Você está na página 1de 14

1

Soledad

De Caio de Andrade para Federico Garcia Lorca

PERSONAGENS POR ORDEM DE ENTRADA

O CONTADOR DE ALBAICÍN

SOLEDAD CASADA

SOLEDAD SOLTEIRA

JOÃ O

MARIA

VÍTOR SOLTEIRO

EMÍLIO

ANTÔ NIO

GERALDO

VÍTOR CASADO

E AS LAVADEIRAS DA ANDALUZIA
2

PRÓ LOGO – O SONHO

A casada pergunta à solteira que está do lado oposto à mesa cercada de velas.
CASADA – Quem está sobre a mesa, Soledad? Quem morreu?
SOLTEIRA – Joã o, seu marido, nã o consegue ver?
CASADA – Nã o.
SOLTEIRA – Agora você nã o é nem solteira e nem casada. É viú va. Vai se vestir de preto
pelo resto da vida. Como a minha mã e e a sua.
CASADA – Mas, morreu tã o moço.
SOLTEIRA – (Persignando-se) Que esteja na gló ria de Deus.
CASADA – Foi uma peste? Um acidente no campo?
SOLTEIRA – Você matou seu marido.
CASADA – Eu?
SOLTEIRA – Alguns dizem que foi por causa justa. Eu já nã o sei. Nã o gosto de julgar
ninguém.
CASADA – Deve haver algum engano. Nã o mataria ninguém por mais mal que me fizessem.
SOLTEIRA – Mas matou.
CASADA – E por que razã o?
SOLTEIRA – Porque ele te feriu de morte.

CENA 01 – João e Soledad casada. No outro dia. Amanhece.

JOÃ O – Por que nã o me acordou?

SOLEDAD – Você nunca perde a hora.

JOÃ O – Podia ter perdido.

SOLEDAD – Você nunca perde. A hora, nã o. Por isso nã o me preocupo.

JOÃ O – Você nã o dormiu a noite inteira. Você sim começou o dia atrasada. Outro pesadelo?

SOLEDAD – Prefiro chamar de mal-estar. E o de ontem nã o foi fá cil.

JOÃ O – Já deveria ter se acostumado.

SOLEDAD – E você também.

JOÃ O - Nunca. (Mudando) A junta já passou?

SOLEDAD – Já .

JOÃ O – Tô indo.

SOLEDAD – Nem o café?


3

JOÃ O – Vô passar no Zé Lino pra recolher o gado que o coronel comprou.

SOLEDAD – Comprou.

JOÃ O – O Zé Lino recebeu dinheiro pelo sítio e pelos animais. O coronel comprou.

SOLEDAD – Obrigou o pobre a vender por qualquer preço pra nã o ser expulso da terra.
Como fizeram com o meu pai.

JOÃ O – Você ainda morre pela boca.

SOLEDAD – E você nã o devia concordar com isso.

JOÃ O – Ora veja! O que me mandam eu faço e pro’que eu nã o gosto engrosso a vista.

SOLEDAD – Eu odeio esse lugar.

JOÃ O – Você nunca ‘tá satisfeita. Já temos o nosso sítio, tô comprando uma cabeça por mês.
Ontem mesmo arrematei sete res’ do Vitor. Ele ‘tá indo embora.

SOLEDAD – O Vitor vai embora pra onde?

JOÃ O – Pr’outro lado da serra. Nã o aguenta ficar indo e voltando toda vez que falta á gua.

SOLEDAD – É isso que a gente devia fazer.

JOÃ O – Abandonar o que é meu? Nem por toda seca do mundo. E eu tenho sorte do coronel
ter outra fazenda pros lado do Moinho. Vou e volto. E por cinco ou seis meses você ainda
se livra de mim pra ficar co’as suas amigas.

SOLEDAD – Quem disse que eu tenho amigas?

JOÃ O – Pois devia. Por que nã o aprende a bordar?

SOLEDAD – Elas bordam e falam da vida alheia. Nã o me interessa.

JOÃ O – Aprenda a fiar.

SOLEDAD – As fiandeiras têm seus segredos, suas agonias, quando nã o, só falam das suas
famílias.

JOÃ O – Pois, entã o, fale da sua.

SOLEDAD – Família, Joã o, família. Seus maridos e seus filhos.

JOÃ O – Pois eu sou sua família.

