fabulista, ele sugere o ensinamento que se pode extrair desse fragmento de historia. Os valores esto em toda parte; ¢ isso no choca ninguém. Ora, quem diz valores diz também desejo de agir no presente, de mudar o mun- do, € nao s6 de conhecé-lo. ‘A utilizagio que se pode fazer do passado motiva abertamente agdes politicas, mas também, de maneira menos flagrante, as que se paramentam com os trunfos da ciéncia. Sem diivida, o que distingue os historiadores de tantos produtores de discursos é a exigéncia bisica de verdade ¢, portanto, ‘também a escrupulosa coleta de informagées; mas essa orientago no ex- ‘dui absolutamente o aproveitamento do saber deles. Quem acredita ser normal essa exclusio sofre de um certo angelismo ¢ postula uma oposico iluséria. “A ciéncia nfo ganha nada com a aparente neutralidade da lin- ‘guagem”, observava David Rousset no momento em que se dedicava & meticulosa coleta de documentos relativos aos campos de concentragio."* 0 trabalho do historiador, como qualquer trabalho sobre o passado, jamais. consiste exclusivamente em estabelecer fatos; mas também em escolher alguns deles como mais salientes e mais significativos do que outros € em relaciond-los entre si; ora, esse trabalho de selego e de combinagio € ne- cessariamente orientado pela busca nao somente da verdade, mas do bem. é claro, nfo se confunde com a politica; ainda assim, a propria A ciéni ciéncia humana tem finalidades politicas, e estas potlem ser boas ou més. Na pratica, os tés estaigios que acabo de distinguir existem simultanea- ‘mente; na maioria das vezes, comega-se nao pela coleta desinteressada dos fatos, mas pelo projeto de uma utilizacéo. B por ter em vista uma ago no 150 Meméria do mal, tentagio do bem presente que o individuo busca, no passado, exempls suscetiveis de legitima- Ta, Ou melhor, essas diferentes fases do trabalho histérico, assim como de toda ressurreigio do pasado, coexistem no mesmo momento. Jé que a ‘memiria é selec, foi preciso encontrar critériospara escolher entre todas as informagbes recebidas; ¢ esses critérios; tenham ou ndo sido conscientes, também servirio, segundo toda verossimilhanca,para orientar a que faremos do passado. \Testemunhas, historiadores, comemoradores Mantidos no presente, os vestigios do passado se organizam em alguns grandes tipos de discurso, entre os quais destacari trés: o da testemunha, © do historiador, 0 do comemorador. (7) A testemunha: com esse termo refiro-me a individuo que convoca ‘suas lembrangas para dar una forma, portanto um sentido, & sua vida, € ‘onstituir assim uma identidade. Cada pessoa ¢ tstemunha de sua prépria existéncia, cuja imagem ela constrdi omitindo certos acontecimentos, re- tendo outros, deformando ou acomodando outros ainda, Esse trabalho pode imentar-se de documentos (vestigios materia), mas, por defin ni temos contas a prestar a ninguém sobre a imagem que fazemos lit de nés mesmos. E verdade que o realizamos correndo riscos ¢ perigos: 0 esquecimento voluntirio gera remorsos, o recaique de certas lembrangas leva a neurose. £ 0 interesse do individuo que preside 4 construgao dessa imagem: ela o ajuda a viver-um pouco.menos nl, contribui para seu con- forto mental e seu bem-estar. Ninguém tem.o ilteito de nos impor a ima- ‘gem que temos de nosso proprio passado, embora sqjam muitos os que ousam tenta-lo: em certo sentido, nossas lembrancas sio irrefutaveis, pois vvalem por sua propria existéncia, ¢ no pela reiidade @ qual remetem. 0 historiador: assim designo o representante da disciplina cujo objeto é a reconstituigdo e a anzlise do passado; e, de modo mais geral, toda pessoa {que procure realizar esse trabalho escolhendo como principio regulador € como horizonte imo no mais o interesse do sujeito, mas a verdade im- pessoal. Ao longo dos tltimos séculos, 0s filsofos e os proprios historiado- res submeteram essa nogio de verdade a uma critica severa e muitas vezes 151 |justficada, para lembrara fragilidade dos nossos instrumentos de conhecl- mento, assimn como as inevitaveis intervengdes do sujeito que investiga; € inegavel que, se for apagada toda fronteira entre discurso veridico ¢ discur- so de ficglo, a Hist6ria ndo tem mais razao de ser. Tso fica evidente se nos Voltarmi0s para a pritica. 