SOLEDAD – E os filhos?

JOÃ O – Nã o temos filhos que gastem e isso é uma bençã o.

SOLEDAD – Nã o é justo.

JOÃ O – Nã o temos filhos porque Deus nã o quer.

SOLEDAD – Estamos casados há dois anos, Joã o.

JOÃ O – Que fossem vinte. Nã o há nada a fazer fora o que a gente já faz. Se os filhos nã o vêm
a culpa nã o é nossa.
4

Batem na porta. É Maria.

SOLEDAD – Quem é?

MARIA – (OFF) Maria. Já se pode entrar?

JOÃ O – Eu saio pelo fundo (sai). Vá atender a porta.

CENA 02 - Vitor e Soledad solteira conversam. Ela está sentada em uma pedra, terminando
de contar uma história – Flashback.
SOLEDAD – Na capela tinha um muro coberto de madressilvas azuis. Ele pegou um monte
delas, fez um buquê e deu pra sua noiva. A igrejinha ficava na orla do bosque e o
casamento foi em plena primavera. E a histó ria termina assim. Você gosta das
madressilvas?
VÍTOR – Entã o... Na minha casa as madressilvas moram num pote de vidro, todas secas, e
eu me lembro da minha avó preparando um chá pra mim, quando eu era mais novo e tinha
crise de bronquite.
Soledad sorri. Vítor de desculpa.
VÍTOR – Meu Deus, me desculpe, eu nã o passo de um pastor de ovelhas. Você falando das
flores de um modo tã o bonito e eu me lembrando de um xarope amargo.
SOLEDAD – (Sorrindo, meiga) Flores também podem ser secas e amargas. Assim como
frutas azedas muitas vezes viram geléias doces e agradá veis.
VÍTOR – Assim como um pastor também pode ser um homem afá vel.
SOLEDAD – E educado, quando ajuda uma moça a descer de uma pedra alta e
escorregadia.
Vítor sorri. Claramente nasce ali uma atração.
VÍTOR – Você vai direto pra casa? Ou vai passar na capelinha de madressilvas?
SOLEDAD – Ela nã o existe. Só na histó ria.
VÍTOR – (Insinuante) Mas nã o é lá que você quer se casar?
SOLEDAD – (Delicada) É onde eu sonho me casar. E sonhos muitas vezes nã o se realizam.
VÍTOR – Os seus vã o se realizar. Eu tenho certeza.
Clima. Os dois se olham ternamente e se separam. Cada um segue para o seu lado.

CENA 03 - Maria entra com uma cesta.

SOLEDAD – Veio de onde?

MARIA – Da casa da Dona Sofia.

SOLEDAD – E foi fazer o quê?

MARIA – Pegar uma encomenda. A filha chegou ontem da cidade.

SOLEDAD – E o que tem dentro da cesta?

MARIA – Renda, linho, fita e lã colorida.


5

SOLEDAD – Vestido de festa?

MARIA – Nã o. É que vou ter um filho.

SOLEDAD – Mas Maria, já ? Com cinco meses de casada? Tem certeza?

MARIA – Absoluta.

SOLEDAD – E você ‘tá bem? Vem sentindo alguma coisa?

MARIA – Um aperto no coraçã o, uma angú stia.

SOLEDAD – O tempo todo?

MARIA – Nã o. Vai e volta.

SOLEDAD – Já mudou seu corpo? Sua barriga? Como é?

MARIA – É como pegar um passarinho vivo na sua mã o. Só que está dentro de você. Tô me
sentindo um pouco perdida.

SOLEDAD – Perdida por quê?

MARIA – Eu nã o sei nada. Sou muito ignorante. Mas vou perguntar tudo pra minha mãe.

SOLEDAD – Sua mãe é velha, talvez nem se lembre de como foi com ela.

MARIA – Você pode me ajudar. Sabe tanto.

SOLEDAD – E de que me serve?

MARIA – É verdade. De todas as noivas do seu tempo, a ú nica que ainda nã o...

SOLEDAD – As coisas sã o assim, Maria. Filhos vêm quando tem que vir. A Helena nã o
demorou três anos pra engravidar? E outras precisaram de ainda mais tempo. (Tempo)
Mas no fundo você tem razã o: esperar dois anos e vinte dias como é o meu caso...
(Mudando) E como foi? Quando foi? Você sentiu?

MARIA – Bem na hora. Mês passado meu marido chegou feliz, animado com a venda do
mercado. Ai, bom, aconteceu e ele me dizia tanta coisa, tanta coisa colado no meu pescoço,
que eu senti, naquele momento, que meu filho veio como um pombo de luz que ele fez
deslizar pela minha orelha.

SOLEDAD – Quanta sorte. Comigo nunca aconteceu assim. É tudo tã o seco quanto a terra. E
depois, ao invés de eu me virar pro lado pra sonhar com o meu filho, como nã o sinto nada,
saio descalça no meio da noite, para tomar ar fresco e nã o enlouquecer.

MARIA – Dizem que os filhos nos fazem sofrer muito.

SOLEDAD – Mentira! Para vê-los crescer é preciso trabalho, desgaste, por vezes momentos
de dor, de tristeza, mas isso faz parte. Toda mulher tem sangue para quatro ou cinco filhos
e quando eles nã o chegam o sangue vira veneno. É o que está acontecendo comigo.

MARIA – Uma irmã da minha mãe pariu depois de quatorze anos. E nasceu um bebezinho
lindo. Tã o forte que quando tinha quatro meses enchia a gente de arranhõ es.

SOLEDAD – Isso nã o dó i. Minha irmã deu de mamar para o seu filho com o peito cheio de
feridas. Sofria, claro, mas era uma dor fresca, saudá vel, natural.
6

MARIA – Agora eu preciso ir. Aí na bolsa tem os panos para as fraldas, também.

SOLEDAD – Pode confiar em mim. Ele terá roupinhas lindas. E fraldas muito bem feitas.

MARIA – Tenho certeza. Entã o, até logo.

Maria sai. Soledad desaparece com a luz.

CENA 04 – Soledad jovem e Vítor. Tempo frio. Roupa de missa.

VÍTOR – O que um ovelheiro tem de pronto é um abrigo, uma carroça e um cajado. O meu
veio do meu avô . E uma costureira?

SOLEDAD – Novelos, linhas, uma boa tesoura e uma coleçã o de agulhas. E tecidos, claro.
Que na maioria das vezes nã o sã o dela. As freguesas é que trazem.

VÍTOR – Nã o é muita coisa, se juntarmos tudo. (Divertindo-se) Talvez eu nã o seja um bom


partido.

SOLEDAD – Posso dizer o mesmo. E é melhor parar por aqui, pois se alguém escuta essa
conversa vai achar que estamos querendo nos casar. E na minha casa isso nã o sou eu
quem decide.

VÍTOR – Nem na minha. (Tempo) Você quer ter muitos filhos?

SOLEDAD – Muitos, claro! Que mulher nã o deseja ter filhos. Ter filhos é a mais sublime
obrigaçã o de uma mulher casada.

VÍTOR – Depois de amar o marido.

SOLEDAD – E a Deus!

CENA 05 – João e Emílio, camponês amigo do casal.

EMÍLIO – (Constrangido) Que a sua mulher acorda noite alta, anda de um lado pro outro
dentro e fora da casa, nã o se conforma com a vida de casada e nã o se comporta como uma
mulher cristã.

JOÃ O – O padre?

EMÍLIO – O padre. Nã o abertamente, mas comentando na sacristia com a Dona Rita. Foram
ouvidos pela minha mulher e pela minha filha.

JOÃ O – Mandei chamar meu irmã o Antô nio e minha cunhada. Ele vem me ajudar na feira
de Alvarez. A partir da semana que vem Soledad nã o fica mais sozinha quando eu for pro
campo. Antô nio vai comigo, mas a Teresa fica em casa. Assim eu vou ter mais sossego.

EMÍLIO – Eu acabei se me encontrar com ela na porta.

JOÃ O – Deve ter ido à fonte. (Mudando) As mulheres da sua casa ouviram mais alguma
coisa?

EMÍLIO – (Ainda incomodado) Que lavadeiras falam muito. Mas eu nã o perguntei mais
nada.

JOÃ O – Foi melhor, Emílio. Melhor. De qualquer modo, obrigado.


7

CENA 05 A – Antônio aparece em carta.