0 historiador, embo- ra humano, portanto falivel, € determinado até certo ponto pelas circuns- tancias temporais e espaciais de sua existéncia, tem um trago distintivo: na medida de suas possibilidades, ele procura estabelecer aquilo que julga ser a verdade, em sua alma ¢ consciéncia. Primeiramente, trata-se de uma ver- dade de adequagiio, mas também, embora a demonstracio seja mais dificil de conduzir, de uma verdade de elucidagao. Nesse plano, nenhum ‘relativismo’ é admissivel: bastaria um historiador inventar um fato, fal car uma fonte, para que o excluissemos imediatamente da comuni profissional e 0 cobrissemos de oprdbio. Sob esse aspecto, ele equivaleria a ‘um biélogo ou um fisico que maquiasse os resultados de sua experiencia: jé no se trataria de um estudioso um pouco menos estimavel que outro, por defender valores no coincidentes com os nossos; de saida, ¢ totalmente, le se teria colocado fora do proprio quadro da ciéncia, 0 historiador que desobedece & exigéncia de verdade deixa de pertencer 20 grupo dos histo- riadores para tornar-se nada mais que um propagandista. O contraste entre a testemunha (de sua propria vida) ¢ 0 historiador (do mundo}, um animado por seu interesse, 0 outro pela preocupago com vverdade, parece completo, Contudo, a testemunha pode achar que suas lem- brangas merecem entrar para a esfera pablica pois seriam tteis & educagio dos outros e nfo apenas & sua propria formagio. Nesse momento, ele pro- duz um “depoimento’, que vem concorrer com 0 discurso histbrico, espe- cialmente junto ao grande piiblico. Os historiadores véem os depoimentos com alggumas reservas: que eles sejam populares, ainda passa; mas, en- quanto nao tiverem sido submetidos ao exame propriamente histdrico (que rmuitas vezes se revela impossivel), nfo tém grande valor de verdade, As testemuntias, por sua ver, desconfiam dos historiadores: eles nio estavam 14, nao sofreram na prépria carne, na época dos fatos ainda usavam calgas ccurtas ou sequer tinham nascido. No entanto, esse conflite latente poderia ser superado se se reconhecesse que, mesmo sem estar dominado da mesma 152 Mem6s aaa eo aneira pela preocupagtio de verdade, o discursoda testemunha realmente enriquece o do historiador, Como? . Gostaria de ilustrar essa complementaridade can alguns excertos de uma pesquisa que realize! (com Annick Jacquet), jun a algumas testemunhas, isto é, durante @ sobre o comportamento cotidiano em situaglo extrem: ‘ocupagio da Franga, de 1940-1944, A historia nos dir que, com o desbara tamento, o exéreito francés deixou de lutar, prowcando a consternagao da populagio. Uma histéria muito detalhada informaré que, em 17 de julho de 1940, 07° corpo de exército recuou para o sul de Bourges € que uma compa~ nia senegalesa passou a noite no bosque antes de deixar a regio, no dia seguinte, Quando relembra aqueles dias, a sra. VB. o faz de maneira bem diferente. Durante a noite, conta, os soldados estationados na floresta deram tiros para descarregar suas armas. Esse barulho traumatizou os vizinhos dela, ‘es passaram trés das e trés noites grudando- im acabar se machucando, qu jasento, o outro em outro, mas, € claro, que ficaram enlouqui se uns aos outros. Achamos qu locamos um num sufocar. Entio & noite eles voltaram a se agarrar. sobrinhazinha de oito anos passando as feria li,emeteram a menina embai- xo de um colchio, para que nao fosse apanhada.A garotinha estava asfixia~ ‘Uma tal evocagio, embora parcial, nio seria do elogiente, to reveladora do estado de espirito das pessoas quanto a genenlizagio do historiador? Pelos livros de historia, sabe-se bem que os resistentes caidos nas mios cavam abragados, Tinham uma do inimigo viviam um calvario, Para as testemunhas, no hi ‘resistentes’ ndividuos; nao’ha softimentos abstratos, mas, por em geral, mas grupos ‘exemplo, a sede terrivel durante a permanéncia na prisio. “A gente urinow num caco de garrafa e umedeceu 0s lébios comaquilo”, conta o st F.B. “As: 9 horas, os alemies nos fizeram descer aos micérios €, embora estivessem todos esverdeados de musgo, logo comecamosa lambé-los. Quando viram isso, os alemdes deram uma caneca d’agua paracada um de nés”, acrescen- ta o st. P.S. Ao escutarmos tais detalhes, que lormam palpaveis as abstra- ‘des, sentimos que cles nos permitem chegar verdade dessa experiéncia. 0s historiadores nos dizem qual foi 0 nimero de deportados que retornaram a Franga ¢ também podem evocara dificuldade de reinsersao deles, 440 st. R. M. lembra-se bem de um repatiado. “Ele ja havia passado 153

Você também pode gostar