ANTÔ NIO (Lendo uma carta) – “Estou farto, Antônio. Meus dias têm sido duros. Ontem podei
as macieiras e quando me vi exausto, no final da tarde, perguntei por que tanta labuta se não
tenho tempo de comer uma só fruta. Quando eu chego a casa ela não está. E seu
comportamento vem movendo um tufão de intrigas que me envergonha.”

TERESA - Vamos vigiá -la. Se estivermos por perto ninguém comentará nada.

ANTÔ NIO – (Continuando a leitura da carta) “Minha vida está no campo, mas minha honra
está aqui. E a minha honra também é a honra da nossa família”.

TERESA - Nunca gostei dessa mulher. Nunca.

CENA 06 – Entre João e Soledad.

SOLEDAD – E eles vã o ficar até quando?

JOÃ O – Até quando for necessá rio. Teresa vai ajudar você com as tarefas do dia.

SOLEDAD – Nã o preciso de ninguém nessa casa além de mim e de você.

JOÃ O – Vou me sentir mais seguro se ela estiver em sua companhia enquanto eu fico no
campo. Ontem fiz a poda e depois do jantar vou tratar do gado. (Mudando) Foi à fonte?
Trouxe á gua fresca?

SOLEDAD – Dois baldes. Estã o no pá tio, perto da cozinha. (Mudando) Por que nã o fica
hoje?

JOÃ O – Essa semana tenho muito que fazer. Todo homem tem sua vida.

SOLEDAD – (Irônica) Eu sei. Nã o se preocupe. Temos pã o novo, requeijã o e cordeiro


assado. Nada me falta. E agora, a Teresa. Pois entã o, fique em paz.

JOÃ O – Para ficar em paz é preciso tranquilidade.

SOLEDAD – E nã o tem?

JOÃ O – Nã o. Ovelhas no curral e mulheres em casa. Você sai muito, Soledad.

SOLEDAD – Mulheres ficam em suas casas quando suas casas nã o sã o tumbas. Quando as
cadeiras se quebram com o uso, quando os lençó is de linho se desgastam naturalmente,
quando a casa abriga planos, projetos, vida. Aqui nã o. Minha cama está mais nova a cada
noite, como se tivesse chegado a casa hoje pela manhã.

JOÃ O – Essa teimosia, essa insatisfaçã o é que me coloca inquieto, alerta.

SOLEDAD – Alerta? Eu sou totalmente submissa. Nã o o ofendo em nada e se sofro por


qualquer motivo sofro sozinha. E ainda assim tudo piora. Sei carregar minha cruz e peço
que se você nã o pode fazer nada para me ajudar nã o zombe dos meus cravos.

JOÃ O – Nã o tenho ideia do que você está falando. Nada te falta, tudo o que você quer eu
mando buscar, nã o te privo de nada. E só o que peço é sossego. Tranquilidade, Soledad.
Quero, lá fora, dormir pensando que você também dorme aqui dentro.

SOLEDAD – Como se eu pudesse dormir.

JOÃ O – Nã o dorme por quê? Te falta alguma coisa?


8

SOLEDAD – Sim, falta!

JOÃ O – Já estamos casados há cinco anos e você nã o se aquieta?

SOLEDAD – Nã o. Nem em cem anos. Eu fico nesse lugar funesto, sem vísceras, sem alegrias.
Os homens tem outra vida: o gado, as plantaçõ es, as bodegas, as conversas e nó s,
mulheres, o que fazemos se nã o temos filhos? O que, Joã o?

JOÃ O – Pois traga um dos filhos do seu irmã o para criar.

SOLEDAD – Nã o quero cuidar dos filhos dos outros. Meus braços ficam gelados só de
pensar.

JOÃ O – Nã o se apieda? Nã o compreende que quem está do seu lado, nã o vive. Está sempre
desassossegado? Você precisa se resignar.

SOLEDAD – Quando estiver morta e enterrada estarei resignada. Por hora nã o me peça
isso.

JOÃ O – Mas o que eu posso fazer, entã o? O quê?

SOLEDAD – Nã o há copo, Joã o e eu quero á gua. Nã o há pés quando tenho vontade de subir
o morro, nã o há linhas para bordar minhas aná guas. Tudo me falta.

JOÃ O – Você é uma mulher cheia de ditos, de vontades, de desejos infundados e assim
arruína um homem sem determinaçã o como eu.

SOLEDAD – Entã o, nã o se incomode comigo. Me deixa livre, só isso.

JOÃ O – Nã o gosto que o povo me aponte. Por isso quero essa casa fechada com você
dentro.

SOLEDAD – Falar com outras pessoas nã o é pecado.

JOÃ O – Mas pode parecer. Quando vierem conversar contigo é bom se lembrar de que você
é uma mulher casada e nã o pode se dirigir a qualquer pessoa.

SOLEDAD – Tudo isso porque eu sou casada?

JOÃ O – Porque as famílias têm honra. E honra é uma carga que todos devemos carregar.
(Pausa) E agora vamos comer.

SOLEDAD – Eu nã o tenho fome.

Sai.

CENA 06 – Entre Vítor e Soledad solteira.

VÍTOR – Joã o?

SOLEDAD – Sim, Joã o, filho do caseiro do coronel Bretã o. O pai dele nã o sai lá de casa.

VÍTOR – Sua mãe quer que você se case com o Joã o, é isso?

SOLEDAD – Nã o sei, nã o entendo dessas coisas, mas minha mãe é viú va, vendemos o sítio
pro coronel e agora que já nã o temos terras precisamos arrendar um lugar pequeno pra
nó s duas. Acho que pode ser isso.

VÍTOR – (Aflito) Isso o quê?


9

SOLEDAD – Nã o sei... Talvez o que o pai do Joã o esteja fazendo lá em casa seja só oferecer
um pedaço de terra pra gente arrendar. Do coronel, entende?

VÍTOR – Uma terra que já foi sua.

SOLEDAD – Mas que o meu pai vendeu pra ele antes de morrer.

VÍTOR – E por isso você vai se casar com o Joã o?

SOLEDAD – Eu nã o sei, já disse. É só um pressentimento. Eu tenho pressentimentos, Vítor.


E sonhos.

VÍTOR – E eu nã o tenho terras para salvar você.

SOLEDAD – Me salvar do quê?

VÍTOR – Do Joã o. Ele é bruto. Ele nã o vai levar você pra se casar na capelinha de
madressilvas.

CENA 06 – Entre Soledad e seu tio Geraldo.

GERALDO– Seu marido sabe que você está aqui?

SOLEDAD – Ninguém sabe. Queria ter vindo antes, mas...

GERALDO-... Mas nã o teve coragem.

SOLEDAD – (Silêncio que denuncia tudo).

GERALDO– Nã o se preocupe. Já estou acostumado.

SOLEDAD – Maria, sua afilhada, está grá vida.

GERALDO– Já soube.

SOLEDAD – Com apenas cinco meses de casada.

GERALDO – Uma bençã o.

SOLEDAD – Que para mim nunca chega.

GERALDO – O inverso da bençã o é a maldiçã o. Nã o a invoque, Soledad. Eu sei do que estou


falando. Por isso moro na estrada, entre uma vila e outra. À meia-distâ ncia. Para nã o
provocar nem um e nem outro povoado. Isolado como um leproso.

SOLEDAD – O senhor foi excomungado.

GERALDO – E nunca perdoado.

SOLEDAD – Se nã o se arrepende do que fez como espera ser agraciado com graça divina?

GERALDO – Tudo o que eu fiz foi amar e ser amado. Deus já me perdoou. Quem nã o me
suporta sã o os homens e suas mulheres. Se pudessem me matavam.

SOLEDAD – Nã o diga isso, meu tio.

GERALDO – Um padre se apaixona, pede para deixar a batina, nã o recebe a devida


permissã o...
10

SOLEDAD –...foge com a moça, casa-se com ela numa cerimô nia profana, têm um filho,
perdem o filho e quando o prometido da moça a encontra mata a futura esposa e depois
acaba com a pró pria vida. É essa a histó ria contada. Nã o se pode negar meu tio: é uma saga
de danaçã o.

GERALDO – Por que veio?

SOLEDAD – Vim para me confessar.

GERALDO – Eu nã o sou mais padre.

SOLEDAD – Mas continua sendo o meu confessor. Meu amigo. O tio querido que sempre
me compreendeu.

GERALDO – É melhor você ir embora, minha filha.

SOLEDAD – Por favor, tio. Eu nã o sei a quem mais recorrer nessa agonia.

GERALDO – Muito bem. Posso ouvi-la como um cristã o que tem como compromisso ajudar
a quem pede, mas nã o aceito nada aquém da verdade.

SOLEDAD – O senhor a terá .

GERALDO– Você ama seu marido?

SOLEDAD – Eu?

GERALDO– Sim. Você ama o Joã o?

SOLEDAD – Claro. Ele é meu marido. Tenho obrigaçã o de amar e respeitar o meu marido.

GERALDO– Quando o Joã o beija sua boca e se deita sobre você é como se o mundo todo
parasse?

SOLEDAD – (Quase indignada) Meu tio!

GERALDO– Responda.

SOLEDAD – (Constrangida, mas verdadeira) Nã o. O mundo nã o para.

GERALDO– E você já experimentou essa sensaçã o?

SOLEDAD – (Com dificuldade) Há muito tempo. Quando eu era mais nova e o Vítor me
segurou no braço, pra me ajudar a saltar de uma pedra. (Viajando, voltando para aquele
momento) Nem mesmo a minha respiraçã o eu sentia.

GERALDO– E até hoje é assim? (Direto) Quando você encontra com o Vítor?

SOLEDAD – (Caindo em si, voltando, atordoada) Meu tio, por favor, o que é isso? Vítor é um
homem casado, amigo do meu marido, trabalham praticamente juntos durante toda a
semana, mas eu nunca estou por perto. (Arrependida) Nem sei por que eu contei essa
histó ria, já faz tanto tempo.

GERALDO– Talvez seja por isso que os filhos nã o chegam. Talvez o Joã o igualmente nã o se
sinta atraído por você e...

SOLEDAD – (Dando um basta) Chega. Acho que nã o fiz bem em ter vindo. Peço desculpas.
11

Chega Maria. Sente que existe um clima estranho no ar. Geraldo rompe o silêncio.

GERALDO– Maria.

MARIA – (Querendo ser simpática, quebrar o clima) Padre. Quer dizer, padrinho.

GERALDO – Você está bem? Feliz com o seu filho?

MARIA – Como no paraíso.

Sorrisos leves e sinceros.

MARIA – Mas na verdade eu vim buscar a Soledad. O Joã o está procurando por ela.
(Voltando-se para amiga) Ele descobriu que você passou a noite fora. Digo, na casa da
Dolores.

GERALDO– Você foi ao cemitério?

SOLEDAD – (Perdida) Fui.

MARIA – A Teresa acordou de madrugada, viu que você nã o estava em casa e avisou o Joã o.

SOLEDAD – Aquilo é uma cobra.

GERALDO– Você veio direto da Dolores pra cá ?

SOLEDAD – (Autômato) Vim.

GERALDO – Volte pra casa. E espere pelo pior. Visitar a feiticeira e o pagã o em um mesmo
dia sã o feitos imperdoá veis.

CENA 07 – Entre Soledad e João.

JOÃ O – É mentira. A Teresa acordou para ir à missa, notou sua ausência, foi à igreja na
esperança de te encontrar rezando o terço da alvorada quando alguém contou que você foi
vista entrando na casa da Dolores.

SOLEDAD – Alguém quem?

JOÃ O – E isso interessa?

SOLEDAD – Eu quero saber.

JOÃ O – Pois o que eu, seu marido, quero saber é porque uma mulher casada foi vista
entrando, de madrugada, na casa de uma lâ mia, de uma curandeira, vinda do cemitério.
Nã o bastasse a vergonha que você me faz passar por toda a aldeia proclamando o seu
ventre seco aos quatro cantos, agora até os mortos precisam saber desse desassossego?

SOLEDAD – Desassossego?

JOÃ O – Que nome você prefere dar a essa obsessã o?

SOLEDAD – (Verdadeiramente exausta) Eu preciso descansar. Estou com dor de cabeça.


12

JOÃ O – É no campo santo que mora a deusa da fertilidade? É isso? Foi isso que a Dolores
falou? Sim, porque eu procurei saber o que essa infeliz provoca em mulheres desnorteadas
como você e soube que...

SOLEDAD – (Esgotada) Chega Joã o. Por hoje chega. Eu preciso dormir. Vou tomar um
remédio.

JOÃ O – (numa quase confissão) Nã o há remédio para o seu mal, Soledad. Nem para o meu.

João, a contragosto, vai saindo quando Soledad – em meio a um estranho e inesperado


momento de dúvida, o detém:

SOLEDAD – Joã o.

Ele para olha para a esposa. Nada fala.

SOLEDAD – Você nã o tem nada pra me contar?

João, profundamente angustiado, desvia o olhar e vai embora.

CENA 08 – Entre Soledad solteira e Vítor.

SOLEDAD – Quase fiquei viú va antes mesmo de me tornar esposa. Mas ele já está melhor.

VÍTOR – Eu soube.

SOLEDAD – Agora é esperar pela pró xima colheita e entã o me casar.

VÍTOR – (Deixando escapar) Meu pai me disse uma coisa que... (Arrependendo-se) Deixa
pra lá .

SOLEDAD – Fala. É em relaçã o ao Joã o? (Pausa) A doença dele? Pois se for o que anda se
espalhando por aí, que essa doença faz o homem ficar meio perturbado pelo resto da vida,
saiba que é mentira. Já perguntei até para o padre, meu Tio Geraldo, e ele me disse que nã o
passa de superstiçã o. E um bom cristã o nã o deve abrir espaço para esses pensamentos.

VÍTOR – É sobre a doença sim, mas...

SOLEDAD – Mas?

VÍTOR – É só implicâ ncia minha. (Carinhoso) Você sabe que se dependesse de mim esse
casamento...

SOLEDAD – Eu acho que de agora em diante, quando eu vou precisar ficar mais perto do
Joã o, enquanto ele se recupera, a gente nã o deveria mais se encontrar. Nã o assim,
sozinhos.

VÍTOR – (Triste) Como você achar melhor. Eu nã o quero comprometer você e muito menos
o seu casamento, longe de mim. Embora eu acredite que você deveria esperar pra saber se
o Joã o está totalmente recuperado antes de visitá-lo. Essa doença é muito contagiosa.

SOLEDAD – Entre os homens, eu soube. Por algum motivo as mulheres nã o correm tanto
perigo.

VÍTOR – (Nebuloso) É . Foi isso mesmo que o meu pai disse.


13

CENA 09 – Entre João e Emílio.

EMÍLIO – Ela disse para minha mulher que finalmente teve um lampejo. Uma revelaçã o.

JOÃ O – Uma revelaçã o.

EMÍLIO - Agora vaga pelos limites da cidade, anda até as estradinhas que levam ao campo,
ameaça seguir uma trilha, mas volta.

JOÃ O – Deve estar esperando um momento para escapar e ir novamente à casa do tio.

EMÍLIO – Nã o é o que parece. O amaldiçoado mora do outro lado da serra.

JOÃ O - Nã o diz uma palavra dentro de casa e à noite dorme no chã o do quarto.

EMÍLIO – É preciso levar sua mulher até o padre e pedir que ele a benza. Soledad está se
transformando ainda em vida numa alma perdida e transfigurada.

CENA 10 – Entre Soledad e Vítor, adultos. Soledad jovem está atrás dela, como uma
aparição.

SOLEDAD – Noutro dia eu sonhei que tinha matado o meu marido.

VÍTOR – (Deslocado, apreensivo, com medo) Como você chegou até aqui Soledad e por quê?
O engenho fica longe. (Atônito) Veio a pé?

SOLEDAD – Era sua avó quem preparava as mezinhas da aldeia. Os xaropes, as beberagens,
os remédios com as ervas maceradas, tudo. E além do mais eu me lembro: você me contou
que seu pai andava desconfiado. Porque você nã o me disse claramente o que estava
acontecendo, Vítor?

VÍTOR - O que se comentava naquela época nã o passava de especulaçã o. O que eu poderia


ter dito? Eu mal conhecia o homem com quem você se casaria.

SOLEDAD – E hoje faz negó cios com ele. E quando vai à minha casa mal entra, nã o fala
comigo e se nos encontramos furtivamente na missa desvia o olhar.

VÍTOR - (Caindo em si, querendo encerrar a conversa). Volte para a aldeia, Soledad. O que
mais o povo dirá se alguém souber que você está aqui, sozinha com um homem casado.

SOLEDAD – Um homem que teria me dado filhos. E talvez muito mais.

VÍTOR – Um homem que seguiu a sua sina.

SOLEDAD – Que com um pouco mais de coragem teria se casado comigo na capelinha
rodeada de madressilvas.

Vítor se volta com um olhar distante, triste e saudoso. As duas Soledad assistem se lamentam.

FIM
14

Você também pode gostar